governo bolsonaro
Eumano Silva: Se não segurarem Bolsonaro, militares se queimam outra vez
Com a imagem restaurada na democracia, generais têm o desafio de mudar a atuação do presidente para não desgastar de novo as Forças Armadas
Os militares brasileiros têm pela frente a dura missão de enquadrar o presidente Jair Bolsonaro (PSL). Se não o fizerem, correm o risco de perder a credibilidade conquistada depois da redemocratização.
As Forças Armadas passaram os últimos 34 anos empenhadas em construir uma imagem de profissionalismo e eficiência após o desgaste sofrido durante a ditadura. Nesse propósito, foram bem-sucedidas.
Deve-se fazer justiça em relação ao comportamento dos militares desde o retorno aos quartéis, em março de 1985. Institucionalmente, foram fiéis aos governos civis, como determina a Constituição. No resgate da imagem, também pesaram as exitosas missões internacionais, com destaque para as do Haiti e do Congo.
Com exceção do boicote à Comissão da Verdade e das impropriedades verbais, pontuais, cometidas nos últimos anos por alguns generais – como o vice-presidente da República, Hamilton Mourão (PRTB), e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, por exemplo –, o comportamento do oficialato atendeu à expectativa da sociedade democrática. Mas o caminho da metamorfose de promotores de uma ditadura para defensores das garantias constitucionais foi longo e penoso.
A decadência do regime militar se deu tanto na política quanto na economia. Para se ter uma ideia do nível do depauperamento do governo dos generais, o último candidato dos quartéis a presidente, derrotado por Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, foi o ex-governador de São Paulo Paulo Maluf, um notório corrupto.
Depois de 20 anos de ditadura, as Forças Armadas entregaram aos civis o país quebrado, com dívida externa fora de controle e inflação anual superior a 200%. Entre 1981 e 1983, a recessão encolheu a economia brasileira em 6,3%. Apenas parte dessa queda foi amenizada pelos 5,4% de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 1984.
Os militares deixaram o poder empurrados pelas manifestações das Diretas Já. Carregavam nos currículos um histórico de prisões, tortura e morte de adversários políticos.
Mortos e desaparecidos
Para se manter no poder, mataram mais de 400 pessoas, das quais mais de 200 encontram-se desaparecidas até hoje. As denúncias desses crimes, além da economia falida, também afetavam a posição do Brasil no cenário internacional.
Desmoralizados e devolvidos aos quartéis, os militares reciclaram os conceitos sobre o papel da caserna em um país republicano. Embora nunca tenham admitido que deram um golpe em 1964 – nem feito autocrítica pelas atrocidades cometidas enquanto estiveram no poder –, eles entraram no jogo democrático.
Mas, dentro das Forças Armadas, a ascensão ao governo dos partidos alinhados com a esquerda sempre enfrentou reservas. O descontentamento com a chegada do PT e do PCdoB ao poder revelou-se mais acentuado à medida que as denúncias de corrupção afloraram nos mandatos dos petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
De volta à Esplanada
Nesse cenário, os militares se animaram a retornar à Esplanada dos Ministérios. Desta vez, sem o envolvimento institucional das Forças Armadas, mas com a presença ostensiva de oficiais da reserva sob o comando do capitão reformado Jair Bolsonaro.
Para voltar ao poder, os generais fecharam os olhos para o passado de indisciplina do presidente. Bolsonaro deixou o Exército no final da década de 1980, depois de submetido a processo interno por deslealdade aos superiores e por ameaça de explosão de bombas em instalações militares no Rio de Janeiro.
Somente o sentimento antiesquerdista e a possibilidade de fazer um discurso contra a corrupção explicam o engajamento dos generais na candidatura de Bolsonaro a presidente. Ninguém melhor do que eles para conhecer o temperamento irascível do capitão.
Agora, até pela responsabilidade intrínseca de suas patentes, cabe aos generais cuidar para que o governo Bolsonaro não degringole logo no primeiro ano. Isso significa enquadrar o chefe dentro do comportamento que se espera de um presidente da República.
Harmonia dos Poderes
Do titular do Planalto, exige-se equilíbrio para tratar dos assuntos de Estado. Sem essa qualidade, põe em risco as relações com os diferentes setores da sociedade e a harmonia entre os Poderes.
Fogem do figurino de presidente, por exemplo, as postagens de vídeos pornográficos e o menosprezo pelo Congresso demonstrado sobretudo nos últimos dias. A intromissão desenfreada dos filhos de Bolsonaro nos assuntos de governo também atropela o padrão de procedimentos nas Forças Armadas. Durante a ditadura, não se viu parentes com tanta influência na administração federal.
Nessa linha, Bolsonaro voltou a contribuir com a instabilidade política ao determinar, nessa segunda-feira (25/3), que os quartéis comemorem o golpe de 1964 no dia 31 de março, data da tomada do poder pelas tropas militares, com apoio de setores da sociedade civil, sobretudo empresarial. Nas palavras do presidente, e de seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros, nem golpe foi.
Os efeitos negativos do estilo afrontoso, principalmente da família presidencial, aparecem na falta de diálogo com o Congresso – fundamental para a aprovação dos projetos importantes para o país – e nas incertezas da política externa. Esse comportamento dos Bolsonaro levou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a ameaçar deixar a articulação política para a aprovação da reforma da Previdência.
Diante dessa situação, sem quebrar a hierarquia, os generais têm a tarefa de “colocar ordem na tropa”. Sob pena de se queimarem outra vez.
Eliane Cantanhêde: 'Não tem governo'
Rodrigo Maia: “É um governo vazio, sem ideia, sem proposta, sem articulação”
Mais uma semana infernal no Congresso, no Executivo, no Judiciário, no mercado e, muito especialmente, no twitter. Começou e terminou com o presidente Jair Bolsonaro ajustando as posições brasileiras às de Donald Trump, enquanto o Brasil pegava fogo. Mais um ex-presidente preso, o presidente da Câmara em pé de guerra e os filhos do presidente desgovernados nas redes sociais.
A maior vítima é a reforma da Previdência, que sofreu vários solavancos: críticas no Congresso à proposta dos militares, considerada mais branda do que para outras categorias; parlamentares do PSL comemorando a prisão de Michel Temer, maior nome do MDB; a queda de 15 pontos na popularidade de Bolsonaro no Ibope; a desarticulação do governo com sua base.
Nada, porém, foi tão nocivo às chances da reforma da Previdência quanto os ataques de bolsonaristas e até do governo ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é, nada mais, nada menos, a peça principal para a aprovação da proposta no Congresso.
De pavio curto, como se sabe, Maia não gostou quando o ministro Sérgio Moro se reuniu com a “bancada da bala” e disse que iria insistir na tramitação do pacote anticrime o quanto antes. Maia, que tinha acertado com Bolsonaro dar prioridade à Previdência e deixar o pacote Moro para o segundo semestre, deu um pulo. E avisou que não falava com funcionários, só com o chefe. Ou seja, não falava com Moro, só com Bolsonaro.
O clima piorou quando Carlos Bolsonaro, o 02, usou a trincheira da internet para defender Moro e atacar o presidente da Câmara com insinuações. A coisa mudou de figura. E de patamar. Nesse meio tempo, Maia ameaçou não receber o projeto dos militares e abandonar a articulação da reforma, furioso com uns e outros. Inclusive os que usaram a prisão do padrasto da sua mulher, Moreira Franco, para atingi-lo.
Quando liguei para ele, Rodrigo Maia contra-atacou: “Não tem governo. É um governo vazio, que não tem ideia, proposta, articulação”. E continuou: “Para dissimular, criou esse confronto do bem contra o mal, do bonito contra o feio, do quente contra o frio. Eles são o bem, os bonitos, os quentes. E nós, os políticos, somos os maus, os feios. É só para manter a base ultraconservadora na internet”.
Bolsonaro sabe que a reforma da Previdência é questão de vida ou morte para o País e para o governo dele, mas finge que não queria, que não é com ele. “Ele tira o corpo fora e vende a imagem de que nós é que estamos obrigando o governo a fazer a reforma”, diz Maia.
Ainda na sexta-feira, o filho 01, senador Flávio Bolsonaro, tentou consertar o estrago (pelo twitter...) e elogiou o presidente da Câmara: “Assim como nós, ele está engajado em fazer o Brasil dar certo”. Maia devolveu o elogio, mas com ressalva: “O Flávio é bom, mas ele é do Parlamento, não do Executivo”.
