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O Estado de S. Paulo: Governo Bolsonaro ainda não tem plano de comunicação
Perto de completar 2 meses, gestão segue sem uma estratégia definida de divulgação; chefe da Secom dedicou maior parte da agenda para discutir EBC
Felipe Frazão, de O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Quase dois meses depois de tomar posse, o presidente Jair Bolsonaro ainda não tem uma estratégia desenhada para a comunicação do governo. O problema ficou evidente há 11 dias, quando uma reunião da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) com todas as repartições federais – incluindo equipes de ministérios, empresas estatais e entidades vinculadas – foi encerrada sem a apresentação das diretrizes para a divulgação das realizações de cada área. O motivo alegado foi o de que o plano não estava pronto.
Bolsonaro tem sido criticado por aliados e até por integrantes de seu partido, o PSL, por adotar tom de campanha nos pronunciamentos. No Congresso, é comum ouvir que o presidente ainda não desceu do palanque. É geral a avaliação de que a falta de um plano de comunicação ajuda a esconder eventuais realizações do governo, enquanto a agenda da crise se sobressai – como a que culminou, na semana passada, com a demissão do ministro da Secretaria-Geral, Gustavo Bebianno.
O receio de auxiliares de Bolsonaro é de que as turbulências na política respinguem nas negociações com o Congresso em torno da proposta de reforma da Previdência.
A reunião da Secom, no dia 14, vinha sendo tratada como o “1.º encontro sobre comunicação global” do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal. O sistema reúne o conjunto de equipes de comunicação dos órgãos que compõem a administração pública federal. O evento lotou o auditório do prédio anexo no Palácio do Planalto.
Foram convocadas para o encontro as equipes de todos os ministérios, de empresas públicas, autarquias e fundações e demais órgãos federais. Houve envolvimento da cúpula da Secom com os responsáveis pelos setores de Imprensa, Pesquisa e Opinião Pública, Gestão e Controle, Publicidade e Promoção, Patrocínios, Eventos, Articulação e também pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Os assessores se apresentaram, trocaram contatos e ouviram discursos do ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que abriu a reunião, depois presidida pelo chefe da Secom, Floriano Barbosa de Amorim Neto, publicitário de confiança do presidente e ex-assessor parlamentar do clã Bolsonaro.
Ao final, os participantes também puderam levantar dúvidas e sugestões. O principal recado do Palácio do Planalto foi o de que é preciso cortar despesas, mas a reunião transcorreu sem que fosse apresentada a linha de comunicação a ser trabalhada pelo governo.
O Estado conversou com cinco pessoas que estiveram no encontro. Todas disseram que Amorim chegou a anunciar que apresentaria um plano na reunião. Mesmo assim, passou pelo constrangimento de dizer que ele não ficara pronto a tempo. A reportagem pediu detalhes da reunião à Secom, mas não obteve resposta.
Bolsonaro privilegia comunicação por redes sociais
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem privilegiado a comunicação pelas redes sociais, e, para tanto, tem o apoio dos três filhos: o vereador Carlos (PSC-RJ), o deputado federal Eduardo (PSL-SP) e o senador Flávio (PSL-RJ). Ativo nas redes, Carlos é apontado como o responsável por mensagens postadas nas contas do pai.
Na semana passada, o ministro demitido Gustavo Bebianno deixou vazar áudio de uma conversa privada em que Bolsonaro trata a TV Globo como “inimiga” e diz não falar com jornalistas. No Planalto, o próprio chefe da Secom não costuma atender a imprensa.
Ministro da Secretaria de Governo, o general Santos Cruz disse na reunião da Secom que a ordem é otimizar recursos e unificar o discurso governamental, mas não deu detalhes sobre o que será feito.
Amorim também não falou em estratégia. Até agora, ele tem dedicado sua agenda a discussões internas no governo. Recentemente, recebeu apenas representantes do Google e do Twitter, além de autoridades públicas e a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Boa parte da agenda do chefe da Secom tem sido dedicada a discutir o futuro da EBC. A interlocução com veículos de imprensa vem sendo feita por ministros, como Santos Cruz, e outros secretários.
Em administrações anteriores, as reuniões da Secom eram usadas para apresentar o planejamento de comunicação do governo, alinhar estratégias, definir temas relevantes e mídias prioritárias, além de estabelecer a coordenação de ações conjuntas entre ministérios, instituições vinculadas, empresas estatais e a Presidência.
Falta de pessoal e equipes reduzidas provocam reclamações
No encontro do dia 14, foram dados exemplos de como todos os ministérios podem fazer a defesa da reforma da Previdência – que tem uma campanha publicitária específica, para a qual foi contratado o marqueteiro Daniel Braga. Houve, ainda, quem reclamasse da falta de pessoal nas assessorias, uma vez que muitos ministérios estão com equipes reduzidas desde que Bolsonaro tomou posse.
É o caso de Meio Ambiente, Defesa e Cidadania – a pasta que acumulou atribuições de três ministérios (Desenvolvimento Social, Esporte e Cultura) e tem o contrato em processo de licitação.
Contratos da Secretaria de Comunicação estão sob avaliaçãoApesar da ordem de corte de gastos, não houve até agora o detalhamento de quais contratos da área de comunicação do governo serão extintos, mantidos ou alterados. O assunto vem sendo tratado com reserva pelo ministro Santos Cruz e pelo chefe da Secom, Floriano Barbosa de Amorim. Em todo o Executivo, os acordos com agências de publicidade somam R$ 3,1 bilhões.
Santos Cruz disse ao Estado, em janeiro, que pretendia rever contratos de R$ 400 milhões apenas na Secom. Na época, ele admitiu preocupação com o marketing do governo, para que ele não se transformasse em uma forma de “expansão de ideologia”.
Os ministérios, empresas e demais órgãos possuem, hoje, negociações independentes para a área de comunicação. Na Secom, dois contratos de comunicação com a TV1 e a AgênciaClick, que incluem produção de vídeos, administração de sites e redes sociais e produção de conteúdo, com valor de R$ 90 milhões, vencem em 6 de março. A continuidade deles é incerta.
Uma das ideias em estudo na Secretaria de Imprensa é acabar com a divisão no atendimento a jornalistas. As áreas de imprensa nacional, regional e internacional seriam unificadas em uma equipe só, reduzida.
Um contrato de R$ 30 milhões para relações públicas com a imprensa internacional, firmado com a empresa CDN, foi encerrado em janeiro.
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Vinicius Torres Freire: Luta feia pelos restos do país
Brasil está na situação de optar entre a guerra por fundos públicos e o suicídio
Os servidores federais vão à luta para não pagar o aumento de contribuições previdenciárias previsto na reforma Bolsonaro-Guedes. É uma batalha da guerra civil por outros meios que está por vir caso o país decida de fato redistribuir de modo decente o gasto público. A Previdência é o aspecto maior desse drama, mas apenas um.
Parte do que se chama de reforma da Previdência é mesmo um projeto de reduzir o valor de salários, aposentadorias e pensões de servidores. O governo não tem mais como pagar essa conta do tamanho em que está. Menos ainda tem como bancar a Previdência dos trabalhadores do setor privado, o RGPS, problema ainda maior e mais explosivo.
Qual é o caso então com os servidores, além de salários fora da realidade? Em termos absolutos, o déficit do sistema de Previdência dos funcionários federais é menor que o do setor privado, embora proporcionalmente maior, em relação ao tamanho da sua despesa. E, sim, há privilégios.
Pelos mais recentes dados públicos disponíveis, a média do valor das aposentadorias do Executivo era 53% maior que a do teto do INSS. No Judiciário, 2,3 vezes o teto. No Ministério Público, 1,6 vez. No Legislativo, “os políticos”, 3,8 vezes.
“Ah, pau nos políticos!”. Suponha-se que o Congresso seja extinto e arrasado; que sua terra seja salgada, e sua gente, declarada infame até a décima geração; que deputados, senadores, funcionários e seus aposentados, viúvos e órfãos evaporem no espaço sideral. Tal economia lunática pagaria cerca de 1,6% da despesa da Previdência do “setor privado”.
Sim, qualquer dinheiro é relevante neste país em que gente cata o que comer no lixo. O que se pretende mostrar é que não está fácil de arrumar um culpado para ficar com a conta.
Em 2017, Michel Temer quis aumentar a contribuição previdenciária dos servidores de 11% para 14%. O socialista PSOL, acompanhado de sindicatos, reclamou no Supremo que alíquota progressiva de contribuição é inconstitucional. Imposto progressivo, argumentavam, tem de ser expressa e explicitamente previsto na Constituição e é confisco, de resto.
O ministro Ricardo Lewandowski, um líder da categoria, deu liminar cancelando a coisa, com apoio da Procuradoria-Geral da República.
Na reforma Bolsonaro-Guedes, de quanto será a contribuição extra dos servidores? Antes de mais nada: na metade mais pobre do país, o rendimento domiciliar por cabeça é de uns R$ 400. O benefício médio do Bolsa Família é de R$ 187,56 mensais.
Servidor que ganha até uns R$ 5.800 vai pagar uns trocados a menos. Para quem recebe uns R$ 10 mil, o desconto extra seria de R$ 180 mensais. Quem ganha em torno de R$ 20 mil, desconto adicional de R$ 770; salário de R$ 30 mil perde mais uns R$ 1.500. Para quem ganha o que deveria ser o teto de R$ 39 mil do funcionalismo, desconto extra de uns R$ 2.260.
