governo bolsonaro
Míriam Leitão: Reforma ampla e difícil de explicar
Reforma incluirá todos os segmentos para mostrar que cada um fará parte do sacrifício, mas governo terá que se esforçar na explicação
Um dado mudou a opinião do presidente Jair Bolsonaro. Ele continuava querendo uma idade bem mais baixa para a aposentadoria da mulher. Mas foi mostrado a ele que hoje a mulher pobre se aposenta em média com 61 anos e seis meses. Isso porque mesmo chegando aos 60 anos ela tem tido dificuldades de comprovar os 15 anos de contribuição. A reforma a ser apresentada na semana que vem vai incluir todos os segmentos e todos os regimes especiais. A mudança para os militares será por projeto de lei, mas divulgado no mesmo dia.
Durante a conversa com o presidente, ficou claro para quem estava na sala que ele tinha estudado o assunto no seu período no hospital. Em alguns momentos, como na explicação da diferença entre a expectativa de vida no Piauí e a expectativa de sobrevida ao chegar à idade de aposentadoria, ele interrompia para dizer que já havia entendido. Mesmo assim, Bolsonaro considerou fundamental ter uma idade diferente para homem e mulher. Na maioria dos países que faz reforma atualmente, busca-se a convergência para a mesma idade.
A reforma como está formatada é forte porque tem um período de transição mais curto. Se na proposta de Michel Temer haveria 20 anos para se chegar à idade mínima, agora serão 10 anos para os homens e 12 para as mulheres. Além disso, já começa com 56 e 60 anos, bem acima do que era anteriormente. Quem a prepara está convencido de que ela é mais simples de explicar. Não parece ser. Vai exigir do governo um grande esforço para tornar claro um projeto que terá três formas diferentes para se aposentar: idade, tempo de contribuição, pontuação. Isso sem falar na capitalização.
Pode-se escolher a aposentadoria por tempo de contribuição, mas respeitando-se a idade mínima. Quem estiver a dois anos de se aposentar pela velha fórmula pagará um pedágio de 50%. Se a pessoa tem 33 anos de contribuição, por exemplo, e se aposentaria daqui a dois anos, ela terá que trabalhar um ano a mais. Então se aposentará daqui a três anos.
O sistema de pontuação já existia. Mulher com 86 pontos e homem com 96 somando-se a idade com o tempo de contribuição. Mas antes isso era critério para saber o valor do benefício, agora passará a ser um critério de elegibilidade, ou seja, de permitir a aposentadoria.
O mais difícil será explicar o sistema de tempo de contribuição porque cada pessoa tem uma situação específica. A aposentadoria por idade, normalmente a dos mais pobres e que recebem um salário mínimo, é mais fácil de explicar e muda pouco.
A reforma abarcará todos os segmentos profissionais para reduzir as desigualdades, porém cada regime especial será tratado diferentemente. Policiais e professores não terão a mesma idade e as mesmas regras dos demais profissionais. Mas todos os setores darão uma contribuição para o esforço de reequilibrar a previdência e reduzir as desigualdades.
A proposta para as Forças Armadas só não estará na PEC porque elas hoje já são reguladas por legislação infraconstitucional. Mas o projeto de lei será divulgado ao mesmo tempo exatamente para passar a ideia de que todos os brasileiros estarão se esforçando juntos para que o país tenha um novo sistema de pensões e aposentadorias.
O fato de haver um político no ninho de economistas, o ex-deputado Rogério Marinho, é visto como um diferencial a favor. Ele tem sido capaz de se entender perfeitamente com os técnicos, mas ao mesmo tempo tem a vantagem de ter experiência política e poder participar da articulação da reforma.
Nada será fácil, contudo. A explicação de uma reforma desse porte é sempre difícil. Há segmentos que não querem entender, porque não querem mudar. A articulação política do novo governo está claudicando mais do que era de se esperar, dado esse início. Há brigas internas. Há também uma incompreensão sobre o processo de negociação política. O errado não é gerir a coalizão, às vezes com aprovação de projetos e obras para os municípios ou setores representados pelo parlamentar. O errado é usar como moeda política a corrupção. A formação do governo atendendo a bancadas, em vez de partidos, não melhora a qualidade da política e piora muito a gestão da coalizão.
Na semana que vem começa a grande batalha da área econômica. Como explicar a reforma em seus detalhes técnicos e como conduzir a tramitação até a aprovação do projeto. Nada será fácil.
Valor: Populismo atinge países muito diferentes ao mesmo tempo pela primeira vez, diz Badie
Especialista em relações internacionais Bertrand Badie afirma que fenômeno atinge países muitos diferentes ao mesmo tempo
Por Helena Celestino, do Valor Econômico
"O populismo não descreve regime nem doutrina, mas uma situação de crise profunda, de falta de confiança entre o povo e instituições"
RIO - Os ex-alunos de Bertrand Badie são onipresentes no Quai d'Orsay, a maneira como os íntimos tratam o Ministério das Relações Exteriores da França. Alguns estão em postos com altas responsabilidades políticas e muitos foram parar nas redações de jornais ou em influentes "think tanks" da Europa. Especialista em relações internacionais, professor-estrela do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a prestigiada Sciences Po, Badie tem uma dúzia de livros escritos e dirige há dez anos uma obra coletiva em que anualmente intelectuais fazem um diagnóstico sobre o estado do mundo. "A volta dos populismos" foi a capa de "L'Etat du Monde 2019", tema considerado por todos como o grande fenômeno político da atualidade.
"Pela primeira vez na história do mundo, tantos e tão diferentes países vivem um mesmo fenômeno político. É único, o populismo tornou-se quase universal", diz Badie, de 68 anos. Na análise do professor, são populistas o presidente dos EUA, Donald Trump, assim como o da Rússia, Vladimir Putin, e o brasileiro Jair Bolsonaro. Também o são os governos escandinavos, da Itália e das Filipinas. E ainda estão nessa lista, por exemplo, o partido de esquerda La France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, assim como o de extrema-direita Rassemblement National (ex- Front National), de Marine Le Pen.
O populismo, explica Badie, é uma onda que vai e volta desde o século XIX: estamos agora vivendo a quarta dessas vagas; a mais dramática foi entre as duas guerras mundiais, com o aparecimento do fascismo e do nazismo. "O populismo não descreve nem um regime nem uma doutrina, mas uma situação de crise profunda, de falta de confiança entre o povo e suas instituições", diz o professor.
Filho de imigrantes persas - ele se recusa a dizer Irã -, Badie jamais voltou ao país de seus pais depois da revolução dos aiatolás. Formado politicamente nos protestos de Maio de 68, ele agora vê aparecer nos protestos, pela primeira vez, a bandeira francesa, empunhada ao som da "La Marseillaise". "Esta é a marca dos protestos dos coletes amarelos. Para nós, é profundamente novo isso. Há um século, quando há contestação social, é sempre empunhada a bandeira vermelha, e não a tricolor [azul, vermelha e branco]. É sempre ao som da 'Internacional', e jamais ao da 'Marseillaise'. Isso mostra a ruptura muito profunda. É a direitização da contestação social", constata.
O movimento dos coletes amarelos, cuja base é a classe média baixa do interior da França, há três meses faz manifestações todos os sábados contra o governo Macron e as elites globalizadas.
Valor: A volta dos populismos é o fenômeno mais importante de 2019? Ou da próxima década?
Bertrand Badie: Pela primeira vez na história do mundo, um fenômeno político atinge ao mesmo tempo países tão diferentes quanto Estados Unidos, os da Europa Ocidental, o Brasil, a Turquia, muitos países do Norte, do Sul, do Leste e Oeste. É uma coisa única, um fenômeno quase universal. Estamos na quarta etapa do populismo: a história do mundo é ritmada por sequências populistas, a primeira no fim do século XIX, a segunda entre as duas guerras, a terceira em alguns países do Sul depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], e agora estamos na quarta fase, ou seja, tem também um elemento histórico. O populismo traz uma contradição extremamente forte com a globalização - populismo e globalização são como a água e o fogo, uma contradição que pode prejudicar a globalização e levar o populismo a um impasse, ou seja, a uma incapacidade de gerir a política.
Valor: Os populismos trazem junto o crescimento do nacionalismo e da extrema-direita ao redor do mundo, certo?
Badie: Exato. A ligação é íntima. A esquerda não soube oferecer uma perspectiva moderna sobre a globalização. Então, todo o debate foi levado entre uma direita globalizada e liberal versus uma direita nacionalista e hostil à globalização. A esquerda, quase em todos os lugares do mundo, ficou fora da corrida
Valor: Quais são as características comuns a todos esses governos populistas? Eles são muito diferentes, não?