É assim que o governo, em vez de aglutinar, vai dividindo, afastando, criando atritos, dificultando não só a reforma da Previdência como a sua própria vida. O 01 tem mais noção política e mais responsabilidade, mas o 02 e 0 03 precisam lembrar que Bolsonaro não governa para seus eleitores, muito menos para os eleitores genuínos (que votaram efetivamente nele, não contra o PT). Governa para todos.
O Planalto não pode correr o risco de perder o apoio de Maia, porque ele abriria uma longa fila de adversários, o DEM, o PSDB, o MDB, parte dos evangélicos do PRB e vai por aí afora. O que sobraria? O PSL, novo inexperiente e dividido?
O pior é que a culpa da guerra de guerrilhas na internet sempre cai sobre os filhos, mas Maia tem uma certeza: “É tudo patrocinado por ele”. Quem é ele? Jair Bolsonaro.
Sérgio Gonzaga de Oliveira: A retomada do Desenvolvimento Econômico (I)
Democracia não deve ser um regime político baseado em práticas puramente eleitorais, desvinculada das condições objetivas da sociedade. Na verdade, a democracia pressupõe a existência de determinados direitos e liberdades básicas para que possa ser exercida com integridade. Dentre esses, os direitos sociais são fundamentais. Salário digno, previdência social, saúde, educação, habitação e tantos outros não podem ser relegados a um segundo plano. É muito difícil o exercício da cidadania quando os indivíduos vivem no limite da sobrevivência. Embora o Bolsa Família seja um programa importante para retirar da miséria absoluta milhões de brasileiros não é possível imaginar que um valor básico de R$ 85,00 e máximo de R$ 195,00 por mês irá transformar essas pessoas em cidadãos perfeitamente integrados à democracia. E direitos sociais não surgem do nada. Pelo contrário, exigem que a economia tenha atingido um patamar mínimo de produção e distribuição de renda.
Adicionalmente, o conceito atual de desenvolvimento econômico inclui obrigatoriamente a preservação do meio ambiente. Devemos lembrar que o ambiente natural é a fonte onde os humanos vão buscar alimentos, matérias primas e energia que lhes são tão necessários. A destruição do meio ambiente atinge mortalmente a economia. Os exemplos são cada vez mais alarmantes.
Cansamos de ler e ouvir que o Brasil é um país “emergente” ou “em desenvolvimento”. Até o início dos anos 80 do século passado, pelo menos em termos de crescimento econômico, era verdade. Entretanto, a partir daí, até nossos dias, o cenário mudou muito e para pior. Registra o economista José Luis Oreiro, em artigo recente, que entre 1930 e 1980 crescemos em média 6,32%aa e entre 1981 e 2013, apenas 2,55%aa. Se computarmos os cinco últimos anos de crise e baixo crescimento, o número cai ainda mais. Considerando o aumento populacional no período, esse número é lamentável. Alguns surtos de crescimento foram observados nos anos 90 e na primeira década do novo século, mas não foram suficientes para alterar a média geral muito baixa. São praticamente quatro décadas perdidas. Enquanto ficamos patinando, países como a Coréia do Sul, China, Austrália, Nova Zelândia e vários outros cresceram muito e estão a caminho de se tornarem desenvolvidos.
A questão do desenvolvimento não é trivial. Deveria ser uma preocupação constante de todos aqueles que lutam contra a injustiça social. Na verdade os que mais sofrem com a falta de produção, emprego e renda são os 50% da população de renda mais baixa que vivem nas regiões mais pobres e nas periferias das grandes cidades. Para esses, falta tudo: salário, alimentação, vestuário, saneamento básico, saúde, habitação e muito mais. É uma vida miserável e sem perspectiva. Do ponto de vista da cidadania, essa situação é uma tragédia.
A experiência mostra que quando se pretende estabelecer um projeto de desenvolvimento, é relativamente fácil reunir meia dúzia de economistas, advogados, engenheiros, sociólogos e outros acadêmicos para listar as principais medidas a serem tomadas para levar o projeto adiante. Alias é o que têm feito os partidos políticos de quatro em quatro anos, sem grandes resultados. Essa prática burocrática e eleitoral é a principal razão pela qual os projetos de desenvolvimento nos últimos quarenta anos no Brasil não vão adiante. Um projeto de desenvolvimento, principalmente em um ambiente democrático, precisa, antes de tudo, ser um projeto político. Deve ser construído, item a item, simultaneamente à formação de uma frente política capaz de levá-lo adiante. Sem essa configuração, perde-se tempo.
Ao pretendermos que o desenvolvimento seja inclusivo, distribuindo renda e respeitando o meio ambiente, estamos definindo que essa frente política, além de democrática, deve ser progressista. Por outro lado, para que possa ser efetivado com sucesso, deve ser majoritária. Uma frente política majoritária, democrática e progressista, construída em torno de um projeto de desenvolvimento, deveria ser hoje uma aspiração de todos os brasileiros. Não se deve limitar a participação das forças políticas nesse projeto, indicando a priori quem pode ou não pode tomar parte. Certamente as forças mais retrógradas, internas ou externas, que apostam no atraso social, de onde tiram suas eventuais maiorias eleitorais ou vantagens econômicas, não sentarão a mesa para negociar. Ao contrário, farão uma forte oposição. E o acordo político passa por negociações às vezes muito duras e difíceis. Soluções burocráticas foram tentadas nas últimas décadas, como o Programa Avança Brasil, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e “Uma Ponte para o Futuro”. Os resultados, como eram de se esperar, têm sido irrelevantes.
A experiência internacional tem indicado que um acordo político dessa natureza resulta em um conjunto coerente de ações estratégicas, planejamento estatal e participação do capital privado. Os recursos financeiros necessários são extremamente elevados para que o desenvolvimento possa ser alcançado, em um prazo razoável, sem a participação do setor privado. Os escassos recursos do Estado devem ser reservados para as áreas onde a alternativa privada não é viável, para setores estratégicos ao próprio desenvolvimento e para a segurança nacional. Muitos dos investimentos necessários só podem ser efetivados pelo Estado, já que não têm retorno financeiro suficiente para atrair o capital privado. É o caso, por exemplo, da educação e saúde de populações de baixa renda ou investimentos em tecnologias básicas e adequadas aos recursos produtivos brasileiros. Talvez a maior contribuição do Estado ao desenvolvimento seja o planejamento e a coordenação dos planos e projetos estratégicos acordados.
No Brasil, a atual fragmentação das forças políticas e sociais e a falta de um projeto de desenvolvimento comum leva a uma virtual paralização do Estado. Pior do que isso, os grupos privados e corporativos mais organizados “canibalizam” a máquina estatal, destroem sua capacidade operacional e fragilizam as finanças públicas. A desorganização do Estado se reflete em toda a economia. Os consumidores se retraem e adiam as compras. Os fabricantes diminuem a produção. O setor privado reduz os investimentos em novas unidades produtivas ou aplica somente quando consegue taxas de lucro muito altas para compensar as incertezas. O desenvolvimento econômico cessa ou avança em ritmo muito lento, imobilizando o país. Estamos nessa situação há quase quatro décadas. É angustiante.
Em resumo, os problemas podem ser econômicos, mas a saída é necessariamente política. A solução para esse impasse é um movimento político que mude as expectativas negativas que os agentes econômicos e a população em geral têm em relação ao futuro do país. Sabemos que a construção desse projeto não é uma tarefa simples, mas certamente é necessária. Dificilmente uma força política sozinha, por mais bem intencionada que seja, conseguirá levá-lo adiante. De qualquer forma, a compreensão da importância e da natureza do problema é um primeiro passo para sua superação.
Para provocar o debate pretendo, num próximo artigo, tentar esboçar um diagnóstico da situação atual, tomando por referência as variáveis básicas dos modelos que buscam entender a dinâmica da economia capitalista no longo prazo.
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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
Elio Gaspari: Está no ar a barafunda Bolsonaro
Governo enriquece Lei de Murphy: se algo pode dar certo, trabalha para que dê errado
Jair Bolsonaro superou as marcas de impopularidade de seus antecessores no início do primeiro mandato. Com viés de piora, esse desempenho deve-se em parte a um processo de autocombustão, mas nem tudo pode ser atribuído a Bolsonaro. Ele teve a ajuda de ministros civis e militares.