Segundo o governo, esse aumento de imposto renderia R$ 13,8 bilhões, na soma dos próximos quatro anos. Nesta pindaíba, é dinheiro. Mas paga só 44% da despesa do Bolsa Família em um ano. Ou um quarto da conta de benefícios para idosos e deficientes muito pobres.
Apenas para sair do vermelho, o governo tem de cortar 9% de seu gasto (facada de R$ 125 bilhões).
Mesmo assim, não pagaria nada da despesa de juros, que se amontoa na dívida.
Para onde quer que se olhe, há contas estouradas e a feia necessidade. O país se explodiu. Como chegamos a isto vai ser tema de outras conversas.
Míriam Leitão: A reforma em terreno minado
Aprovar a reforma é fortalecer a espinha dorsal da economia, mas o projeto tramitará em terreno político minado pelos erros iniciais do governo
Três ministros do governo são do DEM, mas o DEM não se sente governo. Os dois presidentes do Congresso são desse mesmo partido e vão crescer na articulação política, principalmente o experiente Rodrigo Maia, até porque não existe espaço vazio em política. O ministro Onyx Lorenzoni tem dificuldades de diálogo com Maia, mas é o articulador civil que sobrou no Palácio. Gustavo Bebianno tinha mais canais com o confuso PSL. Esse é o quadro que analistas do próprio governo desenham como parte da complicação de tramitação da reforma da Previdência.
Esse é um governo que já foi atingido por denúncias de irregularidades. Mesmo assim ele quer parecer diferente de todas as outras administrações na relação com o Congresso. O problema é não saber diferenciar, com precisão, o que são os recursos políticos usados numa articulação no Congresso e quais são os mal feitos que deve rejeitar. Um exemplo dado por um político foi o seguinte: o presidente Jair Bolsonaro escolheu Luiz Mandetta para ser ministro da Saúde. Se ele, antes de convidar formalmente, tivesse ligado para o presidente do DEM, ACM Neto, e avisado, conseguiria fazê-lo sentir-se parte da decisão. Mas Bolsonaro acha que isso é a velha articulação com os partidos que ele condena.
É natural que deputados e senadores defendam os interesses de sua base, como uma obra, um projeto, explicou um parlamentar. O errado seria haver corrupção na obra, ou ela não ser necessária. O presidente tem que saber quais os pleitos pode atender para costurar a sua base de apoio e que outros trazem os vícios do passado do qual prometeu se dissociar. A bem da verdade, os fatos recentes mostram que ele nunca se distanciou de fato da velha política.
A reforma da previdência é agora criticada por servidores que a consideram dura demais com eles e querem entrar na Justiça contra as alíquotas. Por outro lado, tem sido criticada por ter sido fraca com algumas categorias ou por ter inflado os cálculos do ganho. Os servidores começaram a dizer que a alíquota é de 22%. Essa é a taxa bruta para quem se aposenta com mais do que R$ 39 mil hoje. A efetiva é menor. E esse valor de aposentadoria é alto demais para o Brasil ou qualquer país do mundo.
Daqui em diante o projeto ficará prisioneiro de dois tipos de críticas opostas. Alguns dirão que ele é duro demais. Outros, que ele é insuficiente e favorece alguns grupos. O adiamento do projeto dos militares será usado como pretexto para quem quer fazer corpo mole como forma de pressionar o governo na área política. Há também dúvidas jurídicas sobre o caminho escolhido de desconstitucionalizar futuras mudanças nos parâmetros da Previdência.
A reforma é, como escrevi aqui, o mais amplo projeto já apresentado ao país. Todos os presidentes tentam reformar a previdência desde o Plano Real. A diferença é que alguns quando estão na oposição são contra a reforma com argumentos demagógicos ou corporativistas. Foi o que aconteceu com Lula. Foi o que aconteceu com Bolsonaro. “Eu errei”, admitiu o presidente ao entregar seu projeto e apelar ao patriotismo dos parlamentares. Errou muitas vezes, quando deputado do baixo clero. Nunca demonstrou ter capacidade de ver o interesse do país num projeto de outro grupo político. Sempre agarrou-se a pautas menores, de interesse das categorias que defendia. Seu chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, foi outro adversário da última reforma.
Com todos esses passivos, o governo tentará fazer andar seu bom projeto de reforma, necessário ao país e fundamental para que outros passos sejam dados no caminho da retomada do crescimento. Por erros do governo Dilma, a dívida pública retomou o crescimento e entrou em rota perigosa. O rombo estrutural da previdência alimenta o temor de que a dívida não será paga pelo Tesouro em algum momento. E são os títulos públicos que sustentam as aplicações financeiras de pessoas, fundos e empresas do Brasil. Fazer a reforma é reforçar a espinha dorsal da economia.
No minado terreno político brasileiro, num governo precocemente envelhecido, essa importante reforma tramitará nos próximos meses. A economia depende de que Bolsonsaro, o improvável reformador da previdência, tenha sucesso em sua missão.
El País: Crise de candidatos laranja se agrava, fecha cerco a PSL e complica Bolsonaro
Novas denúncias aumentam suspeita de uso irregular de verba pública na campanha. Notícia de que funcionário de Flavio repassava dois terços do salário a Queiroz eleva pressão sobre senador
A crise gerada pelas denúncias de que aliados de Jair Bolsonaro teriam utilizado recursos públicos na campanha de candidatos de fachada, somada às suspeitas de cobrança de "pedágio" a funcionários no gabinete do filho do presidente, Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ganharam mais força nos últimos dias com a divulgação de novos depoimentos e mensagens de envolvidos nos casos. Um assessor de Flávio admitiu em depoimento ao Ministério Público que transferia dois terços do salário a Queiroz todos os meses. Também foram divulgadas mensagens nas quais um assessor do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, cobrava a devolução de verbas a uma candidata que recebeu fundos partidários às vésperas da eleição. Além disso, duas candidatas do PSL teriam recebido expressivos repasses para produzir milhões de panfletos pouco antes do pleito. As novas descobertas, que começam a fechar o cerco ao PSL na crise das candidaturas laranjas, trazem mais complicações ao presidente, que nas últimas semanas vem tentando se descolar de uma série de escândalos envolvendo seus correligionários.
No centro da crise, estão as fortes suspeitas de um esquema de desvio de recursos públicos destinados ao PSL, partido de Bolsonaro. Parte dessa verba teria sido destinada a candidaturas de fachada por dirigentes da sigla. O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio (PSL), foi apontado no início deste mês pela Folha de São Paulo como patrocinador do esquema em Minas Gerais, onde foi reeleito deputado federal. Segundo o jornal, o agora ministro (que dirigia o diretório estadual do PSL) teria autorizado o repasse da verba partidária a quatro candidatas laranjas durante a campanha eleitoral, e a verba teria ido parar na conta de empresas ligadas aos seus assessores na Câmara.
O ministro nega as acusações, mas na última quarta-feira a ex-candidata a deputada estadual Cleuzenir Barbosa (PSL-MG) apresentou ao Ministério Público uma mensagem de Whatsapp na qual um assessor de Álvaro Antônio, Haissander de Paula, cobra a devolução de verba pública de campanha para destiná-la a uma empresa ligada a outro assessor do político. Em depoimento, Barbosa contou que foi pressionada a transferir a metade dos 60.000 reais que havia recebido do partido para a conta da gráfica de um irmão de Roberto Soares, também assessor do ministro.
Jair Bolsonaro não fez comentários públicos sobre as suspeitas envolvendo o titular do Turismo, mas o caso das candidaturas laranjas chegou a ser tema de conversa entre ele e o ex secretário-geral da presidência, Gustavo Bebianno. A pedido de Bolsonaro, Bebianno assumiu a presidência do PSL durante a campanha eleitoral do ano passado e foi peça fundamental para a eleição do presidente. Responsável por autorizar transferências feitas pelo diretório nacional a candidatos, ele nega que estivesse envolvido em qualquer esquema. Bolsonaro, porém, ofereceu tratamentos diferenciados aos dois ministros supostamente envolvidos nos escândalos. Na última segunda-feira, Bebianno foi demitido em meio à crise do Planalto, impulsionado por uma queda de braço travada publicamente pelo filho do presidente, Carlos Bolsonaro.
Verbas para milhões de panfletos a dois dias da eleição
O fato de duas candidatas do PSL haverem destinado recursos públicos para a confecção de mais de 10 milhões de panfletos a apenas dois dias antes da eleição inflamou ainda mais as suspeitas do desvio de verbas por meio de candidaturas laranjas. Nesta sexta-feira, O Globo publicou que o partido transferiu 268.000 reais nas vésperas do pleito para as campanhas das candidatas a deputada Gislani Maia (Ceará) e Mariana Nunes (Pernambuco), que gastaram praticamente todo o valor recebido da executiva nacional da sigla em gráficas entre os dias 5 e 6 de outubro.
Gislani foi a única a receber verba do partido no Ceará, embora houvesse outras 18 candidatas pelo partido no Estado. Ela disse ao O Globo que o material impresso continha imagens de outros candidatos, mas sempre a seu lado. A maior parte da despesa da candidata (103,2 mil reais) foi concentrada em uma única gráfica, a M C de Holanda Carvalho, cujo nome fantasia é EH 8 Comunicação Visual. Apesar do investimento, Gislani só conseguiu 3.501 votos. Em Pernambuco, o centro da polêmica envolve a candidatura de Mariana Nunes, que obteve apenas 1.741 votos mesmo tendo usado 127.800 reais na campanha, segundo a prestação de contas entregue à Justiça Eleitoral. A maior parte dos recursos (118.000 reais) foi transferida pelo partido poucos dias antes da eleição e quase tudo (113.900 reais) foi gasto em uma única gráfica para a confecção de cinco milhões de santinhos e um milhão de adesivos.