Badie: Sim, porque populismo não descreve nem um regime nem uma doutrina, mas uma situação de crise, de falta de confiança entre o povo e suas instituições. Essa situação leva a métodos de mobilização idênticos, tem sempre a personalização da liderança política, a mobilização da população e uma forte estratégia de comunicação de massa. Mas, depois disso, as fórmulas são enormemente diferentes. No mundo ocidental, vemos poucos populismos de esquerda, como por exemplo o France Insoumise e alguns partidos na Escandinávia. Mas a maioria deles é de direita, muito liberais, como o do presidente Jair Bolsonaro ou como o governo da Áustria, liderado por um partido populista que é ultraliberal. Ou Trump nos Estados Unidos. Além disso, vemos populismos que aceitam o jogo democrático e outros extremamente autoritários, como Vladimir Putin, na Rússia, e Erdogan, na Turquia. Mas todos eles têm em comum o fato de exagerar o peso da nação no contexto da globalização.
Valor: O senhor acha que o populismo é um risco para os valores democráticos?
Badie: Incontestavelmente. A raiz do populismo é uma desconfiança em relação às instituições, o que se traduz em uma marginalização das instituições da democracia a favor do que chamamos de democracia direta, uma ligação direta entre o povo e o líder. Efetivamente isso se traduz, em todos os lugares, por um desprezo pelo parlamento, uma hostilidade contra as mídias, acusadas sempre de complô. É só olhar os EUA, onde Trump está sempre em guerra com o Congresso e a CNN ou o "Washington Post". Essa atitude contra as instituições cria prejuízos à democracia, já que ela só existe por meio do respeito às instituições.
Valor: Além dos EUA, em que países o senhor está pensando ao dizer isso?
Badie: É preciso ser honesto. Muitos desses governos chegaram ao poder com eleições. Na Itália ninguém pode contestar o processo pelo qual [os vice-primeiros-ministros] Matteo Salvini e Luigi Di Maio chegaram ao poder, a partir de um respeito à democracia. Mas é próprio dos populismos considerar o povo e a nação como bens superiores; a democracia é vista como um valor secundário. Os populistas não respeitam a gramática democrática, isso é verdade em todos os lugares, seja na Rússia de Putin, seja no Brasil atualmente. Mas é preciso diferenciar entre os que chegaram ao poder democraticamente e os que usaram a força e a pressão para isso.
Valor: O senhor atribui essa virada populista à crise econômica de 2008 ou a algo mais profundo, como a uma crise de civilização?
Badie: Não gosto da expressão "crise de civilização", é imprecisa. O afastamento entre o povo e as instituições é causado pelo sentimento de que elas são ineficazes porque não funcionam democraticamente ou porque são incapazes de proteger o cidadão. É um fenômeno novo que se traduz numa crítica global às elites, às instituições e aos políticos. Na base de todo populismo existe sempre o mesmo fator essencial, o medo. Estamos com medo e achamos que as instituições não são mais capazes de nos proteger. O medo nessa quarta onda populista é o medo da globalização, que se traduz pelo medo da crise econômica, da insegurança econômica, mas também o medo de perder a soberania nacional, o medo do estrangeiro e da imigração, o medo das grandes empresas multinacionais. É a situação de medo do estrangeiro.
Valor: É uma espécie de nova utopia que está sendo criada? É possível conjugar um país fechado ao "estrangeiro" com as tecnologias digitais?
Badie: É pior que uma utopia. A força da utopia é a invenção de um modelo novo - as grandes utopias do século XIX permitiram a invenção do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Agora não é uma utopia, é uma utopia regressiva, que não produz o futuro e tenta se proteger através de uma negação do real e de uma volta ao passado, o que é impossível. É mais uma patologia do que uma utopia. Essa tentativa de gerir o medo através de uma volta ao passado torna esses governos incapazes de gerir a atualidade e se inserir na globalização. Trata-se de uma patologia que agrava a crise em vez de resolvê-la. E vemos bem como a Itália está se afundando numa crise econômica perigosa e, como os EUA quando saem dos acordos multilaterais, se isola cada vez mais do mundo e perde sua capacidade hegemônica. Vemos como o Reino Unido está perdendo suas vantagens no plano mundial por causa do Brexit, outra demonstração de populismo.
Valor: A maioria desses governos populistas é bem recente. Como prevê os próximos movimentos?
Badie: Vejo uma década de muitas dificuldades, o mundo vai pagar caro por essa patologia populista. Mas, a meu ver, ao fim de dez anos, os populistas terão esgotado a sua capacidade política.
Valor: A Europa vive uma fase de grande instabilidade política. Na França, por exemplo, os coletes amarelos estão fazendo balançar o governo Macron. É uma repetição do Maio de 68 com sinais trocados?
Badie: É totalmente diferente, Maio de 68 era a entrada na globalização, era a primeira construção da globalização na França, na Itália, na Alemanha. Havia uma mobilização contra a Guerra do Vietnã, a favor da Palestina; os ídolos eram Mao Tsé-tung e Che Guevara. Era também um movimento progressista, o grande momento da liberação dos comportamentos, da condenação de todos os conservadorismos sobre o aborto, a homossexualidade. Os coletes amarelos são muito conservadores do ponto de vista social, hostis à globalização e à imigração, assim como ao casamento gay, hostis à liberação de costumes.
Valor: Vi um dos coletes amarelos dizer diante do ministro do Meio Ambiente que ele estava preocupado com o fim do mês e o ministro, com o fim do mundo. Como reconciliar esses mundos?
Badie: Esse é um outro aspecto: o pensamento e a política neoliberal deixaram de lado a questão social e favoreceram a questão econômica. Subestimamos a força da ideia de progresso social com que a sociedade europeia foi construída. E, de repente, tornou-se dominante a ideia de que o progresso social viria com o enriquecimento dos mais fortes e mais ricos. Isso criou uma crise social profunda que não se estava percebendo. É preciso repensar a economia de uma maneira social.
Valor: Que marca os coletes amarelos deixarão no governo Macron?
Badie: Ainda é cedo para saber. Eu vejo dois cenários: existe a possibilidade de esse movimento desaparecer e não deixar marcas - isso pode acontecer, já que o movimento é espontâneo, não tem organização nem líderes, e a cada semana são menos 10 mil nas ruas. A outra possibilidade é o governo ser mais atingido do que o previsto e uma crise de verdade instalar-se. A grande incógnita hoje é se o governo Macron conseguirá reagir e governar. Se não, vamos entrar em uma coisa ainda pior, em uma espécie de decomposição do sistema político francês - já não há partido ou líder político forte na França. Esse risco de decomposição política existe, pode vir a acontecer o mesmo que na Itália: com o desaparecimento da democracia cristã e do Partido Comunista, não sobrou nada, e esse vazio foi ocupado por formações extremistas.
Valor: Como Macron acabou com seu capital político em um ano e meio?
Badie: A aposta de Macron foi perigosa: tomar o poder na França sem apoio de um partido político e de um número razoável de homens e mulheres com peso e experiência política. Isso não é possível. Não se pode gerir a sexta economia do mundo a partir de um grupo de amigos e de pessoas que, na sua maioria, não tinha a menor experiência de poder. Nas democracias, quando há crise de autoridade, cabe aos partidos políticos reconstituírem essa autoridade. Macron, quando um ministro sai do governo, precisa de um mês para achar um sucessor. Jamais se viu isso na história francesa. Atualmente, ele está com dificuldades de mostrar que superou a contestação dos coletes amarelos, ele não tem com quem revezar o trabalho de reconectar o governo com a opinião pública. Os deputados que ele elegeu são desconhecidos. Eu, que há 40 anos sou professor de ciência política, não sou capaz de dizer o nome do deputado do meu "arrondissement". São desconhecidos, insignificantes…
Valor: O senhor compara o governo Macron com esse início de governo Bolsonaro?
Badie: Não é a mesma coisa. Bolsonaro é um populista verdadeiro. Macron teve um pequeno lado populista quando criticou os partidos e disse que ia mandar embora a velha classe política, mas ele não tem um projeto populista como Bolsonaro. Macron é a favor da globalização, liberal, muito pouco nacionalista. E, em relação aos costumes, ele não é homofóbico, não é racista, não é machista. Felizmente. O equivalente de Bolsonaro na França é Marine Le Pen.