Resolveram fazer uma reforma da Previdência. Poderiam ter seguido a sugestão do economista Paulo Tafner, fatiando-a. Mandariam primeiro o corte dos privilégios dos marajás e depois cuidariam dos miseráveis. Resolveram juntar as duas brigas. Vá lá.
É elementar que a profissão e a Previdência dos militares nada têm a ver com as dos servidores civis. Poderiam ter separado as duas questões. Não só juntaram os debates, como decidiram botar no combo um projeto de reestruturação da carreira militar, coisa que não tem nada a ver com a Previdência.
Todas essas decisões embaralham o debate e dificultam a aprovação de algo parecido com o projeto original do governo. Como alguma reforma haverá de ser aprovada sempre se poderá cantar vitória. Afinal, Fernando Henrique Cardoso e Lula também fizeram reformas da Previdência. Nenhum deles atritou-se com o presidente da Câmara.
A barafunda vai além da reforma. O ministro Sergio Moro resolveu peitar Rodrigo Maia com mais uma de suas jeremíadas. Tomou umtranco e ficou em paz. Durante a visita de Bolsonaro a Washington, o ministro das Relações Exteriores foi humilhado, um filho do presidente disse que os brasileiros que vivem nos Estados Unidos sem documentação são “vergonha nossa” e o condestável da Economia informou que gosta de Coca-Cola e da Disneylândia. (Quem passava dias sozinho na Disney era o professor Mário Henrique Simonsen, mas ele nunca anunciou isso a uma plateia de empresários.)
Se tudo isso fosse pouco, Bolsonaro disse na Casa Branca que acredita “piamente” na reeleição de Donald Trump. Sentiu cheiro de banana e foi procurar a casca para escorregar. Os dois presidentes que mais ajudaram a ditadura brasileira foram Lyndon Johnson e Richard Nixon. Um encantou-se com o marechal Costa e Silva, o outro com Emilio Médici. Ambos foram eleitos com memoráveis maiorias e acabaram naufragando. Amaldiçoado, Johnson desistiu da reeleição. Acuado, Nixon renunciou. Os presidentes brasileiros não disseram coisa parecida. Trump nunca teve a força de qualquer um desses antecessores.
A Lei de Murphy diz que, se uma coisa pode dar errado, errado ela dará. O governo do capitão parece disposto a enriquecê-la: Se uma coisa pode dar certo, trabalham para que dê errado.
BRETAS PRENDEU TEMER PORQUE QUIS
Lula foi para a carceragem de Curitiba depois de ter sido indiciado, denunciado e condenado em duas instâncias. Temer foi encarcerado sem ter sido ouvido, indiciado, denunciado ou condenado. Tudo bem, o juiz Marcelo Bretas prendeu-o preventivamente e decisão judicial deve ser cumprida.
Na sua decisão o doutor Bretas reconheceu que Temer não foi condenado e ofereceu uma “análise ainda superficial” dos crimes que o ex-presidente teria cometido.
Cuidando do “superficial”, ocupou 40 páginas de sua decisão. Sua análise faz sentido, e muito, mas é apenas uma opinião. Justificando a prisão preventiva de Temer, Bretas não escreveu uma só linha.
Justificou-a genericamente, quando associou-a à de outros integrantes da “suposta organização criminosa”, e nisso ocupou três páginas. Nelas, justificou as preventivas porque “no atual estágio de modernidade, bastam um telefonema ou uma mensagem instantânea” para ocultar “grandes somas de dinheiro”. (São Paulo tem rede de telefonia desde o início do século passado.)
Mais: o coronel Lima, faz-tudo de Temer, cuidava de apagar rastros e documentos no próprio escritório. (Bretas não fez qualquer referência à tentativa de depósito de R$ 20 milhões em dinheiro vivo na conta do coronel.)
Mesmo admitindo-se que tudo o que Bretas atribuiu a Temer na sua “análise ainda superficial” seja apenas parte de uma horrível verdade, as razões que citou para encarcerá-lo preventivamente são ralas.
O Brasil teve dois ex-presidentes presos. Um porque foi condenado. O outro não foi ouvido, indiciado, denunciado ou sentenciado. Os tempos estranhos ficaram mais estranhos.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e acredita em tudo o que dizem os presos, a polícia e os procuradores, só não entende como alguém entrou numa agência bancária para depositar R$ 20 milhões em dinheiro vivo.
Alguém deveria carregar duas malas, cada uma pesando 25 quilos.
O cretino acha que existe um vídeo registrando a passagem desse estranho personagem pelo banco.
O Ministério Público informou que esse fato “ainda precisa ser investigado e apurado”.
RICO, COM SARAMPO
O governo propagou a ideia de que trocou a condição de pedinte na Organização Mundial do Comércio por um assento no clube dos ricos tornando-se eventual membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.
Não é bem assim, porque a China está na mesma gaveta que o Brasil na OMC e tanto o México como a Grécia são membros da OCDE.
No mesmo dia em que o governo festejou essa possível baldeação, a Organização Mundial da Saúde tirou o Brasil da lista de países que erradicaram o sarampo.
Quando o delegado brasileiro for a uma reunião da OCDE e perceber que o sueco não chega perto dele, saberá por quê.
BASTA!
Nunca é demais lembrar como funcionava o tribunal de cassações da ditadura. Reuniam-se os ministros que integravam o Conselho de Segurança Nacional e um coronel lia a biografia do acusado.
Em 1969, o conselho estava reunido e o oficial começou e ler os dados pessoais de uma vítima: “Simão da Cunha, mineiro, bacharel...” O general Orlando Geisel interrompeu-o: “Basta!”
Seguiu-se uma grande gargalhada. Cunha foi cassado sem que fosse lida a acusação.
BOA NOTÍCIA
Uma dezena de fundações privadas cacifam o programa Ensina Brasil, que seleciona jovens formados em universidades públicas e privadas interessados em trabalhar por dois anos como professores nas redes escolares do país. Eles já atuam em alguns municípios de Pernambuco, Espírito Santo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Programas semelhantes existem em 45 países.
A sabedoria convencional ensina que poucos recém-formados em seja lá o que for topariam trabalhar dois anos como professor. Pois neste ano o Ensina Brasil teve 10 mil candidatos para 123 vagas. Depois de um processo seletivo, eles passam por quatro semanas de curso presencial em São Paulo e assistem a 2.000 horas de aulas a distância. A ideia do projeto é achar gente interessada em melhorar a educação no país, formando lideranças nessa área.
Os jovens que entram no Ensina Brasil recebem os salários da escola e uma pequena ajuda do programa.
Como nem tudo são flores, há estados onde os sindicatos de professores não querem nem ouvir falar no assunto.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
O Estado de S. Paulo: ‘Presidente não demonstra capacidade de articulação’, diz Sérgio Abranches
Para Sérgio Abranches, falta de uma coalizão com o Legislativo traz dificuldades para a governabilidade
Paulo Beraldo, O Estado de S. Paulo
Passados quase três meses desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro não mostra forças para fazer uma “aglutinação” no Congresso, agravando a tensão entre Executivo e Legislativo, avalia o cientista político Sérgio Abranches. “Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam.” Autor do termo “presidencialismo de coalizão” nos anos 1980, Abranches afirma que “não faz sentido” o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ser articulador político de qualquer agenda do governo. “Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o sr. vê o cenário político?
A eleição de 2018 encerrou o primeiro ciclo do presidencialismo de coalizão, que organizou governo e oposição de 1994 a 2014. Em 2018, houve a substituição de um sistema partidário por outro, um realinhamento. Todos perderam com a eleição de 2018, com exceção do PSL. Esse ciclo caracterizado pelo duopólio na disputa pela presidência entre PT e PSDB, que também organizava tanto governo quanto oposição, começou a dar problema em 2014, teve o auge da crise com o impeachment em 2016 e se confirmou em 2018 quando esse sistema que estava em exaustão se encerrou. O que vemos agora são os resultados disso.
Quais as consequências disso?
Do ponto de vista de organização de governo no Congresso, uma das principais dificuldades é a pulverização. Em 2002, as cinco maiores bancadas representavam 67% do Congresso. Em 2018, os cinco maiores partidos têm 41% das cadeiras. O maior partido é de oposição, o PT, vivendo uma crise interna, e o segundo é o PSL, um partido invertebrado, que tem dado demonstrações de que não tem capacidade de ser pivô de uma coalizão em torno da qual os outros se aglutinam.