Novas suspeitas sobre Flávio
Nos últimos dias, as suspeitas que pairam sobre o senador Flávio Bolsonarotambém ganharam novos capítulos. O filho mais velho do presidente já enfrentava há meses denúncias de cobrança de "pedágio" aos funcionários de seu gabinete no período em que foi deputado estadual no Rio de Janeiro. Agora, também surgiram indícios de que uma funcionária de sua campanha pode ter sido remunerada com os recursos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). A revista Crusoé publicou nesta sexta-feira que teve acesso ao contrato de trabalho da promotora de eventos Valdenice Meliga como funcionária da liderança do PSL na Casa. O contrato teria sido firmado um dia depois de Meliga fechar acordo com o então líder do partido, Flávio, para gerir as contas eleitorais da sigla. Não há menção de remuneração por este trabalho na prestação de contas feita à Justiça Eleitoral. Os acordos, conforme a revista, determinam que Valdenice Meliga trabalharia de graça na campanha de Flávio ao Senado e acumularia um cargo na Alerj. O valor do salário dela na Casa, porém, coincide com os cerca de 5.000 reais que a própria funcionária teria estimado para os serviços prestados à campanha de Flávio.
Além disso, nesta semana o Estadão divulgou o primeiro depoimento colhido pelo Ministério Público do Rio sobre as movimentações bancárias atípicas entre funcionários do gabinete do senador, identificadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O ex-assessor Agostinho Moraes da Silva admitiu que depositava mensalmente cerca de dois terços do salário que recebia na Casa — o equivalente a 4.000 reais — na conta de Fabrício Queiroz, ex-motorista do agora senador. Segundo Silva, as transferências eram um investimento na compra e venda de veículos exercidas por Queiroz. No depoimento, ele também afirmou que Queiroz lhe devolvia de 4.500 reais a 4.700 reais em espécie todos os meses, como retorno do negócio, e que não tinha conhecimento da existência de funcionários fantasmas no gabinete. Silva, porém, não apresentou documentos que comprovassem suas declarações nem explicou porquê Queiroz lhe devolvia o dinheiro em espécie e não por transferência bancária, por exemplo.
A principal suspeita das autoridades que investigam o caso é que o valor movimentado pelo motorista seja uma espécie de pedágio cobrado por parlamentares de seus funcionários: os depósitos na conta de Queiroz eram feitos por pelo menos 20 integrantes do gabinete de Flávio, e coincidiam com as datas de pagamento da Assembleia Legislativa do Rio. O confisco de salários é ilegal, mas bastante difundido em assembleias, câmaras e prefeituras do país. Na TV, Queiroz negou ser "laranja" dos Bolsonaro e afirmou que o dinheiro na sua conta, que o Coaf considerou incompatível com seus rendimentos, é proveniente de negócios realizados por ele com carros usados.
Flávio Bolsonaro também é investigado no caso, além de responder por evolução patrimonial irregular com a venda de imóveis tanto na esfera criminal quanto na eleitoral, em razão da declaração de patrimônio que concedeu à Justiça Eleitoral no ano passado. Na última quinta-feira, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, definiu que as investigações criminais devem correr em primeira instância, sem foro privilegiado. Em entrevistas que concedeu à televisão nos últimos meses, o filho do presidente tem negado seu envolvimento nas irregularidades. Queiroz e Flávio faltaram os depoimentos ao Ministério Público.
Alon Feuerwerker: Os riscos para o Brasil na crise venezuelana. E uma lembrança da Guerra do Paraguai
Cada um vê o imbroglio venezuelano conforme as lentes da ideologia, e esse é um direito inalienável. Há poucas coisas mais inúteis em política internacional do que discutir “quem tem razão”. Costuma ter razão quem tem a força para impor seu desejo. Os propagandistas entram na história para dar um trato na cena, fazer a limpeza e o embelezamento. Como aquele sujeito em Pulp Fiction. Não viu o filme? Veja.
Quem “tem razão” na Venezuela? Depende. Se você defende que o melhor para a América do Sul agora é estancar a penetração russa e chinesa, e quem sabe iraniana, e de quebra varrer a esquerda que apoia o chavismo, faz sentido apoiar as pressões contra o governo de Nicolás Maduro. Se você acha que o mais importante é conter a tentativa americana de retomar a região como esfera de influência, fique do outro lado.
Mas se você é movido por teses como a defesa dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos e do respeito irrestrito à separação dos poderes numa democracia que permita a alternância real no governo, aí talvez seja o caso de cautela. Porque a cada acusação contra o chavismo nesses temas há pelo menos um caso de país amigo dos Estados Unidos, e agora do Brasil, onde isso é deixado para lá. Então deixemos para lá.
A Venezuela é o país da hora onde enfrentam-se as potências que disputam a hegemonia planetária. Os Estados Unidos têm força militar suficiente para tentar resistir à perda de protagonismo para a economia da China. E a Rússia parece ter retomado o poderio militar para conter o declínio deflagrado pela dissolução da União Soviética. Por que a Venezuela? Tem muito petróleo e a América do Sul é um celeiro de commodities.
Está em curso portanto um movimento baseado na interpretação mais crua da Doutrina Monroe, “A América para os americanos”. E no princípio da projeção de poder (militar). Se a Ucrânia, a Síria e a Coreia do Norte são muito longe dos Estados Unidos, a Venezuela é muito longe da China e da Rússia. O recado de Trump é claro: se longe de casa precisamos negociar e aceitar acordos, aqui nas redondezas fazemos o que dá na telha.
E o Brasil? Se o plano de uma derrubada “limpa” do chavismo der certo, com as Forças Armadas dali coesas degolando o governo sem maiores reações e conseguindo estabilidade social e militar, e eventualmente política, tudo bem. O bolsonarismo celebrará a queda de mais um desafeto e vida que segue. Quem sabe até com oportunidades econômicas, com o Brasil entrando de sócio minoritário no desmonte da PDVSA.
Mas, e se der errado? Um risco para o Brasil é a disputa política na Venezuela enveredar para a guerra civil, coisa de que o continente parecia ter se livrado com o acordo de paz na Colômbia. E já que o Brasil decidiu ser protagonista na “guerra pela Venezuela”, será difícil simplesmente voltar para casa e dizer “virem-se, não temos nada a ver com isso”. Até porque nossa fronteira norte é extensa, porosa e cheia de povos indígenas.
Povos para os quais a fronteira e as nacionalidades produzidas após a ocupação hispano-portuguesa têm importância apenas relativa. Em miúdos, gente para quem ser da tribo é mais importante do que ser “brasileiro” ou “venezuelano”. Em tempo de paz, isso tem sido um desafio latente para o Brasil, particularmente para nossas Forças Armadas. Como ficaria a coisa em tempo de guerra? Especialmente se ela transbordar para cá?
Isso traria um conflito bélico para dentro de nossas fronteiras pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai. Ela deu na Abolição e na República. #FicaaDica.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Elio Gaspari: Os ‘çábios’ uniram os marajás aos miseráveis
Não deu outra. Os “çábios” que conceberam o projeto de reforma da Previdência descobriram um jeito de entregar aos marajás a bandeira da defesa dos miseráveis. Fizeram isso ao propor a tunga do Benefício de Prestação Continuada, que dá um salário mínimo (R$ 998) aos miseráveis que têm mais de 65 anos. O projeto é engenhoso. Dá R$ 400 ao miserável a partir dos 60 anos, o que é um alívio para quem recebe, no máximo, R$ 371 pelo Bolsa Família. Com a outra mão querem tomar pelo menos R$ 598 mensais dos miseráveis que têm mais de 65 anos. Eles só terão direito aos R$ 998 se, e quando, chegarem aos 70 anos.
Se o conserto do rombo da Previdência precisa tungar um benefício pago aos miseráveis que têm entre 65 e 70 anos, então é melhor devolver o Brasil a Portugal. O ministro Paulo Guedes produziu um projeto racional e conseguiu apresentá-lo de forma competente. Na essência, podou privilégios. Essas virtudes levam à estupefação diante da tunga de sexagenários miseráveis. Ela só serve para soldar uma aliança maligna e hipócrita. O marajá que acumula privilégios ganha o direito de combater as reformas apresentando-se como defensor dos pobres e dos oprimidos.
Está entendido que o capitão reconheceu que errou ao combater a reforma proposta por Michel Temer, mas se as pessoas podem mudar de opinião, não podem mudar os fatos. Quando ele estava do outro lado da trincheira, lembrava que a expectativa de vida no Piauí “estava na casa dos 69 anos, quando você bota 65, você convida a oposição a fazer sua proposta e melar esse projeto”. Bingo. Os “çábios” fizeram isso, pois tomando-se a expectativa de vida do Piauí, seus miseráveis, que hoje recebem R$ 998, perderão o benefício aos 65 e irão para o outro mundo antes de terem direito a receber o que recebem hoje.
Tosa
O repórter Ancelmo Gois revelou que, num fim de semana, o ministro Paulo Guedes andou pelo Leblon e cortou o cabelo no salão Care, em Ipanema. Esses salões são os únicos lugares onde a turma do andar de cima paga para ganhar cortes. No Care uma tosa custa de R$ 130 a R$ 250. Não é o mais caro, pois há salão que cobra R$ 320.