Valor: Estava fazendo referência ã fragilidade do partido e à falta de experiência administrativa das equipes de Bolsonaro e Macron...
Badie: Desse ponto de vista sim, mas não chamaria de semelhança, porque essa espécie de marginalização de políticos experientes em favor de novatos está praticamente generalizada no mundo. Veja Trump nos EUA ou o governo italiano, totalmente inexperientes. Mesmo no Reino Unido, um país conservador, os vencedores do Brexit eram líderes inexperientes, como Nigel Farage [líder do Ukip na época do plebiscito]. Acontece um pouco em todos os lugares do mundo a chegada de gente sem experiência ao poder. É um fenômeno preocupante.
Valor: Todas as dificuldades enfrentadas pelo Reino Unido depois do Brexit, de alguma maneira, acabaram esvaziando o discurso de políticos contra a União Europeia?
Badie: É uma atitude paradoxal, ninguém mais fala em sair da União Europeia. Le Pen não fala, Salvini não fala, todos os eurocéticos pararam de falar em sair do bloco. Mas ninguém fala também na construção da Europa. A primeira foi a associação de Estados para construir a paz e a própria Europa, exangue após a Segunda Guerra Mundial. Tudo isso foi realizado com sucesso, mas aconteceu há 20 anos. A Europa agora precisa de solidariedade entre as sociedades e isso não avançou nada. A crise da imigração mostrou isso. Compreende-se, portanto, a decepção das pessoas. Não faz o menor sentido perguntar aos britânicos se eles querem ficar dentro ou fora da Europa.
Davi Depiné, Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco: A alma do negócio
Com 'plea bargain', teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas
Entre os 14 capítulos do projeto de reforma da legislação penal e processual apresentados pelo Ministério da Justiça, um deles incorpora uma sensível alteração na forma como se desenvolve o processo criminal no Brasil, adotando um modelo oriundo do direito norte-americano, lá denominado de “plea bargain” – espécie de “acordo de confissão”.
A origem desse instituto, que modula a ação do órgão de acusação, condiz com o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, em que prevalece, embora não com a mesma frequência de outrora, o julgamento pelo tribunal do júri —e não por um juiz de direito— de boa parte das infrações penais.
Se o júri tem como nuance positiva seu caráter democrático, tem como pontos negativos sua complexidade e demora. Um julgamento pelo júri pode levar dias e até meses (o famoso caso O.J. Simpson durou 372 dias, apenas o julgamento). Diante desse cenário, pergunta-se: como a Justiça americana ainda assim funciona? A resposta está justamente no “plea bargain”. Os acordos correspondem a mais de 90% dos procedimentos criminais, impedindo que todos esses casos prossigam nos tribunais, gerando celeridade e assegurando o início do cumprimento de penas de forma mais ágil.
Perfeito, então. E por que não adotar essa sistemática em “terra brasilis”? E a resposta é: porque teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas.
Atualmente, cerca de 65% das acusações criminais que aportam nos fóruns envolvem três tipos de delito: furto, roubo e tráfico de drogas. Em sua imensa maioria, as denúncias são lastreadas em prisões em flagrante. Um número diminuto de ações penais decorre de investigações policiais, reflexo da aprofundada e duradoura falta de investimento na polícia judiciária. Em casos de entorpecentes, especialmente, as testemunhas de um processo criminal costumam ser apenas os agentes policiais que efetuaram a prisão do suspeito.
E aqui começa a diferença. O depoimento exclusivo de policiais não é aceito como prova pela Justiça dos Estados Unidos. Não porque lá se duvide da credibilidade dos agentes de segurança pública, mas porque a comprovação de culpa deve ser feita através de provas não limitadas ao próprio aparato policial, evitando-se o risco de que o poder público apenas legitime a si próprio. O processo penal, enquanto instrumento de garantia e proteção contra eventual abuso estatal, deve assegurar a possibilidade de um contraditório. E como contradizer o Estado perante o próprio Estado? Daí porque, antes de um “plea bargain”, a acusação deve exibir as provas que possui, que serão usadas no processo penal caso o acordo não seja aceito. No Brasil, ao contrário, a confissão voltará a ser, como chamavam em tempos inquisitoriais, a rainha das provas —e obtê-la passará a ser a principal finalidade do processo.
Um dos agravantes para isso é o fato de que não há negociação real se há desigualdade entre as partes envolvidas ou se proliferam incentivos para que a acusação seja feita com excessos. Ainda hoje, não há Defensorias Públicas instaladas e equipadas suficientemente no país para garantir sempre a defesa técnica de pessoas carentes –aquelas que compõem a imensa maioria da população prisional.
Além disso, o procedimento americano assegura a imparcialidade judicial. O juiz que decide sobre eventual acordo não pode ser o mesmo que julga o caso, pois se entende que estaria influenciado por um convencimento prévio acerca do processo.
Por fim, resta perguntar: por que alguém confessaria algo que não praticou? Conhecendo os caminhos da prática penal brasileira e observando a realidade superlotada de nossos cárceres, não é difícil concluir que a presunção de inocência é coisa para poucos.
*Davi Depiné , Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco
Davi Depiné
Mestre em direito processual penal pela USP e defensor público-geral do Estado de São Paulo desde 2016
Marcus Edson de Lima
Presidente do Colégio Nacional de Defensores Gerais e defensor público-geral de Rondônia
Rodrigo Pacheco
Defensor público-geral do Rio de Janeiro
Hélio Schwartsman: Vocação para a picaretagem
Reportagens mostraram que o PSL lançou candidatas de fachada
O PSL, legenda do presidente Jair Bolsonaro, vai se revelando um partido bem picareta. Reportagens da Folha mostraram que a siglalançou candidatas de fachada para manipular dinheiro do fundo público de financiamento de campanhas reservado para mulheres.
O presidente nacional do PSL, Luciano Bivar, sem ter como explicar as peculiaridades das operações, preferiu atacar a legislação, que estabelece uma cota mínima de 30% das candidaturas (e das verbas) para mulheres. Para Bivar, política é uma questão de vocação.
Cotas para Parlamentos funcionam? A literatura, como em tantos outros temas polêmicos, traz estudos que contentam a todas as freguesias. A comparação internacional é difícil, porque existem diferentes modelos de cotas. Há desde países, como Ruanda, que reservam cadeiras apenas para mulheres em eleições paralelas nas quais apenas mulheres podem votar, até nações como a Suécia, nas quais alguns partidos decidiram voluntariamente equilibrar melhor o gênero das candidaturas.
Para complicar mais as coisas, os efeitos de cada uma dessas alternativas variam conforme o sistema eleitoral. Uma cota partidária de candidatas significa uma coisa num modelo de listas abertas e outra, bem mais forte, num país que adota a lista fechada.
Se é lícito tirar uma lição geral dessa salada, acho que dá para afirmar que a adoção de algum tipo de cota tende a ampliar a participação das mulheres na política. Mas fazê-lo não é condição necessária para atingir um patamar elevado. Nos países escandinavos, mulheres já haviam superado a marca de 30% das cadeiras em 1990, antes da moda das cotas.
O Brasil está tão atrás na representação feminina (pouco mais de 10%, o que é menos da metade da média mundial) que eu penso que a utilização de uma cota “soft”, sem reserva de assentos, não nos fará mal. Ajudaria bastante se legendas como o PSL não pervertessem o sistema.
Maria Cristina Fernandes: Planalto dá o tom da reação à era Bolsonaro
No dia 14 de novembro de 2018 o presidente da CUT, Vagner Freitas, participou de ato de apoio a Luiz Inácio Lula da Silva, em Curitiba, em frente à carceragem da Polícia Federal onde o ex-presidente está preso há dez meses. De camisa de manga comprida rosa claro com um jacaré bordado no bolso, o dirigente sindical iniciou um jogral, recurso comum em manifestações de improviso, em que as frases são amplificadas ao serem repetidas pelo grupo mais próximo de pessoas.
No jogral, com a presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffman, ao seu lado, Freitas declarou: "O Brasil inteiro sabe que houve uma fraude eleitoral. Bolsonaro foi eleito com 30% do povo brasileiro. Mancomunado com Moro e com a mídia, mudaram o resultado da eleição. Todo mundo sabe que Lula seria eleito no primeiro turno. Por isso está preso. Logo, fique claro que não reconhecemos Bolsonaro como presidente da República". Funcionário do Bradesco, Vagner foi, aos 46 anos, o primeiro bancário a ser escolhido para comandar, em 2012, a central que nasceu metalúrgica junto com o PT e hoje depende cada vez mais de suas bases no funcionalismo público.
