governo bolsonaro
William Waack: A hora dos profissionais
Governo ataca crime e dívida, mas precisa sobreviver aos ideólogos
Pode-se gostar ou não do governo Bolsonaro, mas é difícil negar que ao se iniciar, de fato, na segunda-feira passada, pretendeu ir de frente à questão. Ela se chama crime e dívida – separadas de maneira artificial, pois são, na verdade, uma coisa só. Crise fiscal e crise social são duas expressões distintas para o mesmo fenômeno: a incapacidade do poder público de controlar a si mesmo (gastos, mas não só) e de dirigir-se a uma pavorosa taxa de criminalidade.
Os detalhes do pacote anticrime já foram esmiuçados no noticiário enquanto os da reforma da Previdência ainda são confusos, e os dados da realidade impõe que ambas iniciativas sejam tratadas do ponto de vista político simultaneamente, e com urgência. Nesse sentido, é relevante a advertência feita pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, segundo o qual “a pauta de costumes vem depois da Previdência”.
O que Maia está dizendo enfurece os entusiasmados bolsonaristas: atuação política não pode ser apenas função de atender à ideologia, cujas propostas ou utopias mais amplas por definição (se os bolsonaristas não aprenderam com o PT está mais do que na hora) nunca são realizadas, nunca se chega à terra do amanhã. No plano dos fatos na instância legislativa o momento é favorável se o governo agir depressa, enquanto a gravidade da crise de segurança empurra os governadores (e seus chefes de polícia) para algum tipo de entendimento, cientes de que não dá para protelar.
Este é visivelmente o conflito estratégico mais difícil para o governo no momento, e que está escancarado para o público nas trocas de farpas entre as várias alas concorrendo pelas atenções do presidente. Em resumo, o problema consiste em deixar para depois uma “revolução dos costumes” que, na interpretação do círculo íntimo do presidente, e alguns de seus expoentes intelectuais, é o que explicaria em primeiro lugar a vitória eleitoral. E concentrar-se com foco total nas articulações necessárias para a aprovação de pacotes de mudanças de legislação que terão, aos olhos dos ideólogos próximos de Bolsonaro, um indisfarçável ranço da “velha política” que pretendem já ter eliminado – uma perigosa ilusão.
Há sempre lições interessantes na História para agentes políticos que acham que ninguém contém seu ímpeto, como são os bolsonaristas. Os bolchevistas descobriram já em 1917 que nenhuma máquina militar (da qual precisavam para sobreviver) funcionaria sem os oficiais czaristas, ou seja, necessitavam dos profissionais para levar adiante sua agenda de transformação política. O vice-presidente Mourão anda empolgado com a série Trotsky da Netflix, que retrata bem esse episódio (os revolucionários islâmicos de Khomeini libertaram da cadeia os pilotos de F-4 que eles mesmos haviam encarcerado quando Saddam Hussein atacou o Irã, e precisavam rapidamente de uma força aérea).
Sem a tal “velha política”, entendida como a atuação de operadores no Congresso (Câmara e Senado) dificilmente o governo leva adiante esse prometido ataque frontal ao crime e à dívida, sob os quais o País está esmagado. São as questões cujo maior ou menor capacidade do governo em tratá-las de forma consequente (dada da gravidade dessa grande crise, é difícil usar o verbo “resolver”) será a verdadeira medida do sucesso. E de sua própria sobrevivência, palavra aqui entendida como a de um governo que mereça esse nome.
Míriam Leitão: O jeito errado de fazer a reforma
Por Alvaro Gabriel (A colunista está de férias)
A pior forma de se tentar aprovar uma reforma da Previdência é provocando vazamentos que dão força aos grupos contrários à própria reforma. No governo Temer, houve total coordenação entre a Casa Civil, o Ministério da Fazenda e o presidente da República. A PEC 287 só veio a público quando já era um texto formatado e pronto para ser negociado com o Congresso, ponto a ponto.
Ontem, o que se via entre os especialistas era um sentimento de confusão e perplexidade. Ninguém sabia exatamente o que dizer, que conta fazer, porque não se sabia o que de fato era verdade e o que ainda passaria pelo filtro do presidente Jair Bolsonaro.
O vice-presidente, Hamilton Mourão, avisou que ele era contra a mesma idade mínima para homens e mulheres. Já o secretário Rogério Marinho afirmou que há várias propostas sobre a mesa. A única coisa que parece certa na suposta PEC divulgada ontem é que ela dificilmente pegará carona no texto do governo Temer.
Como alertou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, um projeto começando do zero terá que passar por todas as comissões antes de ir a plenário.
Hora do ônus
A suspensão da operação na mina de Brucutu derrubou a ação da Vale. O ônus do desastre em Brumadinho não será pequeno. Os investidores passam a considerar uma reação mais firme dos órgãos públicos em relação à empresa. O procurador da República José Adércio Leite Sampaio achou prudente a decisão da Justiça e deixou aberta a possibilidade de novos pedidos para paralisar outras operações da companhia. As instituições têm atuado em parceria, diz. Os próximos dias prometem volatilidade, com os passos da Justiça ditando os humores dos investidores. Esta semana é feriado na China, o mercado que determina a cotação do minério. É provável que o preço suba com o fechamento da mina de Brucutu, responsável por quase 8% da produção da Vale. A alta da commodity diminuiria a pressão sobre as ações da empresa. Mas o fato é que os primeiros desdobramentos já são diferentes do que aconteceu após o desastre de Mariana. O ambiente negativo para a Vale está longe de ter se dissipado.
Pelo fim do monopólio
A Abegás, associação que representa as distribuidoras de gás, reafirma o que foi dito na coluna do último sábado: há um monopólio exercido pela Petrobras no setor e que precisa ser enfrentado para que haja mais concorrência nos preços. Em nota, a entidade argumenta que a Comgás repassou custos, sem aumentar margens, informação que já constava na nota “O duro golpe do gás na indústria”. Segundo Marcelo Mendonça, diretor da associação, houve nos últimos meses uma forte oscilação no dólar, e, mesmo ele tendo recuado, é preciso calcular a média do período. “Em outros momentos, como em 2016, os preços caíram pelas variações do dólar e do petróleo. Mas o fato é que enquanto não houver competição na oferta de gás, será difícil haver queda consistente de preços. As distribuidoras apenas repassam custos. Esse monopólio também nos atrapalha, porque queremos que o gás seja competitivo em relação a outras fontes”, disse. Vários estados estão tendo reajustes de dois dígitos. Em SP, como informado na coluna, a indústria sofreu impacto de 36% enquanto o GNV disparou 40%.
No ES, transparência
Um dos pontos que geram insatisfação entre os consumidores é a cláusula de confidencialidade entre Petrobras e distribuidoras de gás natural. Mesmo sendo monopolista, a Petrobras argumenta que não pode abrir informações a possíveis concorrentes no setor. No Espírito Santo, a Agência de Regulação de Serviços Públicos (ARSP) conseguiu parecer favorável da Procuradoria-Geral do Estado para tornar público os termos do contrato. “O sigilo entre a Petrobras e as distribuidoras não pode ser imposto às agências, que se submetem a um regime de direito público e que têm, por vocação, o dever de dar transparência aos consumidores”, explicou Antonio Júlio Castiglioni, diretor-geral da ARSP.
Chama o investidor
Não é só o governo federal que prepara um pacote de privatizações. São Paulo tem uma lista de 34 ativos que pretende negociar com a iniciativa privada. Henrique Meirelles, secretário da Fazenda, começa a definir as prioridades nesta terça-feira. A joia da coroa é a Sabesp, que pode garantir de R$ 5 bilhões a R$ 15 bi aos cofres estaduais. Há ainda cerca de 20 aeroportos regionais e mais de 1.000 km de rodovias.
Folha de S. Paulo: Após crise, Itamaraty está sob tutela de militares do governo
Ação ocorreu após Ernesto Araújo assinar documento sobre a Venezuela sem consultar generais
Por Igor Gielow, da Folha de S. Paulo
A ala militar do governo promoveu uma espécie de intervenção branca no Itamaraty, tutelando os movimentos do chanceler Ernesto Araújo sobre temas considerados sensíveis —crise na Venezuela à frente.
O chanceler, que nunca comandou um posto no exterior, se indispôs com os militares logo na largada do governo, numa crise até aqui inaudita.
No dia 4 de janeiro, ele participou de reunião no Peru do Grupo de Lima, que reúne 14 países para discutir a situação política venezuelana.
O grupo, que considera ilegítima a reeleição do ditador Nicolás Maduro no ano passado, se encontrou para determinar novas medidas contra o governo em Caracas.
Quando o documento foi divulgado, militares ligados à área de inteligência ficaram de cabelo em pé com o item “D” das providências anunciadas: “Suspender a cooperação militar com o regime de Nicolás Maduro”, dizia o texto.
Só que Araújo não consultou a área militar sobre isso. E é justamente a cooperação com as Forças Armadas venezuelanas que mantém o Brasil minimamente informado sobre os passos da ditadura.
