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Eliane Brum: Bolsonaro (des)governa o Brasil pelo Twitter

Ao tomar decisões pelo volume dos gritos nas redes sociais, o presidente corrompe a democracia

Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além. Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para todos, mas apenas para a sua turma.

A bolsomonarquia com frequência é mais real – e efetiva – que o governo oficial

Os três filhos, também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.

O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.

Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao jornal O Globo afirmando que não havia “crise nenhuma” no Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.

O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta” do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas, desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a administração pública.

Moro descobriu-se menos super: não tem minipoder nem para nomear uma suplente

O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato, Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.

A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”. Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.

É a estética da bolsomonarquia – e não a ética – que começa a horrorizar os apoiadores e parte do ministério

Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências. É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.

Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”. O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de O Globo.

Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso da transferência da capital de Israel para Jerusalém, que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os negócios.

Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão. Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo —o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.

As escolhas desta época são determinadas pela fé, não pela razão: mesmo ateus se comportam como crentes

Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber, porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir que o aquecimento global é um complô de esquerda.

As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.

É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01 com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.

Quando a verdade se torna uma escolha pessoal, como fazer a democracia valer?

Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?

Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses, a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de Sergio Moro.

Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar, sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí". É desconcertante quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a possibilidade de “autogolpe”.

Ao atacar o Carnaval, Bolsonaro tentou deletar do país partido o que ainda resta de uma identidade comum

Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o suficiente para abrir fogo no Twitter contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio às ruínas de um país.

O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual, Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.

Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é. Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.

O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para encobrir a sua.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Bruno Boghossian: Bolsonaro tocou a corneta

Presidente quis beber na fonte de poder dos militares, mas se afoga ao rebaixar democracia

Jair Bolsonaro enfileirou fuzileiros navais no centro do Rio, agradeceu a Deus por estar vivo e disse que assumiu a Presidência para cumprir uma missão. Apelou ao patriotismo e à ideologia conservadora, e terminou o discurso afirmando que “democracia e liberdade só existem quando as suas respectivas Forças Armadas assim o querem”.

O presidente quis beber na fonte de poder representada por seus laços com os militares, mas se afogou. A deferência exagerada aos homens de farda indicou uma submissão da democracia aos desejos da instituição.

Os generais do governo foram obrigados a sair a público para tentar amenizar o absurdo.

Bolsonaro tocou uma corneta para reorganizar sua tropa. O presidente fez um esforço para convencer as Forças Armadas de que —apesar dos tropeços políticos, laranjas e escatologias sem sentido— seus propósitos ainda são parecidos.

No evento desta quinta (7), Bolsonaro disse que a tal missão imposta a ele seria cumprida com aqueles que amam a pátria e respeitam a família, e alinhou os militares à tarefa.

A batalha de costumes contra a esquerda foi um fator de aglutinação entre Bolsonaro e as Forças Armadas em determinado momento da campanha eleitoral. Alguns generais que torciam o nariz para o então candidato enxergaram nele a única alternativa para derrotar o PT e defender valores conservadores.

As ressalvas em relação ao presidente ressurgem quando ele dá caneladas na política externa, demite um ministro a mando do filho e entra em polêmicas sobre golden shower. Ao rebaixar a democracia para elevar os militares, ele tenta recuperar apoio nos quartéis, mas a frase também não caiu bem por lá.

No início do governo, Bolsonaro fez um discurso exótico na posse do ministro da Defesa. O presidente disse ao então comandante do Exército que ele era “um dos responsáveis” por sua vitória eleitoral. “General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós”, afirmou. Era difícil saber quem era o chefe de quem.


Hélio Schwartsman: A escatologia da moral

Várias zaragatas serviriam para basear o impeachment, mas, se entregar crescimento, Bolsonaro provavelmente concluirá o mandato

A cada dia que passa, Jair Bolsonaro vai mostrando mais despudoradamente que não foi forjado para o cargo. Ele não tem noção de institucionalidade, de prioridades e falta-lhe até a inteligência necessária para exercer a Presidência da República sem sobressaltos desnecessários. Parecem-me precipitados, porém, os apelos por seu impeachment.

Nas últimas duas semanas, Bolsonaro criou, “ex nihilo”, duas situações em que não tinha absolutamente nada a ganhar e muito a perder. Falo da ideia, lançada gratuitamente pelo próprio presidente, de reduzir de 62 anos para 60 a idade mínima das mulheres na reforma da Previdência e do episódio envolvendo o já mundialmente famoso vídeo escatológico.

Este último exemplo é particularmente interessante porque viola a própria lógica conservadora que Bolsonaro diz defender. Se a turma da moral e dos bons costumes crê que o fato de um sujeito urinar sobre o outro ameaça a família brasileira porque dá ideias erradas a jovens inocentes, então a última coisa que um conservador deseja é divulgar de forma ampla esse tipo de interação. Mas foi exatamente isso que Bolsonaro fez ao pôr o vídeo em seu twitter.

Seja como for, os que já se puseram a citar os dispositivos da lei nº 1.079 que Bolsonaro pode ter violado não entenderam bem a natureza híbrida do impeachment, que requer pretextos jurídicos, mas só ocorre em contextos de grave deterioração político-econômica. E ainda não chegamos lá, embora o presidente às vezes dê a impressão de que trabalha para isso.

Como já disse aqui, o futuro do governo Bolsonaro depende da economia. Se ela afundar, várias das zaragatas acumuladas em pouco mais de dois meses de administração serviriam para basear o impeachment. É só escolher. Minha favorita é o cheque de Queiroz para a primeira-dama. Mas, se o presidente entregar um crescimento médio da ordem de 2%, ele provavelmente conclui o mandato.
Postado por Gilvan Cavalcanti de


José Antonio Segatto: Incivilidade política

Podemos ter de viver tempos infaustos para os valores democráticos e o exercício da cidadania

Um importante intelectual alemão, Karl Marx, em 1852, no livro O 18 de Brumário, em perspicaz análise do processo político francês dos anos 1848-51, revela como foram criadas as “circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco (Luís Bonaparte) desempenhar um papel de herói”.