Para a turma do regime geral da Previdência, um corte de cabelo vai de uns R$ 15 a R$ 30.
ESTÃO CORROMPENDO A MORALIDADE
Duas operações de combate à corrupção produziram episódios que corrompem a luta pela moralidade. Num, a turma da Lava-Jato do Paraná recorreu a uma gambiarra destinada a contornar a propensão libertadora do ministro Gilmar Mendes e prendeu o notório Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto da caixinha do PSDB paulista. No outro, prenderam e soltaram o presidente da Confederação Nacional da Indústria por causa de espetáculos teatrais mal explicados. O doutor Paulo Preto já foi preso duas vezes. Ameaçou os cúmplices com a possibilidade de romper seu silêncio, e documentos suíços mostram que amealhou milhões de dólares.
Para quem olha o caso de fora, ele não deveria estar solto, mas está.
Com barulho coreografado, o Ministério Público revelou que Paulo Preto tinha um bunker onde guardava R$ 100 milhões. Nas palavras do procurador Roberson Pozzobon, “talvez o bunker de Paulo Preto tivesse o dobro do dinheiro do bunker do Geddel”: “Isso é um escárnio”.
Para quem gosta de espetáculo, seria uma prisão exemplar, investigação primorosa. Teve milhões, bunker ,e até dinheiro no varal para não mofar. Era prato enfeitado, porém requentado.
A acusação veio da delação do doleiro Adir Assad e é de 2017. A cifra de R$ 100 milhões também é de 2017. E o bunker? “Talvez”, pois os endereços dados por Assad há dois anos não foram investigados.
São muitos os escárnios que acompanham o caso de Paulo Preto. Seria ótimo se o Ministério Público encarcerador brigasse publicamente com os magistrados libertadores, mas é péssimo que se faça isso com espetáculos de manipulação do distinto público.
Em outro episódio prenderam Robson Andrade, presidente da CNI, porque acharam o que parece ser uma roubalheira em contratos de eventos teatrais em Pernambuco. Se investigação de malfeitorias praticadas com dinheiro do Sistema S pretende girar em torno de festivais de bonecos é melhor economizar o dinheiro dessas operações espetaculares.
COISA PARA MAGO
Diversos dirigentes do PSL não foram convidados para a posse do capitão. Alguns se fizeram de desentendidos e apareceram nas solenidades.
A saída de Gustavo Bebianno deu uma enorme desarrumada no tabuleiro, e o presidente precisará de um mago para consertá-la. Se houver bom senso, Bolsonaro deverá começar seu serviço construindo uma convivência saudável com Rodrigo Maia.
DORIA DE OLHO
A turma do capitão gosta de pensar que a oposição ao governo vem do PT e da esquerda. É uma meia verdade. O verdadeiro polo alternativo está em São Paulo e gira em torno do governador João Doria. É para lá que confluem e são estocadas as ambições e os ressentimentos que Bolsonaro produz.
BANCADAS TEMÁTICAS
Para aprovar a reforma da Previdência o governo abriu um balcão de promessas para emendas de parlamentares. Acreditou na história das “bancadas temáticas”?
Tente Papai Noel (os deputados não acreditam em Papai Noel nem em promessas de liberação de recursos de emendas).
MARIA THEREZA FALA
No mês que vem chegará às livrarias “Uma mulher vestida de silêncio”, de Wagner William. Contará a história de Maria Thereza, a linda mulher do presidente João Goulart, um marido protetor e promíscuo.
Eles se casaram quando ela tinha 15 anos e ele, 37. Aos 21, Maria Thereza se tornou a bonita e elegante mulher do presidente da República e, aos 23, deixou a Granja do Torto com dois filhos pequenos para um exílio que durou 22 anos. O desterro terminou quando ela atravessou a fronteira levando o marido dentro de um caixão.
Em “Uma mulher vestida de silêncio” Maria Thereza conta sua história triste. Enquanto foi a mulher do poderoso Jango, era perseguida por um acervo de maledicências. A maior, por pública, vinda do governador Carlos Lacerda. Passou-se mais de meio século e nunca apareceu um só fiapo de veracidade, mas assim era o mundo.
Maria Thereza Goulart foi detida por duas vezes em condições humilhantes, viu as fronteiras das traições e da ingratidão, comeu o pão que Asmodeu amassou e nunca mostrou ressentimento, nem durante a cerimônia em que os restos mortais de seu marido voltaram a Brasília. Aos 78 anos, vestida de silêncio, Maria Thereza Goulart divide seu tempo entre Porto Alegre e o Rio.
ERRO
Estava errada a informação que saiu aqui, contando que os sapos, quando colocados numa panela com água aquecida lentamente, não percebem o calor e deixam-se ferver. Trata-se de pura lenda.
Quem se deixa ferver ou fritar são os ministros. Muitos sapos são feios, mas nenhum é bobo.
José Sarney: 'Democracia agonizante'
Para José Sarney, que consolidou a transição do governo militar para os civis, hoje os Três Poderes têm fendas que desestabilizam o país. "Estamos matando nossa democracia"
Por Monica Gugliano, do Valor Econômico
BRASÍLIA - De todos os cargos e títulos recebidos e de todas as funções exercidas ao longo de quase 70 anos de vida pública, o ex-presidente da República José Sarney se orgulha especialmente de duas atividades. Desde 1980, ele ocupa uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Na mesma década, foi o político que consolidou a delicada transição da ditadura militar para a democracia.
Sobre a carreira de escritor e poeta, há controvérsias. A respeito do segundo motivo de orgulho, há unanimidade e não paira nem entre seus mais ferozes adversários dúvidas sobre o papel que ele desempenhou. Sarney assumiu o mais alto cargo do país, substituindo Tancredo Neves (1910-1985), presidente eleito indiretamente, que ficara doente e morreria antes de tomar posse.
Entre aqueles dramáticos dias do mês de março de 1985 e hoje já se passaram 34 anos. Não sem certo pesar, Sarney adverte que o Brasil novamente vive um momento muito difícil: "Estamos matando nossa democracia. Ela está agonizando".
No dia deste "À Mesa com o Valor", em que recebeu a reportagem para um café, a acirrada disputa para a eleição do presidente do Senado (cargo que Sarney ocupou por quatro vezes) ainda repercute nos noticiários, alimentando uma hipotética crise das instituições. "Ao falar em morte da democracia, me refiro ao fato de que os Poderes têm fendas em suas estruturas que estão desestabilizando o país", afirma. "O Parlamento não legisla. O Poder Executivo legisla no lugar do Parlamento, e o Judiciário não exerce o poder moderador que deveria ter", acrescenta ele, citando o ex-deputado e relator da Constituinte, Nelson Jobim. "Como disse há dez anos Jobim, é a judicialização da política e a politização da Justiça."
O fato de o Poder Judiciário, na opinião do ex-presidente, ter perdido o poder moderador que lhe cabe nas democracias, fez com que o país passasse a viver em um regime de insegurança jurídica em que ninguém sabe qual pode ser o destino de sua reivindicação. "A interferência, a nítida divisão entre os ministros, é o sinal mais evidente dessa crise. São tantas as questões submetidas ao tribunal - tudo, na verdade - que isso cria uma insegurança jurídica muito grande."
Sarney rejeita a suposição de que a crítica tenha alguma relação com o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter interferido na convulsionada eleição do Senado, mantendo a votação secreta. Uma sentença que parecia ser sob medida para beneficiar o candidato veterano Renan Calheiros (MDB-AL) - cuja candidatura teria sido apoiada por Sarney -, mas que acabou por gerar um movimento, estimulado por maciça intervenção via redes sociais, que derrotou o senador alagoano.
Ao se aproximarem da urna, os senadores abriam e mostravam a cédula com o nome do candidato que acabou vencendo, Davi Alcolumbre (DEM-AP). "Tenho uma relação de amizade com Renan e desejava seu êxito", diz Sarney. "Mas os jornais me atribuem muito que eu não faço e uma força que eu não tenho", afirma, sentado na cadeira de espaldar alto com ar de móvel antigo, em seu escritório na região central de Brasília.
No conjunto de salas mobiliado com simplicidade, onde trabalha quando está na cidade, Sarney fala com vagar, cultiva mais do que nunca as longas pausas na conversa, quando não o silêncio, e resiste a opinar sobre o comportamento sem nenhum decoro dos senadores na eleição do novato Alcolumbre. "Não me agradaria fazer críticas ou análises sobre comportamentos ou fatos. Observei tudo a distância."
Sarney, que sempre primou pelo cumprimento da liturgia dos cargos que ocupou, diz que não fará o papel de censor do Senado. Da mesma forma, afirma que não aceitará o pressuposto de que Alcolumbre foi eleito por representar o "novo" na política, enquanto Renan, e até mesmo ele, seriam remanescentes da "velha política". "Se fala na velha política no sentido de práticas ruins", afirma.
O café, o suco de laranja e os pãezinhos de queijo na mesa ainda estão praticamente intactos. Sarney convida a repórter a experimentar os pãezinhos e conta que, para manter os cuidados que dedica à saúde, não deveria comer. Mas, só um, não? A pequena pausa serve para que ele retome o raciocínio. "Tenho certeza de que dei uma contribuição valiosa ao país. Se eu não tivesse o temperamento que tenho, a experiência política que tenho, nós teríamos retrocedido. Infelizmente a política é cruel, mas a gente tem que aceitar", diz. "Veja tudo que eu fiz em meu governo. Fiz a Constituição. Como é que eu sou a velha política? Repetindo doutor Ulysses [Guimarães, 1916-1992]: eu sou velho. Mas não sou velhaco."