Por que falta essa capacidade ao PSL?
Desde o início, Bolsonaro disse que não ia fazer coalizão e não fez o menor esforço para montar maioria no Congresso. Segundo, porque o partido não tem vertebração, ainda precisa se demonstrar como uma organização partidária com ideias. Em terceiro, porque a liderança do Bolsonaro não é suficientemente forte para fazer uma aglutinação no Congresso. Nenhum dos requisitos de estabilidade de governabilidade está amparado: um presidente minoritário, um partido inorgânico, a falta de uma coalizão articulada, relações tensas entre Poderes.
Como sair do impasse?
Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam. A crise política tem a ver com o fato que o primeiro ciclo se esgotou e não houve nenhum esforço por parte da liderança vitoriosa de levar adiante um novo ciclo, de estabelecer novas bases para o relacionamento entre Legislativo e Executivo.
Como a prisão do ex-presidente Temer impacta esse contexto?
Ela acontece num momento de acirramento do conflito entre o Legislativo e um clima de tensão dentro do MPF, do STF e de juízes de primeira instância. Vejo que a magnitude política da prisão de Temer se torna mais um ingrediente da crise política. Dá mais munição para os partidos, sobretudo o MDB, fazerem pressão no Congresso, para criar mais impasses e obter mais concessões do Executivo. O MDB, que hoje tem 34 eleitos, pode fazer muita pressão, exatamente por não haver nenhum partido grande e pelo PSL não ter força nem experiência. Todo mundo perdeu poder e o próprio presidente, ao não ser capaz de exercer uma liderança unificadora e perdendo popularidade, também fica sem espaço para dar solução a essa pulverização do poder. Os três Poderes estão dominados por um processo conflituoso que tem a ver com questões políticas fundamentais associadas a essa maneira pela qual se esgotou esse ciclo.
O que a perda de popularidade representa para o governo?
Quanto menor a popularidade, menos capacidade tem de atrair apoio no Congresso. O que atrai é popularidade, carisma. Bolsonaro foi eleito por um conjunto muito heterogêneo de eleitores. É difícil atender expectativas tão diferentes. Até agora, não atendeu nenhuma delas, a não ser a questão das armas (facilitou a posse), que é controvertida.
Como fica, por exemplo, o projeto da reforma da Previdência?
Vai sofrer muito mais por conta da perda de popularidade. Se não surgir uma forma nova de ativar as decisões no Congresso, acho que a reforma terá muita dificuldade. Não faz sentido o presidente da Câmara ser articulador político de qualquer agenda do governo, mesmo que seja do interesse dele. Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação. Então, acredito que essa reforma está no limbo, à deriva.
Alon Feuerwerker: O Planalto quer um Congresso perfilado gritando “Ave Caesar, morituri te salutant". Vai funcionar?
A frase está em latim: “Ave César, os que vão morrer te saúdam”. Era o brado dos gladiadores para o imperador romano antes de começarem os jogos no Coliseu. Os coitados dos lutadores, escravizados, não tinham mesmo muita opção.
O Palácio do Planalto quer mais ou menos isso dos políticos na Câmara e no Senado: que votem as medidas impopulares propostas pelo governo, especialmente a reforma da previdência, e conformem-se depois em morrer nas eleições.
Não chega a ser previsão apocalíptica, pois mesmo em plena onda antipetista ano passado os gladiadores de Temer, que deram a cara na luta para aprovar reformas, ou tiveram imensa dificuldade para voltar ou simplesmente não voltaram.
Jair Bolsonaro assumiu e distribuiu os cargos entre os dele. Oficiais da reserva e da ativa. Lava Jato. Seguidores de Olavo de Carvalho. E alguns quadros parlamentares vinculados às “bancadas temáticas”. Ou seja, não dividiu poder com ninguém.
Pôde fazer isso ao surfar no clamor por uma “nova política”, que segundo os formuladores dela consiste em trocar as pessoas más e impuras pelas boas e puras. Trata-se naturalmente de uma mistificação, mas de tempo em tempo encontra ouvidos crédulos.
Uma regra, sem exceção: a nova política de hoje é a velha política de amanhã. Entre o hoje e o amanhã sempre tem um tempinho para enrolar o distinto público. É um período em que o poder precisa dar passos decisivos para se consolidar.
Mas se a única opção do gladiador romano era obedecer o imperador e torcer para sobreviver até a luta seguinte, não é o caso dos parlamentares. Eles têm a alternativa de simplesmente não fazer o que o Planalto deseja, e esperar o tempo passar.
E são ajudados pelo governo Bolsonaro não ter sido a primeira escolha do establishment econômico e social. A boa vontade é limitada. Isso introduz um vetor de fragilidade potencial. Que aliás começa a se manifestar nas pesquisas de popularidade.
O Planalto acredita que vai dobrar o Congresso denunciando o “fisiologismo” em oposição ao patriotismo. As coisas são mais complicadas. Para os militares, garantiu-se o patriotismo deles embutindo na reforma uma generosa reestruturação da carreira.
O presidente talvez acredite que vai aprovar a mudança da previdência e também concentrar as chaves do orçamento federal nas mãos de seu grupo mais próximo, para alavancar a ampliação decisiva de uma base política própria em 2020 e 2022.
O bolsonarismo não deixa de ter alguma razão nesse desejo. Governos sem base própria enfrentam risco maior de colapso quando a popularidade declina além de um patamar. Com exceções, certos aliados só são úteis quando você não precisa deles.
Políticos são dotados de olfato sensível para o cheiro de sangue na água. Bolsonaro abre múltiplas frentes de atrito e é visto como mal menor por boa parte do establishment. Então basta esperar a hora em que o governo vai precisar de apoio.
A nova administração vem abrindo espaço inédito para referências religiosas, particularmente cristãs. Talvez fosse o caso de a turma dar uma folheada na Bíblia e estudar a interpretação de José para o sonho do Faraó com as vacas gordas e as magras.
#FicaaDica.
*
Num governo de retificações quase diárias, a declaração mais retificada admite a participação brasileira numa intervenção militar na Venezuela. Ou a coisa está bagunçada além do razoável ou tem caroço debaixo desse angu.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
O Estado de S. Paulo: Informalidade e benefícios respondem por 40% da renda das famílias do País
Em 2014, antes da crise, essas fontes de renda representavam um terço do orçamento; com desemprego em alta e recuperação lenta, peso dos salários no rendimento das famílias caiu
Márcia De Chiara, de O Estado de S. Paulo
Informalidade e benefícios respondem por 40% da renda das famílias do País
A renda com trabalho informal e a obtida com pensões, aposentadorias e outros benefícios pagos pelo governo estão ganhando peso maior no orçamento das famílias brasileiras, enquanto a contribuição do salário vem encolhendo. No ano passado, quase 40% dos ganhos dos domicílios vieram da informalidade e de benefícios do governo. Em 2014, antes de o País entrar em crise, esses rendimentos respondiam por um terço da renda familiar.
Os números são da consultoria britânica Kantar WorldPanel, que visita semanalmente 11 mil domicílios para radiografar o consumo no País. Uma vez por ano, a consultoria investiga de onde vem a renda do brasileiro para bancar despesas básicas, como alimentação, saúde, habitação e transporte.
Apesar de a economia ter voltado a crescer em 2017, o desemprego recuou muito pouco e continua em níveis elevados. Com isso, a participação do salário vem diminuindo no orçamento familiar. Em 2014, respondia por 63% da renda dos domicílios. No ano passado, a fatia recuou para 56%.
Nas regiões mais pobres, o peso dos rendimentos da informalidade e dos benefícios já ultrapassa o do salário. No Norte e Nordeste, por exemplo, os salários contribuíram o ano passado para 47% da receita doméstica, enquanto bicos e benefícios somaram 49%. Os 4% restantes vieram de outros tipos de ganhos, como doações, herança ou aluguéis. No Grande Rio de Janeiro, região afetada pela crise fiscal do Estado, mais da metade da renda das famílias já vem da informalidade e de benefícios pagos pelo governo.
“Do ponto de vista da renda, o aumento da informalidade é uma notícia ruim”, diz o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fabio Bentes. Como o ganho obtido com bicos é muito menor do que a renda de salário – entre 30% e 40% –, falta dinheiro no fim do mês.