Guardadas as singularidades dos acontecimentos na França da época, posteriormente, nos séculos 20/21, fenômenos com alguma similitude com aqueles se sucederam em outros lugares e situações particulares, até mesmo em tempos recentes. Podemos citar como exemplos, circunscrevendo-nos apenas ao continente americano e à contemporaneidade, as eleições presidenciais que elegeram o agrônomo Alberto Fujimori (Peru, 1990), o coronel Hugo Chávez (Venezuela, 1998), o empresário Donald Trump (Estados Unidos, 2016) e o capitão Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).

O caso do Brasil, o mais recente, é deveras ilustrativo desses fatos. Político obscuro e sem qualidades, que durante quase três décadas engrossou as fileiras do baixo clero no Congresso Nacional, Bolsonaro fez carreira de deputado federal por partidos fisiológicos e clientelistas ou de aluguel. Representante do corporativismo militar e do nacional-estatismo, arauto do regime ditatorial e apologeta de seus métodos despóticos e cruéis, manteve sempre a coerência de concepções e a constância de práticas em sua trajetória parlamentar: a demonização da política e o ultraje da democracia, a glosa dos direitos de cidadania e a hostilidade aos valores humanistas, o combate às manifestações identitárias e multiculturais.

O desafio, todavia, é explicitar como um sujeito incivil e rústico, sem projeto, sem estrutura partidária e com recursos limitados, pôde angariar tantos adeptos e obter tamanha votação, que permitiu sua eleição para a Presidência da República de um país deveras complexo.

Inúmeras têm sido as respostas dadas por jornalistas e cientistas políticos, por especialistas e leigos, para compreender o sucedido. Dentre elas, algumas podem ser destacadas:

1) A severa crise econômica e suas sequelas teriam criado insatisfação generalizada.

2) A revelação dos muitos e graves escândalos de corrupção nos diversos níveis do aparato estatal, envolvendo partidos governistas – sobretudo o consórcio PT-PMDB –, associados a práticas fisiológicas, clientelistas e patrimonialistas, teria produzido reprovação indignada do establishment político pela opinião pública. Ademais, seria responsável pelo depauperamento do centro político e pela perda de credibilidade do sistema partidário, permitindo a emergência no cenário político de novos atores.

3) A incapacidade de governos na segurança pública teria propiciado as condições para o aumento exponencial da criminalidade, da violência e da disseminação do medo e da apreensão social.

4) A ineficácia da gestão do Estado e da condução das políticas públicas, concatenada aos malfeitos dos donos do poder, teria criado clima de insatisfação e descrédito sem precedentes da política e dos políticos, dos partidos e das instituições.

5) O ativismo de entidades e movimentos identitários, na busca de reconhecimento, teria desencadeado uma reação conservadora afrontosa, em especial de igrejas evangélicas, em defesa de valores tradicionalistas.

6) Os influxos da onda conservadora e/ou de direita em ascensão na Europa e nos Estados Unidos teriam fomentado a disseminação de concepções extemporâneas e reacionárias: xenófobas, racistas, populistas, nacionalistas e antiglobalistas – em consonância, propalou-se uma atroz persecução a socialistas e partidos de esquerda em geral, além de movimentos identitários, de defesa de direitos civis e/ou humanos. A ira antipetista propagou-se como uma centelha e atingiu a esquerda indistintamente.

Esse conjunto de fatos e fatores teria produzido uma situação de mal-estar sociopolítico de vulto, um verdadeiro estado de anomia e seria mesmo responsável pelo desencadeamento, em 2013-15, de um agressivo e inusitado movimento antissistema, que conseguiu mobilizar grandes contingentes de manifestantes nas ruas e nas redes sociais. Com palavras de ordem “contra tudo o que está aí” e profissões de fé cruzadistas – em resguardo da pátria e da ordem, da família e dos “bons costumes”, de Deus e da civilização cristã – foram aguçados sentimentos elementares e ordinários que estariam latentes e afloraram de maneira impetuosa.

Nesse clima e/ou conjuntura é que teriam sido criadas as condições para a emergência da candidatura Bolsonaro. Apresentado como outsider, antipolítico, salvador da pátria, com uma retórica insolente e beligerante, preconceituosa e regressista, anti-secularista e anticosmopolita, conquistou ampla massa de adeptos dos mais variados estratos sociais. Explorando ardilosamente a mídia eletrônica, reuniu uma legião de tuiteiros, youtubers, blogueiros, etc. – orientados por ideólogos do submundo da internet – numa incomensurável operação de propaganda e proselitismo político-ideológico.

Se as interpretações ou constatações acima expostas forem verossímeis, elas sinalizam que podemos ter de vivenciar, nos próximos anos ao menos, tempos infaustos para os valores e procedimentos democráticos e para o exercício da cidadania. O cargo de presidente da República não enseja, entretanto, per se, prerrogativas de domínio desmesurável e arbitrário – os mecanismos de poder e os meios de exercê-lo tendem a restringir possíveis investidas antirrepublicanas, de insolência política, de ultraje da democracia e de constrangimento de direitos. As garantias institucionais e constitucionais vão depender, contudo, do ativo e engenhoso protagonismo dos agentes da sociedade civil e política, comprometidos com a manutenção do Estado de Direito Democrático, com a publicização do Estado e com as liberdades em sentido lato.

* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp


José Eduardo Faria: Democracia e resiliência constitucional

Está a nossa democracia consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas?

Acusada desde sua promulgação de conter altíssimo número de artigos, a Constituição brasileira não é extensa por incúria de seus autores. Escrita depois de 20 anos de uma ditadura militar, é compreensível que ela fosse bastante generosa em matéria de direitos individuais e sociais, a ponto de um ministro do STF ter afirmado que a Carta “só não traz a pessoa amada em três dias; fora isso, quase tudo está lá”.