Batizado como José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, Sarney, o 31º presidente do Brasil, nasceu no município de Pinheiro, interior do Maranhão, no dia 24 de abril de 1930. Foi deputado, senador pelo Maranhão e pelo Amapá, governador do Maranhão, presidente da República. Desde 1950, é impossível contar a história do Brasil sem encontrar seu nome figurando entre os protagonistas. Aos 88 anos, ele é um dos políticos mais longevos do país. "Quando entrei no Congresso, ele ainda funcionava no Rio de Janeiro", conta.
A eleição de José Sarney para o governo do Maranhão em 1965 consolidou a força política de sua família no Estado. O "clã dos Sarney" deteve, desde então, as posições de poder não apenas político, mas também em diferentes áreas sociais. Um processo que se iniciou por volta da década de 50, com seu pai, o desembargador Sarney de Araújo Costa (1901-1961). Dos três filhos de José Sarney, dois seguiram carreira na política e também se tornaram conhecidos nacionalmente. Sarney Filho foi deputado federal, ministro e hoje é o secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal. A filha, Roseana Sarney, foi deputada federal, governadora do Maranhão e senadora da República.
No folclore sobre ele, são famosas a habilidade de falar durante horas sem dizer nada, a hipocondria e as superstições que rendem saborosas histórias na voz dos amigos. Não veste marrom, joga fora peças de roupa que acredita não lhe trazerem sorte, entra e sai sempre pela mesma porta e não gosta de falar em morte.
Na extensa biografia, que inclui passagens pelo PSD, Arena, PDS e PMDB (hoje MDB), Sarney é considerado um político que quase sempre esteve ao lado do poder, crítica que costuma refutar com veemência. "Fui contra o Getúlio Vargas, fui contra o Juscelino Kubitschek. Fui vice-líder da UDN e era da 'Banda de Música' da UDN. Não toquei trombone, mas toquei reco-reco. Os militares nunca me trataram como se eu fosse uma pessoa muito ligada a eles. Pelo contrário, muitos deles me chamavam de uma coisa inacreditável: comunista."
"Banda de Música" é o nome dado ao grupo de parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) que se destacaram pela afiadíssima oratória. Faziam oposição constante e implacável aos governos Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964). Entre seus integrantes estavam Carlos Lacerda (1914-1977) e Afonso Arinos (1905-1990). "Lacerda foi o maior parlamentar, dono da maior oratória que o Brasil já teve e viu."
O ex-presidente diz não fazer o estilo saudosista. Conta que não olha para trás e que, quando termina uma etapa, dá o período por encerrado. Portanto, nunca dirá que houve tempos melhores na política. No entanto, constata que o país vive uma fase de muito ódio, apesar de o sentimento ser um fenômeno mundial e estar muito ligado, em sua opinião, ao impacto da comunicação em tempo real na sociedade. "A internet nos trouxe a perda dos direitos individuais, da privacidade. Criou tantas versões sobre o mesmo fato que já não sabemos qual é a verdadeira. É o que chamamos de a morte da verdade", diz, citando o livro "A Morte da Verdade - Notas Sobre a Mentira na Era Trump" (Intrínseca), de Michiko Kakutani, vencedora do Prêmio Pulitzer.
No Brasil, afirma o ex-presidente, o impacto dessas novas mídias alimentou a crise da democracia, somando-se aos problemas oriundos da Constituição de 1988. A Carta promulgada durante o governo de Sarney é vista por ele como um documento que, por ter sido feito logo depois de um regime autoritário, olha pelo espelho retrovisor e só enxerga o passado, em vez de mirar o futuro. "São regras que foram desmontando o país até chegarmos às crises que vivemos hoje." Sarney diz não acreditar em uma solução para os problemas nacionais que dispense revisão constitucional, ainda que continuem sendo feitas reformas como a da Previdência, que considera fundamental neste momento.
A interferência das redes sociais em um país com 39 partidos políticos - número tão grande que acaba por ser o mesmo do que não ter nenhum, em sua opinião - tem acirrado conflitos entre classe política, sociedade e mídia. Os políticos, afirma, têm sua imagem cada vez mais denegrida perante à população. "A mídia, nas redes, pergunta: Quem representa o povo? Somos nós ou são esses políticos que estão no Congresso? E isso virou um confronto diário entre a mídia e a classe política."
Mas, apesar das dificuldades, Sarney acredita que o Brasil continua "uma grande nação". Enumera alguns progressos, como o combate à corrupção - que ele define como "um fenômeno importantíssimo na política que se destina a fazer correções no país". Em sua opinião, a prioridade que se deu ao combate à corrupção e que trouxe tantas "inacreditáveis" revelações está sendo uma inflexão de conduta importante. Mesmo que, no processo, alguns excessos tenham sido cometidos - e serão corrigidos com o tempo, diz.
Entre eles, está a delação do ex-senador Sérgio Machado, que gravou uma conversa com Sarney, na casa do ex-presidente. Ele evita fazer comentários. Sarney não esconde a mágoa com o caso. E, principalmente, também não esconde ressentimento das consequências que o envolveram em uma investigação da Lava-Jato e culminaram com pedido de prisão contra ele, feito ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot. O pedido não foi aceito, e algum tempo depois Sarney foi inocentado. E a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? "Lamento muito o que aconteceu e está acontecendo com Lula", responde.
Para Sarney, a importância que se deu para debelar a corrupção deveria ser dada ao combate contra a violência. "As estatísticas anuais de homicídios correspondem ao número de soldados mortos no mesmo período na Guerra do Vietnã". É insustentável conviver com essa situação", argumenta.
Primeiro presidente civil após o regime militar (1964-1985), Sarney não gosta de emitir opiniões públicas sobre aqueles que o sucederam. Diz esperar que o presidente Jair Bolsonaro faça bom governo e que dê o exemplo da conciliação, harmonizando os conflitos da sociedade. "Uma sociedade democrática é uma sociedade de conflitos. Cabe ao Estado, através da intermediação política, harmonizar esses conflitos." Para ele, o presidente da República é um ser sempre aprisionado no tempo em que governa. Recorre ao filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) para dizer que "o presidente é ele e suas circunstâncias".
O ex-presidente acha que não deve dar conselhos aos que vieram depois dele. Mas gosta de lembrar que a cadeira é sempre maior do que o presidente sentado nela. "Nenhum presidente modifica essa cadeira. Ela é que modifica quem senta nela." Ele concorda com a visão de que, no Brasil, muitos políticos ainda não têm a visão do que significam as instituições. Atribui essa deficiência à falta de cultura, de leitura dos grandes clássicos como Tocqueville, Lincoln, Joaquim Nabuco.
Sarney foi eleito pelo Congresso em janeiro de 1985 como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, político do PMDB, partido de oposição à ditadura, a quem Sarney se refere como um grande estadista e um dos maiores articuladores políticos que já conheceu. Pouco antes das eleições indiretas, ele deixou o PDS (partido que substituiu a Arena) por divergências com o presidente militar João Figueiredo (1918-1999) no processo de abertura democrática. Era praticamente um estranho que o PMDB fora obrigado a "engolir".
Por isso, ao lembrar sua chegada à Presidência, Sarney observa que havia se preparado para "ser um vice discreto de um presidente forte". Mas a morte de Tancredo Neves jogou o cargo em seu colo, deixando-o em outra circunstância: a condição de um presidente que "ninguém queria" e que, segundo ele mesmo, tinha tudo para engrossar a lista dos mandatários que, mais dia menos dia, acabariam depostos.
Nessa relação, inclui Artur Bernardes, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Getúlio Vargas, além de si próprio. "Eu não tinha apoio político, não conhecia as pessoas com quem estava governando, não escolhera meu ministério e ainda era um político nordestino", relata, atribuindo sua sobrevivência à capacidade de dialogar, ao temperamento pacífico e, principalmente, por ter mantido o Brasil na trajetória democrática.
Quando lhe é pedido que dê sua opinião sobre um governo com tantos generais da ativa e da reserva em cargos estratégicos, Sarney pondera que os militares e os civis são iguais dentro da sociedade, de maneira que não haveria razão para exclui-los de participar da vida pública. Além disso os militares, observa, são muito bem preparados, e o Brasil afastou os riscos oriundos do militarismo, ainda em seu governo e graças à atuação de ministros como o do Exército, Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015).
"O militarismo é a agregação de poder político ao poder militar. O poder civil é a síntese de todos os poderes. O Brasil atravessou esse gargalo do militarismo, que foi uma marca na América Latina, com muito mais tranquilidade do que outros países. Fizemos a transição com os militares, e não à revelia deles", diz.
Sarney concluiu seu mandato em 1990. Entregou o cargo a Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito diretamente pela população desde o golpe de 1964. Governou mais da metade do tempo no período que se convencionou chamar de "década perdida" - uma denominação que ele repudia. Saiu do Planalto com baixa popularidade (56% dos entrevistados consideraram seu governo ruim/péssimo, segundo o Datafolha) e com a economia arrasada pela hiperinflação que já se anunciava desde a sua posse, quando o índice anual superava 200% ao ano.