No dia da posse do novo governo, o nome do presidente da CUT encabeçaria a lista de signatários da carta dirigida pelas seis centrais sindicais ao presidente Jair Bolsonaro. Na carta, os dirigentes apresentavam suas credenciais: "Faz parte do jogo democrático investir num amplo processo de negociação política, que envolva o governo federal, o parlamento, a sociedade civil e os segmentos organizados, como a via civilizada para construção de consensos políticos, econômicos e sociais fundamentais ao êxito de qualquer administração e do desenvolvimento do Brasil". O texto dirigia-se, ao final, com um protocolo cortês ao presidente empossado: "Receba nossas saudações classistas e sindicais".
Um mês depois, o presidente da CUT, o secretário-geral da entidade, Sérgio Nobre, e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Wagner Santana, seriam recebidos por Hamilton Mourão. A audiência estava marcada para 11h40 e, no horário rigorosamente marcado, o presidente em exercício abriu as portas do seu gabinete, no anexo do Palácio do Planalto, para receber a comitiva.
Os demais signatários da carta foram surpreendidos, especialmente porque a CUT havia participado, três dias antes, de reunião com todas as centrais para o lançamento de iniciativa conjunta de seus sindicatos de metalúrgicos para enfrentar a pauta das empresas do setor de adesão às novas regras trabalhistas. "Fomos tratados de maneira agressiva na campanha e declarei, sim, que não o reconhecia, mas não é mais o que penso. Cinquenta e sete milhões decidiram que Bolsonaro é o presidente e temos que buscar interlocução. Até com a ditadura a CUT conversava".
A aproximação entre os dirigentes da CUT e o vice-presidente da República foi feita por assessores parlamentares das Forças Armadas no Congresso antes mesmo da interinidade de Mourão. O presidente da CUT diz ter encontrado um "chefe de Estado" no exercício da Presidência. A pauta dos sindicalistas foi da ameaça de Ford e General Motors deixarem o país à reforma da Previdência. Mourão reconheceu o imbróglio das montadoras, mas aconselhou os sindicalistas a se aclimatarem aos rumos da capitalização na Previdência. Não manifestou concordância com nenhum ponto da pauta, mas valeu-se do encontro para exibir sua diferença com o titular do cargo no respeito à interlocução com os sindicatos. Na semana seguinte, ao reconhecer a memória do seringalista Chico Mendes, ignorado pelo ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, o vice-presidente prosseguiria na toada.
O encontro com os sindicalistas da CUT havia sido marcado para o segundo dia da interinidade de Mourão como presidente em exercício, mas a morte de Genival Inácio da Silva, o irmão do ex-presidente, conhecido por Vavá, adiou em uma semana a agenda. Representantes da central não eram vistos no Palácio do Planalto desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
A exemplo do que viria a fazer com Bolsonaro, a CUT tampouco reconhecera o ex-presidente Michel Temer, o que não evitou que seu governo aprovasse a reforma trabalhista, que estraçalhou o financiamento sindical e gerou 15% (298 mil) dos empregos formais prometidos. A presença da entidade no gabinete de Mourão tampouco evitou que a GM fosse bem-sucedida no intuito de reduzir benefícios trabalhistas em troca da promessa de voltar a investir na fábrica.
Os cutistas não foram os primeiros entabular negociação com o Planalto. No dia anterior, dirigentes do Sindicato de Metalúrgicos de São José dos Campos foram recebidos pela Secretaria de Governo. A audiência, pedida ao ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Heleno Ribeiro, foi repassada ao ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, que designou o secretário de relações com organizações não governamentais da pasta, Miguel Franco, para a missão. O encontro se deu na sede do Banco do Brasil.
A primeira delegação sindical a negociar com o Palácio do Planalto na gestão mais à direita desde a redemocratização integra a Conlutas, braço do PSTU, o mais radical partido de esquerda do país, que disputa a Presidência da República há mais de uma década com o slogan "contra burguês, vote 16". O advogado Aristeu Neto, que acompanhou o presidente do sindicato e dois outros dirigentes ao encontro, entregou ao assessor o processo da Comissão de Valores Mobiliários contra o diretor de relações institucionais da Embraer.
A ação foi motivada pelo comunicado oficial da transação com a Boeing em que a Embraer omitiu sua participação limitada na direção da futura empresa. Tratada como resultado de uma "joint venture", a transação que resultará na NewCo, segundo a CVM, excluirá a Embraer, detentora de 20% do capital, de sua administração. A notícia de que um general brasileiro integrará, pela primeira vez, a estrutura do Comando-Sul do exército americano revelou, no entanto, que a soberania é uma bandeira desbotada entre os militares brasileiros e não impedirá a venda da joia da coroa da indústria de ponta do país à Boeing.
A extinção do Ministério do Trabalho e de pastas que lidavam diretamente com movimentos sociais concentrou a tarefa no Palácio do Planalto e, mais especificamente, em pastas comandadas por militares da reserva. A medida provisória que reformulou o governo é permeada pela percepção de que uma gestão com projetos que antagonizam com interesses de setores organizados da base da sociedade exige um monitoramento mais minucioso de sua reação.
A audiência dos sindicalistas, portanto, veio ao encontro das diretrizes do novo governo. Arrisca, no entanto, não apenas a aumentar a cizânia entre as centrais, como a aumentar o isolamento político dos partidos de esquerda ao dispensá-los na intermediação de seus interesses.
Se a primeira medida do governo acabou com o Ministério do Trabalho, a segunda (MP 871) transferiu de sindicatos rurais para prefeituras o poder de atestar as condições para a aposentadoria no campo e obrigou idosos a confirmar anualmente a adesão aos seus sindicatos, o que deve afetar ainda mais a taxa de filiação sindical.
Se o pacote de maldades com o qual o governo estreou não impediu as centrais sindicais de buscarem abrir um canal de comunicação é porque reconhecem o enfraquecimento dos partidos de esquerda na intermediação de suas pautas. O maior deles, que se encarcerou em Curitiba com sua maior liderança, ainda não discutiu, por exemplo, a proposta do partido para a lei do salário mínimo, que tem vigência até o fim do ano. O PT jogou todas as suas fichas na libertação de Lula. Vê minguar o número de seus seguidores nas redes sociais sem um plano de voo para a pauta da vida real no dia em que o ex-presidente for solto. Escolheu o PDT de Ciro Gomes, e foi por ele escolhido, como alvo primeiro num duelo fagocitário
No PSol, a crise não se circunscreve ao autoexílio do ex-deputado federal Jean Willys (RJ), que renunciou ao mandato e deixou o país por se sentir ameaçado. O candidato do partido à Presidência, Guilherme Boulos, cuja atuação política se confunde com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, já arregimentou uma rede de advogados em todo o país a ser acionada em caso de vir a ser preso. MTST e MST são os mais suscetíveis ao projeto que avança na Câmara e caracteriza como ato de terrorismo o porte ou armazenamento de explosivos e gases tóxicos ou o bloqueio de rodovias e ferrovias.
Ainda não consta, no registro da Secretaria de Governo, pedido de audiência de quaisquer das entidades. As únicas lideranças a serem recebidas por Santos Cruz desde a posse foram as do Médio Xingu, que se queixaram da invasão de terras indígenas por madeireiros.
A perda de iniciativa dos partidos na mediação da relação entre sociedade e governo não poderia ganhar uma tradução melhor do que no ato marcado para o dia 20 na Praça da Sé, centro de São Paulo. Convocado pelas centrais sindicais em protesto contra a reforma da Previdência, o ato não convidou lideranças partidárias nem tampouco tem confirmada a presença de todas as centrais. No mesmo dia, a menos de um quilômetro dali, um grupo suprapartidário formado por ex-ministros de três diferentes governos (Sarney, FHC e Lula), juristas, intelectuais e ativistas se reunirão para lançar a Comissão Arns, destinada a reforçar a vigilância sobre violação aos direitos humanos. O grupo tem o mérito de unir, sob o mesmo chapéu, nomes como o filósofo Vladimir Safatle, do PSol, e a ex-ministra do governo FHC, Claudia Costin, mas ainda está por se mostrar capaz de esvaziar a tolerância com o arbítrio nascida do cansaço com a corrupção, a violência e o desemprego, fagulha da desmobilização geral da nação.