A repulsa à ditadura também explica por que os constituintes recorreram à figura jurídica das cláusulas pétreas, para preservar liberdades públicas contra a aprovação de emendas constitucionais que tentassem limitá-las. Mas com isso impuseram suas concepções de poder às gerações futuras, suprimindo-lhes a prerrogativa de definir os direitos e o regime político que poderiam considerar adequados. Pelo mesmo motivo, os constituintes consagraram, ainda, um modelo de Estado e um padrão de regulação econômica que havia sido adotado em larga escala nas décadas seguintes ao pós-guerra.

Na época da Constituinte, porém, esse modelo e esse padrão já estavam em declínio, por causa da transterritorialização dos mercados, que privou os Estados de parte de suas funções legislativas e levou a um crescente policentrismo decisório no plano mundial. Para se adaptarem a essas mudanças, entre 1989 e 1999 dois terços dos países vinculados à ONU reformaram suas Constituições.

Com isso, o Brasil acabou ficando com um padrão de governabilidade travado, quando comparado com o padrão de outros países emergentes. Quanto mais extensa é uma Constituição, mais reduzidas são as esferas de decisão das maiorias parlamentares e da discricionariedade dos dirigentes do Executivo e maior é a tendência de judicialização das políticas públicas.

Sob a justificativa de deter a judicialização e destravar a governabilidade, a Constituição tem sido objeto de várias propostas de enxugamento, mediante a transferência de matérias por ela regulada para a legislação ordinária. Durante a campanha eleitoral, o vice do candidato eleito chegou a propor uma Carta escrita por “notáveis” e submetida a um plebiscito. Tolices à parte, as críticas suscitam questões importantes.

Uma diz respeito ao número de normas constitucionais que vão além da definição das regras do jogo, tratando, por exemplo, de políticas púbicas. Discutida por Cláudio Couto e Rogério Arantes em instigante artigo, a questão merece destaque porque, como uma proposta de emenda constitucional exige duas votações na Câmara e outras duas no Senado, com a aprovação de três quintos dos parlamentares em cada votação, os constituintes acabaram amarrando as gerações futuras a decisões não propriamente constitucionais, mas de interesse de parlamentares e corporações.

No caso específico da implementação e execução de políticas públicas, esse quórum é elevado e o processo de emendamento é lento ante a velocidade em que hoje se se sucedem os acontecimentos econômicos num mundo em que decisões são tomadas em tempo real. Além do mais, esse processo exige do Executivo capacidade de articulação parlamentar e eleva os custos políticos para a construção de coalizões, o que leva a concessões espúrias e irracionais.

Nas contas de Couto e Arantes, o número de artigos da Constituição que tratam de políticas públicas chega a 30,7% do total de dispositivos – é a maior proporção de todas as Constituições brasileiras. Quando uma Constituição contém muitos dispositivos sobre políticas públicas, ela “atrai para si a política governamental e a política cotidiana, já que seus dispositivos terão grande sobreposição com as questões que são objeto da disputa política entre os partidos, entre o governo e a oposição e entre os diversos grupos de interesse presentes na sociedade e no Estado”, afirmam eles.

Outra questão diz respeito aos efeitos de uma reforma constitucional. Evidentemente, toda Constituição tem, em face das transformações econômicas, sociais e culturais, de estar aberta a revisões. A ideia de que seja modificável não colide com sua vocação para a estabilidade – ao contrário, é condição para que o texto constitucional possa durar, sem perder efetividade.

Quando uma Carta não consegue combinar estabilidade e flexibilidade, ela tende a enrijecer, desconectando-se da realidade, ou a ser excessivamente flexível, gerando insegurança jurídica. Em 30 anos a Carta foi emendada 105 vezes. Desse total, 54,5% das emendas incorporaram novas normas à Constituição e só 2,6% revogaram normas originais. Ou seja, quase dois terços das emendas ampliaram um texto que já nasceu extenso.

Mais importante ainda, esse crescimento se deu basicamente nas matérias que envolvem políticas públicas, e não nas matérias relativas às instituições e funções de garantia do Estado. A dúvida levantada por Couto e Arantes em seu artigo, escrito antes das eleições, era saber se o candidato Jair Bolsonaro, com seu discurso flagrantemente antissistema, tinha noção do que falava sobre reforma constitucional.

Ou seja, a dúvida era saber se seu discurso reformista se circunscrevia apenas às políticas públicas constitucionalizadas, propondo sua revogação para assegurar agilidade à gestão governamental, ou se também envolvia alterações nas regras do jogo político e supressão de direitos. A literatura comparada revela que Constituições extensas e bastante modificadas por emendas tendem a durar. Também mostra que sua extensão tem que ver mais com questões institucionais do que de políticas públicas.

Pelo que disse antes das eleições, classificando certos dispositivos constitucionais como “amarras ideológicas”, o novo presidente parece que não se contentará apenas com reformas nos dispositivos relativos a políticas públicas. Por isso o importante não é somente saber se a Constituição continuará mantendo a resiliência demonstrada em 30 anos de vigência, mas, também, se a democracia brasileira está consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas


Candido Mendes: O Brasil viúvo da esquerda

A desaparição das esquerdas no Brasil só ecoa uma perspectiva global dos nossos dias. É só deparar a ruína do socialismo francês, despencado para o quinto lugar nas opções eleitorais do país, ou o esvaziamento espanhol e a agregação à chanceler Merkel dos contingentes restantes do que poderia ser a sua contraposição na Alemanha.

Verificamos, ao contrário, esta cumulação das direitas em superdireitas, e toda a série de novos extremos partidários ao redor do mundo. É o que leva, inclusive, em tal radicalização, a confundir estabilidade com mudança, e à confusão de programas como o do governo Bolsonaro. Só deparamos o entulho do setor público, ao se cogitar, hoje, da sua privatização. Claro, como já viram os especialistas, ela envolve uma primeira desconcentração dessas atividades e, por força, a gradação dos setores a virem ao domínio particular. Não tem o governo ainda a noção da escalada desestatizante, e dos seus círculos viciosos, senão de seus bloqueios. Além disso, o Executivo não se decidiu ainda sobre a entrada, ou não, do capital estrangeiro nessa nova frente, e do volume e impacto de seu aporte.