Isso ocorre tanto devido ao “backchannel”, informações de bastidor trocadas por oficiais, como com a observação direta da área de inteligência. Como diz um experiente negociador da região, o Brasil sabe mais sobre Caracas por meio dos próprios militares chavistas do que por canais diplomáticos regulares.
Isso aconteceu enquanto uma outra crise, essa pública, transcorria. Também na primeira semana do governo, o presidente Jair Bolsonaro e o chanceler defenderam a instalação de uma base americana no Brasil, algo que soa herético aos militares daqui.
O general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) buscou o reduzir a um mal-entendido por parte da mídia —o fato de que o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, confirmou a oferta foi convenientemente deixado de lado.
No caso da Venezuela, alguns oficiais sugeriram que Araújo fosse demitido. Outros ponderaram sobre o dano de imagem que tal queda geraria e sugeriram que ele se consultasse mais com os ministros egressos da área militar.
Pelo menos dois generais com assento importante no governo conversam regularmente com o chanceler.
Um diplomata alinhado à nova chefia diz que isso é normal, dada a sobreposição de responsabilidades entre Itamaraty e militares.
Já um outro embaixador, em posição mais privilegiada mas no campo que Araújo promete remover de cargos de comando no ministério, afirma que não há comunicado sensível do chanceler que não tenha o teor discutido com a área de Defesa.
Seja qual for a gradação, o efeito da tutela foi visto ao longo do mês. Araújo reduziu sua visibilidade no caso Venezuela a poucas declarações e 7 das 22 postagens que fez no Twitter em janeiro.
Na mão inversa, o general Hamilton Mourão, o vice-presidente que ocupou a cadeira de Bolsonaro por seis dias no mês, falou em diversas ocasiões vezes sobre a crise.
Numa delas, na semana passada, indicou qual os caminho que as Forças Armadas da Venezuela deveriam tomar: oferecer uma saída ao ditador.
Mourão também antecipou movimentos que Araújo confirmou em entrevista coletiva na sexta (1º), como atender o pedido do líder oposicionista Juan Guaidó para o envio de ajuda à Venezuela e promover sanções econômicas contra membros do regime.
Até por não ser demissível, o general tem vocalizado a insatisfação. Como presidente interino, recebeu duas delegações árabes para dizer que não haverá a mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, promessa de campanha de Bolsonaro repetida ao premiê israelense, Binyamin Netanyahu.
Araújo apenas disse que mudança está em estudo.
O movimento é destinado a agradar a base evangélica do presidente, que vê no reconhecimento da cidade como capital de Israel o restabelecimento de uma verdade bíblica e uma antessala para a volta de Cristo à Terra.
Os árabes, grandes compradores de aves brasileiras, prometem retaliar porque o status de Jerusalém é disputado entre palestinos e israelenses.
O vice também descartou, como já fizera o general Heleno e o próprio Bolsonaro, qualquer intervenção militar contra Maduro. A ideia foi ventilada várias vezes pelo presidente americano, Donald Trump, e os fardados temem que o chanceler se inspire em seu ídolo declarado.
Mourão também trocou farpas públicas com Olavo de Carvalho, o misto de escritor e ideólogo a quem Araújo deve seu discurso político e a indicação, feita por meio de Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo PSL-SP. Ele, Araújo e o assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, são alunos de Olavo engajados no projeto de “livrar o Itamaraty das amarras ideológicas”, como diz o presidente.
O vice também criticou o chanceler numa entrevista à revista Época, dizendo que ele não havia dito a que veio. Em particular, oficiais da ala militar e generais da ativa são bem menos diplomáticos, especialmente quando comentam o caudaloso discurso de estreia de Araújo. Outras manifestações, como o artigo em que creditou a Deus a união entre Bolsonaro e Olavo, são apenas alvo de chacota.
Não por acaso, Mourão tem se encontrado com embaixadores para tentar desfazer a má impressão que o governo Bolsonaro causa entre políticos estrangeiros —salvo, naturalmente, Trump e líderes assemelhados na Itália, Hungria ou Israel.
Fernando Henrique Cardoso: E agora?
É preciso reconstruir a confiança entre sociedade e poder. Não parece que o presidente atual tenha essas qualidades
Fazer campanha é uma coisa, governar é outra. O novo governo mal começou, por isso tenho sido cauteloso ao falar dele. Dei algumas entrevistas na França e participei de discussões. Num diálogo na Maison de l'Amérique Latine sobre o último livro de Alain Touraine, quatro ou cinco ativistas pertencentes a um "coletivo" levantaram uma faixa. Nela se lia: "Lula livre!" e algo sobre os "golpistas". Como não fui eu quem mandou prender Lula, foi a Justiça, e jamais participei de golpe algum, vi o "ato" com fleuma. Mas, de ato em ato, se vai formando no subconsciente das pessoas e da mídia a convicção de que houve um golpe no Brasil que destituiu Dilma Rousseff. Estaríamos agora, com a eleição de Bolsonaro, caminhando para o fascismo... As perguntas feitas por alguns jornalistas tinham esse pano de fundo. Que o governo é "de direita" é certo, assumidamente. Que haja fascismo, só com má-fé. Os que ouviram na TV Globo as declarações do general Mourão podem eventualmente discordar, mas nada há de fascismo nelas.
No governo existem tendências autoritárias e gente que vê fantasmas no "globalismo". Também há pessoas que, contra os supostos males da "ideologia de gênero", advogam que meninos usem roupas azuis e meninas, cor-de-rosa. Mais grave, existem pessoas do círculo familiar do presidente que parecem ter relações bem próximas com as milícias cariocas. Já houve quem dissesse, e é certo, que a democracia é como uma planta tenra, precisa ser regada todos os dias. Cuidemos, pois, para evitar o pior. Que a essas tendências se oponham outras, abertamente democráticas.
O governo atual é consequência do medo (da violência que se espraiou), do horror à corrupção política (a Justiça e a mídia mostraram que ela é epidêmica) e da ansiedade pelo "novo". Que temos culpa no cartório, os do "antigo regime", é inegável. Se não culpa pessoal, culpa política. Nesse caso, de pouco adianta bater no peito.
É preciso reconstruir os laços de confiança entre a sociedade e o poder, o que requer liderança e ação institucional. Não parece que o presidente atual tenha as qualidades para tanto. Mas também as oposições estão em jogo: se simplesmente se opuserem a tudo ou aderirem acriticamente ao governo, pobre democracia.
O PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o porquê disso, bem como atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito, a própria "social-democracia" é datada. Ela correspondeu ao que de melhor poderia haver nos marcos do capitalismo industrial, ao longo do século 20: a conciliação entre a "lógica do capital" e os valores da liberdade e da igualdade, do ideal democrático. A expressão dessa conciliação foram os Estados de bem-estar construídos nos países industriais avançados, nos quais se inspiraram líderes e partidos latino-americanos que chegaram ao poder depois do predomínio do autoritarismo na região.
A resposta aos novos desafios é mais difícil – não só no Brasil e na América Latina, também nos "países centrais" – do que foi a resposta social-democrata na época do desenvolvimento capitalista urbano-industrial. Como dar ocupação e renda à maioria da população em economias globalizadas, em que o aumento de produtividade dependerá cada vez menos de mão de obra não especializada e mais de conhecimentos, habilidades, capacidades de adaptação e invenção que podem ser oferecidos por trabalhadores especializados ou máquinas inteligentes? Mesmo que se possa assegurar uma renda mínima decente a todos, como resolver a questão da ocupação das pessoas marginalizadas do mercado de trabalho? São questões para as quais não existem respostas prontas. Mas tampouco o liberalismo econômico as tem. É ilusão acreditar que o crescimento da economia contemporânea solucionará por si os novos desafios da “inclusão social”.
E nós, aqui, vamos empurrar a questão da equidade para debaixo do tapete e rezar para que o "mercado" resolva tudo? É a tal tipo de visão que os social-democratas vão aderir? Ou os setores da sociedade fortemente comprometidos com a democracia, com as liberdades e com ideais de maior igualdade e dignidade humana terão forças para atualizar o ideário e abrir caminhos novos? A ver... É esse o enigma que nos espera. Diante dele, xingamentos e conceitos historicamente esvaziados(como o de fascismo) são insuficientes tanto para explicar o que acontece na sociedade quanto para apontar os rumos do futuro.
Nessa falta de rumos tanto o governo como as oposições estão enredados. Até o momento a agenda governamental é a da campanha: bandido bom é bandido morto, cadeia para os corruptos, adesão a outro pensamento único, o de Trump, e assim por diante. Mas a solução para os problemas da criminalidade, da violência, da corrupção, do lugar do Brasil no mundo não admite respostas singelas.
É preciso retomar o ritmo positivo da economia, o que depende de equilibrar as contas públicas e assegurar a solvência do Estado. Por isso, entre as múltiplas questões em pauta a reforma da Previdência prima. Seu andamento depende não apenas de coordenação política no Congresso, uma tarefa complexa, mas também de o governo definir um rumo claro a seguir e convencer a sociedade de que essa reforma é um passo necessário. Não se põe em marcha tal processo sem uma visão convincente sobre para onde se quer conduzir o País.