Ele, porém, assinala que o crescimento médio do PIB em seu governo foi de 5% ao ano e o desemprego estava na casa de 2,69%. Reconhece que de todas as decisões que tomou, se pudesse voltar atrás, não assinaria o Plano Cruzado II. "Foi a decisão mais errada que tomei. A pior. Muitas vezes eu fui um bom presidente e muitas vezes não fui. E essa foi uma das vezes em que eu não fui um bom presidente. Porque eu paguei pelo equívoco e acho que fui quem mais pagou. Mas o povo brasileiro pagou pela decisão e eu guardo isso na alma."
O café esfriou, o suco está praticamente intacto, a tigela com os pães de queijo não dá sinais de que será esvaziada e a conversa sobre política, diz o ex-presidente, já está muito longa. Ele conta que finaliza sua biografia, já com mais de 800 páginas, mas que, por enquanto, não pensa em publicar. Atualmente, escreve artigos e textos e fez a segunda edição do "José Sarney, Bibliografia e Fortuna Crítica" (Instituto Geia). O volume de 400 páginas reúne toda a obra do autor com 120 títulos, num total de 168 edições traduzidas para 12 idiomas, entre eles coreano, grego, árabe e russo. "Agora eu só trato de livros, basicamente, e tenho tanto tempo livre que consegui editar esse volume."
O outro livro que o ex-presidente terminou e lançou no ano passado é "Galope à Beira-Mar". O título é inspirado no nome de um ritmo dos cantadores do Nordeste, e a produção do livro foi estimulada pelo assessor e amigo Pedro Costa - filho de Odylo Costa (1914-1979), jornalista, poeta e integrante da ABL -, que acompanha esta entrevista. Sarney conta histórias dos personagens da vida pública recente do país, relata "causos" de família, da infância em Pinheiro, no interior do Maranhão, e da juventude em São Luís. E contempla histórias das viagens do então presidente. Todas com um viés anedótico.
"Hoje, o que me mantém vivo é escrever", diz. O ex-presidente se divide entre Maranhão e Brasília. Tem dedicado boa parte do seu tempo também a cuidar de dona Marly, a companheira de toda uma vida, que, aos 86 anos e após sofrer uma fratura na perna, não conseguiu voltar a andar. Conta que escreve com disciplina todas as noites em sua biblioteca a partir das 22h. Depois, lê até dormir. "Durmo quatro, cinco horas por noite. Quando tem uma graça de Deus, durmo seis."
De toda sua produção literária, Sarney não esconde seu carinho por "Norte das Águas" (1969), livro que o levou à Academia Brasileira de Letras. Também se orgulha do "Dono do Mar" (1995), um romance que mereceu elogios de Jorge Amado e Darcy Ribeiro, e de "Saraminda" (2000), que Claude Lévi-Strauss descreveu como um belo livro que conquistou seu amor. "Se eu tivesse de pedir a Deus, antes de nascer, se queria ser político ou escritor, sem dúvida escolheria a segunda opção. Sei que é meio provinciano dizer isso, mas tive mais alegria em ser membro da Academia do que presidente da República."
Sarney diz que escrever é como eternizar momentos e sentimentos por meio das palavras. É ter o poder de transfigurar as coisas, os sonhos, a vida. Prestes a completar 89 anos, o ex-presidente mantém o bigode e os ternos impecavelmente cortados. Sente-se velho? "Não", responde sem vacilar. Sente, sim, as limitações e as dores que a idade impõe. E, da mesma forma que os personagens dos grandes escritores que tanto admira, como Gabriel García Márquez, Sarney reflete sobre o ocaso do tempo. Não com a perspectiva de que ele está se acabando. Mas com a certeza de que ainda há muito para viver.
Clóvis Rossi: E se Guaidó fracassar no sábado?
A receita Mourão é correta; falta cozinhá-la
O general Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil, tem toda a razão ao dizer, sobre a Venezuela, que “a única solução é o regime do Maduro entender que acabou, promover novas eleições, se eleja quem tem que ser e partir daí terá de ter haver plano Marshall na Venezuela".
De acordo, general. Pena que eu não tenha conseguido contato contigo para perguntar se a tentativa de fazer entrar ajuda humanitária na Venezuela neste sábado (23) vai de fato contribuir para chegar à solução proposta.
Tomara que sim, mas temo que não. Examinemos as possibilidades mais lógicas a respeito do 23F:
1 - A ajuda não entra, pela truculenta resistência da ditadura. Analisa, desde já, o Miami Herald, geralmente bem informado sobre Venezuela, até pela vizinhança geográfica: “Tantos apoiadores como críticos da decisão de reconhecer Guaidó [Juan Guaidó, como presidente interino] estão preocupados em perder o ímpeto para eleições se o sábado chega e passa sem uma mudança no status quo".
Essa suposição sobre a perda de ímpeto é recorrente na mídia internacional, para o caso de fracassar a iniciativa de Guaidó.
A oposição terá conseguido apenas expor a um público bastante amplo e à mídia internacional, ao vivo e em cores, a brutalidade da ditadura.
Minha dúvida é saber se as caravanas convocadas por Guaidó se conterão ao chegar às fronteiras ou se se atirarão contra as tropas que as estão bloqueando. Abre-se a perspectiva de um banho de sangue cujas consequências não dá nem para imaginar.
2 - A ditadura, além da truculência tradicional, recorre a um trambique, outra de suas especialidades: deixa a ajuda entrar, mas, à medida que os caminhões vão se afastando das fronteiras e, por extensão, da vista do público e da mídia externa, se apropriam dos carregamentos.
Faz, em seguida, ela própria, a distribuição de alimentos e medicamentos, para o que até já dispõe de um mecanismo (militarizado), os CLAPs (Comitês Locais de Abastecimento e Preços). É o meio para exercer controle social sobre a população.
É capaz até de ganhar pontos porque a penúria dos venezuelanos é tão tremenda que qualquer alívio é bem recebido, venha de quem vier.
3 - Os militares permitem a entrada da ajuda. Seria o “game over” para Maduro, porque significaria ter perdido o respaldo do único setor com que conta para manter-se no poder.
Ainda assim, seria preciso ver se Maduro “entende que acabou", como gostaria o general Mourão, ou se será preciso uma negociação (com quem?) para estabelecer as regras para a transição até as eleições.
Qualquer que seja o desfecho deste sábado, gostaria que o general Mourão explicasse o que vai propor, na segunda-feira (25), quando se reunir na Colômbia o Grupo de Lima, o conglomerado dos principais países das Américas que tenta tirar a Venezuela do buraco.
Se eu fosse o general, proporia, para começar, tirar protagonismo dos Estados Unidos, hoje o país que mais atiça as chamas e, por extensão, o que mais estimula Maduro a reagir com fogo. Talvez a liderança de países e/ou instituições menos hidrófobas (Canadá, União Europeia, por exemplo) crie melhores condições para criar o percurso (correto) do general Mourão.
Intervenções americanas anteriores criaram, no mais das vezes, ditaduras cruéis —e ditaduras é tudo o que Venezuela dispensa depois da tragédia a que foi conduzida.
Ricardo Noblat: Ajuda de mentirinha à Venezuela
Ameaçada a entrega de alimentos
A não ser que mude o que estava planejado até ontem, não passará de mentirinha a ajuda do governo brasileiro aos venezuelanos famintos e vítimas da ditadura instalada naquele país.
Havia 200 toneladas de alimentos a serem despachadas para um lugar na fronteira entre os dois países. E lá, apenas um caminhão para transportá-la.
A decisão do governo brasileiro era de esperar que venezuelanos fossem buscá-la. Se não forem ficará por isso mesmo. O governo de Nicolás Maduro fechou a fronteira do país com o Brasil.
Será difícil que algum caminhão consiga passar de um lado para o outro. De resto, o governo brasileiro não quer se meter numa encrenca que só renderia dividendos políticos ao governo de Donald Trump.
PT de ouvidos moucos
Algemado a Lula em Curitiba
Vez por outra, algum petista de alto coturno cobra do partido que admita os erros que cometeu, liberte-se de sua dependência doentia e infantil de Lula, e que se reinvente.
Foi o que fez ontem, por exemplo, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), reeleito no ano passado com quase 80% dos votos.
“Lula sofre uma grande injustiça, deu uma grande contribuição ao país, mas precisam vir novas pessoas, novos quadros”, defendeu Santana, aliado também de Ciro Gomes (PDT-CE).
A corrente majoritária dentro do PT não quer mudanças, a não ser cosméticas. Lula já indicou que se depender dele, a deputada Gleisy Hoffman continuará no comando do partido. É de sua confiança.
Mesmo líderes do PT favoráveis a um passo à frente do partido temem que ele se fragmente durante esse processo. A aparente unidade só se mantém por causa da força de Lula.
Dará em nada a sugestão de Santana. O PT jaz algemado ao seu mentor em um cárcere de Curitiba. Faz o papel de uma pálida e triste figura. Apostará no fracasso do governo Bolsonaro. E é só.
Demétrio Magnoli: Círculo militar
O governo afunda sozinho na areia movediça sobre a qual apoiou seu edifício
O Floriano Peixoto de ontem, marechal de ferro, armas na mão, salvou a República da reação oligárquica. O de hoje, um comandante testado no terremoto do Haiti, integra-se ao círculo de aço de militares encarregados de salvar o governo do caos engendrado pelo próprio presidente. A substituição de Bebianno converte Onyx Lorenzoni no único civil remanescente no núcleo de ministros que despacham do Planalto. Junto dele, figuram três generais: Augusto Heleno, chefe do GSI, Santos Cruz, na Secretaria de Governo, e Floriano, na Secretaria-Geral. De fato, um mês e meio após a posse, assistimos ao ensaio da inauguração de um segundo governo Bolsonaro.