Ressente-se de qualquer novo protagonismo de esquerda nessa alternativa, tanto se depara a evanescência do PT e de seu corpo político. Só se multiplicam os donatários das antigas siglas, ciosos da sua independência, e hoje prisioneiros de um irredutível divisionismo programático. Fica a interrogação sobre Ciro Gomes, na expectativa de seu retorno, na retirada siberiana a que se voltou. Mas expõe-se a um protagonismo obsoleto, numa torna descompassada.

Nenhuma nova liderança emerge para polarizar o desempenho que Lula encarnou, e agora vemos o abate do personagem, mas a deixar intactos a relevância de seu papel na história brasileira e seu carisma incontornável. O quadro é implacável para que nele se possam arriscar novas ambições políticas. E é sobre esse cenário falseado que Bolsonaro pode —até quando? —desfrutar de uma imunidade histórica.

*Candido Mendes é membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações


Alon Feuerwerker: A lógica da ofensiva contra os sindicatos e por que ela enfrenta pouca resistência

Na entradinha do Carnaval o governo editou medida provisória proibindo na prática descontar em folha qualquer taxa para sindicato. O mecanismo vinha sendo aprovado em assembleias após a reforma trabalhista acabar com o imposto sindical. Era uma forma de contornar a asfixia.

Margareth Thatcher e Ronald Reagan atuaram contra os sindicatos, com sucesso. Fernando Henrique Cardoso abriu seu governo quebrando a espinha dos petroleiros. Faz parte dos ciclos político-econômicos orientados a dar mais oxigênio ao capital, para relançar a economia.

Não é novidade que o atual período político se inspira no de 1964. Mas aquele regime nunca precisou - ou vai saber nem quis - eliminar o sindicalismo. Manteve, buscando extirpar os elementos para ele malignos. A repressão foi brutal. Mas não teve como meta eliminar os sindicatos.

Seria porém errado centrar a análise no desejo do governo. Todo poder faz o possível para enfraquecer e no limite eliminar qualquer resistência. Bolsonaro, como Temer, não ataca a estrutura porque quer, mas porque precisa, pela agenda. E principalmente porque pode.

E resmungar contra a ofensiva antissindical é inócuo. Para o resmungo ter efeito, o bolsonarismo precisaria sofrer algum dano de imagem por tentar liquidar os sindicatos. É o contrário: o eleitorado do presidente quer mesmo que ele quebre a coluna vertebral do trabalhismo.

Pois é uma necessidade objetiva para a estratégia de relançamento econômico. O crescimento brasileiro desde os anos 80 é baixo, e um fator central é o muito lento avanço da produtividade. O Brasil não é competitivo globalmente nesse aspecto, com exceção da agricultura.

A recuperação das margens pós-crise continua dependendo da contração dos custos. Especialmente do trabalho. Se não dá para produzir muito mais por hora, que ela custe menos. Nisso ajuda a alta taxa de desemprego. Por isso ela é em boa medida estrutural.

Onde está o problema? Na baixa participação das exportações na economia. O Brasil não é a China, aqui as coisas dependem mais do mercado interno (lá também isso está aumentando). Uma hipótese para nem a economia nem o emprego terem mudado de dinâmica após a reforma trabalhista.

Mas a persistência da estagnação não vem tendo maior efeito político, ainda que seja provável uma reação político-sindical futura. E o retardo na reação explica-se também pela fraqueza orgânica dos movimentos trabalhistas. Ela tem três razões, e a mais importante fica algo escondida.

Há a mudança organizacional do mundo do trabalho, aspecto muito na moda nos debates. E há o relativo desenraizamento das cúpulas sindicais, após trinta anos em que ir aos gabinetes do poder e ao Ministério Público trazia mais resultado que ir aos locais de trabalho.

O aspecto menos debatido: a pulverização da organização sindical, nascida da reação ao avanço do sindicalismo petista-cutista a partir dos anos 80, finalmente cobra o custo. As razões históricas da “indústria de sindicatos” são conhecidas. E num governo firmemente disposto a matar o sindicalismo, a dispersão pinta ser fatal.

O “fatal” não deve ser lido como “definitiva”, pois as ondas sempre provocam contraondas. Mas que o sindicalismo está numa sinuca, isso está.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Denis Lerrer Rosenfield: À beira do abismo

Otimismo com o novo governo é grande, mas a economia marcha muito lentamente

Todos aparentemente estão de acordo. Na verdade, ninguém se entende! A reforma da Previdência é um desses temas em que todos fingem estar afinados, quando a desafinação é a regra. A orquestra não sabe tocar. Acontece com ela o mesmo que a noção de ser em Aristóteles: ela se diz em múltiplas acepções.

E essas múltiplas acepções são disputadas por diferentes grupos sociais, corporativos e políticos, cada um defendendo suas próprias posições, se não privilégios. Nos discursos, todos proclamam que defendem o bem do Brasil, quando, de fato, defendem o seu bem particular, frequentemente em dissintonia com o bem público.

Logo, no momento de verificarmos com mais atenção a suposta aceitação geral da reforma da Previdência, constatamos que os diferentes agentes e atores estão falando de coisas diferentes, embora utilizem as mesmas palavras. Assim, haveria um aparente consenso quanto à necessidade dessa reforma, vital para salvar o País da insolvência fiscal e do baixo crescimento econômico daí decorrente. Contudo, quando descemos aos detalhes sobre o que cada um entende por reforma da Previdência, profundas divergências irrompem.

O aparente consenso reinante é, portanto, ilusório. Ninguém pôs ainda os seus respectivos exércitos em campo. A guerra, na verdade, nem começou. Os setores mais privilegiados do funcionalismo público, do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público continuam aferrados a seus privilégios e não mostram a menor disposição de renunciar a eles. E são setores que sabem lutar por seus privilégios como se defendessem os interesses dos mais desfavorecidos.

O projeto do governo cometeu, entre outros erros relativos aos mais desfavorecidos, o de mexer no valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que passaria de um salário mínimo para R$ 400. Deveria ter evitado esse erro, que bastante custou ao projeto do governo Temer.