Dívida. O estudo mostra que, pelo terceiro ano seguido, o gasto médio com despesas básicas tem superado a renda familiar em torno de 2%. No ano passado, a renda média mensal por domicílio foi de R$ 3.173, enquanto a despesa média mensal ficou em R$ 3.241.
Para fechar essa conta, explica Giovanna Fischer, diretora da consultoria e responsável pela pesquisa, as famílias têm se endividado. Recorrentes e herdadas de anos anteriores, as dívidas são um dos fatores que têm impedido que o orçamento volte ao azul. Além disso, a lenta recuperação do emprego formal contribui para manter essa defasagem. “Não há nenhum indicador que mostre recuperação da renda e, até o fim do ano passado, ela estava abaixo do gasto”, diz Giovanna. Bentes diz que a grande oferta de mão de obra disponível deve manter a renda pressionada para baixo.
Apenas em SP famílias fecham o mês no azul
Estado é o único onde a renda média supera o gasto com as despesas básicas
Pai de oito filhos, o ex-metalúrgico Jerivan Martins faz malabarismos para fechar as contas da casa. Sustenta a família com a renda mensal de R$ 2,2 mil que tira vendendo suco de laranja nas redondezas do Fórum da Barra Funda, na zona oeste da capital. “A minha mulher recebe R$ 270 por mês de Bolsa Família também”, lembra.
Para reduzir as despesas, Martins conta que a sua família mora no litoral, onde o custo de vida é menor. “Não tenho dívidas e consigo fechar o mês sem empréstimos, mas é justinho.”
Desempregada há um ano, Rosana Manente também está na informalidade. Ela vende pão caseiro todas as manhãs na estação de trem da Lapa, na zona oeste da cidade, para bancar as despesas da casa. Ex-frentista de posto de gasolina, seu marido também está desempregado há quatro meses. Rosana diz que, apesar do aperto, não deve nada a ninguém. “Vendi o carro e quitei tudo.”
Com os pães, ela tira R$ 100 por dia. Conta ainda com a ajuda da sogra aposentada, que contribui com R$ 400 por mês na renda da casa, apesar de não morar com o casal. “Não passo fome, mas vontade das coisas.”
Positivo. Martins e Rosana confirmam o movimento captado pelo estudo da consultoria Kantar WorldPanel para avaliar como está a renda do brasileiro. De todas as regiões pesquisadas do País, apenas as famílias que vivem no Estado de São Paulo conseguiram no ano passado fechar o mês no azul, isto é, com a renda média superando o gasto com as despesas básicas da casa.
Em 2018, a renda média mensal das famílias da Grande São Paulo foi de R$ 3.499, ante um gasto de R$ 3.311. O superávit foi de 5,7%. No interior do Estado de São Paulo, o resultado foi semelhante. A renda média mensal foi de R$ 3.362 para um gasto de R$ 3.193, uma diferença 5,3% a favor da renda.
“São Paulo foi a região onde as famílias estavam com o bolso mais folgado em 2018”, diz Giovanna Fischer, diretora da consultoria e responsável pelo estudo. Por sua vez, o estudo mostra que, no ano passado, as famílias que moravam no Grande Rio de Janeiro eram as que estavam com o orçamento mais estourado. Entre a renda e o gasto, o déficit foi de 13,9%.
De acordo com Giovanna, não é a primeira vez que isso acontece. Uma das justificativas para a diferença está no fato de que há mais oportunidade de emprego em São Paulo.
Um resultado que chamou a atenção na última pesquisa foi a virada que houve nas contas da famílias do Norte e Nordeste. Em 2017, a relação entre a renda e o gasto estava no zero a zero e, em 2018, o orçamento ficou no vermelho. O motivo do desequilíbrio é o aumento da informalidade, que proporciona uma renda menor frente à ocupação com carteira assinada.
Giovanna observa, no entanto, que, exceto no Norte e no Nordeste, a relação entre renda média e gasto melhorou nas demais regiões em 2018 na comparação com o ano anterior. No Estado de São Paulo, essa relação ficou mais positiva e, nas demais regiões, menos negativa.
Informalidade. Tanto Martins como Rosana, que hoje vivem de bicos e contam com a ajuda de benefícios pagos pelo governo, foram parar na informalidade depois de trabalharem por um longo período com carteira assinada.
Martins, que tem hoje 46 anos, trabalhou durante 22 anos numa metalúrgica na montagem de freios. Perdeu o emprego formal porque a empresa fechou. Rosana, que tem 50 anos, trabalhou por 13 anos na área financeira de uma cooperativa de ônibus e foi demitida porque a empresa se fundiu com outra. Depois, arranjou emprego com carteira assinada na área de vendas, mas foi novamente demitida há um ano.
Hoje ambos desistiram de procurar emprego formal. Alegam que é muito difícil encontrar uma vaga com carteira assinada por causa da idade.
Martins e Rosana fazem parte do grupo de trabalhadores que são subutilizados e que atingiu níveis recordes em janeiro, segundo o IBGE. São 27,5 milhões de pessoas, entre desempregados, desalentados ou simplesmente que estão trabalhando menos do que gostariam.
Bicos para apps aquecem venda de carros e motos
Locadoras aumentam compras de veículos para atender público que, diante da falta de emprego, aluga carro para trabalhar
RIO - A precariedade do mercado de trabalho e a popularização dos transportes de passageiros e cargas por aplicativos ajudaram a sustentar a demanda doméstica por automóveis e motocicletas no País no último ano, apontam especialistas.
Apesar da queda nas exportações para a Argentina e do orçamento ainda restrito das famílias brasileiras, a produção nacional de carros e motos mantém crescimento expressivo. A fabricação de automóveis nos 12 meses encerrados em janeiro subiu 9,3%, enquanto a de outros equipamentos de transporte – que é majoritariamente formado por motocicletas – cresceu 14%. Os dados são da Pesquisa Industrial Mensal, apurada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Tem uma demanda doméstica que pode ter sim uma relação direta com toda essa movimentação (de aumento de motoristas por aplicativo). Os dados corroboram essa leitura, especialmente levando em consideração a queda no comércio exterior. O setor permanece no positivo, embora tenha perdido dinamismo”, ressaltou André Macedo, gerente da Coordenação de Indústria do IBGE.
A dificuldade de encontrar um emprego impulsionou o aumento no número de trabalhadores no setor de atuando como motorista de aplicativos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), também do IBGE, mostram que havia 201 mil pessoas a mais atuando no segmento de transporte e correio no trimestre terminado em janeiro, em relação a um ano antes. O Instituto de Pesquisa econômica Aplicada (Ipea) calcula que, no ano passado, o total de trabalhadores atuando por conta própria no setor de entregas saltou 104,20%.
O IBGE não consegue detectar as compras de automóveis por pessoas físicas que usam o veículo como ferramenta de trabalho. “A aquisição de veículos feita por locadoras foi muito maior do que em anos anteriores. Então a gente subentende que o aumento da frota não é porque tenha muito mais gente alugando carro para passear. É gente que foi alugar para trabalhar”, explicou Claudia Dionísio, gerente da Coordenação de Contas Nacionais do IBGE.
O motorista Victor Hugo Oliveira, de 30 anos, trabalhava em uma produtora de eventos antes de começar a transportar passageiros via aplicativo. O automóvel que usa para trabalhar é seminovo, adquirido em 2017. No ano passado, ele comprou mais um carro, ao enxergar a nova profissão como uma oportunidade de investimento. O segundo veículo está atualmente alugado para um amigo. “O outro motorista trabalha com ele direto. É isso que sustenta a minha família”, relatou Oliveira.
Motocicletas. A Abraciclo, entidade que reúne os fabricantes de motocicletas, acredita que a melhora no crédito tenha possibilitado o avanço tanto na produção quanto nas vendas internas em 2018, puxado pelo segmento mais barato. “A demanda por motocicleta de baixa cilindrada representou cerca de 80% das vendas. São motocicletas de baixo valor”, disse José Eduardo Gonçalves, diretor executivo da Abraciclo.
Há duas semanas, o motociclista Wesley Freitas Gomes, de 35 anos, começou a entregar refeições solicitadas por aplicativo. Ele trabalha com sua motocicleta no centro do Rio, todos os dias, de 11h às 17h40. À noite, dá expediente na pizzaria da família, no bairro onde mora, na zona norte. “Vale a pena. Tem dia que é muito bom, dá para tirar até R$ 200. Quando está chovendo ninguém quer sair na rua, todo mundo pede comida”, contou Gomes, que disse ter dois primos exercendo a mesma atividade.