El País: Aliados saem em defesa de Bebianno e cobram de Bolsonaro pulso com filho
"Misturar família" gera insegurança, diz Rodrigo Maia. Presidente vai dar "ordem unida" à "rapaziada", diz Mourão. Ministro, ligado a escândalo das candidaturas de fachada do PSL, resiste no cargo, por enquanto
Gustavo Bebianno passou de estratégico dirigente da campanha de Jair Bolsonaro a cambaleante ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República em apenas poucos dias. No comando do governista PSL quando supostas candidatas-laranja receberam verba pública na campanha eleitoral, Bebianno estava na berlinda e isso por si só já era uma dor de cabeça para a gestão. Mas, ao entrar na linha de ataque de um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, o vereador carioca Carlos, o ministro acabou ganhando apoio de integrantes do núcleo militar do Governo, de parlamentares do PSL e até do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Todos têm um ponto comum: estão preocupados com a escalada da crise –quando o Planalto apenas dá os primeiros passos na reforma da Previdência– e com o tamanho da influência da prole do mandatário nos destinos do Governo.
Durante toda a quinta-feira, nos bastidores do poder em Brasília, a principal discussão era sobre o momento em que Bebianno seria demitido pelo presidente –até a conclusão desta reportagem, isso não havia acontecido. Nesta quinta-feira, o ministro passou boa parte do dia no hotel onde mora, em Brasília. Não foi recebido por Bolsonaro, que ainda se recupera da cirurgia para a retirada da bolsa de colostomia. O presidente recebeu apenas um grupo de ministros e assessores no Palácio da Alvorada para tratar quase que exclusivamente da reforma da Previdência que enviará ao Congresso Nacional nos próximos dias.
Sempre que indagado se pediria demissão, Bebianno disse que não o faria. Como alguém que acompanhou de perto a trajetória do presidente, soou como quem enviava recados. Ao jornal O Estado de S. Paulo, provocou: “O que chamam de inferno, eu chamo de lar”. À revista eletrônica Crusoé, negou qualquer irregularidade nos repasses às candidatas do PSL, disse que não é moleque para ficar debatendo assuntos como esse na rede social e que Bolsonaro deve estar com medo de receber algum "respingo" da crise. “Não sou moleque e o presidente sabe. O presidente está com medo de receber algum respingo. Ele foi um mero candidato. Ele não participou da Executiva, ele não tinha mando no partido. Ele não tem responsabilidade nenhuma”.
A crise na qual se viu envolvido começou com as supostas candidaturas laranjas do PSL no período em que ele presidia interinamente o partido a mando de Bolsonaro. E chegou ao ápice – ao menos por enquanto – quando Carlos o chamou de mentiroso pelo Twitter e acabou replicado pelo seu pai. Seu processo de fritura pública começou na quarta-feira. O então ministro havia dito à imprensa que tinha conversado três vezes por telefone com Bolsonaro no período em que ele estava internado. O vereador entendeu que ele tinha tratado com o presidente sobre o suposto laranjal do PSL e quis afastar esse vínculo de uma possível irregularidade da campanha de seu pai. Carlos, então, publicou um áudio que Bolsonaro teria enviado a Bebianno em que ele se nega a atender seu assistente. Essa foi umas das mensagens replicadas pelo próprio Bolsonaro ainda na quarta. Mais tarde, em entrevista à TV Record, foi o presidente que chamou seu auxiliar de mentiroso e que, caso tivesse cometido algum erro, ele poderia “voltar às origens”.
Aproximação e defesas
Advogado de formação, Bebianno trabalha com Bolsonaro há apenas dois anos. Sua aproximação célere do presidente se deu um pouco antes da campanha eleitoral e sempre foi questionada por Carlos. Ambos chegaram a disputar quem comandaria a comunicação do Governo. Por fim, oficialmente, nenhum dos dois ficou com a máquina na mão. A Secretaria de Comunicação é hoje vinculada à Secretaria de Governo, ministério sob a batuta do general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Na prática, contudo, é Carlos quem administra as redes sociais de seu pai.
Colocado como presidente interino do PSL de janeiro do ano passado até as eleições, cabia a Bebianno as decisões estratégicas da campanha. Ele foi o responsável por levar negociar a ida do então presidenciável ao partido ao invés de ir para o Patriota, com quem estava negociando antes de ser oficializado concorrente.
Se a queda de um ministro da cozinha do Planalto com menos de dois meses de Governo já preocupava governistas, a participação de Carlos Bolsonaro no episódio acendeu de vez os alertas. Desde antes mesmo da posse, o braço militar do Governo Bolsonaro tenta afastar a influência dos filhos dele na gestão. A questão ficou explícita nesta quinta-feira, quando, em entrevista à agência Reuters, o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, disse que o presidente vai dar uma ordem aos seus filhos. “A minha visão é que estamos num momento de acomodação. Também tem que ser levado em conta que o presidente vem passando por uma série de problemas de saúde. É óbvio que isso deixa a pessoa numa situação mais frágil. Agora está voltando sem a preocupação de ter de fazer mais cirurgias, de correr riscos, então eu acredito que ele vai dar uma ordem unida aí nessa rapaziada”.
No Congresso, alguns dos representantes do PSL e outros aliados, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), queixaram-se da postura de Carlos e dessa interferência familiar em assuntos de Estado. “A impressão que dá é que o presidente está usando o filho para pedir para o Bebianno sair. E ele é presidente da República, não é? Não é mais um deputado, ele não é presidente da associação dos militares”, reclamou Maia ao portal G1. "Ele tem que comandar a solução, e não pode, do meu ponto de vista, misturar família com isso porque acaba gerando insegurança."
Um outro que reclamou foi o líder do PSL no Senado, major Olímpio Gomes. “Carlos é um amigo. Eu o respeito. Algumas atitudes podem ser tomadas de filho em relação ao pai. É simplesmente ajustar a sintonia e se distinguir o que é a defesa, uma manifestação em função do pai, e quais são as atividades, as competências e o tamanho da responsabilidade da presidência”, afirmou. Já a oposição, segue na clara tentativa de constranger o Governo. Nesta semana, representantes de dois partidos opositores, PSOL e PCdoB, apresentaram requerimento de convocações de ministros e entraram com representações junto à Procuradoria-Geral da República.
Indícios de candidatura de fachada
O esquema de candidaturas laranjas do PSL foi revelado pelo jornal Folha de S. Paulo. Em reportagens publicadas nas últimas duas semanas, há indícios de que, enquanto o partido era presidido interinamente por Bebianno, ao menos três mulheres de Minas Gerais e de Pernambuco, sem nenhuma expressão ou militância política, teriam se candidatado a cargos de deputada estadual e federal apenas para compor a cota de 30% obrigatório definido pela legislação eleitoral. Essas candidaturas laranjas são consideradas um delito, pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Os contornos negativos foram amplificados quando se revelou que recursos públicos foram investidos nessas campanhas, por meio do fundo partidário. Uma delas, a de Maria de Lourdes Paixão, recebeu 400.000 reais provindos do diretório nacional, dirigido por Bebianno. A maior parte desse valor foi gasta em uma gráfica aparentemente de fachada. Outra concorrente, Érika Siqueira Santos, recebeu 250.000 reais, da mesma maneira. Os valores estão entre os maiores repasses do partido. No caso de Paixão, ela recebeu mais recursos que o próprio presidente e que a deputada federal mais votada do país, Joice Hasselmann. Nenhuma delas se elegeu. Paixão teve 274 votos para a Câmara. Érika, 1.315 para a Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Além das duas candidaturas laranjas, também há suspeita de que algo similar tenha acontecido em Minas Gerais, onde o partido é comandado pelo deputado federal e ministro Marcelo Álvaro Antônio (PSL-MG). Todos esses esquemas passaram a ser investigados pela Polícia Federal.
Maurício Huertas: O PSL e a Grande Família! Tutti buona gente!
A mediocridade deste governo é gritante. Se não bastasse a leva de oportunistas e incompetentes eleitos na onda do bolsonarismo (leia-se: o antipetismo da vez) e uma tropa de ministros fanáticos e limitados, o presidente Jair Bolsonaro ainda é influenciado de um lado por seus filhos (01, 02 e 03 - como gosta de nominar sua produção em série para a política) e do outro lado pelo fantasioso PSL, o partido que ele alugou para ser eleito, e que agora se mostra um verdadeiro laranjal, ou jocosamente chamado de Partido do Suco de Laranja.