Assim fazendo, abriu uma brecha para que os que usufruem privilégios possam dizer que estão defendendo os menos privilegiados. A mensagem da reforma de que combateria os mais privilegiados, embora o faça também, sai, de pronto, enfraquecida. O governo perde em narrativa, enquanto os seus opositores elaboram um discurso que possa beneficiá-los diretamente.

O presidente Bolsonaro, em café da manhã na quinta-feira passada, foi particularmente sensível e atento a esse ponto, sinalizando imediatamente, em resposta a uma pergunta, que estaria disposto a revisar esse ponto. Em linguagem popular, estaria disposto a tirar logo o bode da sala.

Acontece que esse não é um bode qualquer! Ele diz respeito a idosos e aos mais desfavorecidos, que não deveriam entrar num cálculo apenas matemático, pois se trata de algo que para muitos é uma questão de vida ou morte. Uma maior tributação dos mais privilegiados mais do que compensaria essa subtração! Os mais favorecidos pagariam pelos mais desfavorecidos.

Acontece que ninguém quer abrir mão de seus privilégios, apresentados como se fossem direitos inalienáveis. Todos estão de acordo, mas para tirar recursos dos outros, e não de si mesmos. A melhor reforma seria a que valeria para os outros!

Reflexo desse desacordo de fundo se expressa na questão da contribuição dos militares. Ela foi introduzida para, aparentemente, equalizar os diferentes grupos do funcionalismo, apesar de ser de natureza distinta. No funcionalismo federal, os militares são os que recebem os menores salários, estando em clara desvantagem ante os seus colegas de outros setores. Além de ganharem pouco em relação aos demais, foram severamente atingidos nos últimos governos.

De repente, o processo de tramitação legislativa da reforma sofre a ameaça de ser interrompido se um projeto sobre os militares não for enviado em curto prazo. É evidente que há várias distorções que devem ser corrigidas quanto à aposentadoria dos militares, por exemplo, eles podem passar à reserva entre os 40 e os 50 anos. Tal conta não pode fechar! Uma revisão da carreira militar também deve ser feita, com o aumento de seus soldos, equiparando-os, aí sim, aos de outros setores do funcionalismo.

Há aí uma questão política envolvida. Parlamentares e partidos estão procurando desviar a atenção do que realmente conta, ocultando suas divergências, concentrando-se num setor do funcionalismo de menores salários, para então dizerem que farão a verdadeira reforma. Trata-se de uma diversão no sentido pascaliano: deixar de pensar no que realmente importa para focar no acessório e secundário, que ganha, assim, uma grande dimensão.

Também de nada adianta, no atual contexto, apresentar a proposta do governo Bolsonaro como se fosse, em valores, muito diferente da proposta do governo Temer. A nova formulação está no começo de sua tramitação legislativa, enquanto a anterior já foi finalizada. No início todas as propostas são ousadas, mas logo sofrem a desidratação própria das negociações. E o processo de desidratação está apenas começando, com os distintos grupos sociais, corporativos e políticos procurando conservar os seus privilégios. E esses setores têm votos na Câmara dos Deputados e no Senado!

O atual governo decidiu apresentar a sua própria proposta para se diferenciar do anterior, apesar de as semelhanças entre os projetos serem muitas. É da vida política, cada governo almejando dizer sua qualquer mudança. Procura-se carimbar como nova a proposta do novo governo, embora, muito provavelmente, seus resultados, ao final, tendam a coincidir.

Acontece que o Brasil não pode mais esperar muito. O otimismo com o novo governo é grande, mas a economia marcha muito lentamente, com o desemprego em alta. Não podemos esquecer que o País está bailando à beira do abismo. E a música não está nada afinada.

*Professor de filosofia na UFRGS.


Luiz Weber: O general dublador

Mourão tem servido de 'closed caption' quando Bolsonaro fala e a declaração cai mal, mas há o risco da armadilha da tradução

Mourão é o “closed caption” de Bolsonaro. Se o presidente fala e a declaração cai mal no mercado financeiro ou na política, o vice é acionado pela estrutura militar do Planalto para legendar o pensamento presidencial.

Na sexta-feira (1º), assessores palacianos se viram obrigados a teclar o botão CC para traduzir uma fala do presidente considerada desastrosa sobre a reforma da Previdência.

No dia anterior, durante entrevista realizada em ambiente de estufa, Bolsonaro admitiu que a idade mínima de aposentadoria das mulheres poderá ser revista.

Até então, o foco do Congresso estava nos “bodes na sala” —o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que é pago a idosos pobres e a pessoas com deficiência, e a aposentadoria rural. Bolsonaro abriu, de graça, nova frente de batalha.

“O presidente foi mal interpretado”, socorreu o general Mourão. Acontece que mesmo os melhores aparelhos digitais apresentam certo “delay” entre a fala e a transcrição. No lapso entre a declaração e a correção, a bolsa especulou e a miúda base parlamentar desarrumou-se ainda mais.

Parte do poder presidencial vem de sua caneta. Mas componente tão importante quanto mandar e desmandar é a capacidade de persuasão, de transmitir uma visão de mundo que os destinatários (deputados e senadores) se sintam à vontade em compartilhar.

A questão previdenciária precisa de um presidente persuasivo. Bolsonaro terá que se fazer compreender pela sua própria voz. Não será com mais hashtags que o governo conseguirá a aprovação da reforma.

Como intérprete presidencial, Mourão pode até continuar dublando o bolsonarês para o português falado no mercado e na política. Mas há o risco de cair na armadilha da tradução. Todo tradutor é um pouco traidor ao inocular no texto sua própria visão de mundo. Por mais sensatas que sejam até agora as declarações do vice, uma dupla voz vinda do Planalto só cria mais ruído.


Governo Bolsonaro paralisa e esvazia conselhos e comissões

Colegiados de participação da sociedade civil no Executivo estão imobilizados, tiveram regras alteradas ou foram extintos; pastas reavaliam nomeações e funcionamento 

Tulio Kruse e Ricardo Galhardo, O Estado de S.Paulo

Ao menos 11 conselhos, comissões e outros colegiados de participação da sociedade civil no Executivo federal estão paralisados, tiveram regras alteradas ou foram extintos no governo Jair Bolsonaro.