O diretor executivo da Abraciclo aponta que a maioria dos compradores das motocicletas de baixa cilindrada é das classes de renda C, D e E. “Por falta de emprego, acabam entrando nesses aplicativos que oferecem serviços de entrega”, diz Gonçalves, da Abraciclo.
A produção de motocicletas de baixo custo atingiu 824 mil unidades em 2018, alta de 17,8% sobre o ano anterior. O primeiro bimestre de 2019 começou aquecido, com alta de 14% na fabricação desses produtos e salto de 24,9% nas vendas, de acordo com a entidade.
A Cabify afirmou que houve um crescimento de 40% no total de motoristas de sua base no ano passado. A Uber – dona também do serviço de delivery Uber Eats – afirma que atualmente tem 600 mil motoristas cadastrados no País, atendendo a 22 milhões de usuários.
O Estado de S. Paulo: ‘O governo é um deserto de ideias’, afirma Maia
Presidente da Câmara dos Deputados cobra ‘liderança’ e diz que Jair Bolsonaro precisa ser mais ‘proativo’
Vera Rosa, Naira Trindade e Renata Agostini, de O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse ao Estado que o governo não tem projeto para o País além da reforma da Previdência. Um dia após ameaçar deixar a articulação política para a aprovação das mudanças na aposentadoria, por causa dos ataques recebidos nas redes sociais pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), Maia calibrou o discurso e assegurou a continuidade do trabalho. Fez, porém, várias críticas e advertiu que o presidente Jair Bolsonaro precisa deixar o Twitter de lado, além da “disputa do mal contra o bem”, e se empenhar para melhorar a vida da população.
“O governo é um deserto de ideias”, declarou Maia. “Se tem propostas, eu não as conheço. Qual é o projeto do governo Bolsonaro fora a Previdência? Não se sabe”. Na avaliação do presidente da Câmara, o ministro da Economia, Paulo Guedes, é “uma ilha” dentro do Executivo.
Ao ser lembrado de que Bolsonaro comparou possíveis dificuldades no relacionamento às brigas de um namoro, Maia disse que, se o presidente ficar sem conversar com ele até o fim do mandato, não haverá problema. "Não preciso falar com ele. O problema é que ele tem de conseguir várias namoradas no Congresso. São os outros 307 votos que ele precisa conseguir. Eu já sou a favor. Ele pode me deixar para o fim da fila", argumentou.
Neste sábado, em Brasília, Maia afirmou que os atritos com o governo são "página virada". "O que a gente precisa é mostrar para a sociedade que a gente tem responsabilidade, que o governo tem responsabilidade, que o governo vai sair de conflitos nas redes sociais e vai para o mundo real."
Por que o sr. decidiu abandonar a articulação da reforma da Previdência?
Apenas entendo que o governo eleito não pode terceirizar sua responsabilidade. O presidente precisa assumir a liderança, ser mais proativo. O discurso dele é: sou contra a reforma, mas fui obrigado a mandá-la ou o Brasil quebra. Ele dá sinalização de insegurança ao Parlamento. Ele tem que assumir o discurso que faz o ministro Paulo Guedes. Hoje, o governo não tem base. Não sou eu que vou organizar a base. O presidente da Câmara sozinho, em uma matéria como a reforma da Previdência, não tem capacidade de conseguir 308 votos.
Mas o sr. continua à frente da articulação?
Dentro do meu quadrado, sim. Agora, acho que quanto mais eles tentam trazer para mim a responsabilidade do governo, mais está piorando a relação do governo com o Parlamento. O governo precisa vir a público de forma mais objetiva, com mais clareza, com mais energia na votação da reforma.
O que o presidente Bolsonaro precisa fazer?
Ele precisa construir um diálogo com o Parlamento, com os líderes, com os partidos. Não pode ficar a informação de que o meu diálogo é pelo toma lá, dá cá. A gente tem que parar com essa conversa. Como o presidente vê a política? O que é a nova política para ele? Ele precisa colocar em prática a nova política. Tanto é verdade que ele não colocou que tem (apenas) 50 deputados na base. Faço o alerta: se o governo não organizar sua base, se não construir o diálogo com os deputados, vai ser muito difícil aprovar a reforma da Previdência. O ciclo dos últimos 30 anos acabou e agora se abre um novo ciclo. Ele precisa saber o que colocar no lugar. O Executivo precisa ser um ator ativo nesse processo político.
E não está sendo?
De forma nenhuma. Ele está transferindo para a presidência da Câmara e do Senado uma responsabilidade que é dele. Então, ele fica só com o bônus e eu fico com o ônus de ganhar ou perder. Se ganhar, ganhei com eles. Se perder, perdi sozinho. Isso, para uma matéria como a Previdência, é muito grave. Porque não é qualquer votação. É a votação que vai dizer o que o Brasil quer. Se é reduzir o número de desempregados, reduzir o número de pobres no Brasil. Se o Brasil quer voltar a poder investir em saúde e educação ou se o Brasil vai ter hiperinflação. Não é uma votação qualquer, para você falar "leva que o filho é teu". Não é assim. É uma matéria que será um divisor de águas inclusive para o governo Bolsonaro. Então, ele precisa assumir protagonismo. Foi isso o que eu falei. Não vou deixar de defender as coisas sobre as quais tenho convicção porque brigo com A, B ou C. Meu papel institucional não é usar a presidência da Câmara para ameaçar o governo.
Mas o sr. ficou bastante contrariado com os ataques da rede bolsonarista na internet...
Não é que eu fiquei incomodado. O que acontece é que o Brasil viveu sua maior recessão no governo Dilma, melhorou um pouco no último governo, só que a vida das pessoas continua indo muito mal. Então, na hora em que a gente está trabalhando uma matéria tão importante como a Previdência, e a rede próxima ao presidente é instrumento de ataque a pessoas que estão ajudando nessa reforma, eu posso chegar à conclusão de que, por trás disso, está a vontade do governo de não votar a Previdência. Não fui só eu que fui criticado. Todo mundo que de alguma forma fez alguma crítica ao governo recebe os maiores "elogios" da rede dos Bolsonaro. Isso é ruim porque você não respeitar e não receber com reflexão uma crítica não é um sinal de espírito democrático correto.
O posicionamento do vereador Carlos Bolsonaro nas redes sociais atrapalha o governo?
O Brasil precisa sair do Twitter e ir para a vida real. Ninguém consegue emprego, vaga na escola, creche, hospital por causa do Twitter. Precisamos que o País volte a ter projeto. Qual é o projeto do governo Bolsonaro, fora a Previdência? Fora o projeto do ministro (Sérgio) Moro? Não se sabe. Qual é o projeto de um partido de direita para acabar com a extrema pobreza? Criticaram tanto o Bolsa Família e não propuseram nada até agora no lugar. Criticaram tanto a evasão escolar de jovens e agora a gente não sabe o que o governo pensa para os jovens e para as crianças de zero a três anos. O governo é um deserto de ideias.
O sr. está dizendo que o governo não tem proposta?
Se tem propostas, eu não as conheço.
Há uma nova versão do 'nós contra eles'?
Eles construíram nos últimos anos o 'nós contra eles'. Nós, liberais, contra os comunistas. O discurso de Bolsonaro foi esse. Para eles, essa disputa do mal contra o bem, do sim contra o não, do quente contra o frio é o que alimenta a relação com parte da sociedade. Só que agora eles venceram as eleições. E, em um país democrático, não é essa ruptura proposta que vai resolver o problema. O Brasil não ganha nada trabalhando nos extremos.
Temos um desgoverno?
As pessoas precisam da reforma da Previdência e, também, que o governo volte a funcionar. Nós temos uma ilha de governo com o Paulo Guedes. Tirando ali, você tem pouca coisa. Ou pouca coisa pública. Nós sabemos onde estão os problemas. Um governo de direita deveria estar fazendo não apenas o enfrentamento nas redes sociais sobre se o comunismo acabou ou não, mas deveria dizer: "No lugar do Minha Casa, Minha Vida, para habitação popular nós estamos pensando isso; para saneamento, nós estamos pensando aquilo".
O presidente minimizou a crise dizendo que vai conversar com o sr. e que tudo é como uma briga no namoro. O que achou?
Se o presidente não falar comigo até o fim do mandato, não tem problema. Não preciso falar com ele. O problema é que ele precisa conseguir várias namoradas no Congresso, são os outros 307 votos que ele precisa conseguir. Eu já sou a favor. Ele pode me deixar para o fim da fila.
E por que o sr. entrou em um embate com o ministro da Justiça, Sérgio Moro, por causa do pacote anticrime?
Certamente, conheço a Câmara muito melhor do que o ministro Moro. E sei como eu posso ajudar o projeto sem atrapalhar a Previdência. O que me incomodou? O ministro passou da fronteira. Até acho que em uma palavra ou outra me excedi, mas, na média, coloquei a posição da Câmara. O governo quer fazer a nova política. Nós queremos participar da nova política.
Há quem diga que a Câmara não quer dar protagonismo a Moro porque ele foi juiz da Lava Jato, algoz de políticos...
Ele foi um ótimo juiz, teve um papel fundamental. Foi um juiz que se preparou para investigar corrupção e lavagem de dinheiro. E fez isso muito bem. Agora, o protagonismo é dos deputados. Isso é óbvio. Nós é que vamos votar.
A prisão do ex- presidente Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco serviu para tumultuar ainda mais o ambiente político para a votação da reforma?
Eu não acho. Agora, quando você tem um problema desse, ele (Bolsonaro) vincula logo à política, ao desgaste do Parlamento. Isso é ruim. As instituições precisam funcionar. Uns gostam da decisão, outros não. Mas ela precisa ser respeitada e aquele que se sentir prejudicado por uma decisão da Justiça tem o poder de recorrer.
Deputados e senadores do PSL, partido do presidente, comemoraram a prisão e atacaram o MDB. Isso também pode ser um problema?
O PSL saiu do zero, foi ao topo muito rápido e acho que ainda falta uma capacidade de articulação interna. Na hora de votar, eles vão ver que precisam do voto do MDB. O problema do ex-presidente é do ex-presidente. É óbvio que contamina o MDB de alguma forma, mas não vamos transformar isso num problema de todos. Vamos deixá-lo responder porque ninguém pode ser pré-condenado. Vamos ter paciência. Não se pode abrir mão de nenhum partido para aprovar a reforma da Previdência. Uma reforma, para ser aprovada, precisa ter uma margem de 350 votos.
E ainda há muita resistência em relação à proposta enviada para os militares...
Os militares têm razão quando falam que foram muitos prejudicados desde os anos 2000. O momento não é simples. Na hora que acalmar essa semana política vai se começar um debate do que é o projeto de lei dos militares. Acho que vai ter mais conflito que a emenda constitucional, mas a gente vai precisar enfrentar porque eles garantem a soberania nacional. Vai ter resistência, mas não podemos jogar no mar a proposta.
Por que o DEM, com três ministérios no governo, até hoje não entrou formalmente na base aliada?
É porque, para o DEM, como para todos os partidos, mais do que essa política que o presidente acha que é prioridade, que são as nomeações, a prioridade é conhecer qual é o projeto do governo. E aí você vai projetar 2022 ou 2032, dizendo "esse projeto para o Brasil vai dar certo, vai reduzir a extrema pobreza de 15 milhões para 5 milhões, o desemprego vai cair de 12 milhões para 5 milhões, a economia vai crescer 5% nos próximos anos". Tirando algumas ilhas, como o Paulo Guedes, a Tereza Cristina (ministra da Agricultura, filiada ao DEM), está faltando, de fato, a gente compreender qual é a política.
O deputado Eduardo Bolsonaro disse que em algum momento será necessário o uso da força para tirar o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, do poder. O sr. concorda?
Respeito o deputado Eduardo Bolsonaro, que é presidente da Comissão de Relações Exteriores, mas acho que a interferência de outros países na Venezuela não é o melhor caminho e que essa não é a posição dos ministros militares do governo. Nós estamos com a estrutura das Forças Armadas desabastecida. Vamos dizer que alguns concordem com isso. O Brasil não tem nem condições de segurar 24 horas de confronto com a Venezuela.
O sr. acha que Bolsonaro deve enquadrar os filhos?
Tenho dificuldade de falar como o presidente deve tratar os filhos dele. Eu sei como tratar os meus.
Marco Aurélio Nogueira: As pedras no caminho
Até Guedes e Moro se dão ao luxo de contribuir para o besteirol que se esparrama pelo País
A repetição insistente choca e surpreende. Dia sim, outro também, um fato novo comprova a tendência. Uma declaração, um tuíte presidencial, a entrevista de um filho, a fala de algum ministro. Até os mais técnicos, como Guedes e Moro, se dão ao luxo de contribuir para o besteirol que se esparrama pelo País. Não conseguem falar com autonomia, gastam energia em bajulações desnecessárias, que decepcionam e confundem.
Precisamos, por isso, insistir, repisar pedras já desgastadas por passos recorrentes. Temos de fazer esse movimento para ver se compreendemos como é que, num curto espaço de tempo, conseguimos cair tão baixo, a ponto de não sabermos mais o que unifica o País, quem governa e o que virá pela frente.
Tudo mudou demais no Brasil de 2018 para cá, em se tratando de política e governo. A crônica tem sido abundante a esse respeito. O País enveredou por uma trilha da qual não sabe como sair e que a cada dia fica mais obscura. Há novos hábitos sendo cozinhados num caldeirão que é revolvido por uma trupe de pessoas pouco qualificadas, sem generosidade, fanatizadas por uma narrativa que não se imaginava poder sair do submundo intelectual em que vicejava. Vem daí a atitude de pasmo e surpresa que se abateu sobre o campo político laico e progressista, dos liberais democráticos às esquerdas fundamentalistas, passando pela esquerda democrática. Estão todos paralisados, com um grito preso na garganta, sem saber que rumo tomar, como se opor ou resistir à onda direitista e fascistoide que ameaça prolongar-se, misturada com um neoliberalismo impreciso na economia e todo tipo de improvisações.
Tal onda segue a cavalo de um anticomunismo apoplético que se articula com uma declarada, mas não esclarecida “moralização dos costumes”. Estabelece-se uma relação de causalidade entre duas dimensões que nada têm entre si: o “comunismo” seria o causador da decadência moral da sociedade; seu materialismo, seu desejo de poder, seus métodos de trabalho e seu caráter insidioso estariam na base da desagregação da ordem social e da corrupção das famílias, todas elas recatadas e tementes a Deus. Seria o caso, então, de desconstruir os fundamentos do mal para, quem sabe, mais à frente, construir algo novo. É assim que o novo grupo dirigente justifica sua inoperância governativa, sua falta de propostas e suas trapalhadas.
A moralização pretendida quer repor uma ordem que teria sido perdida, recuperar limites que teriam sido ultrapassados, enquadrar a diversidade social num quadro unitário que ressoa a autoritarismo, fazer da educação e da cultura uma extensão passiva das palavras bíblicas, num criacionismo extemporâneo e avesso ao mundo moderno e às próprias tradições nacionais. Quer fechar o País à influência de um “globalismo” não compreendido, visto como ambiente para a reprodução das esquerdas e a desnacionalização do País. Quer criar um povo submisso, que se movimente pouco, não ouse nem atravesse os Rubicões da vida, não se dê ao direito de usufruir as margens de liberdade ampliadas pela modernidade, não conteste hierarquias e autoridades, especialmente as emanadas dos super-heróis da nova era.
Tudo isso é absurdamente sem sentido, faz soar os tambores da irrazão.
Não é acidental que a bajulação se tenha convertido em estilo de atuação. Há “libertadores” que precisam ser incensados, Trump acima de todos, líderes que conduzirão a humanidade de volta ao leito da nação e varrerão os “subversivos”, os ímpios, da face da Terra. A recente viagem presidencial a Washington mostrou quão longe pode chegar tamanha disposição à subserviência.
Não sabemos a força que essa operação terá diante dos modos de agir, pensar e sentir impulsionados pelas dinâmicas da modernidade radicalizada, que reiteram o indivíduo cioso de sua privacidade e de sua responsabilidade cívica, que põem em marcha uma individualização que tensiona os nexos entre as pessoas e os grupos, que explodem as velhas modalidades de ordem e disciplina. A mesma modernidade que tensiona a democracia e produz intenso desejo de identidade também multiplica direitos de todo tipo e abre clareiras democráticas, desafiando os poderes constituídos, os hábitos políticos estruturados, as figuras tradicionais do associativismo (partidos, sindicatos), projetando as populações num vórtice incessante e fora de controle. Vivemos um tempo de complexidades categóricas, hostis às formas simples de pensamento e ação.
Não se deve dar de barato que a pretendida regressão nos costumes será vitoriosa. Sua maior dificuldade é precisamente o que lhe dá força inicial: sua grosseria, seu linguajar chulo, sua ruptura com a ciência e a democracia, seu desprezo pelas liberdades, sua mediocridade técnica. São esses elementos que fazem a pregação fanatizada obter audiência e mobilizar uma legião de seguidores. Mas como será quando ela tiver de entregar o que promete e que colide com os termos da vida atual, entra em choque com eles e é por eles deslegitimada? Como será quando seus articuladores políticos e governamentais tiverem de explicar à população o mau governo que praticam, com sua crueldade e suas mãos sujas de imposturas intelectuais e baixarias vis?
Não se poderá sustentar ad infinitum que as desgraças do mundo se devem ao “comunismo”, às “esquerdas” e ao “globalismo”, ou à traição dos que se aproximaram do novo panteão para depois abandoná-lo, arrependidos. A caça aos traidores não sobrevive quando os caçadores têm o rabo preso e não são capazes de oferecer algo mais do que ofensas e estigmatizações.
De resto, pelas pedras do caminho sabemos bem para onde nos leva o anticomunismo vociferado como se fosse o dernier cri da civilização. Manifestado como ideologia, ele só consegue criar na sociedade divisões sucessivas entre bons e maus, os nossos e os deles, levando pelos ares qualquer possibilidade de uma reconstrução efetiva.
O Globo: Atritos acontecem porque alguns não querem largar velha política, diz Bolsonaro
No Chile, presidente não cita diretamente Rodrigo Maia, que o criticou neste sábado, mas fala de desentendimento e defende reforma da Previdência
Janaína Figueiredo
SANTIAGO — Em café da manhã com representantes da Sociedade de Fomento Fabril (Sofofa) do Chile, com a polêmica envolvendo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), dominando a agenda política local , o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assegurou que "os atritos que acontecem no momento, mesmo estando calado fora do Brasil, acontecem na política lá dentro porque alguns, não são todos, não querem largar a velha política".
Bolsonaro tentou transmitir otimismo aos empresários chilenos e em momento algum mencionou especificamente seu conflito com Maia:
— Acredito no Brasil e temos chance, sim, de sair dessa situação que nos encontramos com as reformas e a primeira delas, a mais importante, é essa da Previdência.
Em Brasília, nas últimas horas Maia fez duras críticas a Bolsonaro e questionou sua “falta de compromisso” com a reforma da Previdência. Questionado sobre a declaração de Bolsonaro comparando o episódio a um namoro , Maia reafirmou ter convicção da necessidade da reforma e que Bolsonaro precisa parar de falar contra a reforma.
— Não preciso namorar, conversar, tomar café, eu tenho convicção da matéria. O presidente nunca teve. Que bom que esteja construída essa convicção. Agora, ele precisa ter convicção, precisa parar de falar que ele é contra a reforma da Previdência, isso atrapalha, gera insegurança — disse o presidente da Câmara neste sábado.
Em Santiago, o presidente apostou por um discurso conciliador, mas voltou a atacar o que chama de “velha política”.
— Nós temos que dar certo. Não é um plano meu, é um plano do Brasil. Não temos outra alternativa a não ser fazermos essas reformas... Venho aqui com uma mensagem de fé, esperança, do coração. Podemos sair dessa situação — assegurou Bolsonaro.
Entusiasmado com o passeio que realizou na última sexta-feira no shopping Alto Las Condes, numa região nobre da capital chilena, o presidente mostrou-se de bom humor e fez até uma brincadeira:
— Será que não posso me naturalizar para me candidatar a presidente.
Ao explicar a delicada situação econômica brasileira, Bolsonaro comentou que a dívida do governo federal é de R$ 4 trilhões e que o governo gasta anualmente meio trilhão de reais com juros e encargos da dívida.
— Dada essa situação que nos encontramos é que acreditamos que o Parlamento vai aprovar as reformas. Obviamente com algumas alterações — ampliou o presidente.
Bolsonaro contou aos empresários que “a equipe econômica trabalha numa forma de desburocratizar a economia, desregulamentar muita coisa, tenho dito que na questão trabalhista devemos beirar a informalidade. Nossa mão de obra é uma das mais caras do mundo”.
Bruno Boghossian: Com popularidade em queda, Bolsonaro perde tração no Congresso
Presidente queria força da rua para driblar políticos, mas pode ficar emparedado
Celebrado pelo clã Bolsonaro, o estrategista Steve Bannon define o populismo como um modo de governar que se aproxima do povo para driblar as elites políticas. “Populismo é basicamente garantir que a classe média e a classe trabalhadora terão um lugar à mesa”, disse, em entrevista recente à Folha.
Os números da última pesquisa do Ibope indicam que o presidente brasileiro perdeu pontos fora dos palácios. A popularidade de Jair Bolsonaro caiu de 49% para 34% em pouco mais de dois meses de mandato. O tombo foi grande em diversos grupos e mais forte em segmentos de renda baixa e intermediária.
Um de cada três brasileiros de classe média que consideravam o governo ótimo ou bom mudou de ideia. Em janeiro, Bolsonaro tinha apoio de 53% na faixa de renda de 2 a 5 salários mínimos. Agora, são 35%. Na fatia mais pobre da população, o índice caiu de 41% para 29%.
A desidratação é relevante porque esses grupos são numerosos (só 8% da população pesquisada recebe mais de 5 salários) e ajudaram Bolsonaro a expandir seu eleitorado para chegar à Presidência. Os mais ricos aderiram cedo à campanha do então deputado. Ele só conquistou maioria ao cativar outros segmentos.
Nos primeiros meses de governo, o discurso de Bolsonaro ficou concentrado em seu núcleo de apoiadores mais fiéis. O presidente dobrou a aposta em temas de costumes —que soam bem em muitas faixas da população, mas podem frustrar quem aposta na recuperação da economia e na redução da violência.
É cedo para esperar resultados concretos nessas áreas. É natural, porém, que cidadãos de renda baixa ou média fiquem incomodados mais cedo que os brasileiros mais ricos.
Assim como Bannon, o presidente contava com o apoio popular para tratorar as resistências dos caciques do Congresso a seu governo. Se não recuperar pontos nas ruas, ele corre o risco de ficar emparedado no momento em que precisa defender de viva voz um tema impopular como a reforma da Previdência.
Bernardo Mello Franco: A lua de mel durou pouco
Bolsonaro conseguiu uma proeza: encolheu em três meses, e sem a ajuda da oposição. Seu derretimento é resultado de erros e confusões criadas no campo governista
Durou pouco a lua de mel de Jair Bolsonaro. A aprovação do presidente caiu 15 pontos desde janeiro. O percentual de eleitores que consideram o governo bom ou ótimo recuou de 49% para 34%, informou ontem o Ibope. É a pior largada de um presidente eleito para o seu primeiro mandato desde a redemocratização do país.
Bolsonaro conseguiu uma proeza: encolheu sem a ajuda da oposição. O derretimento é resultado de erros e confusões criadas no campo governista. O caso Queiroz, o laranjal do PSL, as trapalhadas dos primeiros-filhos e os laços do clã com as milícias aceleraram o desgaste. O presidente deu a sua cota com declarações desastradas e caneladas virtuais. A aposta na polêmica rendeu frutos na campanha, mas começa a mostrar limitações no exercício do poder.
A diretora-executiva do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari, diz que Bolsonaro também alimentou a esperança de que resolveria problemas num passe de mágica. “Como as coisas não mudam rapidamente, há um sentimento de frustração”, observa. Ela vê risco de o presidente continuar descendo a ladeira nos próximos meses. “A curva é perigosa”, alerta.
O presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, ressalta outro dado da pesquisa. O percentual de brasileiros que confiam em Bolsonaro caiu, mas ainda é maior que o de eleitores que não confiam nele (49% a 44%). Tirando os que não opinaram, a diferença é quase idêntica ao resultado do segundo turno, quando o presidente venceu por 55% a 45% em votos válidos.
Os números são uma má notícia para a equipe econômica, que contava com a popularidade do chefe para forçar as mudanças na Previdência. Agora ficará mais caro convencer o Congresso a encampar a reforma, que vai mexer com o bolso do eleitor.