O mais recente dos escândalos é a fritura pública (pelo twitter, no melhor padrão bolsonarista) do ministro Gustavo Bebianno, espécie de faz-tudo de Bolsonaro-pai mas antigo desafeto da prole por desavenças partidárias e eleitorais. Agora um dos filhos (que nunca se sabe qual é, mas também não faz muita diferença, como acontece quando as crianças confundem Patati & Patatá) resolveu escancarar a crise interna, chamando Bebianno de mentiroso. O presidente endossou.
Não é a primeira lavagem de roupa suja em público. Aconteceu com Joice Hasselmann, com Janaína Paschoal, com Alexandre Frota, com Major Olímpio, com Major Vitor Hugo, com Luciano Bivar, com Charles Evangelista... toda a fina flor deste que se tornou o maior partido do Brasil no Congresso Nacional e em diversas Assembleias estaduais, como a paulista. Brasil acima de tudo, PSL acima de todos. Alguém viu o Moro por aí? Socorro!
José Serra: Menos juros, mais desenvolvimento
Mudança para melhor exige compromisso efetivo com as reformas estruturais da economia
Não é novidade afirmar que elevados níveis de juros dificultam ou, no melhor dos casos, não facilitam o desenvolvimento econômico e social em nosso país e em qualquer outra parte do mundo. Juros altos como os brasileiros desestimulam o investimento produtivo e tornam a dívida pública excessivamente custosa em termos fiscais. Para se ter uma ideia, apenas em 2018 a despesa dos juros para a sociedade (setor público consolidado) ficou na casa dos R$ 380 bilhões - 5,5% do nosso PIB.
Para a maioria dos analistas econômicos, a mudança para melhor dessa situação exige compromisso efetivo com as reformas econômicas estruturais da economia brasileira. Os objetivos principais seriam, no limite, o reequilíbrio da dívida como proporção do PIB e a ampliação de um quadro de previsibilidade e confiança dos agentes econômicos no governo e no Congresso.
Precisamos de um tripé de reformas, feitas com calma, lucidez e firmeza. Leve-se em conta que a política econômica depende da qualificação dos seus executores e de expectativas favoráveis da sociedade e dos agentes econômicos. O que as pessoas acham e pensam - e não apenas suas decisões a posteriori - afetam o quadro econômico antes que os fatos se concretizem.
A mera apreensão quanto a uma determinada conjuntura ou decisão pode levar a taxa de câmbio, a inflação ou os juros a um quadro de movimentos bruscos, prejudiciais à economia. Quando o mercado prevê tempos nebulosos e incertos, esses riscos são precificados nos diferentes ativos financeiros, a exemplo dos títulos da dívida pública, exigindo pagamento de juros mais elevados pelo governo. Este, por sua vez, aceita pagar taxas mais altas nos títulos que emite para financiar o déficit público. Quando as nuvens se dissipam e o horizonte fica mais claro, se dá o oposto: fica mais fácil e barato financiar as políticas públicas.
Os juros brasileiros já foram bem mais altos em relação aos padrões atuais. A chamada taxa Selic, o juro básico da economia, está em 6,5% ao ano. Antes das quedas recentemente promovidas com maestria pelo Banco Central (BC), a Selic estava em 14,25% ao ano.
Tomando a expectativa dos agentes econômicos para os juros 12 meses à frente e descontando a inflação esperada para esse mesmo período, os juros reais brasileiros estão hoje em 2,3%. No ranking mundial estamos na sétima colocação, conforme dados da Infinity Asset Managment e do portal MoneYou. Perdemos apenas para Turquia, Argentina, México, Rússia, Indonésia e Índia.
O fato é que a taxa de juros depende das condições macroeconômicas do País. Juros elevados são consequência de déficit e dívida elevados, dentre outros fatores. E há mais questões em jogo, como o difícil tópico das operações compromissadas, uma espécie de dívida pública sob responsabilidade do BC.
O peso do crédito público também explica uma parte do problema, porque os juros subsidiados podem afetar o custo do crédito total, uma vez que a política monetária tem menor poder na presença de dinheiro carimbado. Não custa lembrar que a política monetária nada mais é do que a atuação do BC que procura tornar o dinheiro mais caro ou mais barato, mais ou menos disponível, aumentando ou contraindo os recursos em circulação na economia e, assim, atingindo este ou aquele nível de inflação.
O déficit público nominal (ou agregado, como prefiro chamar) encerrou 2018 em 7,1% do PIB e os pagamentos de juros sobre a dívida pública corresponderam a 5,5% do PIB. O restante (menos de 2 pontos de porcentagem do PIB) equivale ao déficit chamado primário. Para a dívida pública parar de crescer, considerando que já atingiu nível muito próximo de 80% do PIB, a Instituição Fiscal Independente do Senado calcula que seria necessário um superávit primário de 1,7% do PIB anual. Em dinheiro, estamos falando de mais de três centenas de bilhões de reais de esforço.
Outras ações precisam ser tomadas, como, por exemplo, enfrentar a excessiva concentração bancária, fator explicativo de parte dos juros elevados na ponta, como se diz. Para além da Selic, os juros que o brasileiro enfrenta são siderais. Vejam-se alguns exemplos: cartão de crédito, 56,9% e cheque especial a 312,6% anuais, além de crédito pessoal de 41,7% ao ano. Alguém vai nos dizer que esses juros descomunais são fruto apenas de indisciplina fiscal ou incompetência das autoridades monetárias?
Quem dá conta de enfrentar a fatura política e econômica dos juros ao consumidor? Registre-se que o Banco Central já avançou em algumas medidas importantes na área. O impedimento de que as pessoas fiquem por mais de um mês no chamado crédito rotativo do cartão de crédito derrubou a taxa de juros significativamente em relação a 2016, quando ultrapassava os 110% anuais.
É hora de o Congresso aprofundar as discussões e aprovar as reformas da Previdência, tributária e política. De aprofundar as discussões sobre os efeitos fiscais da política monetária. A reforma da Previdência ajudará a reequilibrar as contas primárias do governo federal, enquanto a tributária dará mais racionalidade ao sistema e reduzirá os custos das empresas para recolhimento de impostos, melhorando o ambiente de negócios. A reforma política, por sua vez, nos moldes do meu projeto para instituir o voto distrital, aumentaria a representatividade e favoreceria a governabilidade, reduzindo o custo econômico e político de decisões importantes para o País.
Esse conjunto de mudanças ajudaria a destravar o crescimento econômico, impondo nova dinâmica ao mercado de trabalho e aos setores produtivos. Os custos financeiros declinariam como causa e consequência desse cenário mais benigno. Retomaríamos um novo ciclo de desenvolvimento, com expansão do bem-estar social e redução das desigualdades sociais. Começaríamos, assim, a absorver de maneira justa e solidária a bilionária fatura dos juros e de desperdício no Brasil.
Maílson da Nóbrega: A reforma da Previdência precisa tramitar sozinha
Sem ela não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País
O êxito do governo de Jair Bolsonaro depende, essencialmente, de reformas para vencer dois desafios cruciais: 1) evitar a insolvência fiscal, o que depende da reforma da Previdência; e 2) adotar medidas para elevar a produtividade e, assim, expandir o potencial de crescimento da economia. Há, além disso, mudanças vinculadas a promessas de campanha, voltadas para os costumes e a segurança pública.
A complexidade da agenda dificilmente tem paralelo no País. Já vencemos outros graves desafios, como os de restaurar a democracia e superar o processo hiperinflacionário dos anos 1980 e 1990, mas em nenhum se requeria o difícil conjunto de mudanças deste momento.
É verdade que a agenda pós-Plano Real, como as da privatização e da eliminação de restrições ao capital estrangeiro, demandaram reformas constitucionais, mas as ações para enfrentar os dois citados desafios eram menos complexas. Situavam-se preponderantemente nas áreas da negociação política e do desenho de um plano para estabelecer o modelo do processo de estabilização monetária.
Hoje, o risco de insolvência e as demandas do eleitorado criam pressões para o ataque simultâneo a todos os desafios. E muitos se empenham em preparar medidas com esse objetivo. A área econômica elabora o projeto de reforma da Previdência, cuja apresentação ao Congresso Nacional depende apenas da chancela do presidente, após seu retorno a Brasília, recuperado da cirurgia recente. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes, da Economia sinaliza propostas ousadas de privatização e abertura da economia, ligadas à produtividade. Enquanto isso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou um pacote para combater a corrupção, atacar o crime organizado e coibir crimes violentos, o que implicará mudanças de porte no Código Penal e em outras áreas da legislação.