Os casos estão vinculados aos ministérios da Agricultura, Cidadania, e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. As pastas afirmam que estão analisando a nomeação e recondução de integrantes ou reavaliando o funcionamento dos colegiados. Em ao menos seis conselhos e comitês ligados ao ministério comandado por Damares Alves há atrasos em nomeações e posse de representantes.

Na semana passada, a indicação da especialista em segurança pública Ilona Szabó para uma vaga de suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária chamou atenção para o tema e gerou desgaste para o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. O ministro precisou recuar da nomeação após pressão de seguidores bolsonaristas nas redes sociais. Ao Estado, Ilona afirmou que Moro se desculpou e disse a ela que “o presidente Bolsonaro não sustentava a escolha na base dele”.

O governo tratou dos colegiados já na publicação da primeira medida provisória do ano, que excluiu da sua estrutura o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o chamado Conselhão.

Atualmente existem na esfera federal cerca de 40 conselhos e outros mecanismos de participação. A maioria foi criada na década de 1990, depois da promulgação da Constituição de 1988. Os mais antigos, como o da Saúde, existem desde a década de 1930.

Os colegiados permitem que representantes da sociedade civil possam monitorar e deliberar políticas públicas em áreas como segurança alimentar, produção de alimentos orgânicos, combate à tortura, pessoas idosas ou com deficiência, diversidade religiosa e política indigenista, entre outros temas.

Alguns têm poder de editar normas com força de lei, a exemplo do Conselho Nacional de Meio Ambiente. Outros colegiados são instâncias consultivas.

As ações recentes do governo motivaram pedidos de explicação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, e recomendações para que conselhos sejam reincorporados.

Integrantes do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura foram eleitos no final do ano passado, mas os representantes ainda não foram formalmente nomeados pelo governo – procedimento indispensável para a retomada dos trabalhos.

Segundo um membro do comitê, a situação atrasou inspeções em presídios e a entrega de um relatório sobre condições de hospitais psiquiátricos no País, que estava em fase de finalização pela equipe de peritos. “Estamos vivendo um momento de descontinuidade”, disse o presidente do comitê, José de Ribamar Silva.

Além disso, outros cinco órgãos ligados à pasta comandada por Damares Alves também estão paralisados. Em nota publicada há cerca de duas semanas, o ministério enumerou conselhos, comitês e comissões vinculados à estrutura da pasta. Não são mencionados o Conselho Nacional de Política Indigenista e o Comitê da Anistia, que estão oficialmente sob responsabilidade da pasta de Damares de acordo com a medida provisória que estabeleceu a estrutura da atual administração federal.

Na medida provisória que definiu a nova estrutura de governo, o Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES) teve a representatividade da sociedade reduzida. O colegiado passou a ter representação “tripartite”, com o mesmo número de representantes do governo, de trabalhadores e de empregadores.

Setores do governo avaliam que os conselhos aumentam a burocracia na máquina pública e são aparelhados por grupos de esquerda. Ainda na fase de transição para a atual gestão, integrantes de 12 conselhos e comissões enviaram uma carta ao governo eleito na qual questionavam declarações do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, sobre o “aparelhamento pela esquerda” dos conselhos.

Em uma reunião entre a Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura Familiar e representantes do Ministério da Agricultura, no fim de janeiro, produtores rurais ouviram da ministra Tereza Cristina que há “conselhos demais” na avaliação do governo. Na ocasião, a confederação pediu à ministra que retomasse os trabalhos do Condraf (desenvolvimento rural sustentável) e da Cnapo (agroecologia).

O governo indicou às lideranças do setor que as instâncias devem sofrer reestruturações e ter menos representatividade.

Segundo o secretário nacional de Agricultura Familiar, Fernando Schwanke, o ministério está reavaliando a funcionalidade dos conselhos. “Precisamos dar celeridade e desburocratizar processos. Os processos que passam pelos conselhos às vezes demoram muito tempo para serem avaliados”, disse ele.

Nomeações estão sob análise, diz pasta da Mulher
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmou que os processos de nomeação e recondução de conselheiros estão em análise pela consultoria jurídica da pasta, em conjunto com a Advocacia-Geral da União (AGU).

Na última semana, foram nomeados integrantes do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), após a publicação de um manifesto criticando atrasos nos trabalhos do colegiado e adiamento de reuniões.

O Ministério da Agricultura disse que está reavaliando o funcionamento dos conselhos vinculados à pasta. O Ministério da Cidadania afirmou que o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto, mas suas competências foram mantidas em outros órgãos.

“A partir dessa nova forma de organização, a entrega governamental se tornará mais célere”, disse a pasta, que não quis comentar as mudanças no Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES), que alteraram as regras de sua representatividade.

A Casa Civil respondeu que não acompanha a situação dos conselhos citados e os membros “não são designados por ato do ministro da Casa Civil ou do presidente da República”. Sobre o comitê de combate à tortura, disse que os mandatos “estariam encerrados, pois são de dois anos”.


O Estado de S. Paulo: 'Governo saiu da política de sindicato e virou república da caserna', diz Elmar Nascimento

Líder do DEM e de bloco que reúne 301 deputados na Câmara, Elmar Nascimento diz que Bolsonaro precisa da classe política 

Vera Rosa, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O protagonismo dos militares no governo de Jair Bolsonaro está incomodando potenciais aliados. Para o líder do DEM na Câmara, deputado Elmar Nascimento (BA), o presidente precisa melhorar muito sua relação com o Congresso, se não quiser ter problemas em votações consideradas prioritárias, como a reforma da Previdência.

“O governo saiu da política de sindicato e passou para a república da caserna”, afirmou o deputado, em uma referência ao número de militares no primeiro, segundo e terceiro escalões da máquina federal, em contraposição à quantidade de sindicalistas nas gestões petistas.

Além de comandar a bancada do DEM, Elmar é líder do “blocão”, grupo que reúne 301 dos 513 deputados e ajudou a reconduzir Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara. Na avaliação do deputado, Bolsonaro precisa chamar a classe política para ser “sócia” de seu projeto. Nesta entrevista, ele negou, porém, que isso signifique um toma lá, dá cá. Confira os principais trechos:

O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, disse que o DEM só não entrou na base aliada por uma questão burocrática e pediu que o partido ajude o presidente. O senhor concorda?
A agenda econômica converge com a nossa, mas um casamento só se faz quando se é pedido em casamento. Até agora não teve pedido do presidente. O governo está saindo de uma república de sindicato para uma república da caserna. Eu respeito muito os militares, são patriotas, dedicados ao Brasil, mas na política tem gente tão honesta quanto eles. É preciso se estabelecer qual o tipo de relação que o presidente quer com a classe política.

É ruim Onyx Lorenzoni (Casa Civil) ser o único ministro civil a ocupar um posto no Palácio do Planalto?
É bom. Ele é do ramo, é político. Agora, acho que para a articulação política, o presidente tem de escolher um: seja o Onyx, seja o general Santos Cruz (Secretaria de Governo). Quando o presidente escolheu o (Luiz Henrique) Mandetta para o Ministério da Saúde, não foi pela capacidade política dele. Foi porque, tecnicamente, ele (que é médico) estava preparado para ser ministro. Na política, para que inventar? Sou contra se botar um general (como articulador).

O que se diz é que um general foi nomeado para a Secretaria de Governo (Santos Cruz) porque nenhum parlamentar teria coragem de fazer pedidos impróprios a ele. Um general intimida?
Se um ministro aceitar que alguma proposição desse tipo seja feita, e não denunciar, está prevaricando. O presidente tem de partir do pressuposto de que nenhum aceita (pedidos impróprios), não é só o militar.

Quantas vezes o senhor já foi na Secretaria de Governo?
Nenhuma, eu não conheço o general. Eu não tenho nada contra o general, mas acho que ele não foi escolhido pelo governo para ser articulador político porque, se foi, começou muito mal. No lugar dele, a primeira coisa que eu teria feito era visitar a Câmara e cada uma das lideranças para me apresentar, me colocar à disposição e saber as demandas de cada partido.

O pacote do ministro Sérgio Moro vai ficar para depois?
O pacote do ministro Sérgio Moro é um pouco imprudente. Quem no Congresso não é a favor da lei do crime hediondo, de impedir progressão de pena para quem comete homicídio qualificado, como estuprador? Só que a nossa Constituição não permite, e isso o STF já decidiu reiteradas vezes. Seria mais prudente ele enviar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) e cada deputado que votar contra esse tema que assuma a responsabilidade perante seus eleitores.

A investigação da Receita Federal preocupa o Congresso?
Se fizeram isso com um ministro do Supremo Tribunal Federal e com a mulher do presidente do STF, o que se pode fazer com qualquer cidadão? É preciso muito cuidado. Aí é que se pressiona às vezes pela votação de projeto de abuso de autoridade. Em certos casos, é preciso ter. Não pode um grupo formado sair escolhendo a dedo, sem qualquer tipo de critério quem vai investigar.

Quais as insatisfações dos deputados com o Planalto?
O governo precisa de votos. Nos Estados, o presidente precisa compor o governo dele, em cargos de direção. Nessa composição ele vai ouvir quem: aliados ou adversários? Sou favorável a estabelecer critérios. O sujeito tem de ser ficha limpa e ter capacidade técnica. E isso tem de valer do quinto escalão ao primeiro. Com Michel Temer tínhamos o que há de melhor em termos de tratamento, a despeito de sua impopularidade. A gente ligava para o presidente e ele retornava a ligação. Hoje, a gente tem de se identificar, alguém lá em cima autorizar, colocar um crachá.

Mas a ideia que passa para a população não é a de que o Congresso só vota se receber emendas e cargos?
Não, porque o Congresso vai votar. Só não sei se vai votar como o governo quer. Temos a obrigação de votar sobretudo a pauta econômica.

Onde o governo está errando?
É preciso mais diálogo. Se agora, na reforma da Previdência, tivesse sido feito um diálogo mais aprofundado com os líderes talvez se ganhasse tempo e se evitasse alguns equívocos que terminam contaminando a comunicação da reforma. O nosso mandato não vai servir para prejudicar o trabalhador rural mais pobre, quem precisa do Benefício de Prestação Continuada.

O DEM não vai votar enquanto esses itens não forem retirados?
Nós vamos apresentar emendas e vamos tirar isso da proposta. É o nosso papel aperfeiçoar o projeto. Até porque temos três ministros lá (Casa Civil, Saúde e Agricultura), nós queremos que o governo dê certo. Os pontos que julgamos equivocados, já que não fomos chamados para opinar, nos sentimos à vontade para mudar.

Ter três ministros não torna desconfortável um movimento contra a proposta do governo?
Em nenhum momento pensamos em compor com o governo em troca de cargos. O governo que dava cargos e outras ‘coisitas’ mais a gente sabe no que deu. Os nossos estão lá porque são da cota pessoal.

A aposentadoria rural e o BPC são bodes na sala?
Se são (bodes), têm de sair muito rapidamente porque os mais pobres são usados como bois de piranha pelas corporações. São massa de manobra. O ganho que tem para o governo é muito pouco para poder defender esse tipo de coisa.

Para o que há consenso?
É consenso que a questão da idade mínima precisa ser verificada, que todas as classes precisam contribuir. A bancada está reclamando muito do não envio da Previdência dos militares. A maioria enxerga que não há razão para qualquer tipo de privilégio. Não vemos a questão do serviço militar como algo que imponha sacrifícios a ponto de ter tratamento diferenciado.

O vereador Carlos Bolsonaro usou as redes sociais para dizer que deputados não estão defendendo a reforma. Os filhos do presidente podem colocar as redes sociais contra o Congresso?
Eu não vejo autoridade no filho do presidente (Carlos)de estar dando pito sequer nos seus companheiros da Câmara Municipal, quanto mais em deputado federal. A gente vai votar não é porque o filho do presidente pediu. Vamos votar pelo Brasil. O Brasil precisa da aprovação dessa reforma.

 


Fernando Henrique Cardoso: A vez da Venezuela

Insistirá o governo do Brasil no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia?

O Brasil está sendo confrontado com sua História. Quem leu o texto recente de Rubens Ricupero sobre a política externa do governo Bolsonaro perceberá os descaminhos pelos quais poderemos enveredar. Diante dos ensaios de ruptura com as tradições de nossa política externa, empalidecem as diferenças de matiz político-ideológico observadas desde José Sarney até Michel Temer. Basta ler o livro Um Diplomata a Serviço do Estado, do embaixador Rubens Barbosa, para ver que se manteve certo consenso básico sobre o interesse nacional e sobre o modo de adequá-lo a mudanças nos ventos do mundo.

Historicamente a condução da nossa política externa obedeceu a linhas de continuidade, com raras exceções em períodos não democráticos. É ao barão do Rio Branco que se atribui a noção de que deveríamos manter boas relações com os Estados Unidos para fazer o que nos convém na área que nos toca mais de perto, a América do Sul. Na guerra contra o nazismo até bases estrangeiras foram autorizadas a se instalar no Brasil. Mas foi um momento histórico excepcional a requerer que agíssemos assim. Em regra, nunca houve adesões incondicionais: primaram nossos interesses soberanos. Mesmo na guerra fria, quando o bloco capitalista se opunha ao bloco comunista, buscamos manter certa autonomia.

Com a globalização muita coisa mudou no ambiente político e, sobretudo, na interconexão econômica dos países. A diplomacia brasileira, porém, não deixou de se orientar pelo interesse nacional. Em artigo recente publicado neste espaço disse que o atual governo abusa da inconsistência em certas áreas. Para onde nos pode levar esse “abuso da inconsistência” na política externa?

Entende-se que haja incertezas na atualidade, advindas da nova página que se está abrindo nas relações entre os Estados Unidos e a China. A aceitação recíproca, obtida graças às reformas de Deng Xiaoping, às teorias sobre o “socialismo harmonioso” e à ascensão pacífica da China, começa a mudar. Os chineses queriam evitar a “armadilha de Tucídides”: a emergência de nova potência levaria a guerras com o antigo hegemon. Assim, o país abriu a sua economia para capitais internacionais o usarem como plataforma de exportação e se tornou o principal financiador do déficit comercial dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro americano. Essa estratégia assegurou tempo e gerou os recursos necessários para que a China ampliasse o mercado interno e investisse na formação de empresas globais capazes de disputar a liderança tecnológica com suas rivais americanas.

Estamos chegando a uma profunda revisão dessas políticas, adotadas quando a coincidência de interesses prevaleceu sobre a rivalidade, em ambas as partes. A luta tecnológica pelo predomínio no mundo globalizado pode produzir surpresas desagradáveis. Por trás da retórica arrogante e aparentemente desconexa de Trump existe uma luta real pelo predomínio global. A chamada “guerra comercial” é um sintoma dessa disputa nas tecnologias determinantes do poder futuro, na economia e no campo da segurança. As tensões no Pacífico, do sul da costa chinesa ao litoral do Vietnã, são a face mais visível da dimensão militar do conflito entre as duas potências. O antagonismo ainda é mais agudo no ciberespaço, onde batalhas são travadas diariamente.

Nesse quadro, que interesse poderia ter o Brasil em assumir a priori um dos lados da disputa? Os que sustentam que devemos alinhar-nos em tudo à Casa Branca desconhecem que a sociedade americana é democrática e seu atual ocupante não expressa necessariamente um consenso duradouro. Vamos transferir a embaixada em Israel de Tel-Aviv, contrariando nossa histórica pregação em favor de dois Estados naquela região do Oriente Médio?

E que sentido faz criticar a própria ONU como suspeita de “globalismo”, do qual ela seria o instrumento? A única consequência prática é macular a imagem do Brasil em áreas tão sensíveis e importantes quanto o são os direitos humanos, o meio ambiente e a imigração. O dano à imagem do País, uma vez cristalizado, terá consequências contra os nossos interesses, como já se deram conta os setores mais lúcidos do empresariado brasileiro.

Insistirá o governo no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia, e não às realidades? Em nenhum outro lugar as consequências dessa reviravolta seriam mais nocivas que na nossa vizinhança. A crise da Venezuela se aprofunda. O caso remete à “política do barão”, pois mexe com nossos interesses mais imediatos, na América do Sul. É de louvar a prudência dos militares, mas é de temer a vocalização de alguns líderes políticos sobre nossa ação nesse drama. Sejamos claros: o governo Maduro é antidemocrático e insustentável. Não é de hoje que tenho me manifestado publicamente dessa maneira, em reuniões internacionais, acadêmicas e políticas. Contudo falar em permitir bases estrangeiras em território nacional ou em abrir caminho para aventuras guerreiras nas nossas vizinhanças não tem nada que ver com os interesses brasileiros de longo prazo. E em política externa é disso que se trata.

Apoiar a oposição venezuelana é uma coisa. Imaginar que se deva fazer o que foi feito na Líbia, pensando que forças externas podem reconstruir a democracia no país, é ignorar os fatos. Os desatinos verbais têm sido de tal ordem que resta o consolo de ver os militares recordarem que temos uma tradição de altanaria e soberania a respeitar, soberania nossa e dos demais países.

Bom mesmo seria ver o Itamaraty voltar a ser coerente com sua tradição: ressaltar e criticar o autoritarismo predominante na Venezuela, apoiar a oposição, dar acolhida às vítimas do arbítrio do atual governo e manter acesa a chama democrática. Abrir espaço para que terceiros países, mormente distantes da América do Sul, queiram resolver o drama político pela força não nos convém e fere nossas melhores tradições de atuação internacional.

*Sociólogo, foi presidente da República