A demissão de Bebianno pode ser narrada em dois registros alternativos. Na linguagem do recreio do pré-primário: um chamou o outro de mentiroso, feio e bobo. No idioma compartilhado entre milicianos e facções do crime: um qualificou o outro como traíra, X-9. De um modo ou de outro, o evento veicula uma lição de ciência política: o governo Bolsonaro, na sua versão original, é um experimento patológico destinado a perecer sob o efeito das toxinas empregadas na sua concepção. Os militares finalmente entenderam isso.
Nos idos de 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, a cúpula militar encarava Bolsonaro com indisfarçável desprezo. O ex-capitão baderneiro cercava-se por constelações de extremistas de redes sociais que gritavam pela "intervenção militar", ameaçando poluir os quartéis com os gases da política golpista.
Dali, numa brusca oscilação, os chefes fardados entusiasmaram-se com uma candidatura que prometia recuperar a estabilidade econômica, exterminar a corrupção e destruir as cidadelas do crime organizado. A velha desconfiança dos políticos profissionais, os ressentimentos nutridos pelas comendas oficiais concedidas a Marighella e Lamarca, o sonho desvairado de restauração da imagem da ditadura militar contribuíram para o imprudente abraço dos militares ao candidato da direita populista.
Do desprezo ao entusiasmo —e deste ao pânico. O clã familiar dos Bolsonaro, permeado por loucas ambições, inclina-se à guerra palaciana permanente. As cliques do baixo clero parlamentar que rodeiam Lorenzoni e Bebianno prometem engolfar o governo em perenes disputas mesquinhas. Os dois ministros nomeados por Olavo de Carvalho, o Bruxo da Virginia, personagens atormentados por moinhos de vento puramente imaginários, fabricam crises fúteis em série. Segundo o diagnóstico dos chefes militares, o governo afunda sozinho na areia movediça sobre a qual apoiou seu edifício improvisado.
Você disse "fascismo"? Sentenças odientas pontilham discursos das autoridades. Um projeto de lei assinado por Moro concede às polícias uma licença irrestrita para matar. No Rio de Janeiro, sob o influxo do "espírito do tempo", noticia-se uma chacina policial no Morro do Fallet e tiros fatais de snipers na favela de Manguinhos. Mas só há "fascismo" na literatura vulgar de uma esquerda que tudo esqueceu ou nada leu. O governo Bolsonaro, tal como exposto pelo episódio constrangedor da demissão de Bebianno, carece de coesão organizativa, estrutura político-partidária e coerência ideológica mínima.
"Fascismo"? Bolsonaro não mobiliza camisas-negras ou falanges, exceto a militância virtual comandada pelo filho Carluxo que vitupera nos subterrâneos da internet. Um paralelo viável não é com Mussolini, mas com Rodrigo Duterte, o populista primitivo das Filipinas que contaminou suas forças policiais com as práticas do vigilantismo. No Brasil, um governo desse tipo está condenado à implosão. Daí, o alerta de pânico ativado pelos generais do Planalto.
A defenestração de Bebianno assinala uma transição silenciosa. Que ninguém se iluda: está em curso a "intervenção militar" pela qual clamavam os patetas civis extremistas na hora do impeachment.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
El País: Com Mourão à frente, Governo Bolsonaro é cada vez mais tutelado por militares
Vice-presidente vai à Colômbia tratar de Venezuela, e faz contraponto a Ernesto Araújo. Para historiador, maior presença de oficiais deixa limite entre Governo e Forças Armadas difuso aos olhos da sociedade
Por Felipe Betim, do El País
Os militares definitivamente voltaram para as principais manchetes dos jornais, que não raro informam sobre como os oficiais que compõem o Governo Jair Bolsonaro se articulam nos bastidores para mediar conflitos, apagar incêndios, aconselhar o presidente e expressar discordância com a postura beligerante de seus filhos. Eles vêm ocupando cada vez mais espaço no Executivo Federal, influenciando e até tutelando o governo em áreas como a de política externa, conforme evidenciou a ida do vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, para a reunião do Grupo de Lima em Bogotá para discutir a crise na Venezuela. Além de Mourão, se destaca como homem forte do Governo o general da reserva Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e uma espécie de conselheiro e guru de Bolsonaro.“O Brasil não fará nenhuma ação agressiva contra a Venezuela”, garantiu Heleno nesta manhã, contando que o Governo Bolsonaro criou um gabinete de crise para lidar com a ajuda humanitária que está chegando à fronteira.
Heleno seguiu a mesma linha das colocações de Mourão, mostrando o protagonismo de ambos para falar do conflito que alarma os brasileiros desde o fechamento da fronteira, determinada por Nicolás Maduro, nesta sexta. A ida do vice-presidente a Bogotá vem sendo interpretada como mais um sinal de que os militares estão cautelosos com relação ao ministro Ernesto Araújo. O chanceler assinou um documento do Grupo de Lima que prevê a suspensão da cooperação militar com o regime de Nicolás Maduro, mas não teria consultado os militares, segundo informou a Folha de S. Paulo. Isso teria desagradado o setor de inteligência do Exército, que se mantém informado sobre o Governo chavista a partir de seus contatos com os militares venezuelanos. Coube a Augusto Heleno e outros militares do Governo mediar o conflito com a corporação.
Os militares, com Mourão à frente, vêm tentando fazer um contraponto ao antiglobalismo de Araújo, ligado ao guru da extrema direita Olavo de Carvalho, com quem o vice-presidente já teve desavenças públicas. Apesar de ser o principal investidor externo e parceiro comercial do Brasil, a China já foi alvo de fortes críticas tanto de Bolsonaro quanto de Araújo, que já indicou querer se aproximar incondicionalmente dos Estados Unidos e isolar o país asiático, inclusive dos BRICS. Mais pragmático, o vice-presidente vem apaziguando as declarações e, nesta semana, anunciou em seu perfil do Twitter ter ficado responsável pela coordenação das comissões bilaterais com China, Rússia e Nigéria. Outra promessa de campanha que os militares vem agindo para postergar é uma possível mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Mourão chegou a receber representantes da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e o embaixador palestino para, mais uma vez, apaziguar os temores. A mudança poderia gerar retaliação dos países árabes que importam produtos brasileiros, principalmente o frango Halal, além de colocar o Brasil na rota do terrorismo internacional.
Além de Mourão, que busca ter uma voz própria na vice-presidência, já são cerca de 50 militares ocupando o primeiro e segundo escalão. O último a integrar o time do Governo foi o general da reserva Floriano Peixoto Neto, que substituiu Gustavo Bebianno na Secretaria-Geral da Presidência da República nesta semana. A crise envolvendo Carlos e Jair Bolsonaro, que chamaram Bebianno de mentiroso nas redes sociais, também acabou envolvendo os militares, que tentarem interceder a favor do ex-ministro. Ao ficar claro que não havia maneira de retomar a normalidade, conseguiram emplacar o Peixoto Neto no posto. Ele foi chefe de operações das Forças de Paz da ONU no Haiti, na época comandada por Heleno, o principal patrocinador de sua recém nomeação.
Além de Heleno e Peixoto Neto, também fazem parte da equipe ministerial o outros seis militares: o general Fernando Azevedo e Silva (Defesa), o general Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), o tenente-coronel Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), o almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), o capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e o capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Com a saída de Bebianno, o único civil que despacha do palácio do Planalto é Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil.
"Existe uma diferença entre militares que participam do governo e governo dos militares. Um governo dos militares significaria que a instituição militar estaria governando. Não é esse o caso, são militares convidados como indivíduos", alerta o cientista político Eurico de Lima Figueiredo, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF). O historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda que não se trata de uma "militarização do Governo". Contudo, a relevância que os militares vêm ganhando reflete "a falta de quadros no entorno de Bolsonaro", uma vez que o presidente chegou ao poder sem "projeto ou plano" e não conta com "um partido que tenha um instituto de reflexão sobre os problemas do país". Essa direita "xucra e despreparada", explica o historiador, "depende dos militares porque são o grupo conservador mais bem preparado, apesar de possuir uma visão muito limitada da realidade pela perspectiva militar".
Por orientação do presidente @jairbolsonaro estou responsável pela coordenação de 3 comissões bilaterais: China , Rússia e Nigéria - paradas desde 2015. Vamos focar nos temas que mais possam contribuir para os interesses do Brasil. @EmbaixadaChina @EmbaixadaRusPT @NGRPresident
Para ambos os especialistas, o risco é que Bolsonaro acabe sendo cada vez mais tutelado por esses membros oriundos do meio militar. E que a fronteira entre Governo e as Forças Armadas seja cada vez mais difusa aos olhos da sociedade. "O senso comum não faz essa distinção entre Forças Armadas e membros militares no Governo. E muitos eleitores do Bolsonaro acham que esses personagens vão resolver todos os problemas, o que é uma perspectiva muito preocupante", opina Fico. O resultado, acrescenta, é uma mistura de "inexperiência e autoritarismo".
O cientista político Figueiredo enxerga Mourão e Heleno como as duas figuras mais fortes do Governo, responsáveis pela nomeação dos demais militares. "Essa presença faz com que a forma de mundo dos militares esteja no governo. E isso é ruim para a instituição militar, porque liga o destino do governo ao destino da própria corporação. Se der certo, há uma legitimação. E se não ocorrer? Como é que fica?", questiona.
Ele também opina que a fronteira entre a corporação e o Governo vai ficando "perigosamente fluida", algo que, ele insiste, é ruim para as próprias Forças Armadas. "Vejo a possibilidade de uma osmose perigosa, de uma absorção dos militares pelo governo. (...) Quando temos generais fazendo parte da conversa dos cidadãos, algo não está certo", acrescenta. O especialista acredita, contudo, esse cenário não represente o interesse das próprias corporações militares, uma vez que isso cria "o perigo da partidarização e da luta interna" dentro das Forças Armadas. "E os militares querem principalmente o fundamental, que é a manutenção da hierarquia, sem o que eles deixam de existir como instituição", explica Figueiredo.
Que militares ocupem essas áreas significa levar todo um know-how técnico adquirido em academias e instituições militares, algumas delas conhecidas pela opinião pública por sua excelência, como o Instituto Militar de Engenharia (IME) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). "Possuem personalidades muito marcadas pelo ethos militar, e é impossível que abandonem essa perspectiva. O que se coloca é uma série de propostas de viés muito autoritário. Inclusive em campos que não são próprios das carreiras militares", argumenta o historiador Fico.
Mas a influência deles não se limita a esse círculo de ministros próximos a Bolsonaro e se estende a diversas áreas que não necessariamente são comandadas por eles diretamente. No ministério da Justiça de Sergio Moro, por exemplo, o general Guilherme Teophilo é o responsável pela área de segurança pública. Na área do Meio Ambiente do ministro Ricardo Salles (NOVO), ao menos 20 superintendentes estaduais do Ibama serão substituídos por militares, segundo informou a coluna de Eliane Cantanhêde no Estado de S. Paulo. “Não se pode brincar com isso, os superintendentes é que concedem licenças e alvarás e eu não sou obrigado a conhecer gente confiável em todos os Estados, no Amapá, no Acre, em tantos lugares em que nunca fui”, disse Salles. A própria escolha do ministro teve de passar pelo crivo dos militares ligados a Bolsonaro.
Com a falta mão de obra no serviço público, mas também dinheiro para abrir novos concursos e remunerar novos servidores, o Governo também prepara uma mudança legislativa para que militares da reserva possam ser aproveitados em atividades civis de órgãos públicos. Assim, além de uma pensão de reservista, receberiam uma gratificação ou abono, segundo noticiou o Estado de S. Paulo. A medida, presente em uma minuta da Reforma da Previdência à qual o jornal teve acesso, inundaria o serviço público de militares reservistas, que hoje só podem exercer funções militares ou cargos de confiança. O Governo Bolsonaro ainda não apresentou um projeto de reforma da previdência dos militares, que representam uma importante fatia das despesas do país. A promessa é que um plano será enviado ao Congresso em um mês, durante as discussões das mudanças na aposentadoria dos civis.
Os tentáculos se estendem também à área de Educação. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto foi um dos responsáveis pelas diretrizes para as políticas do setor e chegou a dizer em uma entrevista que "os livros de história que não dizem a verdade [sobre o golpe militar] devem ser eliminados". Os militares não conseguiram emplacar um ministro militar para a pasta de Educação, mas o ministro Ricardo Vélez, ligado a Olavo de Carvalho, já prometeu a volta da disciplina de moral e cívica, predominante na época da ditadura militar. "No dia 31 de março haverá divulgação de filme defendendo o golpe. E o ministro vai fazer propostas nesse sentido com material didático", aposta Fico.
Além disso, Bolsonaro sempre explicitou que sua referência na área eram as escolas militares, tanto por sua reconhecida excelência como pela disciplina. "É uma perspectiva ingênua e equivocada achar que as escolas militares têm melhor desempenho por causa da presença de militares ou aquelas bobagens cívicas de ordem, cantar hino e hastear bandeira", explica Fico. "Esquecem de verificar que gastam muito mais, têm recursos, instalações, equipamento, material didático, professor com dedicação exclusiva, bons salário, diretores que não são indicação política.... E o Brasil obviamente não tem condições de financiar uma estrutura dessa em escala nacional".
Seja como for, o novo paradigma já começa a se disseminar. No Distrito Federal, o governador Ibaneis Rocha anunciou no mês passado um convênio entre as pastas de Educação e Segurança para transformar quatro escolas estaduais em militares. A ideia é expandir o modelo para outros 36 centros de ensino até o fim do ano e criar uma espécie de gestão de compartilhada, em que policiais militares e bombeiros da reserva ficariam responsáveis por levar mais disciplina e valores morais. "Precisamos levar disciplina para dentro da educação. Temos de retornar os valores cívicos para as nossas crianças", disse. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel anunciou duas novas escolas militares em equipamentos públicos hoje desocupados.
Turma do Haiti e segurança pública
O setor militar mais próximo de Bolsonaro é composto principalmente por militares que lideraram as tropas da ONU no Haiti. O principal deles é, uma vez mais, o general Heleno. Sob sua influência foi nomeado recentemente o general Floriano Peixoto Neto, que participou da missão de paz no país como oficial de operações e depois como comandante das forças militares. Também esteve no Haiti o general e ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que serviu como chefe de operações subordinado a Heleno. Já o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, foi engenheiro militar sênior da ONU no Haiti. E o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, liderou as tropas em 2007. Por fim, o atual comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, também foi comandante das Forças de Paz no país.
O historiador Fico destaca a experiência desses oficiais no Haiti como fonte de inspiração para lidar com o problema da segurança pública no Brasil. "Esses generais tiveram experiências que são muito caras ao presidente Bolsonaro. Representam essa visão de que os problemas da seguranca pública podem ser resolvidos por meio de ocupação de favelas e coisas assim", explica.
Pedro Doria: O fascismo e o digital
Grandes transições econômicas deixam todos numa grande insegurança
Deixe que uma discussão transcorra por tempo o bastante na internet, diz a Lei de Godwin, e alguém por certo será comparado a um nazista. Mais recentemente, a política do mundo parece ter embarcado nesta – tem muita gente vendo fascistas por todo lado. Há muito de paranoia, nisto. Há também uma intolerância da esquerda com a direita. Por tanto tempo se chamou o centro de direita que quando aquela, a verdadeira, dá suas caras muita gente a recebe com espanto. Mas há também, entre os que veem um mundo assombrado por fascistas, alguma razão.
Esta discussão tem tudo a ver com o ódio nas redes, assim como tem com a reforma da Previdência.
O fascista original é Benito Mussolini, convidado pelo rei italiano a formar gabinete como primeiro-ministro em 1922, e morto pela ira do povo em 45. História é pop e, em geral, o conhecimento que temos de história é aquele dos clipes curtos e uns marcos fundamentais. Fascismo, portanto, é aquele governo totalitário da direita de durante a Segunda Guerra, aquela mesma que fez o Holocausto.
Mas o fascismo original não nasceu totalitário, tampouco surgiu do nada. E, se a afirmação parece polêmica, ela é de Palmiro Togliatti, sucessor de Antonio Gramsci como secretário-geral do Partido Comunista Italiano, que comandou entre 1926 e 1964. O fascismo nasceu como improviso em cima de uma situação atípica.
A Itália imediatamente após a Primeira Guerra vivia uma situação econômica muito complexa. O conflito empobreceu a todos, custou a vida de 7% da população masculina e, não bastasse, a transição de uma economia agrícola para industrial estava a pleno vapor.
Estas grandes transições econômicas deixam a todo mundo numa grande insegurança. Profissões estão desaparecendo. Gente que achou que trabalharia no mesmo ramo de pais e avós, de repente, vê aquela garantia desaparecer. Não há ideia do que será o futuro, sobram insegurança e incerteza. É um cenário tão difícil que o liberalismo não tem respostas imediatas para dar. A democracia liberal é mais frágil quando o mundo está em mudança rápida. Só os radicais têm respostas claras. No biênio imediatamente anterior à repentina ascensão de Mussolini, parecia que os comunistas fariam na Itália sua segunda revolução. Era uma greve após a outra, quase deu. Naquele cenário pós-guerra, com inúmeros veteranos desempregados na rua, Mussolini os reuniu, vestiu-os com camisas pretas, e saiu por ali impondo ordem na base do murro. Morreu muita gente nos embates entre fascistas e sindicalistas.
E é isto que temos em comum com aquele tempo. Cá estamos na transição da economia industrial para a digital. Há muita gente que planejou um futuro e viu sua indústria desmoronar. Vai acontecer com mais pessoas – os sociólogos os vêm chamando de precariado. Como nos anos 1920, a democracia liberal não tem remédios rápidos ou mesmo claros. Não bastasse, mudanças demográficas e indústrias várias em crise fazem com que a previdência em todo o mundo tenha de ser reinventada.
Mas não temos um bando de veteranos de guerra desempregados e treinados para a batalha nas ruas. Tampouco temos sindicalistas que forçam greves para agravar a crise e forçar uma revolução. O fascismo não veio sozinho – com ele veio, também, o comunismo. Radicais e totalitários, ambos. Soluções demagógicas, com promessas fartas de utopias inalcançáveis. Desta feita, não parece que teremos nem um, nem outro. Talvez outras coisas.
Mas isto não muda um fato: nas mudanças econômicas profundas, a democracia liberal entra em crise e demagogos e radicais fazem a festa. O digital virou política, é causa e meio, e com ele não será diferente.