Ainda na campanha, Bolsonaro prometeu reduzir e simplificar a carga tributária, o que reiterou no Fórum de Davos. A redução é inviável, pois as despesas obrigatórias superam a receita, o que desaconselha perdas de arrecadação. A simplificação é desejável, mas pressupõe profundas mudanças nas regras tributárias, incluindo uma saída para a caótica tributação do consumo.
Entre os especialistas cresce a percepção de que chegou a hora de implantar um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), cobrado pela União e repartido automaticamente com Estados e municípios, eliminando o ICMS, o ISS, o PIS e a Cofins. Essa é a regra em mais de 150 países. Reforma semelhante, realizada na Índia em 2018, produziu aumento de dois pontos de porcentagem no potencial de crescimento da economia. O mesmo poderia acontecer por aqui, mas isso vai requerer difíceis negociações com os governadores em torno da respectiva emenda constitucional.
Ainda que menos polêmico nos dias atuais, o projeto de lei complementar que atribui autonomia operacional ao Banco Central foi incluído nas medidas prioritárias dos cem primeiros dias de governo. As esquerdas podem mobilizar as redes sociais com o objetivo de acirrar o sentimento antibanco que ainda existe no País. E a opinião pública menos informada pode comprar a ideia errada de que o projeto vai beneficiar banqueiros.
A agenda de costumes e de combate à corrupção tem elevado potencial de resistências no Congresso e no Judiciário, além de ser propícia à mobilização dos que a ela se opõem. Aliás, já se esboçaram as primeiras reações negativas de membros desses dois Poderes tão logo o ministro Sergio Moro anunciou o projeto e começou o diálogo com áreas relevantes. A abertura da economia é consensual entre os analistas, mas tende a enfrentar oposição no empresariado industrial, o que poderia dispersar apoios à reforma da Previdência.
Se a tudo isso acrescentarmos a ausência, até agora, de uma base parlamentar majoritária, teremos uma ideia dos riscos de levar adiante todas as mudanças de uma só vez, tanto as associadas aos desafios da insolvência fiscal e da produtividade, quanto as relativas a promessas de campanha. A simultaneidade ou mesmo o ataque a mais de um dos objetivos tende a dividir e dispersar esforços e apoios.
Deve-se lembrar, por último, que, apesar de a relação dívida pública/PIB, hoje em 76,7%, indicar o risco de insolvência fiscal, os mercados continuam investindo em papéis do Tesouro, baseados na narrativa de que haverá uma reforma da Previdência. Espera-se, além disso, que ela seja profunda e abrangente o suficiente para estabilizar em alguns anos essa relação e em seguida colocá-la em trajetória de queda. Sem a reforma ou com um projeto desidratado de suas ambições, essa narrativa desmoronará, provocando rápida queda de confiança e fuga de capitais, com todas as suas graves consequências, a principal delas a volta da inflação elevada e sem controle.
Por tudo isso, parece aconselhável que o governo, que já elegeu a reforma da Previdência como prioridade máxima, adote uma sequência que evite estabelecer concorrência com as demais reformas. Nenhuma outra é tão fundamental. Todas as restantes podem esperar. O fracasso na reforma da Previdência e seus devastadores efeitos econômicos e sociais corroeriam gravemente o capital político do presidente. O êxito que se espera do seu governo viraria simples quimera.
A sequência adequada requer não apenas, vale repetir, que a reforma da Previdência seja a primeira, como parece já estar decidido, mas também que se evite a simultaneidade com qualquer outra mudança capaz de gerar conflitos, dividir esforços, tumultuar a tramitação no Congresso ou elevar seus custos de transação. Não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País sem a reforma da Previdência. É preciso que ela tramite sozinha.
*ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA
Oliver Stuenkel: Mourão entra em campo contra os antiglobalistas
Vice-presidente, chamado informalmente de "o adulto na sala" por diplomatas estrangeiros, é visto como âncora de estabilidade de um Governo cuja atuação externa é volátil e confusa
Fica cada vez mais evidente que a estratégia da política externa brasileira, articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo, está deixando inseguros investidores internacionais e outros governos. Araújo é visto como ideológico demais (algo que os investidores sempre temem, não importa se a ideologia é de esquerda ou de direita). Já Eduardo, que atua como um ministro das Relações Exteriores informal, passa a imagem de ignorante e muito radical para inspirar confiança no exterior, mesmo por parte de funcionários do governo dos EUA, que veem com bons olhos o Governo Bolsonaro. O péssimo discurso de Bolsonaro em Davos pareceu resumir a atuação da turma antiglobalista até agora, desapontando investidores que tinham aguardado uma fala mais séria – e que, de certa maneira, estavam torcendo para o novo presidente.
"Ainda bem que eles têm Mourão" é um comentário que se ouve com cada vez mais frequência no exterior. De fato, o general da reserva e vice-presidente é agora visto pela comunidade internacional como a âncora de um navio que, sem ele, estaria à deriva no que diz respeito à estratégia internacional.
Mourão difere do resto da equipe de política externa de Bolsonaro em estilo e substância. Enquanto os outros atores do governo são conhecidos por sua retórica estridente e agressiva, Mourão é moderado e calmo. Em uma entrevista recente, o vice-presidente não se esquivou de responder perguntas difíceis – ao contrário de seu chefe, que frequentemente ataca jornalistas quando estes discordam dele. Mourão chamou a atenção no exterior quando, em entrevista a uma repórter espanhola e a um brasileiro, respondeu as perguntas em espanhol fluente, o qual aprendeu como adido militar em Caracas.
Quando se trata de conteúdo, Mourão resiste sabiamente às ideias mais radicais e mal concebidas dos antiglobalistas, como transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, deixar o Acordo de Paris sobre mudança climática, abrigar uma base militar dos EUA e, a mais perigosa de todas, adotar tom agressivo em relação à China. Não é coincidência que um número crescente de embaixadores esteja procurando Mourão, o qual – eles esperam – continuará a impedir Bolsonaro de cometer graves erros políticos no âmbito externo. Nenhum vice-presidente na história recente foi tão necessário para a estabilidade da política externa do Brasil, já nas primeiras semanas de Governo, quanto Hamilton Mourão.
Ainda assim, previsivelmente, o papel estabilizador do vice-presidente na política externa do Brasil lhe rendeu a ira dos radicais (inclusive Olavo de Carvalho e Steve Bannon, dos EUA). A questão-chave é: até que ponto Mourão será capaz de vetar todas as ideias esdrúxulas que certamente ainda virão da ala antiglobalista do governo?
A verdade é que, idealmente, Mourão não deve ser apenas bombeiro-chefe e jogar na defesa para proteger a política externa brasileira de erros graves. Também tem potencial para adotar um papel mais ativo e propor novas iniciativas no âmbito externo. Três em particular vêm à mente.
Primeiro, Mourão seria o homem certo para liderar a posição do Brasil em relação à Venezuela, maior desafio em curto e médio prazos na política externa hoje. De longe a pessoa mais bem informada no gabinete sobre o assunto, Mourão também tem a vantagem de ser um militar, capaz, portanto, de lidar com a instituição que determinará o futuro do país vizinho: as Forças Armadas. Isso envolveria a articulação da resposta complexa à crise migratória venezuelana em todo o continente. Mourão poderia, ainda, convocar uma cúpula regional para discutir o assunto e decidir como coordenar conjuntamente o registro, a distribuição e a integração dos migrantes venezuelanos. Juntamente com outros países da região, ele também poderia organizar a criação de um fundo para compensar os países mais afetados pela crise migratória, como Colômbia, Equador e Peru. Além disso, coordenaria, com a Colômbia e outros, o envio de ajuda médica e humanitária à Venezuela, assim que o Governo Maduro – ou qualquer governo sucessor – o permitir.
Em segundo lugar, como projeto de médio prazo, Mourão poderia liderar um processo de aprofundamento da cooperação entre as Forças Armadas na América do Sul, dando continuidade a um movimento deflagrado por Nelson Jobim, ministro da Defesa de Lula. Isso poderia funcionar por meio de uma instituição existente, como o Conselho de Defesa Sul-Americano, e deveria envolver, entre outras iniciativas, exercícios militares conjuntos, missões para lidar com desastres naturais e participação em missões de paz da ONU. Isso até poderia ajudar a aumentar a pressão sobre suas contrapartes nas Forças Armadas da Venezuela – que perderão muito com uma transição para a democracia, dados os privilégios que acumularam sob Maduro – para permanecerem em seus quartéis independentemente de quem seja o futuro líder. A plataforma revigorada poderia, em futuras crises desse tipo, oferecer aos países vizinhos um canal adicional para o diálogo e a coordenação.
