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Hélio Schwartsman: Um xerife no ministério

Sergio Moro pode agir como uma força moderadora sobre Jair Bolsonaro

A decisão de Sergio Moro de trocar a toga de juiz pela caneta de ministro não fez muito bem à sua imagem pessoal nem à do Judiciário, mas estamos falando mais de um arranhão do que de uma ferida mortal. Sem prejuízo de outros questionamentos, não penso que se possa argumentar seriamente que Moro condenou Lula, em julho de 2017, quando quase ninguém considerava a candidatura Bolsonaro viável, com o objetivo de obter um cargo no que viria a ser seu governo.

E, agora que o ex-magistrado está na equipe de Bolsonaro, creio que ele pode agir como uma força moderadora sobre o presidente eleito. Ainda que Moro possa ser descrito como linha dura em matéria penal, é bom que o núcleo do governo conte com alguém familiarizado com conceitos como direitos e garantias fundamentais, devido processo legal, impessoalidade da administração.

Se dava para defender que o candidato Bolsonaro, detentor de um discurso intolerante e antidemocrático, não deveria ser normalizado, agora que ele é presidente eleito precisa não só ser normalizado como institucionalizado (perdoe-se o duplo sentido). Moro pode ajudar nisso.

Em relação à pauta do Ministério da Justiça propriamente dita, o ex-juiz também pode contribuir. Ele tem a expertise e a vontade para desenvolver novos mecanismos de combate à corrupção. O fato de o passivo do governo Bolsonaro nessa seara ser pequeno torna verossímil que observemos avanços concretos.

Onde eu penso que Moro terá problemas é em relação aos crimes comuns praticados por bandidos ordinários, que são justamente aqueles que causam a sensação de insegurança. O governo federal nem sequer dispõe de um corpo policial adequado para enfrentar esse tipo de delinquência. Não dá para colocar a Polícia Federal para perseguir qualquer assaltante ou punguista. Não obstante, como Moro acabou cultivando a imagem de xerife que tudo resolve, é pela sensação de insegurança que ele será cobrado.


Bruno Boghossian: Com sorte, nova ministra não terá poder sobre educação e saúde

Área de direitos humanos tem problemas e não precisa de invencionices ultraconservadoras

Segundo Damares Alves, em breve a princesa do desenho “Frozen” acordará a Bela Adormecida com um “beijo lésbico”. Ela também reclamou quando viu o pai gay de uma ilustração usando um tênis da moda, que o faz parecer mais descolado do que um pai heterossexual.

Com sorte, a futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não terá poder para interferir em políticas públicas na saúde, na educação, na cultura e em outros temas fora de seu guarda-chuva.

A pasta que será comandada pela advogada e pastora não toma decisões nessas áreas, mas costuma ser ouvida. Caso ela abasteça o governo com as informações que usou em palestras nos últimos anos, o país corre o risco de enfrentar retrocessos.

Damares já distorceu dados sobre saúde pública para mobilizar fiéis de igrejas evangélicas. Em 2013, disse que não há milhares de mulheres que morrem em consequência de abortos ilegais e desafiou qualquer pessoa a mostrar seus túmulos.

Também exibiu uma propaganda italiana sobre discriminação sexual e disse falsamente que ela seria reproduzida no Brasil. Ao falar de turismo sexual, afirmou: “Tem muito hotel fazenda de fachada por aí para os homens transarem com animais”.

Nesta quinta-feira (6), Damares disse estar interessada em combater preconceitos, a pedofilia e a violência contra a mulher. O ministério já tem um prato cheio de problemas para resolver sem as invencionices de alas ultraconservadoras.

Se não surgirem explicações convincentes, a revelação de que um ex-assessor de Flávio Bolsonaro movimentou R$ 1,2 milhão em um ano e assinou um cheque de R$ 24 mil para a mulher de Jair Bolsonaro abrirá a primeira crise do novo governo.

O azar do futuro presidente é que ele não poderá usar a caneta Bic para demitir o filho, senador eleito, caso precise se distanciar do problema. Nesta semana, Flavio disse que, por causa do sobrenome, não será “um senador comum”. Ele tem razão.


Eliane Cantanhêde: Os enjeitados

Para que servem Direitos Humanos, Meio Ambiente, mulheres e Funai?

Não foi por acaso que a Funai virou batata quente e os ministérios de Meio Ambiente e de Direitos Humanos ficaram no fim da fila da composição do futuro governo. Simplesmente, esses são temas desconhecidos pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, e por todo seu grupo de poder. Eles rejeitam tudo o que foi feito nas três áreas, mas não sabem exatamente o que por no lugar.

Em suas declarações, Bolsonaro reclama que índio não pode ser tratado como “animal de zoológico”, tem de ser assimilado, ter direitos iguais aos de todos os cidadãos e poder explorar e plantar ou arrendar as suas terras. E reclamou que a Funai atrasa e dificulta os alvarás para empreendimentos e obras no País.

Se o chefe pensa assim, nenhum chefiado queria assumir a Funai, as reservas, os índios, os alvarás. Sérgio Moro (Justiça) já está “muito sobrecarregado”, segundo o próprio Bolsonaro. Tereza Cristina (Agricultura) ponderou que não seria adequado cuidar de dois polos tão conflitantes (agricultura e índios vivem de terras, ou melhor, disputam terras). A sensação era de que o abacaxi acabaria no Planalto. Caiu em Direitos Humanos.

Quanto ao Meio Ambiente, ficou realmente difícil arranjar alguém para desmontar tudo o que foi feito nessa área. Que ambientalista assumiria jogar para o alto a candidatura do Brasil para sediar a COP 25? Ou discutiria a retirada do Acordo de Paris, para o qual o País se empenhou tanto? Logo, o futuro ministro teria de ser do agronegócio, evangélico, da bancada da bala ou delegado.

Na opinião do presidente eleito, meio ambiente existe para duas coisas: atravancar o progresso, impondo obstáculos à construção de estradas, pontes e viadutos, e enriquecer essas ONGs esquerdistas que não servem para nada a não ser tomar dinheiro público. Por isso, sua primeira tentativa foi submeter a área à Agricultura. Como não deu certo, mantém-se o ministério. Mas que ministério?

Já as manifestações do seu futuro ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, denotam uma aversão mais grave e profunda. O “ambientalismo” seria instrumento do comunismo internacional para subjugar os países e dominar o mundo. Logo, o ministro do Meio Ambiente teria de ser alguém radicalmente contra o meio ambiente? Fica a dúvida.

Quanto aos Direitos Humanos, a questão é ainda mais complexa, porque em todos os governos pós-redemocratização o foco esteve na reabertura dos arquivos da ditadura militar e na denúncia aos desaparecimentos, mortes e torturas. Obviamente, não será mais assim, não só porque Bolsonaro é militar reformado como se cercou de generais e fez manifestações de apoio à tortura e ao coronel Brilhante Ustra.

Então, manter ou não um ministério para Direitos Humanos? A discussão afunilou para o Ministério de Família, Mulheres e Direitos Humanos, com a Funai de apêndice, mas a coisa encrencou quando o pastor e senador Magno Malta, que perdeu a eleição, foi preterido para o cargo e a agora poderosa bancada evangélica resolveu se meter. O senador não podia, mas a pastora Damares Alves, assessora dele, pôde. Por tabela.

Montagem de ministério – como, de resto, de qualquer equipe – é sempre difícil, mexe com interesses, ambições, vaidades, amizades, inimizades. Logo, é compreensível que Bolsonaro tenha varado novembro sem conseguir fechar todos os 22 nomes e passado a ouvir muito antes de decidir.

Mas, mais do que nomes, aguardam-se informações sobre as intenções do novo governo para meio ambiente, índios, direitos humanos, família, mulheres. Vamos combinar, entra governo, sai governo, e todos esses temas têm a ver diretamente com as pessoas, o Brasil de hoje e o do futuro. Aliás, não só o Brasil, mas o mundo.


Míriam Leitão:Ideias e papel do vice-presidente

Mourão defende pragmatismo na política externa, desvinculação do Orçamento, arrendamento de terra indígena apenas fora da Amazônia

O vice-presidente eleito, Hamilton Mourão, defendeu com entusiasmo a ideia de desengessar o Orçamento, proposta pelo futuro ministro Paulo Guedes, e afirmou que isso dará “mais poderes ao Congresso”. Ele explica que a reforma da Previdência deve ser ampla, porém com uma implementação por etapas. Sobre relações internacionais, ele resgata a expressão “pragmatismo responsável” e diz que temos que ter relações de global partners (parceiros globais) tanto com a China quanto com os Estados Unidos, mas esclarece: “Tenho muita admiração pela democracia americana. Tenho identificação com os valores deles.”

Em uma longa conversa ontem em seu gabinete, no grupo de transição, o vice-presidente ainda falava um pouco anasalado, resultado de uma sinusite que o afetou nos últimos dias. Perguntei se não estaria havendo muita bateção de cabeça na equipe do futuro governo e ele disse que isso é natural em qualquer administração que está se instalando.

Sobre seu papel no governo, disse que será o mesmo de qualquer vice-presidente:

—Esto uaqui para substituir o presidente, por isso acompanharei todos os assuntos de governo, pensarei em soluções, para estar preparado caso o presidente me chame para conversar.

O fatiamento da reforma da Previdência, ele explica de outra forma. Diz que seria uma reforma ampla, com implementação por etapas, começando pela idade mínima. A mudança para o regime de capitalização teria que ser num tempo futuro. Perguntei sobre a previdência dos militares:

—Estudei o assunto e formulei uma proposta, tempos atrás. Amplia-se o tempo de serviço para 35 anos e a pensionista que hoje não contribui passa a contribuir. A mudança que foi feita em 2000 já acabou com algumas vantagens.

Diz que atualmente já não há mais promoção quando sevai para a reserva eque quem pede baixa ganha proventos proporcionais ao tempo trabalhado.

Hamilton Mourão acha que o melhor lugar para a Funai é ficar onde está, no Ministério da Justiça, e defende a ideia de que os índios possam arrendar suas terras, desde que não seja em área sensível:

—Não pode ser na Amazônia, por exemplo, mas nem todos os índios estão na floresta.
Explicou que um projeto sobre isso seria cuidadoso e estabeleceria as áreas onde seria possível o arrendamento para não aumentar o desmatamento:

—Mas hoje já existe, só que não está regularizado. Pensamos em coisas como, ao fim do arrendamento, os equipamentos seriam dos índios.

Segundo ele, há duas formas devera Amazônia, e ele demonstrou discordar da primeira:

—Como uma área que deve permanecer como um zoológico do mundo, ou os que advogam uma exploração sustentável. Temos também que defender nos fóruns internacionais que se pague pela preservação da Amazônia, pelo oxigênio, serviços ambientais—diz o general Mourão, que não se diz favorável às a ída do Acordo de Paris.

Na economia, é entusiasta da ideia do futuro ministro da Economia de desvincular as receitas que têm destinação certa. Acha que como está fica inviável, e o Congresso briga por parcela cada vez menor sobre a qual pode dispor:

— É preciso dar ao Congresso poderes de formular o Orçamento. Os parlamentares teriam um ano produtivo fazendo de fato o Orçamento a ser cumprido pelo Executivo. Isso fortaleceria o Congresso.

De fato, o caminho tem que ser reduzir o engessamento, mas isso é muito difícil de fazer. Cada área temerá o risco de perder financiamento.

Sobre política externa, o vice-presidente defendeu que não haja alinhamento automático com os Estados Unidos, apesar de ser boa e natural a proximidade entre os dois países. Não é pelo presidente Trump, disse, argumentando que “governos são passageiros”, mas pelos valores comuns:

—Na minha opinião, a diplomacia não pode ser irresponsável como foi nos governos do PT. Tem que ser o pragmatismo responsável —disse, resgatando um termo que definiu a política externa dos últimos dois governos militares e que foi mantida por vários governos civis.

Na área de energia, o vice-presidente disse que se o país quiser crescer não haverá energia. Por isso acha que é preciso estimular o crescimento das fontes solar, eólica e gás natural. Acha que se pode pensar em nuclear, que as usinas hidrelétricas na Amazônia devem ser bem estudadas. “O que não se pode é ficar queimando óleo diesel em termelétrica.”


Bernardo Mello Franco: "É o momento de a igreja governar", disse nova ministra de Bolsonaro

A pastora Damares Alves considera que ‘as instituições piraram’ e que ‘chegou o momento’ de as igrejas evangélicas governarem o Brasil. Ela será ministra no governo Bolsonaro

A futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, pastora Damares Alves, considera que “as instituições piraram” e que “chegou o momento” de as igrejas evangélicas governarem o Brasil.

A nova integrante do governo Jair Bolsonaro expôs suas ideias a fiéis da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. A fala foi gravada em maio de 2016 e já teve mais de 160 mil exibições no YouTube.

“As instituições piraram nesta nação. Mas há uma instituição que não pirou. E esta nação só pode contar com esta instituição agora: é a igreja de Jesus”, disse.

“Chegou a nossa hora”, prosseguiu. “É o momento de a igreja ocupar a nação. É o momento de a igreja governar. Se a gente não ocupar este espaço, Deus vai cobrar.”

Damares criticou o Supremo Tribunal Federal por discutir temas como a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. “Onze homens que não foram nem eleitos pelo povo brasileiro vão decidir se a gente libera ou não o consumo de drogas”, disse.

Ela se referiu ao debate entre os ministros da Corte como uma “palhaçada”. “Será que podemos confiar no Judiciário? Não sei mais”, afirmou.

A futura ministra descreveu o Congresso, onde trabalha ao lado do senador Magno Malta (PR-ES), como outra “instituição pirada”. Disse que as disputas na Câmara e no Senado não seriam ideológicas, entre direita e esquerda .“A luta lá é espiritual ”, teorizou.

Na sequência, ela disse que a escola deixou de ser o local apropriado para educar as crianças. “Só há um lugar seguro em que o seu filho está protegido nesta nação. É o templo, é a igreja, é ao lado do seu sacerdote”, defendeu.

A exemplo do presidente eleito, Damares revelou a intenção de banir livros didáticos que não se encaixem em sua visão de mundo. Ela disse que “as Bíblias vão ter que voltar para as escolas do Brasil ”. “O T nas escolas não é mais de tatu, é de tridente do diabo. Queiram ou não queiram os satanistas, esta é uma nação cristã”, afirmou.

No púlpito, a futura ministra indicou que seus planos ultrapassam fronteiras. “A melhor forma de a gente conquistar os muçulmanos para Jesus é mostrar que o cristianismo deu certo nesta nação”, disse.


El País: Damares Alves, a militante antiaborto alçada a pastora de Bolsonaro na Esplanada

Assessora parlamentar assumirá a nova pasta das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, que inclui Funai, com pauta conservadora mas disposta a lutar por igualdade salarial entre gêneros

Por Ricardo Della Coletta, do El País

Fora dos círculos evangélicos, Damares Alves era uma desconhecida quase completa até ser anunciada, nesta quinta-feira, como a mais nova ministra do Governo Jair Bolsonaro. Damares comandará a pasta das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, uma estrutura nova que será criada em 1º de janeiro e que albergará também a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pelas políticas públicas voltadas para as populações indígenas no país. Pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, a advogada terá a missão delicada e ao mesmo tempo estratégica de formular pautas para os grupos mais vulneráveis da sociedade, ao mesmo tempo em que terá de responder à base conservadora que ajudou a levar Bolsonaro ao poder, um político que rejeita o conceito de "minoria" e relativiza até mesmo o de direitos humanos.

“Essa pasta vai lidar com proteção de vidas, não com morte”, disse, como cartão de visitas, Damares nesta quinta-feira. Ela é uma militante contra o aborto e rejeita que o tema seja encarado como uma questão de saúde pública, apesar das milhares de mortes por ano no Brasil decorrentes de interrupções clandestinas de gravidez. Se neste ponto está alinhada com Bolsonaro e sua base, em outro discordou do eleito: “Se depender de mim vou para a porta da empresa em que o funcionário homem, desenvolvendo papel igual da mulher, ganhe mais. Acabou isso no Brasil”, declarou. Durante a campanha, Bolsonaro afirmou mais de uma vez que, na questão de definição salarial e brecha de gênero em empresas privadas, o Estado não deveria interferir.

A futura ministra é desde 2015 assessora parlamentar do senador Magno Malta (PR), uma das principais figuras da bancada evangélica. Até então com salário líquido de 4.408 reais, virou ministra no lugar que muitos imaginavam pertencer a seu chefe. Apoiador de primeira hora de Bolsonaro, Malta não esconde seu ressentimento com o presidente eleito por ter sido preterido na montagem da Esplanada. Assim como ocorreu com a escolha do titular da Educação, Ricardo Vélez, Bolsonaro passou por cima de aliados no Congresso Nacional, que reclamaram nos bastidores de terem sido ignorados pelo presidente eleito na seleção. As queixas agora viraram públicas: "Se até o momento ficava claro alguma ingratidão com o Magno Malta, agora chegou a ser afronta. Acho que ele [Bolsonaro] erra em convidar e ela [Damares] erra em aceitar. Não foi uma coisa muito bem conduzida", diz o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM), aliado de Malta no Congresso

Atuação evangélica

A ligação de Damares com aliados do presidente eleito, no entanto, é anterior ao vínculo com o senador pelo Espírito Santo. Antes, ela trabalhou para o deputado federal Arolde de Oliveira (PSD), senador eleito pelo Rio de Janeiro cujo sucesso nas urnas em outubro se deveu, em grande parte, ao suporte do clã Bolsonaro. "Ela foi minha assessora durante uns quatro anos. Saiu em 2014 e nós negociamos com o senador Magno Malta para ela continuar fazendo o mesmo trabalho lá", conta Oliveira. "É uma advogada muito atuante, uma educadora, e é pastora. Então os valores e princípios dela são aqueles valores judaico-cristãos", acrescenta.

O deputado diz ter convidado Damares para auxiliá-lo após ter acompanhado o seu trabalho como colaboradora da frente parlamentar evangélica. Antes de trabalhar para Oliveira, ela foi chefe de gabinete de outro expoente da bancada neopentecostal na Câmara, o deputado federal João Campos (PRB). O parlamentar, pré-candidato à presidência da Câmara e autor do polêmico projeto da cura gay, diz que a militância de Damares em temas caros aos evangélicos a tornou conhecida no meio religioso. "Na medida em que foi se dedicando a esses temas, ela foi ficando conhecida e passou a ser solicitada a fazer palestras nos mais diversos Estados do Brasil", relata Campos.

Na Internet, é possível encontrar vídeos em que Damares afirma que "a ideologia de gênero é um grande maltrato contra as crianças do Brasil" e que "estão desconstruindo a identidade biológica" delas. Em sites especializados para o público evangélico, a pastora também é citada com certa frequência, denunciando, por exemplo, o que considera uma "guerra contra a família" promovida nas escolas brasileiras. Nesta quinta, porém, a futura ministra prometeu fazer “um governo de paz entre o movimento conservador, o movimento LGBT e os demais movimentos.”

Questão indígena

O ponto mais polêmico do novo ministério criado por Bolsonaro é sem dúvidas a transferência da Funai para o órgão. A saída da autarquia do guarda-chuva do Ministério da Justiça é fortemente criticada por antropólogos e lideranças indígenas, que temem retrocessos sobretudo na questão de demarcação de terras dos povos originários. O próprio Bolsonaro já declarou que pretende congelar os processos de demarcação existentes. Além do mais, em sua primeira coletiva de imprensa depois de anunciada ministra, Damares confirmou que o tema não deve ser prioridade. "O índio é gente e precisa ser visto de uma forma como um todo. Índio não é só terra", disse.

Damares, que anos atrás adotou uma menina indígena, se diz preparada para ter sob a sua responsabilidade o principal órgão de política indigenista em um país marcado por graves conflitos fundiários. As credenciais que ela apresenta, no entanto, estão longe de convencer antropólogos e movimentos organizados de defesa dos direitos dos índios. A futura ministra afirmou ter iniciado seu trabalho no tema em 1999, quando trabalhou numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a Funai. "Assessorando a CPI da Funai, descubro que alguns povos no Brasil, por uma questão cultural, ainda matam crianças porque não sabem o que fazer com elas quando nascem com alguma deficiência física ou mental", disse Damares nesta quinta-feira. "Quando descobrimos que isso acontecia, que filhos de mães solteiras não podem sobreviver, comecei um diálogo que acabou se prolongando de tal forma que estou há 16 anos cuidando de crianças indígenas no Brasil sempre com diálogo e respeito", acrescentou.

Damares tocou num assunto que é questionado por muitos antropólogos no país. Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Saulo Feitosa, que foi membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a futura ministra "descontextualiza" casos esporádicos de abandono de crianças indígenas. "Há informações de que em alguns povos há abandono de crianças, temos alguns relatos, inclusive lemos através da imprensa geral de que houve situações em que as crianças foram abandonadas. Mas esses relatos são muito esporádicos", rebate Feitosa. "Não há em hipótese alguma a possibilidade de se aceitar de que haja um abandono ou descarte de crianças em massa entre povos indígenas. Isso é mentira e nunca vai se aproximar da quantidade de crianças que são abandonadas no mundo urbano", conclui. De acordo com o professor, o trabalho de Damares nessa temática se insere num esforço de se "criminalizar" determinadas práticas tradicionais indígenas, com o objetivo de retratá-los como comunidades bárbaras e, dessa forma, facilitar a desterritorialização dos povos tradicionais do País.

Nesse sentido, Damares é tida como uma das idealizadoras de um projeto de lei na Câmara dos Deputados que propõe o "combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas". Justamente pelo seu histórico de atuação, a nova ministra representa uma guinada sem precedentes na política indigenista do Brasil, o que deve sofrer forte resistência de setores da sociedade civil.


Matias Spektor: Aliança com 'Lula do Oriente Médio' traz custos para Bolsonaro

Presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha

Jair Bolsonaro está prestes a cometer equívoco do qual pode se arrepender com amargura: colar sua imagem ao "Lula do Oriente Médio".

Pela terceira vez consecutiva, a polícia de Israel denunciou Binyamin Netanyahu por recebimento de propina, fraude e quebra de decoro.

O esquema envolve conglomerados de mídia e indústria de defesa, sua própria esposa, parentes e assessores.

Assim como Lula, Netanyahu se apresenta como vítima de uma conspiração das “elites” incapazes de derrotá-lo pelo voto. Acusa também os investigadores de vazarem informações sensíveis à imprensa.

Como uma parcela do eleitorado acredita cegamente em suas palavras, Netanyahu pode até vencer as próximas eleições, mas seu nome está definitivamente maculado.

Sua perspectiva de poder também. Chefes militares israelenses começaram a criticá-lo, e deputados de sua base iniciaram o desembarque da aliança.

Esse revés cria um problema para Bolsonaro.

O presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha, visitando o país com os filhos e defendendo a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém.

No entanto, Bolsonaro e sua equipe passaram a perceber o tamanho da conta a pagar, caso o Brasil abandone a postura de equilíbrio na questão Israel-Palestina, que é marca registrada da política externa pelo menos desde o governo do general Costa e Silva.

O primeiro custo seria diplomático: isolamento. Apenas os EUA e a Guatemala têm embaixadas em Jerusalém. O Paraguai tentou, mas foi forçado a recuar. O Brasil faria seu movimento por romantismo, a troco de nada. É o pesadelo de qualquer especialista em geopolítica.

O segundo custo seria material: há superávit de quase US$ 8 bilhões com o mundo árabe, em produtos de defesa e proteína animal.

Haveria, ainda, um custo político para Bolsonaro, na forma de articulação entre a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e as grandes multinacionais verde-amarelas com presença no Oriente Médio. De quebra, o custo humano: como disse o comandante da Força-Tarefa da ONU no Líbano, a eventual transferência da embaixada pode tornar tropas brasileiras alvo de terrorismo.

Agora, o custo da guinada acaba de ficar ainda mais alto.

Afinal, o que dá lastro ao alinhamento entre Bolsonaro e Netanyahu é a promessa de vultosos negócios nas áreas militar e de segurança cibernética. O governo brasileiro tem muito a ganhar cooperando com Israel em segurança das fronteiras e combate ao crime organizado e ao narcotráfico.

Só que Netanyahu acumula as pastas de Defesa e Relações Exteriores. A devassa da polícia promete respingar para tudo quanto é canto. Inclusive no exterior.

*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Zeina Latif: Luz amarela

A fraqueza da indústria, se persistir, vai contaminar cedo ou tarde os demais setores

O potencial de crescimento do Brasil está bastante deprimido. Pode estar abaixo de 2%, devido à produtividade estagnada e a tantos equívocos de política econômica nos últimos anos. O governo Temer promoveu importantes avanços que abriram espaço para um ciclo de recuperação da economia. O fôlego desse movimento dependerá do empenho do próximo governo para dar continuidade e acelerar a agenda de reformas.

Há um misto de confiança e cautela entre empresários com o cenário econômico. O mesmo vale para o mercado financeiro. Basta analisar o desempenho modesto dos preços de ativos desde a eleição, e com alguma volatilidade, contrariando a expectativa de um “rally” nos mercados após a eleição de Jair Bolsonaro.

Por um lado, há a avaliação de que o novo governo contará com a força das urnas, diferentemente do governo de transição de Temer; buscará políticas públicas na direção correta para melhorar a ação estatal; e adotará uma nova forma de fazer política que poderá elevar a qualidade e a eficiência de políticas públicas. Seria um governo que teria potencial de entregar mais reformas estruturais do que o de Temer.

De outro lado, há uma boa dose de cautela por se reconhecer a difícil combinação de fragilidade do quadro econômico, urgência de reformas impopulares e um núcleo de poder com pouca experiência administrativa e política, e com potenciais conflitos entre si.

O risco de uma agenda tímida de reformas é concreto, a julgar pela sinalização do núcleo duro do futuro governo. Nesse caso, não haveria uma efetiva aceleração do crescimento. Com a fragilidade do regime fiscal, não seria possível garantir taxas de juros do Banco Central baixas como as atuais.

Importante colocar na conta as sequelas da crise econômica ainda não superadas e que têm impacto na confiança dos empresários e consumidores. Basta olhar o ainda elevado patamar de pedidos de recuperação judicial e os frágeis números do mercado de trabalho.

Como se não bastasse, houve vários choques que fragilizaram ainda mais o setor produtivo e frustraram o crescimento do PIB em 2018. Tivemos a greve dos caminhoneiros, o indefensável tabelamento do frete, a pressão cambial (decorrente muito mais do ambiente externo do que das incertezas eleitorais) e a crise argentina reduzindo as exportações. Até incêndio em importante refinaria da Petrobrás teve. Não seria exagero afirmar que sem esses choques o crescimento em 2018 teria sido próximo de 2,5%.

O termômetro da capacidade de crescimento será a dinâmica da indústria. A indústria, que é o setor mais sensível ao custo Brasil, foi o primeiro setor a sentir a piora do quadro econômico, já em 2012, e o primeiro a sair da crise.

Os números recentes não são bons, praticamente interrompendo a tendência de recuperação, ainda que lenta. A indústria, como sempre, foi prejudicada pelos choques recentes. A produção industrial registrou crescimento de apenas 1,8% entre janeiro e outubro deste ano em relação ao mesmo período de 2017, ano em que o crescimento foi maior, de 2,6%. A indústria nitidamente perdeu o ritmo em 2018, enquanto era esperada uma aceleração por conta da redução dos juros pelo Banco Central.

O comércio varejista, por sua vez, conseguiu acelerar em 2018, diante da recuperação da massa salarial e da volta do crédito. No acumulado de 2018 até setembro, o crescimento do volume de vendas é de 5,2% ante 4% em 2017. Os serviços seguem no campo negativo, em parte pela própria fraqueza da indústria, mas exibem modesta tendência de melhora. Acumulam queda de 0,4% ante recuo maior de 2,8% em 2017.

Elementos transitórios, duradouros e estruturais se misturam e geram incertezas sobre a dinâmica econômica. Ha razões para posturas cautelosas.

A fraqueza da indústria acende luzes amarelas, pois se persistente, vai contaminar cedo ou tarde a performance dos demais setores, a geração de vagas e o aumento do investimento.

*Zeina Latif é economista-chefe da XP Investimentos


Bruno Boghossian: Bolsonaro evita compromissos para não desperdiçar capital político

Presidente eleito mantém dúvidas sobre aplicação de seu poder no Congresso

Como um poupador cauteloso, Jair Bolsonaro guarda seu capital político debaixo do colchão. A menos de um mês de tomar posse, o presidente eleito evita elencar as prioridades de seu governo no Congresso e emite sinais genéricos em relação à agenda de reformas.

Sem anunciar como e onde vai aplicar a força que recebeu nas urnas, Bolsonaro tenta se desviar de desgastes antecipados. Diante das dúvidas sobre as chances de aprovação de mudanças no regime da Previdência, ele se esquiva. Não responde nem se aproveitará sua popularidade para votar a proposta.

“Você está me vendo como presidente, já? Eu não sou presidente. Eu não tenho a ascendência sobre o Parlamento”, declarou nesta quarta (5).

As incertezas políticas que ainda restam sobre o próximo governo fazem com que Bolsonaro e sua equipe se ocupem de armar e desarmar expectativas continuamente.

Na semana passada, um dos filhos do presidente eleito disse que a reforma das aposentadorias poderia não ser aprovada. Depois, o futuro ministro da Casa Civil afirmou que a votação pode demorar quatro anos. Agora, Bolsonaro fala em seis meses.

Sem um compromisso claro, o novo governo quer evitar a contratação de crises por antecipação. A estratégia faz sentido, já que a frustração de previsões geralmente é interpretada como derrota.

O lado negativo é deixar eleitores, empresários e parlamentares no escuro. O governo pretende jogar seu peso em temas como a redução da maioridade penal e a revisão do desarmamento? Ou usará a força do presidente recém-empossado para aprovar a reforma da Previdência? Sem falar nas medidas de extinção e reorganização de ministérios.

Enquanto não sobe a rampa, Bolsonaro tenta acumular mais capital. Em um investimento de risco, topou se reunir e posar para fotos com líderes partidários, mas pode ter cometido um erro de cálculo. A primeira sigla a declarar apoio ao presidente da antipolítica foi o PR do mensaleiro Valdemar Costa Neto.


El País: Bolsonaro, da revolução eleitoral a um teste inédito e arriscado no Congresso

Presidente eleito ignora siglas na montagem da Esplanada e levanta dúvidas sobre solidez da base para aprovar reformas. Senado deve ser Casa mais problemática

Por Ricardo Della Coletta, do El País

O presidente eleito Jair Bolsonaro montou o seu ministério ignorando o que até agora era considerada uma regra de ouro inescapável do modelo político brasileiro: a distribuição de pastas estratégicas na Esplanada para partidos políticos, buscando assim fidelizar uma sólida base de apoio no Congresso Nacional. Nos 20 ministérios que farão parte do Governo Bolsonaro —ainda faltam ser anunciados os titulares do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos—, há apenas cinco que serão chefiados parlamentares. Três deles (Onyx Lorenzoni, Luiz Henrique Mandetta e Tereza Cristina) são filiados à mesma legenda, o Democratas; Osmar Terra, que será o ministro da Cidadania, é do MDB e Marcelo Álvaro Antônio, futuro ministro do Turismo, é do PSL. Um arranjo que, ao menos no modelo atual de governabilidade, é insuficiente e deixa de fora partidos importantes como PR, PSD e PP, cujos votos Bolsonaro fatalmente precisará para aprovar sua agenda social e de reformas econômicas, ansiada pelos investidores do mercado financeiro que apostou em sua eleição.

"O que vai ser testado é se é possível montar um governo sem negociar a participação dos partidos no ministério", avalia o cientista político Sérgio Abranches, que cunhou, ainda em 1988, o termo presidencialismo de coalizão (expressão que define as alianças políticas que o presidente da República no Brasil precisa selar com diversos partidos políticos para construir uma coalizão de apoio no Congresso Nacional). "Ninguém sabe se é possível ter condições de governabilidade com esse método, que nunca foi usado", acrescenta.

Bolsonaro e Lorenzoni, seu chefe da Casa Civil, têm afirmado que a nova administração terá uma forte base de apoio no Legislativo e que, para isso, inaugurará um novo modelo de relacionamento com o Congresso Nacional. Foram-se os tempos —apregoa Lorenzoni— em que os votos necessários no Parlamento eram obtidos a partir do fatiamento da máquina pública, com o loteamento de ministérios e de cargos no segundo escalão. "O famoso toma lá, dá cá destruiu a relação política e será completamente revisado", anunciou Lorenzoni nesta segunda-feira. No mesmo dia, o futuro ministro da Casa Civil, que terá entre as suas atribuições justamente cuidar da articulação política com o Legislativo, disse que Bolsonaro trabalha para ter uma base parlamentar de entre 330 e 350 deputados, numa Câmara que tem 513 integrantes.

É a partir desse ponto que começam a surgir as dúvidas, tanto entre analistas políticos quanto entre parlamentares. Como Bolsonaro montará uma aliança congressual tão ampla, que lhe daria condições inclusive para aprovar emendas à Constituição, sem convidar os caciques dos partidos políticos para indicar quadros para o seu ministério? Até o momento o presidente eleito deu apenas indícios do que planeja fazer. Disse num primeiro momento, por exemplo, que pretende pautar a sua relação com os parlamentares a partir das bancadas temáticas, como a ruralista ou evangélica –mas nem essa última ele parece ter conseguido contemplar plenamente. Os próprios ministros Osmar Terra e Tereza Cristina, dizem os aliados do presidente eleito, foram indicações das frentes paramentarias da assistência social e da agropecuária, respectivamente, e não dos seus partidos. A princípio o tamanho dessas frentes — a da agropecuária tem hoje 209 deputados signatários e a evangélica, 179 — sugere que esse tipo de aliança, por si só, daria um forte suporte a Bolsonaro, mas especialistas e os próprios legisladores apontam que trata-se de uma ilusão.

"Governar só com as frentes parlamentares não existe. Quem vota são os partidos, quem orienta as votações são os partidos. As pessoas são filiadas a partidos e têm, em princípio, que seguir as orientações deles", afirma o deputado José Rocha, da Bahia, líder do PR na Câmara. "Ele [Bolsonaro] começou dizendo que iria atender apenas as bancadas temáticas [...] Mas a bancada temática é fluída, ela só existe no tema. Se você pedir aos ruralistas ou à bancada da segurança pública para aprovar a reforma da Previdência, eles se dividem", complementa o cientista político Abranches. Além do mais, o próprio tamanho dessas bancadas temáticas pode ser questionado, uma vez que o número de deputados que realmente milita nesses temas de forma coordenada é substancialmente menor do que o total de signatários das frentes.

Depois de um mês de transição, período em que praticamente ignorou os partidos políticos, o capitão reformado do Exército parece ter avaliado que uma articulação política baseada apenas nas frentes temáticas não será suficiente para lhe garantir uma base parlamentar consistente. Desde esta terça-feira, iniciou uma rodada de reuniões com s bancadas das principais siglas do Congresso. Recebeu em seu gabinete deputados do MDB, PR e PSDB. Nesses encontros, Bolsonaro defendeu a reforma tributária e pediu a colaboração dos parlamentares para levar adiantes as reformas econômicas que pretende implementar. Além do mais, Lorenzoni foi à Câmara ter uma conversa semelhante com a bancada do PSD. Essas siglas afirmam que, embora não integrem formalmente o governo, apoiarão Bolsonaro na votação de propostas da área econômica, como as mudanças na Previdência.

Lua de mel e emendas parlamentares
Na Câmara, as previsões sobre como será a relação política do Palácio do Planalto com o Congresso Nacional são várias. Há certo consenso de que Bolsonaro deve ter bastante força no Parlamento principalmente no primeiro semestre do seu mandato, quando ainda deve surfar no apoio popular que lhe garantiu a contundente vitória nas eleições, considerada uma revolução eleitoral que catapultou o até então nanico PSL.

As dúvidas se aprofundam no que vai acontecer no momento subsequente: o novo modelo proposto por Bolsonaro, no qual os partidos não compõem o Governo, vai ser suficiente para garantir-lhe maioria no Congresso passada a lua de mel ou ele terá que incorrer na prática que prometeu extirpar? "Ainda é cedo para fazer qualquer conclusão. Na realidade ele [Bolsonaro] está inaugurando um novo relacionamento, em que os partidos não foram chamados a partilhar a formação [do governo]. Mas em algum momento eles serão chamados [a participar], não sei se agora ou depois", aposta um influente senador do MDB.

É certo que a distribuição de ministérios para os partidos aliados não é o único instrumento que um presidente da República tem para fidelizar a sua base congressual. O governo tem centenas de cargos federais para serem preenchidos nos Estados, o chamado segundo escalão, que podem ser direcionados para indicações políticas. "Esses cargos do segundo e terceiro escalão para eles [deputados] têm mais importância por causa da capilaridade", afirma Abranches. Não há indicações de que Bolsonaro vá lotear esses postos entre deputados e senadores, mas as demandas dos parlamentares por essas posições certamente chegarão até ele.

Outra linha de atuação são as emendas parlamentares. Onyx Lorenzoni montou na Casa Civil duas secretarias para tratar da relação com os congressistas. Para elas, convocou deputados que não foram reeleitos para tratar dessas organizações. Um deles será Leonardo Quintão, de Minas Gerais, que aponta que novo governo continuará atendendo os pedidos dos deputados. Promete a descentralização dos recursos dos ministérios e o pagamento das emendas que os congressistas fazem ao Orçamento. "A liberação de emendas é um direito dos deputados. [Vamos] tentar liberar 100% das emendas dos deputados", diz.

José Rocha, líder do PR, afirma que Bolsonaro tem sim condições de preservar uma base estável no Legislativo mesmo sem a partilha de cargos, desde que sua equipe consiga atender as demandas locais dos parlamentares. "Eu posso atender a minha base dentro de um programa de governo. Por exemplo, no dia que a BR-135 for concluída, você está atendendo a minha base", afirma o deputado. "Além do sistema de adutoras lá na minha região, que vai atender as sedes municipais. O dia que o governo conseguir colocar isso dentro do Orçamento, está atendendo a minha base. Eu não preciso de cargos", diz.

 


Fernando Exman: O muro que aparta civis e militares

Vinculação com o futuro do governo preocupa oficiais

Viceja, entre militares, um sentimento misto em relação ao governo que terá início em janeiro. As derrotas do PT e do PSDB nas últimas eleições foram comemoradas. Ainda está na memória da cúpula militar o comentário do então presidente Fernando Henrique Cardoso: "As Forças Armadas são um mal necessário". O retorno de integrantes da ativa e da reserva ao centro do poder federal, depois da redemocratização, porém, tornou-se um fator de preocupação para alas importantes do alto escalão militar.

Oficiais temem que a imagem das Forças Armadas seja atrelada ao futuro do governo Jair Bolsonaro, e preparam uma estratégia para proteger a instituição. A chamada "política do grande muro" deve chegar ao fim.

O "grande muro" foi erguido após o fim da ditadura, em um momento em que os militares deixavam o Palácio do Planalto, ministérios, empresas estatais, em meio à euforia popular com o retorno dos civis ao comando do Executivo. De volta aos quartéis, eles optaram por trabalhar para dentro, protegidos por biombos concebidos para evitar exposições desnecessárias e garantir a proteção contra críticas aos vinte anos de governos militares e às consequências desse protagonismo para a política e a economia do país.

Desde então, enfrentaram, sem fazer grande estardalhaço, a desvalorização de seus vencimentos, a redução de seus orçamentos e o sucateamento dos seus equipamentos. Esse período de vicissitudes, nas palavras de um oficial, contribuiu para as Forças Armadas desenvolverem algumas das características que já eram tradicionalmente caras à carreira: o adestramento, mesmo que com parcos recursos, o respeito à hierarquia e a formação acadêmica de seus integrantes.

Sobram histórias, contadas hoje como exemplos de superação, de exercícios feitos sem recursos. Tijolos eram colocados em mochilas para simular o peso do equipamento verdadeiro, veículos foram desenhados no chão a giz para representar o teatro de guerra.

Deu certo. As Forças Armadas chegaram ao mais recente período eleitoral como a instituição mais respeitada do país. Segundo pesquisa divulgada pelo instituto Datafolha em junho de 2018, entre dez instituições, as Forças Armadas foram avaliadas como a mais confiável, ficando à frente de órgãos da Justiça, do Ministério Público, empresários e, claro, do Congresso Nacional e da Presidência da República. Um ativo moral que ninguém gostaria de perder.

Em meados do ano passado, militares da reserva jogaram-se com tudo na campanha de Bolsonaro. Como resultado, num governo encabeçado por um partido e uma aliança eleitoral sem quadros, coube então em grande parte a eles a formulação dos programas e das políticas públicas que agora devem ser colocados em prática. Naturalmente, os mesmos passaram a ser indicados para ocupar parcela relevante do primeiro escalão e outros cargos estratégicos da máquina estatal.

Com isso, na visão de militares, o desconhecido, fator sempre gerador de desconfortáveis incertezas, não é hoje causado pelas dúvidas em relação ao prestígio que as Forças Armadas terão no próximo governo. O próprio presidente eleito Jair Bolsonaro, capitão da reserva, já avisou que Exército, Marinha e Aeronáutica receberão mais recursos e terão seus projetos prioritários contemplados. Os militares também conseguiram do futuro governo a sinalização de que eventuais mudanças nos seus mecanismos previdenciários devem ser conduzidas em conjunto com medidas que reestruturem - e valorizem - a carreira.

O desconhecido é justamente os resultados que o governo Bolsonaro entregará à população e como o eleitor avaliará um presidente que faz questão de relacionar sua pessoa à caserna, as tradições e ao gestual militar.

Várias frentes de batalha foram iniciadas, no momento em que estava em disputa a própria vitória na eleição presidencial, explicam militares sem deixar de lado os jargões típicos da área. Mas todas elas devem dar espaço agora para que o governo consiga atacar, de forma prioritária, a economia e possa garantir a recuperação da atividade e do emprego. Mesmo que isso exija, como aconselhou Maquiavel, fazer o mal de uma só vez para depois poder ir fazendo o bem aos poucos.

Essa preocupação dos militares não é de hoje. A exposição das Forças Armadas e os perigos à credibilidade da instituição também são citados como fatores de risco resultantes da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Primeiro porque a intervenção foi feita colocando as tropas e seus comandantes em evidência, deixando o governador fluminense, hoje preso depois de ser acusado de estar envolvido em irregularidades, a salvo de questionamentos sobre uma área crítica do Estado.

Enquanto isso, o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e seu motorista tornou-se um assunto central quando se discute os resultados obtidos na segurança no Rio. Autoridades esperam anunciar a solução do caso antes do término da intervenção, agendado para o fim do mês.

Já os resultados do futuro governo permanecerão incertos, assim como os efeitos que ele terá na imagem das Forças Armadas, das autoridades civis que participarão da administração Bolsonaro e dos partidos políticos que integrarão a base aliada. Justamente por isso uma característica do ministério não deve passar despercebida: Bolsonaro decidiu alocar militares em áreas fundamentais para a gestão do governo e a execução de obras, mas, por outro lado, nomeará civis para responder por áreas sensíveis à opinião pública, como a educação, a saúde e a segurança pública.

Outro foco de atenção será a oposição a ser feita pelos partidos de esquerda, sobretudo pelo PT. Entre militares, acredita-se, restará ao Partido dos Trabalhadores para garantir sua própria sobrevivência a realização de uma oposição ferrenha ao governo. A reunião do partido feita no fim de semana demonstra que a sigla não tem a intenção de fazer uma autocrítica que a coloque em uma posição defensiva.

Não ficou claro se a oposição ao governo será feita de forma simbólica contra a figura do militar no poder. O que é dado como certo nos quartéis, porém, é que inevitavelmente militares e sociedade civil deverão começar a transpor o alto muro que ainda os aparta.


Eliane Cantanhêde: Jogando para a plateia

O governo toma forma e Bolsonaro assume seu papel: manter as massas mobilizadas

Prestem atenção a todas as capas dos jornais de ontem: o presidente eleito, Jair Bolsonaro, no centro da cena, empunhando a taça do Palmeiras, em meio a uma multidão em festa. Não foi por acaso, não foi a primeira nem será a última vez. Essa cena será comum, fará parte do dia a dia do governo e do País.

O novo presidente da República terá o papel de animador da torcida, sempre em evidência e em contato com a população, para manter o apoio e o otimismo dos seus milhões de eleitores, entre bolsonaristas puros e antipetistas agregados.

O general Sérgio Etchegoyen, do GSI, ratificou ontem um alerta do seu sucessor, o também general Augusto Heleno: há ameaças a Bolsonaro e ele deve se preservar e ser cauteloso, inclusive na posse. Mas, além de a Polícia Federal ter investigado as ameaças e não endossar o mesmo grau de temor, Bolsonaro construiu sua imagem pública e sua campanha no contato com multidões, gosta disso, fica feliz. Não vai abdicar dessa parte boa do poder.

Ao observar o equilíbrio no seu governo, fica ainda mais claro que Bolsonaro vai deixar a equipe carregar o piano, enquanto ele viaja pelo País, vai a estádios, se reúne com grandes setores aliados, faz festa para sua militância, dá declarações informais à mídia tradicional e usa e abusa das redes sociais para fazer anúncios e dar recados.

Nesse papel, aliás, terá a grande ajuda de um personagem chave: Michelle Bolsonaro, mulher bonita, jovem, despojada, que estudou libras, é mãe da única filha do presidente e vem de uma cidade satélite de classe média baixa do DF. Nem todos vão entender essa afirmação, mas é um luxo, um orgulho, ter uma primeira-dama da Ceilândia num País desigual como o Brasil.

Enquanto Bolsonaro anima plateias e arquibancadas, seu vice, Hamilton Mourão, terá vida própria e os demais generais do Planalto e arredores vão ser cães de guarda do governo, centralizando informações estratégicas (inclusive sobre potenciais colaboradores) e controlando o dinheiro público, a eficiência da administração, o avanço da infraestrutura e as grandes obras.

Até Dilma Rousseff, com todas as suas idiossincrasias, reconhecia que os militares, especialmente do Exército, eram imbatíveis ao garantir eficiência, segurança, prazos e valores de obras públicas. Como também elogiava a Defesa Cibernética do Exército.

Paulo Guedes manda e desmanda na economia, com um time recebido com entusiasmo pelo mercado. Sérgio Moro cria uma superestrutura, ou super-Lava Jato, ou ainda super-PF contra a corrupção e o crime organizado, com amplo apoio popular. Espera-se que também com apoio do Congresso...

As áreas temáticas estão bem entregues, com o almirante Bento Albuquerque em Minas e Energia, a agrônoma Tereza Cristina na Agricultura e o astronauta, engenheiro do ITA e tenente-coronel da reserva da FAB Marcos Pontes em Ciência e Tecnologia. Saúde, com Luiz Henrique Mandetta, e Cidadania, com Osmar Terra, também estão em boas mãos.

Em meio a tudo isso, há dúvidas sobre o grau de autonomia e a munição de Onyx Lorenzoni na articulação política e Gustavo Bebianno na Secretaria-Geral. São duas ilhas civis num Planalto superlotado de militares, aliás, de generais.

Mas, se há áreas potencialmente explosivas, são Relações Exteriores e Educação, enquanto Seu Lobo não vem para Meio Ambiente e Direitos Humanos, cercadas de preconceito com a forte guinada à direita no País e com os filhos do presidente mandando mais do que a maioria dos ministros, e em áreas estratégicas.

O governo vai tomando forma, agradando mais do que desagradando e deixando interrogações no ar. Mas uma coisa é certa: depois de subir a rampa, Bolsonaro continuará em campanha. Ele pegou o gosto.