Esse desafio é não só do governo, mas do País. Portanto, as oposições têm papel em seu encaminhamento e solução. Jogar fora a "pauta social" e substituí-la por outra, "econômica", não nos conduzirá pelo bom caminho. Aderir ao governo para obter vantagens políticas repugna ao eleitorado. Mantenhamos nossas crenças, tomemos posições claras, sem adesismo ao governo nem irresponsabilidade com o País. Sobretudo, imaginemos, critica e criativamente, como atualizar o ideário da social-democracia, cujas fronteiras não se limitam ao PSDB.
*Sociólogo, foi presidente da República
Ricardo Noblat: A ganhar com Renan, o governo prefere perder
Lambança inesquecível
Quando Onyx Lorenzonni, chefe da Casa Civil da presidência da República, pedirá demissão do cargo ou abdicará da tarefa de interlocutor político do governo junto ao Congresso?
Foi culpa dele, preferencialmente dele, a dupla derrota colhida pelo governo nas eleições de ontem para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado.
Não importa que o PSL de Bolsonaro tenha apoiado na Câmara a reeleição de Rodrigo Maia (DEM-DEM). Onyx tentou emplacar outro nome no lugar dele. Maia nada deve ao governo, pois.
Por sinal, tão logo reeleito com grande folga de votos, Maia anunciou que a reforma da Previdência dificilmente será votada na Câmara ainda neste semestre. O governo suplicava que fosse.
Onyx inventou no Senado a candidatura a presidente do inexpressivo senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Jogou todo o peso da Casa Civil para elegê-lo. Orientou todos os seus passos.
Deu no que deu. Na madrugada de hoje, o ministro Dias Toffolli, presidente do Supremo Tribunal Federal, anulou a sessão de ontem do Senado presidida por Alcolumbre em causa própria.
Como candidato notório à presidência do Senado, ele não poderia ter comandado a sessão, disse Toffoli. Nem patrocinado a adoção do voto aberto no lugar do voto secreto para a escolha do presidente.
O voto é secreto, como de resto manda o regimento do Senado desde os anos 70 do século passado, determinou Toffoli. E assim sendo, aumentam as chances de Renan Calheiros (PMDB-AL) se eleger.
É o que poderá acontecer a partir das 11 horas de hoje quando for retomada a sessão interrompida ontem – desta vez sob a presidência de José Maranhão (PMDB-PB), o mais velho dos senadores e renanzista roxo.
O governo poderia ter ganhado logo de saída com a eleição de Renan, que dera claros sinais de estar disposto a comandar o Senado sem nenhuma má vontade com o governo. Vá lá: com pouca.
Renan havia até se oferecido para proteger o mandato do garoto Flávio Bolsonaro, recém-eleito senador, mas envolvido em rolos explosivos junto com seu ex-assessor Fabrício Queiroz.
Mas o governo preferiu perder. Embora tivesse telefonado na última sexta-feira a Renan para agendar um breve encontro com ele, Bolsonaro assistiu de longe o que Onyx fazia sem desautorizá-lo.
Bolsonaro não deixa de ser sócio da lambança promovida por seu ministro. Se Renan se eleger, nada lhe deverá. E talvez ainda exija a cabeça de Onyx numa bandeja de prata.
CPIs oficiais para barrar a CPI de Queiroz
Governo tenta driblar a oposição
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é instrumento de que se vale a oposição para infernizar a vida do governo. Mas ontem, na Câmara dos Deputados, foi o governo que promoveu o recolhimento de assinaturas para instalar cinco CPIs de uma vez sobre os mais variados temas, nenhum que lhe crie embaraços, naturalmente.
Houve uma razão para isso: barrar a possível instalação da CPI do Queiroz, destinada a investigar os rolos de Fabrício, o ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro. Uma vez que cinco CPIs se tornem possíveis, as próximas entrarão numa fila à espera que as primeiras terminem. Há mil formas de se prolongar uma CPI para evitar o funcionamento de uma nova.
Deputado pode assinar um pedido de CPI para mais tarde negociar com o governo a retirada de sua assinatura em troca de vantagens inconfessáveis. Era assim na época da chamada “velha política”, e nada sugere que deixará de ser assim nestes tempos de “nova política”. A barganha ao contrário também é comum: negar a assinatura quando é o governo que a deseja.
Mesmo deputados de primeiro mandato sabem disso. Muitos deles, eleitos por conta do seu apoio a Jair Bolsonaro recusaram-se a assinar de pronto os pedidos de CPIs chapa branca. O venerável deputado Ulysses Guimarães (PMDB) dizia que o mais inexperiente dos seus colegas era capaz de consertar de olhos vendados e usando luvas de boxe o mais delicado relógio suíço.
Definitivamente, o Congresso não é uma casa de bobos.
Miguel Reale Júnior: Ambivalência
Dois pesos e duas medidas, essa é até agora a marca do governo Bolsonaro
O primeiro mês da gestão de Jair Bolsonaro indica as imensas dificuldades vividas pela nova equipe governamental. Essa conclusão não é novidade para quem analisou a carreira do capitão deputado federal, figura irrelevante da Câmara ao longo de 28 anos.
Tratado por mito, Bolsonaro não precisou, ainda mais como vítima de atentado à faca, dizer a que vinha, ausente de todos os debates e limitando-se às poucas palavras cabíveis em mensagens por WhatsApp. Defensor da violência policial, e até mesmo da tortura, era sua marca fazer gestos de revólver ou espingarda, figurando-se como inimigo incansável do crime.
Dois fatos importantes, ligados ao seu campo de preferência, ou seja, ao uso de armas, merecem destaque neste mês: a ligação de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, com o ex-capitão da PM do Rio de Janeiro Aureliano Nóbrega, chefe de perigosa milícia da zona oeste da cidade; e o decreto que ampliou em muito o direito de posse de revólver ou espingarda pelos brasileiros de todo o País.
O vínculo do senador Flávio Bolsonaro com o ex-capitão Aureliano da Nóbrega, líder da milícia Escritório do Crime, constitui dado grave, pois, mesmo preso preventivamente sob acusação de homicídio, Aureliano recebeu, graças a Flávio, então deputado estadual, elevada comenda do Legislativo fluminense, a Medalha Tiradentes, igualmente outorgada ao major Ronald Pereira, outro líder da milícia. A mulher e a mãe de Aureliano trabalharam por anos, até novembro passado, no gabinete de Flávio Bolsonaro. O próprio presidente Bolsonaro na Câmara dos Deputados fez a defesa de Aureliano e exaltou as milícias.
Esses fatos levaram à tergiversação, pois em entrevista à TV a cabo Bloomberg o presidente disse: “Se por acaso Flávio errou e isso ficar provado, eu lamento como pai. Se Flávio errou, ele terá de pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. Essa manifestação provocou elogios pela imparcialidade ante o erro, a ser punido mesmo que praticado por seu filho.
No entanto, logo em seguida, entrevistado pela TV Record, o presidente claudicou e no pior paternalismo disse sobre o filho: “Ele tem explicado tudo o que acontece com ele nessas acusações infundadas. Não é justo atingir um garoto para tentar me atingir... A pressão enorme em cima dele é para tentar me atingir. Ele esteve com o seu sigilo quebrado, fizeram uma arbitrariedade em cima dele”.
O senador transmuda-se em garoto, menino perseguido para atingir o pai, sofrendo “acusações infundadas”, a mostrar que era apenas breve jogo de cena a correta e digna exigência de sancionar o erro do filho, se constatada sua falta. Próprio da ambivalência do governo durante este mês, passou o presidente de postura corajosa de imparcialidade para mais do que mera defesa do filho, ao adotar o “coitadismo”, desenhando o senador como um garoto envolvido em rede de arbitrariedades e acusações infundadas.
A “luta contra o crime” já serviu para justificar homenagens aos criminosos chefes de milícia. Servirá agora como desculpa para não se investigar o novel senador da República?
No âmbito de pretensa defesa contra o crime, surgiu o decreto presidencial que ampliou a posse de armas, podendo cada brasileiro sem antecedentes deter até quatro armas, constando como condição para aquisição de revólver que o cidadão resida em unidade da Federação cujo índice de violência apresente mais de dez homicídios por 100 mil habitantes no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018.
Valeram-se o presidente e sua equipe do Atlas da Violência produzido pela Ipea, mas se ignorou esse mesmo atlas no tocante ao capítulo relativo ao uso de armas, que enfatiza o papel central exercido pelo controle responsável de armas de fogo para a segurança de todos. Tanto é assim que destaca o atlas o aumento vertiginoso do número de homicídios nas Regiões Norte e Nordeste, tendo por uma das causas a não aplicação do Estatuto do Desarmamento.
Em 2016, manifesto de 57 especialistas, dentre os quais se pode lembrar Alba Zaluar, Cláudio Beato e Daniel Cerqueira, Sérgio Adorno, assevera: “Estudos levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo. E fazem um alerta: a miséria da política de segurança no Brasil nasce quando leis são formuladas sem levar em conta o conhecimento científico acumulado em anos de pesquisa”.
Valiosa síntese dos mais importantes estudos sobre a posse de armas como indutora de crimes, e não como redutora da violência, é apresentada por Thomas Conti: “A literatura empírica disponível é amplamente favorável à conclusão que a quantidade de armas tem efeito positivo sobre os homicídios, sobre a violência letal e sobre alguns outros tipos de crime”. Examina Conti trabalho de Donohue e outros, reputado como a mais relevante pesquisa sobre posse de armas nos Estados Unidos, cuja conclusão é de que a liberação do uso de armas está associada a maiores taxas de crimes violentos.
Em momento constrangedor, o ministro da Justiça, Sergio Moro, ao ser entrevistado na GloboNews, disse serem não confiáveis as pesquisas indicativas do risco da posse de armas. O estudo do Ipea serviu como base para autorizar a posse de armas para brasileiros de todos os Estados, mas nega-se valor a esse mesmo estudo na parte relativa ao efeito da posse de armas.
Dois pesos e duas medidas: primeiro, o senador, se errado, deve ser punido; depois, o senador passa a ser um garoto perseguido. O Atlas de Violência dá o critério para posse de armas; depois é inconsistente ao destacar o malefício da posse de armas. Ambivalência: por ora, a marca do governo.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça.
Claudia Safatle: Para "desencantar" obras inacabadas
Adalberto Santos de Vasconcelos recebeu, no dia 1º de janeiro, uma missão hercúlea: desencantar e concluir grandes obras públicas inacabadas que já enterraram bilhões de reais e nada entregaram à população. À frente da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), subordinada ao ministro da Secretaria de Governo, Santos Cruz, e com seus poucos mais de 50 funcionários, ele terá que apresentar, neste mês, uma lista de projetos estratégicos para serem concluídos.
A decisão final sobre quais serão levados adiante, nessa primeira leva, será do conselho do PPI, que reúne-se em fevereiro.
Das mais de 13 mil obras inacabadas sob o patrocínio do governo federal em todo o país, o conselho vai selecionar no máximo oito com potencial para entrar na carteira do PPI.
Serão as mesmas de sempre, aquelas que entra governo, sai governo, criam-se grupos de trabalho interministerial e nada acontece. Parece que estão sob quebranto, mas é mais complicado do que isso.
Segundo Adalberto, a lista abarca, dentre outras, a Transnordestina, Angra 3, a BR-163 (Mato Grosso), a duplicação da Rodovia da Morte (BR-381 em Minas Gerais), a Transposição do Rio São Francisco, e por aí vai.
Uma vez no PPI, os técnicos terão que "apresentar um diagnóstico e uma solução", disse Adalberto. "As rodovias poderão ser qualificadas como obra pública ou como concessão", acrescentou. Diante da penúria do setor público, o mais apropriado é encontrar sócios privados para completar essa empreitada.
"O Brasil tem uma grande carteira de obras, mas não tem projetos. Desde 1990, quando acabou o Geipot, perdemos a massa crítica de ver o Brasil do futuro." O Geipot foi criado em 1965 como Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, mais tarde foi convertido em Empresa de Planejamento na Área de Transportes (rodoviário, ferroviário, aquaviário etc.) e entrou em processo de liquidação em 2001.
Dilma Rousseff, quando presidente da República, tentou recriar uma estrutura semelhante. Inicialmente, porém, ela optou por criar a Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade S.A. (Etav), para administrar o trem-bala. Como a ideia não deu certo, ela transformou a Etav na EPL, Empresa de Planejamento e Logística.
Enquanto os governos patinam na estruturação dos investimentos absolutamente necessários para dar condições de escoamento da produção no país, o que aparece vem com erros de origem.
"Começa-se muita obra sem projeto básico, sem licenciamento ambiental, sem planejamento, sem garantia de orçamento e com várias pendências junto aos órgãos de controle", explicou o secretário.
"A Transnordestina foi assim. Começou como uma ideia, mas não havia um projeto. Com isso, a obra fica muito mais cara e não se entrega nada à sociedade."
O que receber o selo do PPI, assegura ele, terá um projeto estruturado e sairá dali já com licenciamento ambiental e solução para desapropriações. O secretário não quis antecipar os modelos de soluções que tem em mente ou que o conselho indicará, mas sugere que o governo poderá agregar a Transnordestina a outras ferrovias e encorpar a sua carga, para torná-la mais atrativa ao setor privado.
A conclusão da usina nuclear de Angra 3 também poderá ser entregue ao setor privado. Avalia-se, porém, se há base legal para isso. O primeiro passo foi dado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que, na penúltima reunião do ano passado, decidiu mandar a usina para a secretaria do PPI.
O programa dá segurança jurídica, que é um elemento-chave para a atração do setor privado. A secretaria especial comandada por Adalberto foi criada para resolver problemas e, para isso, ele agora tem sob seu organograma uma secretaria de licenciamento e desapropriação - dois pepinos que, em geral, atrasam sobremaneira a conclusão de projetos de logística. Com os técnicos especializados nos assuntos e com poder para solucioná-los, as obras podem ganhar velocidade.
"Vamos ver o custo de conclusão de cada uma das obras estratégicas para o país. Nenhuma delas tem solução fácil, mas vamos olhar sem preconceitos", adianta o secretário.
Diz-se que falta muito pouco - talvez uns 5% - para conclusão da transposição do São Francisco, mas sabe-se no governo que isso não é verdade. A água que sai do rio terá que ser levada aos municípios e, para recebê-la, eles terão que dar um tratamento adequado. Ou seja, não basta concluir a obra. É preciso entregar o serviço para a população.
A determinação com que o Adalberto fala sobre o cumprimento das tarefas que recebeu no início do ano pelo novo governo chega a ser contagiante. O currículo do secretário, auditor do Tribunal de Contas da União (TCU) que em 2016 ocupou a secretaria do PPI, talvez possa ser uma boa referência sobre o seu empenho para cumprir missões.
No ano passado, por exemplo, contrariando as expectativas, por meio do PPI foi possível licitar as seis distribuidoras de energia que ainda estavam nas mãos da Eletrobras.
Em 30 meses de governo Temer, disse ele, foram contratados 124 projetos entre concessões leiloadas ou ativos vendidos envolvendo aeroportos, petróleo, linhas de transmissão de energia, sendo que desses, 47 foram para investidores estrangeiros.
Isso perfaz um investimento total de R$ 252 bilhões, sendo que cerca de 80% devem ser desembolsados nos primeiros cinco anos dos contratos.
Ciente de que o investimento em infraestrutura no Brasil é baixíssimo - gira em torno de 1,4% a 1,6% do PIB - e insuficiente para manter o estoque existente, Adalberto sonha em ver, um dia, o país investindo 5% do PIB.
Já foi assim no período dos governos militares, quando a média de investimentos em obras de infraestrutura era de 5,4% do PIB. Mas essa é uma outra história, sob outras condições e realidade.
Chico Alencar: Milícia, malícia e maldição
O capitalismo de compadrio do Brasil não se livrou do mandonismo escravocrata. A propalada “tradição pacífica” dos brasileiros é um mito, discurso enganoso em uma das sociedades mais desiguais do planeta. Nosso processo social é conflituoso, com relações violentas entre as classes, ao longo da história.
Em pleno século XX, a permanência de traços da dominação sangrenta e despótica é uma negação da República. As milícias, particularmente fortes no Rio de Janeiro, são expressão dessa barbárie: reproduzem controle e exploração manu militare. São a contrafação do tráfico armado de drogas, igualmente autoritário e cruel. Ambos com o êmulo do lucro, do deus Dinheiro.
Todas essas formas de imposição têm por base o controle territorial a poder de fogo. O Brasil colônia era uma unidade política apenas nominal: a força local (e “legal”!) era hegemônica e aterrorizante, a cargo dos capitães-do-mato, capatazes dos “donos de gado e gente”. Os seus chefes, depois coronéis da República Velha, eram valorizados na ordem vigente: “o ser senhor de engenho traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado por muitos”, relatou Antonil, em seu livro sobre as riquezas do Brasil, publicado em 1711.
As milícias diferem dos bandos de traficantes por seus elos com o poder institucional - e isso lhes dá muito mais poder. O crime do varejo de drogas ilícitas é desorganizado. O das milícias, não. Daí sua maior capacidade corrosiva.
O atual presidente Jair Bolsonaro defendeu esses grupos mafiosos: “em região onde tem milícia paga, não tem violência”, avalizou, ano passado, louvando os grupos paramilitares. Em dezembro de 2008, quando destaquei, na Câmara, o relatório final da CPI das Milícias (que Flávio Bolsonaro nunca apoiou), levado pelo deputado estadual Marcelo Freixo, seu grande artífice, Jair reagiu: “não é assim, elencar todos os milicianos como bandidos! (...) Como o PM ou o bombeiro ganha R$ 850 por mês, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com exploração de ‘gatonet’, venda de gás ou transporte alternativo. Esse relatório está cheio de policiais e bombeiros que não têm nada a ver. É um relatório covarde, feito em cima do disque-denúncia”.
É notória a admiração que o clã Bolsonaro tem por aquilo que já foi chamado de “polícia mineira”, e vários classificam como “autodefesa comunitária”. São os saudosistas do Brasil oligárquico, do poder coronelista e dos capangas que protegem suas atividades econômicas.
Essas relações perigosas bordejam a conivência ou cumplicidade com ações criminosas. Há vínculos suspeitos de Flávio Bolsonaro com as milícias, prestando homenagens oficiais na Alerj a figuras hoje presas ou foragidas e empregando mãe e mulher do “patrãozão”, ex-capitão do Bope. A promotora Simone Sibilio caracteriza Adriano Nóbrega (cuja “dedicação, brilhantismo e galhardia” o Bolsonaro 01 destacou) como “muito violento e temido até pelos seus comparsas, que exerce seu poder impondo o terror, e que precisa ser retirado rapidamente de circulação”. Jair o defendeu, quando acusado de homicídio, na tribuna da Câmara, além de comparecer ao seu julgamento.
Está sendo investigada também a ligação dos milicianos presos na recente operação conjunta do MP e da Polícia Civil com o chamado “Escritório do Crime”, quadrilha de assassinos suspeita da bárbara execução de Marielle e Anderson, que completará um ano em março.
A propósito, jamais ouvi de qualquer dos Bolsonaro uma palavra de repúdio ao crime hediondo, ao contrário da unânime condenação à estúpida facada que atingiu o atual presidente, em setembro. Desprezando qualquer sentimento humanitário elementar, seguidores de Bolsonaro quebraram placa de homenagem a Marielle, com aplausos de quem veio a ser eleito governador do Rio de Janeiro. Parcerias tenebrosas, tempos atrozes!
*Chico Alencar é professor da UFRJ e escritor.
Monica De Bolle: Em nome do quê?
Contudo, o presidente jamais disse em nome de que faria política econômica.
A democracia brasileira está em risco? Para responder a essa pergunta, a Companhia das Letras reuniu cientistas políticos, sociólogos, historiadores, economistas e especialistas em Direito e publicou 22 ensaios em livro, já disponível sob o título Democracia em risco?. Contribuí para o livro com um texto sobre minhas primeiras impressões a respeito do bolsonarismo. Mais especificamente, o intuito era tentar entender em nome de que se fará a política econômica no Brasil. Afinal, em muitos aspectos o bolsonarismo é, sim, uma ruptura com nosso passado, ao menos desde a redemocratização.
A política econômica sempre foi feita em nome de alguma coisa. Durante a primeira metade dos anos 90, ela foi feita em nome da inflação, ou melhor, em torno da necessidade de reduzir a inusitada inflação brasileira, que por mais de 20 anos ficou acima dos 500% anuais. O Brasil é dos raríssimos casos no mundo em que a hiperinflação virou um modo de vida por quase duas décadas. Depois que o Plano Real deu fim à enorme mazela, a política econômica passou a ser formulada para lidar com os tropeços da segunda metade dos anos 90 — nessa época, vimos crises financeiras em série nos mercados emergentes. Essas crises trouxeram grande instabilidade para a economia brasileira em momento delicado, quando os ganhos e avanços do Plano Real ainda não estavam plenamente consolidados. Foi uma época complicada, com ramificações políticas que conosco permaneceriam até os dias de hoje. Ainda há quem fale na herança maldita de FHC, embora tenha sido em seu governo que foram plantadas algumas das sementes mais importantes da estabilidade econômica.
No início dos anos 2000, a política econômica mudou sutilmente de norte. Embora a estabilidade macroeconômica continuasse a ser o principal objetivo, o Brasil havia avançado o suficiente para que outros objetivos pudessem ser contemplados. Foi a época em que a política econômica foi feita, também, em nome da redução das desigualdades de renda, da formalização do mercado de trabalho, da diminuição da pobreza. Ou seja, o governo FHC e os governos petistas — por mais manchados que estejam estes últimos pela corrupção — fizeram política econômica em nome da melhoria de vida das pessoas. E, por mais que se queira demonizar Lula, o fato é que ele — como FHC — deixou um legado além da corrupção.
Nos anos Dilma, a política econômica mudou de configuração: a estabilidade macroeconômica ficou de lado e a busca pelo crescimento que se perdia com a reversão do quadro global se tornou mais importante, sob o argumento de que só dessa maneira seguiria o país garantindo os ganhos sociais vistos em anos anteriores. O foco no crescimento como único objetivo levou o governo Dilma a adotar um amontoado de medidas econômicas incoerentes, que acabariam por desaguar na recessão de 2015 e 2016, também agravada pelas revelações da Lava Jato e pela paralisia de diversos setores fundamentais, como o de construção civil.
Esse arco histórico é necessário para que se possa pensar na pergunta que intitula este artigo. É fato amplamente citado que Bolsonaro não falou sobre a agenda econômica nem durante a campanha, nem depois da posse. Houve menções às privatizações aqui e acolá, referências à reforma da Previdência, platitudes acerca da necessidade de abrir a economia brasileira.
E, vejam bem, quem tem de dizer isso é o presidente eleito, não o ministro da Economia ou qualquer outro integrante técnico do governo. Se Bolsonaro jamais disse em nome de que formularia a política econômica, houve alusões de sobra ao nome de Deus, o que não surpreende. Afinal, o bolsonarismo tem como principal fiadora a ideologia ultraconservadora da nova direita religiosa do Brasil. A ministra Damares Alves a ilustra bem, assim como o ministro Ernesto Araújo. Essa ideologia não tem interesse na agenda econômica do país, seja por falta de conhecimento, por desinteresse ou pela prioridade que dá à retrógrada agenda de costumes que defende. Nunca antes na história deste país — ao menos não nos últimos 30 e poucos anos — tivemos uma agenda econômica tão desligada do núcleo político do governo.
Não quero dizer com isso que há sombra ominosa sobre a economia brasileira. Quero apenas dizer que a resposta à pergunta que encabeça este artigo é, por enquanto: em nome de nada.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
El País: “Eu e Bolsonaro nos complementamos”, diz Mourão
Ao EL PAÍS, vice-presidente diz que militares estarão na reforma da Previdência e que crê que o termo "ditadura" será revisto pelos historiadores. Para ele, Governo não propõe " aliança cega com EUA"
Por Afonso Benites e Naiara Gallaraga Gortázar, do El País
O vice-presidente Hamilton Mourão (Bagé, 1953), general da reserva do Exército, recebe cordialmente em um amplo gabinete em um dos anexos do Palácio do Planalto. É direto. Não faz rodeios. Pouco altera o tom de voz. Faz piadas sobre um antigo comandante, que diz ter “fumado maconha” quando avaliou que Mourão assumiria a Presidência por um longo período antes de 2022. E quase não foge de perguntas, mesmo quando tratam de assuntos que os militares pouco gostam, como a ditadura brasileira ou torturas ocorridas naquele período. O único assunto que não quis comentar detidamente foram as críticas feitas pelo guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho. “(Ele) está nos Estados Unidos, que aproveite o inverno", diz, depois de afirmar que nem vê essas queixas.
Na entrevista que concedeu ao EL PAÍS nesta quinta-feira, o vice-presidente disse que ele e o presidente Jair Bolsonaro(PSL) se complementam – ainda que reajam de maneiras bem distintas quando sob pressão da imprensa. Afirmou que os militares estarão na reforma da Previdência, mas não na mesma proposta de emenda constitucional elaborada para os civis, e que as Forças Armadas da Venezuela acabarão por abandonar Nicolás Maduro. Diante de uma repórter espanhola e de um brasileiro, ele preferiu responder aos questionamentos em um castelhano fluente, fruto de sua passagem como adido militar pela embaixada do Brasil em Caracas, entre os anos de 2002 e 2004.
Pergunta. Este Governo tem um mês e o senhor já assumiu a presidência duas vezes, por causa da viagem a Davos de Bolsonaro e a operação do presidente. Isso é muito incomum. O senhor se sentiu confortável nessa posição?
Resposta. Sim, tranquilo porque o presidente Bolsonaro e eu somos parceiros há muito tempo. Nos formamos na academia militar do Brasil com dois anos de diferença. Eu em 75, ele em 77. Há uma visão muito comum de muitas coisas. Uma das razões pelas quais ele me escolheu para ser seu vice-presidente foi porque eu sabia que ele teria paz de espírito todas as vezes que deixasse o Brasil, porque ele teria aqui uma pessoa de sua mais íntima confiança.
P. O senhor disse que não seria um vice-presidente decorativo. Qual é a sua função?
R. O papel do vice-presidente é muito peculiar no Brasil, é um baluarte da democracia. Por que digo que é o baluarte da democracia? Porque se toda vez que o presidente tiver que deixar o país, se não houvesse vice-presidente, o presidente da Câmara dos Deputados estaria em seu lugar. E isso muda a cada dois anos. O vice-presidente garante a continuidade do pensamento do Governo. Eu acho que isso é importante. A outra coisa é que estou aqui para aconselhar o presidente em todas as questões que ele considera necessárias, e para ser um companheiro, um amigo, que ele pode dividir suas ansiedades e aflições.
P. E ele o tem procurado frequentemente?
R. Sim. Ele me procura quando necessário.
P. O senhor foi adido militar na Venezuela. Certamente conhece bem esse estabelecimento militar. Agora eles apoiam o presidente Nicolás Maduro, mas acha que eles continuarão a apoiá-lo? E por quanto tempo?
R. O que acontece é que os militares venezuelanos se envolveram tanto com o bolivarianismo que hoje é um pouco difícil ficar longe disso. Mas acho que, por pior que seja a situação, em algum momento terão o que todos nós, militares, temos, que é [o compromisso de] o nosso país estar acima das paixões. Isso vai emergir e então eu acho que eles vão abandonar o senhor Maduro.
P. Acha que deveria haver uma mudança de regime? E como você acha que deveria ser feita?
R. O que acontece é que a Venezuela precisa recomeçar. O processo que aconteceu lá destruiu a economia, dividiu a população do país, um país que tem um enorme potencial por causa de suas riquezas naturais e sua posição geográfica e uma população que não é muito grande. Então tem todas as capacidades e esse processo acabou por derrubar a economia venezuelana. E quando a economia vai mal, o país vai mal. E é óbvio que a forma como as coisas foram conduzidas, a maneira como os instrumentos da democracia foram usados, em que um grupo toma o poder por tanto tempo, não é bom. Eu acredito firmemente que uma das condições básicas para um país avançar e para uma democracia ser forte é fazer uma alternância no poder. E estão no poder desde 1999, são 20 anos do mesmo grupo no poder. Isso não é bom.
P. Essa mudança tem que ocorrer via eleições?
R. Sim, essa mudança ocorrerá através do processo eleitoral. O movimento que eu acho que precisa para que a coisa seja resolvida na Venezuela é que Maduro e seu grupo deixem o país.
P. Em quanto tempo?
R. Eu não sei, você não pode colocar tempo para isso, mas eu acho que tem que sair. Eles deixam o país e esse rapaz que agora é presidente da Assembleia Nacional (Juan Guaidó) convoca novas eleições em três meses, seis meses, em um momento em que as coisas são consertadas e depois a Venezuela recomeça porque a economia precisa ser reconstruída no país. As pessoas têm que aprender a se relacionar umas com as outras, parar de ter ódio umas pelas outras, que o país seja unido novamente.
P. Com relação à Venezuela, a mudança na política externa do Brasil é notável. Também em relação aos Estados Unidos. O que o Governo de Bolsonaro espera conseguir com essa mudança radical, da nova aliança que está sendo forjada com os EUA e Israel?
R. Eu não acho que haja uma aliança, acho que o que acontece é que o nosso Governo tem uma ideia muito próxima e muito clara dos valores que caracterizam a democracia americana, então há uma identidade com esses valores. Este é o ponto principal porque os últimos Governos não foram muito claros sobre isso. Eu não vejo hoje como uma aliança cega do Brasil com os EUA, eu vejo isso como uma aproximação para os valores que eu acredito serem importantes para a América como um todo. A América surgiu com as ideias da Revolução Francesa, com as ideias do Iluminismo. A América era uma terra de liberdade, a América como um todo.
P. Direito a voto, liberdades, separação de Poderes.
R. Sim, isso mesmo.
P. Falando disso. Em setembro de 2018, o senhor declarou, segundo a Folha de S. Paulo, de que o Brasil precisava de uma nova Constituição, que não precisa ser redigida pelos eleitos pelo povo, que preferia que fosse redigida por um conselho de notáveis. Ainda mantém essa opinião?
R. Sim, minha opinião pessoal é que nossa Constituição é muito grande. Sou defensor de uma Constituição menor que é apenas sobre os valores da democracia e do Brasil como país. Mas a forma como é redigida, pode ser pelo próprio Congresso, por uma Assembleia Constituinte eleita para isso ou, como me arrisquei na época, por um grupo de pessoas que tem muito conhecimento para escrevê-la e submetê-la a uma votação do Congresso ou da população.
P. E que seja votada?
R. Sim, que seja votada.
P. Mas que seja votara a posteriori, que os deputados não participem de sua redação.
R. O que aconteceu com nossa Constituição que temos hoje? Foi feita pelos deputados, que foram eleitos para representar o povo e, ao mesmo tempo, para serem constituintes. Eles tinham dois papéis nisso. E o que aconteceu? Os diferentes grupos de pressão colocam suas pequenas coisas na nossa Constituição, então temos essa Constituição por tanto tempo. Você imagina, em 30 anos você tem cem emendas. A Constituição americana tem mais de 200 anos e possui 27 emendas. Então, algo não está certo nisso.
P. As Forças Armadas estão comprometidas com a democracia no Brasil?
R. Não há dúvidas sobre isso. Se existe uma instituição que é democrática no Brasil são as Forças Armadas devido às suas próprias características. São as Forças Armadas que não constituem um grupo especial, as pessoas que estão nelas vêm de todos os pontos de todas as classes sociais. Eu acho até que a maioria delas vem da classe média baixa, são pessoas que conhecem muito bem o país e com ideais muito firmes de que a democracia é a melhor coisa para o país.
P. Alguns observadores nacionais e internacionais o consideram uma pessoa mais moderada do que o presidente. O que acha? É mais moderado?
R. Eu não acho que seja uma questão de moderação. Acho que o presidente e eu tivemos trajetórias diferentes em nossas vidas. O presidente é um político há 30 anos. Eu fui um soldado a vida toda. Então, com isso, temos visões um pouco diferentes sobre a maneira como nos conduzimos, mas há uma identidade de pensamento entre os dois. E obviamente há uma maneira de se expressar.
P. É natural?
R. Acho que sim, que é natural.
P. A maneira de tratar a imprensa…
R. É a minha maneira natural de tratar. O presidente tem a sua. Eu acredito que nós nos complementamos.
P. O senhor entrou no Exército durante a ditadura militar. Como classifica esse período de 1964 a 1985?
R. Sou um crítico de chamar de ditadura esse período. Sou um crítico muito forte porque, chamar de ditadura um período que, a cada quatro anos, mudava o presidente é uma ditadura muito diferente. Eu costumo dizer que foi um período autoritário, de um Governo que tinha instrumento de exceção, que foi o ato institucional número cinco. Se vocês olharem, esse foi um instrumento que vigorou de 1968 a 1979. Nos últimos seis anos do período, no Governo do presidente [João] Figueiredo não havia nenhum instrumento de exceção em suas mãos. Não pode, de nenhuma maneira, ser qualificado como um período ditatorial. E, no período inicial, do presidente Castelo Branco até a morte do presidente Costa e Silva, não havia esse instrumento. Isso a história, no futuro, vai estudar de uma maneira melhor. Naquele período houve um grande progresso econômico no país. O Brasil foi levado adiante. Éramos uma economia rural, uma indústria precária e, em dez anos, avançamos para um país industrializado. Ao mesmo tempo, houve um enfrentamento fruto da Guerra Fria, que havia naquele período. Os grupos marxistas e leninistas que existiam no Brasil diziam que estavam enfrentando a ditadura, mas na verdade estavam lutando para impor outra ditadura, a ditadura do sistema comunista. Foi uma guerra muito pequena para um país de 90 milhões de habitantes [na época]. Dos dois lados, somando, morreram pouco mais de 400 pessoas. Hoje, matam 60.000 no Brasil por ano e ninguém fala sobre isso.
P. Mas as pessoas não podiam votar. Não era uma ditadura?
R. As pessoas não votavam para presidente, mas elegiam seus representantes para o Congresso. Nas eleições do ano de 74 a oposição, o MDB, venceu as eleições. Que ditadura é essa? Depois, no período do presidente Figueiredo, quando se voltou a eleger os governadores dos Estados, a maioria dos Estados caiu nas mãos da oposição.
P. Pode-se, ao mesmo tempo, admirar a democracia dos Estados Unidos e dizer que esse período do Brasil foi bom?
R. O período teve seus erros, como tudo na vida. Mas era um momento diferente, uma geração diferente. Há que se perguntar isso desde os primórdios da República no Brasil. A minha visão, como uma pessoa que estudou um pouco a história é que, 1964 foi o ponto final das intervenções militares no Brasil. Foi a intervenção última. A transição do período de 64 para o atual período foi a única pacífica, ou sem golpe, de nossa história republicana. A República se inicia no ano de 1889, em 1930 há uma revolução, em 1945 Getúlio [Vargas] cai por outro golpe, depois há a mudança pela tomada de poder pelos militares, mas em 1985 os militares entregam o poder de forma pacífica e ordeira aos civis. Então, foi um regime que se auto-extinguiu.
P. E quais foram esses erros?
R. Creio que foi uma estatização excessiva no período do presidente [Ernesto] Geisel, quando se criou uma quantidade de empresas estatais muito grande. Deixamos de ter um sistema econômico mais liberal, como vinha do período do presidente Castelo Branco, para um momento de intervenção do Estado na economia que depois nos mostrou que não era a melhor forma de conduzir o país.
P. E a tortura?
R. A tortura é uma questão de guerra. Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. Há muita gente que diz que foi torturada e não foi. E outros que foram e não falam nada.
P. Não nega que tenha havido.
R. Que houve, sim. Mas era guerra. Guerra é guerra. E houve dos dois lados. Ninguém fala do tenente da Polícia Militar assassinado por chutes em sua cabeça por [Carlos] Lamarca e seu grupo. Ninguém fala disso. Há que colocar os dois lados de sua história.
P. No conselho de ministros sentam-se vários militares e ex-militares [são sete]. Qual é o papel dos militares em um Governo civil?
R. Eles estão como civis. São ministros e atuam como civis. Óbvio que trazem sua bagagem, todo o seu conhecimento que tiveram no decorrer da vida das Forças Armadas. Mas há uma visão um tanto distorcida. O General [Augusto] Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional ocupa um cargo que é de militar, sempre foi. Quem são os diferentes? O general Santos Cruz, na secretaria de Governo, o almirante Bento [Albuquerque], no ministério de Minas e Energia, o senhor Tarcísio [Freitas, da Infraestrutura] foi militar, saiu do Exército há muito tempo. O Wagner [Rosário, da Controladoria Geral da União] também. Ele saiu como capitão. Então não são aquelas pessoas que tiveram toda a sua vida dedicada às Forças Armadas. Eu os considero distintos. Já eram civis e estavam nessa situação há algum tempo.
P. Acredita que os militares devam estar na reforma da Previdência?
R. Sim. E eles estarão.
P. Mas já nesse primeiro momento?
R. Está havendo uma confusão porque não há um sistema de previdência dos militares nos moldes do sistema bismarckianos, como conhecemos. São regimes distintos. O que acontece é que as mudanças para os militares podem ser feitas por meio de um projeto de lei, normal. É diferente da emenda constitucional que precisa ser feita para o regime geral. A visão do grupo militar é essa: uma vez que alguma coisa tem mais dificuldade, como uma emenda constitucional, ela tem de avançar. Quando ela for aprovada em primeiro turno, entra o projeto de lei dos militares, para que cheguem os dois juntos ao final.
P. Porque na prática esse projeto de lei é mais simples de se aprovar.
R. Sim, mais simples. Então, a preocupação dos militares é que se aprove o projeto de lei dos militares e a emenda constitucional, não é. Aí, só eles ficam nessa situação. Essa é a visão que eles têm e eu concordo com eles.
P. E haverá uma idade mínima para os militares?
R. Não. Para os militares não é o caso. Haverá o aumento do tempo de permanência no serviço ativo.
P. Pergunto porque, para nós, civis, soa estranho ver uma pessoa com 47, 48 anos se aposentando.
R. São situações distintas porque a carreira militar também impõe alguns tipos de dificuldades para a vida da pessoa, tem uma carga de trabalho que cada um tem de cumprir. Mas também não sou defensor que uma pessoa se aposente aos 47, 48 anos porque hoje um homem ou uma mulher com essa idade, ainda tem muito para fazer. Inclusive na parte física. Eu creio que, em um primeiro momento, vai avançar até os 35 anos de idade de serviço ativo e, talvez, em um futuro próximo, até mais. Quanto mais vivamos.
P. O que falhou para que, em três anos, acontecessem duas catástrofes similares como a de Brumadinho e a de Mariana? No caso de Brumadinho com um dano humano muitíssimo maior porque, agora há 110 mortos.
R. Vai ter mais de 300. O que acontece é que nós somos muito bons em legislação, mas péssimos em fiscalização. Há que fiscalizar, é isso. Não há muito o que argumentar. A lei existe, então, há que impor a lei. Na reunião do Conselho de Ministros, na terça-feira passada, eu citei uma frase do general [George] Marshall, que foi o chefe do Estado Maior do Exército americano na Segunda Guerra Mundial. Ele dizia que para cada dólar de soldo de um militar profissional, dez centavos correspondem às ordens dadas. E noventa centavos, à fiscalização. No Brasil é isso. Tem de fiscalizar.
P. Como vê as críticas de Olavo de Carvalho aos militares que atuam no Governo Bolsonaro?
R. Não as vejo (risos).
P. Mas ele é tido como o guru do presidente Bolsonaro.
R. Nãaaao. Olavo de Carvalho não é... Deixa ele. Onde ele está? Na Pensilvânia que ele vive?
P. Não sei ao certo, sei que é nos Estados Unidos.
R. Está nos Estados Unidos, que aproveite o inverno.
P. O programa de governo não inclui propostas para a minorias, como as mulheres, os negros, os indígenas, a comunidade LGBT. Acredita que esses grupos não precisam de políticas específicas?
R. Acredito que é preciso ter políticas específicas para tirar as pessoas da pobreza. Existem pobres brancos, pobres negros, pobres indígenas. Então, se você tem políticas para tirar as pessoas da pobreza, que lhe dê empregos, que lhes dê educação, acesso à saúde e melhores condições de vida. Que tenham uma habitação segura, com água, com tudo o que é necessário, independentemente da cor da pessoa. Há muito essa questão dos negros, há brancos e negros nesta situação. Se você vai em qualquer favela de nossas grandes cidades vai ver pessoas de todos os tipos. Óbvio que nas regiões de Sudeste e Nordeste há mais pessoas negras. Mas os pobres da região Sul são brancos. Há que tirar as pessoas da pobreza.
P. Uma vez que elas saiam da pobreza, entende que a igualdade está garantida?
R. Na minha visão de igualdade você tem de colocar todos juntos na linha de partida. E para colocá-los juntos você dá educação, saúde e segurança. A partir daí, você sabe que todas as pessoas são distintas. Umas vão correr a maratona toda e outras vão ficar pelo caminho porque essa é a natureza humana. O grande papel do Governo é que todas as pessoas comecem da mesma maneira. E não umas que conseguirão começar porque outras ficaram para trás porque não têm acesso a nada.
P. O ponto de partida em diversos países há quase cinquenta anos é quase igual ao dos homens. Todas recebemos a mesma educação que nossos irmãos, ou nossos namorados e maridos, mas não chegamos ao mesmo ponto. Somos mais da metade da população e estamos pouco representadas neste Governo, por exemplo. Isso porque não corremos bem a maratona ou porque o sistema não ajuda?
R. As mulheres são diferentes em todos os países. Aqui se fala muito disso, da representação política das mulheres. Olhe o Parlamento. Há uma legislação que obriga o partido político a ter três mulheres candidatas para cada dez homens. É difícil. Onde estão as mulheres que querem participar da política? Há muitas que não desejam. É complicado isso. As mulheres brasileiras têm outros interesses. Há grupos em que você vai encontrar pessoas que estão olhando para a política, mas a grande maioria não está. Esse é um avanço que o país terá de viver. Acredito que hoje a força da mulher no Brasil é muito ampla. Porque um grande número de mulheres administra suas casas sozinhas, por si próprias, um grande número de mulheres ocupa posições importantes em empresas privadas, em empresas públicas. Então, acredito que é um processo. E eu tenho toda a tranquilidade para falar isso porque minha mãe era uma mulher nascida nos anos 1920 e era uma pessoa que trabalhava, foi diretora de escola. Ela era uma pessoa à frente do seu tempo. Aprendi isso em minha casa.
P. Por que recebe tantos diplomatas? Em um mês foram quase dez.
R. Acho que eu os encanto (risos). Acredito que eles vêm aqui para fazer visitas de cortesia, para apresentar suas ideias de intercâmbios que podemos ter e manter o que há. São coisas de cortesia.
P. Seu amigo e ex-comandante, o general Paulo Assis, que foi o responsável por sua filiação ao PRTB, disse ao site Intercept que o via ocupando a presidência antes de 2022 de uma maneira mais longa do que ocupou recentemente. Como se sentiu ao saber disso?
R. Uma coisa que se fala na Venezuela... o general Paulo Assis, quando disse isso, fumou uma “lumpia” [um termo coloquial para dizer que “fumou maconha”]. (Risos). Quando cheguei ao PRTB disse ao presidente do partido Levy [Fidelix] que entrava no partido por uma única situação. Caso Bolsonaro necessitasse de nós, na posição de vice-presidente, nós iríamos com ele. Somente isso, nada mais.
P. Não tem pretensão de se tornar presidente?
R. Jamais tive. Minha pretensão foi a que logrei, de ser presidente do Clube Militar [no Rio de Janeiro]. Eu estaria tranquilamente na praia, sem problemas.
P. Quando diz nós, em quem estava pensando?
R. Nós, somos o partido. Eu e o PRTB.
Cláudio Gonçalves Couto: O vice à espreita
Desgaste precoce do presidente dá espaço ao vice
Tradicionalmente, a escolha do candidato a vice nas chapas majoritárias é parte da construção da coligação eleitoral. Isso vale nas eleições de prefeito, governador e presidente da República. Assim, é comum que algum partido aliado daquele do cabeça de chapa seja responsável pela indicação do eventual substituto. Frequentemente, escolhe-se também um vice que agregue algo que falta à imagem do candidato principal, ampliando-o em termos regionais, de extração social, gênero ou ideologia.
Desse modo, homens se fazem acompanhar de mulheres; sindicalistas de empresários; sulistas de nordestinos; conservadores de progressistas e assim por diante. É raro optar voluntariamente por uma chapa puro-sangue, já que ela normalmente não amplia a mensagem. Mas sempre há exceções, que inclusive obtêm sucesso eleitoral.
Exemplo disso foi a chapa vitoriosa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Embora de legendas diferentes, o que menos importava para ambos eram seus respectivos partidos, meros veículos para as candidaturas - apesar de o PSL de Bolsonaro ser muito ajudado pelo entusiasmo com a mensagem do candidato presidencial, elegendo por tabela congressistas, parlamentares estaduais e governadores. Tanto Bolsonaro como o vice eram militares reformados de discurso radical e estilo simples, pouco se distinguindo. O descarte de uma vice mulher, como Janaína Paschoal, ou de um civil de nome aristocrático, como o "príncipe" Luiz Felipe de Orleans e Bragança, mostrava que a intenção era mesmo transmitir uma mensagem sem nuances.
Tal escolha talvez se justificasse pelos tempos radicalizados que vivemos e que marcaram a última campanha eleitoral, com o discurso contra o politicamente correto, contra a moderação e prometendo até mesmo "fuzilar a petralhada". Sendo assim, nada melhor do que um vice que reforçasse a imagem dura de Bolsonaro, tendo inclusive já defendido intervenção militar para resolver crises e sendo, assim como ele, um admirador do torturador Brilhante Ustra.
A ideia foi apoiada pelo sempre influente núcleo familiar do presidente. Disse Eduardo Bolsonaro, o filho 03, em agosto de 2018, durante a Convenção do PSL que confirmou a chapa: "Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca-na-caveira para ser vice." Contudo, não se tratava apenas de reforçar a mensagem radical da chapa; era também uma salvaguarda contra eventuais conspirações. Nos termos do mesmo 03: "Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment."
Sob esse aspecto, o acerto da escolha excedeu as expectativas ao ponto de causar problemas, com o vice sendo "mais realista que o rei" - ou dando declarações mais radicais do que aquelas que o próprio Bolsonaro daria. Mourão investiu contra o décimo-terceiro salário, ponderou que em certas condições seria defensável um autogolpe, definiu negros como malandros e índios como indolentes, além de associar a beleza de seu neto ao branqueamento da raça. Foi necessário que o cabeça-de-chapa desautorizasse o vice, apontando seu desconhecimento da Constituição e sua inexperiência política, determinando-lhe que se calasse e afirmando que apesar de ser Mourão o militar reservista de mais alta patente, seria ele, Bolsonaro, o presidente - e, portanto, o chefe.
Eis que ambos são eleitos e o país experimenta a transição de governo mais tumultuada de que se tem notícia desde a redemocratização, com repetidas decisões seguidas de recuos, brigas dentro da bancada do PSL, bate-bocas entre os filhos de Bolsonaro e integrantes da equipe, anúncios de nomeações não confirmados, mal-entendidos do czar da economia em relação ao Congresso e aos políticos. Começa o governo, mas os problemas não cessam: entre diversas batidas de cabeça, o filho 01, Flávio Bolsonaro, vê-se enrascado num imbróglio que o vincula a movimentações estranhas de dinheiro e grupos de milicianos; e o presidente tem performance vexaminosa em Davos - como observou a imprensa internacional.
Nesse cenário de caos, o vice reemerge, ironicamente, como possível reserva de sensatez em meio ao contexto brancaleônico capitaneado por presidente e família. Não que o próprio Mourão não enfrente percalços, inclusive também envolvendo a própria família. Porém, diante do enrosco de Flávio Bolsonaro e dos rompantes dos outros dois "garotos" do presidente, a meteórica ascensão do filho do vice no Banco do Brasil perde relevo - assim como suas declarações erráticas sobre a reforma da previdência e a possível intervenção no comando da Vale.
A questão é que, diferentemente de Bolsonaro e familiares, Mourão parece ter-se despido de vez do figurino de candidato em campanha e adotado postura mais comedida e, por consequência, presidencial. O contraste ficou claro em dois casos envolvendo opositores: primeiro, o posicionamento diante do autoexílio do deputado reeleito Jean Wyllys; enquanto Mourão manifestou preocupação, Bolsonaro e seus filhos escarneceram (e seguem escarnecendo) do anúncio. O segundo foi a declaração de Mourão relativamente à possibilidade de Lula comparecer ao velório do irmão, quando afirmou se tratar de "questão humanitária".
A mudança de postura do vice, associada à percepção das maiores preocupações institucionais dos militares que se fazem presentes no governo, contrasta com a permanente beligerância do presidente e seu clã, assim como dos sinais de seu despreparo para o cargo - conforme apontado nesta semana tanto em reportagem da "Folha de S.Paulo", como em matéria do tradicional newsletter "Relatório Reservado". Com isto, com menos de um mês de governo, já se discute a possibilidade de tutela sobre o presidente - para o quê Mourão seria fundamental.
A situação já produz irritação nas hostes bolsonaristas, ao ponto de - ainda segundo a "Folha" - um dos filhos do presidente reconhecer que o vice tenta se mostrar mais confiável que o pai. Para um governo que mal completa seu primeiro mês é péssimo sinal que já haja tão pouca confiança entre seus membros - ainda mais quando se acreditava serem tão parecidos.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Vinicius Torres Freire: Gasto militar se segura na crise
Despesa geral do governo cresceu em relação aos anos Lula e Dilma; receita vai mal
Os militares ficaram com a maior fatia do que o governo federal gasta em máquinas, equipamentos e obras em 2018. É a primeira vez que isso acontece, pelo menos desde quando há estatísticas públicas comparáveis (2007). Levaram 21,6% do total das chamadas despesas de investimento em 2018.
O número tem interesse, mas não convém exagerar sua importância. As despesas em investimento se limitam agora a apenas 3,9% de tudo o que o governo gasta. Em dinheiro, isso dá uns R$ 54 bilhões de um total de gasto de R$ 1,37 trilhão em 2018 (não estão incluídas aqui as despesas com juros da dívida pública).
O gasto militar superou o dos ministérios dos Transportes (19,2% do total do investimento), da Saúde (12%), das Cidades (10,2%), da Educação (9,3%) e da Integração Nacional (6,4%). Tem havido cortes feios nas obras de estradas e nas Cidades, que cuida do Minha Casa, Minha Vida, programa que foi à míngua. Transportes e Cidades costumavam liderar o ranking.
Para onde foram os R$ 11,6 bilhões de investimento militar? Quase R$ 2,2 bilhões foram capital para a Emgepron, estatal que fabrica navios e equipamentos para a Marinha. Mais R$ 1,3 bilhão foi para os novos caças da Força Aérea. Quase R$ 1,3 bilhão para os submarinos da Marinha. Mais de R$ 600 milhões para os aviões cargueiros KC (aqueles novos, da Embraer) etc.
A despesa total de investimento até cresceu um pouquinho em 2018. Mas, repita-se, foi de apenas uns R$ 54 bilhões, ante o pico de R$ 100 bilhões, em 2014, no fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff. País e governo foram à breca, os gastos obrigatórios continuaram a crescer e, como de costume, o talho foi feito nos investimentos.
A despesa geral do governo, no entanto, não caiu. Em 2018, foi 2% maior que em 2017 (já corrigida pela inflação). Maior também que a de 2016 e a de 2014, último ano de Dilma 1. Foi um pouco menor que a de 2015, mas os dados deste ano estão perturbados pelo ajuste de contas das pedaladas dilmianas. Por cabeça, por brasileiro, a despesa do governo é quase 11% maior que no final de Lula 2 (2010) e apenas 1,5% menor que em 2014, quando as contas públicas explodiam.
Fechado o balanço de 2018, convém outra vez mostrar para onde vai o grosso do dinheiro. As despesas previdenciárias levam 56,7% do gasto total. Estão incluídos aqui os gastos do INSS (aposentadorias, pensões, auxílios de acidente etc.), além dos BPC (benefícios para deficientes incapazes de trabalhar e idosos muito pobres) e aposentadorias e pensões de servidores civis e militares.
Outros 13% vão para os gastos com servidores ativos e algumas outras despesas relacionadas à folha de pessoal. Previdências e salários levam, pois, 69,7% da despesa. Em 2010, levavam 63%.
Não, o gasto total não caiu em relação a 2010, final de Lula 2, ressalte-se. Aumentou bem, em valores reais (R$ 214 bilhões), ou em relação ao tamanho da economia brasileira, como proporção do PIB (passou de 18,2% para 19,7% do PIB). Desde janeiro de 2017 a despesa federal flutua em torno desses 19,7% do PIB.
Sim, a receita caiu. Chegou a mais de 20% do PIB na virada de Lula 2 para Dilma 1, insustentável. A receita está agora em 17,9% do PIB.
Se e quando voltar a subir, a arrecadação extra servirá para cobrir o déficit, que anda na casa R$ 120 bilhões. Depois disso, por muitos anos, o eventual dinheiro que sobrar será usado para conter a dívida monstruosa.
Esse é o cenário otimista.