Finalmente, Mourão poderia se tornar responsável pela estratégia do Brasil em relação a Pequim, um tema de extrema relevância para o futuro do Brasil em curto, médio e longo prazos. Isso poderia incluir assumir o portfólio do grupo BRICS, que nem o presidente nem o ministro das Relações Exteriores consideram de grande relevância. Enquanto o presidente Bolsonaro, seu filho e o ministro das Relações Exteriores expressaram, até agora, ideias simplistas e preocupantes sobre a China, Mourão seria capaz de encontrar um meio-termo entre o receio legítimo sobre o que a ascensão chinesa implica e o otimismo quanto às muitas oportunidades na crescente presença do país na América Latina.
A queda de braço entre Hamilton Mourão e os antiglobalistas deverá marcar a estratégia internacional do governo Bolsonaro. Resta saber se Mourão sairá vitorioso e conseguirá salvar a política externa brasileira dos próximos anos.
*Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo, onde coordena a Escola de Ciências Sociais em São Paulo e o MBA em Relações Internacionais. Também é non-resident fellow no Global Public Policy Institute (GPPi) em Berlim e membro do Carnegie Rising Democracies Network.
Vera Magalhães: A falta que faz a política
Estigmatizada na campanha, prática será a diferença entre sucesso e fracasso do governo
O governo Jair Bolsonaro, em seus dois primeiros meses, sofre de um déficit absoluto de política. Acontece que a prática - estigmatizada ao longo dos últimos anos, num processo que atingiu seu ápice na última campanha eleitoral - será a grande definidora do sucesso ou do fracasso da gestão do ex-capitão, algo que ele, seus auxiliares e entusiastas parecem ainda não se dar conta.
O vácuo da política não é perceptível apenas na falta de articulação entre Executivo e Legislativo, algo que pode ser explicado pela inexperiência de ministros e parlamentares e pela ausência do presidente devido a nova cirurgia a que se submeteu.
Falta interlocução entre os principais agentes do governo e instâncias como o Judiciário, a imprensa e os expoentes dos setores econômicos. Ainda impera entre os novos inquilinos do poder a sensação, entre ingênua e messiânica, de que se pode levar quatro anos de governo nas mesmas bases que vigoraram na campanha, com Deus acima de todos, muito lero-lero no Twitter, doses cavalares de bobajol ideológico e a esperança de que Paulo Guedes e Sérgio Moro façam o trabalho difícil e cuidem do que de fato importa.
Não há política nem mesmo na relação entre o presidente e o vice, Hamilton Mourão, que por cisma da família Bolsonaro passou a ser visto como alguém inconfiável, incapaz de assumir o dia a dia da administração enquanto o titular está obviamente impossibilitado de fazê-lo, às voltas com a recuperação que se vendeu como simples e rápida, quando não era.
É bem provável que, caso Guedes tenha sucesso na virtuosa pauta de sua pasta - que tem a reforma da Previdência, a desburocratização da economia, a simplificação tributária e a redução do paquiderme estatal como carros-chefes -, Bolsonaro colha uma popularidade de longo prazo e se reeleja.
Mas, para que ele obtenha esse êxito, há um longo e tortuoso caminho de negociação com o Congresso, convencimento da sociedade e blindagem para esperadas tentativas de frear essas iniciativas pela via da judicialização.
Essas forças são organizadas. São os deputados e senadores, que estão com seus canais de atuação política tradicional obstruídos pela forma de a “nova era” lidar com o Congresso; os sindicatos, ligados a uma oposição ainda em ritmo de tartaruga, mas que vai acordar, e corporações que reagirão à redução dos seus privilégios com a reforma da Previdência, entre as quais, as mais poderosas são o Judiciário e o Ministério Público.
Achar que se pode ir para uma batalha de votos no Congresso diante desses adversários tendo como forças apenas o apoio popular a Bolsonaro - que, aliás, não tem relação direta com uma pauta indigesta como a da Previdência -, as redes sociais e uma “nova” articulação política feita no varejo, e sem levar em conta os partidos e as lideranças, parece ser o caminho para o fracasso.
Quem percebeu isso nitidamente, até agora, foi só o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM). Na ausência de Bolsonaro e diante da paralisia que se abateu sobre o Planalto sem ele, tem sido o presidente da Câmara o mais realista ao dizer que, até aqui, não se sabe que base é essa com a qual o governo pretende contar. E que entupir o Congresso ao mesmo tempo com reforma da Previdência, pacote anticrimes e um caminhão de projetos na área de costumes apresentados por novos deputados ávidos por um holofote é meio caminho andado para o fracasso em todas as frentes.
No fim, será a política - nem nova nem velha, a única digna do nome - que separará lacradores de legisladores e candidatos de governantes. Quanto antes Bolsonaro e os seus perceberem isso, maiores as chances de o governo sair da paralisia em que está e engrenar.
Alon Feuerwerker: O resultado político da reforma da previdência se medirá por uma função de duas variáveis
Por enquanto são só escaramuças, apimentadas pelo folclore de figuras algo exóticas em posição de visibilidade. A guerra mesmo virá quando entrarem em debate dois pontos: a reforma da previdência, de Paulo Guedes, e o pacote de Sergio Moro. Isso, claro, se não estourar antes uma guerra de verdade na nossa fronteira norte, com o Brasil de coadjuvante dos Estados Unidos.
Mas é algo provável que a situação da Venezuela ainda fique um tempo em banho-maria, dada a tática de cerco “humanitário”. Então é também esperado que um belo dia as flores deste “recesso estendido” (pela internação do presidente) deem lugar ao debate duro sobre as aposentadorias e a segurança pública. E nos dois temas a avenida está aberta para vitórias expressivas do governo.
Aí, as impressões de que “fulano foi derrotado, sicrano não se dá com beltrano, ninguém segue a orientação do outro fulano” etc vão deixar de ser notícia, e vai sobrar a realidade crua: os líderes de fato do governo na Câmara e no Senado são os presidentes da Câmara e do Senado. E líderes de direito fracos nessa circunstância não chega a ser problema. Talvez seja solução.
E na hora do concerto os maestros vão encontrar orquestras com imensa vontade de tocar afinadas. A disputa será para ver quem é mais duro no enfrentamento dos bandidos, em certas categorias de crime. Como por exemplo a corrupção e o banditismo urbano rotineiro. E na mudança previdenciária haverá briga de rua pelo protagonismo que atraia simpatia do mercado.
Onde e quando começarão os problemas? No pacote de Moro, o céu pinta ser de brigadeiro. Também pelo ministro ter se tornado um enfant gâté da opinião pública. Mas o decisivo é não haver resistência social expressiva no horizonte para a nova ideologia dominante na área criminal. A chacina desta semana em Santa Teresa foi recebida com bocejos. É o novo normal.
Já na Previdência há um risco. Se o governo quer mesmo fazer da reforma um instrumento de justiça social, precisará apontar para as camadas burocráticas privilegiadas que engolem dezenas de bilhões/ano do orçamento. Guedes está certo: a previdência social no Brasil é um mecanismo de concentração de renda. O problema dele: esses grupos estão politicamente fortalecidos.
Os velhos ameaçados pela miséria, os idosos do campo, os jovens que provavelmente vão morrer antes de se aposentar não irão ao salão verde da Câmara pressionar e ameaçar os parlamentares. A elite burocrática sim. E dirá que atacar seus privilégios é - surpresa! - enfraquecer a “luta contra a corrupção”. E na hora h será tentador para o Congresso ceder ao poder real.
Mas isso terá um custo. Os militares, por exemplo, têm dificuldade de aceitar sacrifícios maiores e ver um procurador em início de carreira ganhar mais que um general quatro estrelas. E alguém sempre poderá lembrar aos deputados e senadores que vão esfolar o povão enquanto continua dormindo numa gaveta da Câmara dos Deputados a proibição dos supersalários do Judiciário.
Alguma reforma da previdência vai passar. E a resultante política será função de duas variáveis: 1) quanto produzirá de percepção de ter promovido justiça social e 2) quanto trará de investimentos, empregos e renda. O ótimo para o governo será muito das duas. Mas muito só de uma até ajudará a justificar por que a outra não desempenhou tão bem assim.
Agora, se a resultante for pouco das duas, aí a avenida da política vai se abrir para a oposição.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação