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BBC Brasil: Governo Bolsonaro é pior do que eu imaginava porque 'não vi nada' até agora, diz FHC
Ingrid Fagundez e Ligia Guimarães / BBC News Brasil
SÃO PAULO - No fim de 2018, quando perguntado sobre suas expectativas em relação ao governo de Jair Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era cauteloso: dizia preferir esperar as ações do líder recém-eleito para avaliar se seus "temores" se confirmariam.
Hoje, há três meses sob a nova administração, o tucano é mais taxativo. Bolsonaro, diz, é pior do que ele esperava. Quase cem dias depois da posse, o sociólogo de 87 anos afirma não ter visto "nada" do governo.
"Por que ele foi eleito? Ele falou temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse 'eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo'. Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?", diz, em entrevista à BBC News Brasil na sede do Instituto FHC, no centro de São Paulo.
Para o ex-presidente, a nova gestão está sem rumo. As falhas, na sua análise, são muitas: falta projeto para o país, falta aprender a se relacionar com o Congresso, falta até se comunicar com a população para explicar medidas consideradas fundamentais pelo governo, como a reforma da Previdência.
Ele cita a experiência do Plano Real, quando, como ministro, liderou a articulação em prol da aprovação da proposta. "Não tinha medo de bicho papão. Fui falar do Plano Real até no programa Silvio Santos", diz. "Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente."
Guedes sem sessão da CCJ, da Câmara; para FHC, ele age como professor com os parlamentares, não como político
Mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi duas vezes ao Congresso tratar da reforma da Previdência, esbarra no tom de "professor" ao falar com os parlamentares, diz FHC.
"Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né?
Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia 'mas não é meu terreno'.
Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo."
Distante das atividades do PSDB desde que deixou a Presidência ("nem sei onde fica o diretório"), mantém contato com alguns de seus pares na sigla. Os mais frequentes, diz, são o ex-governador Geraldo Alckmin e os senadores Tasso Jereissati e José Serra. "E o (governador João) Doria, mais raramente..."
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala bastante sobre seu exílio durante a ditadura, período em que perdeu seu pai, e foi aposentado compulsoriamente da USP. Como viu a divulgação do vídeo em defesa do golpe militar pelo Planalto?
Fernando Henrique Cardoso - É uma coisa historicamente inconsequente, né? E era também uma vontade que corresponde a esse tipo de coisa do [Donald] Trump, de idealizar o passado. Dizer "não foi assim, foi diferente". Quem passou pela época sabe. Começa pela imprensa.
Olha, trabalhei num jornal chamado Opinião, da imprensa nanica. Como é que se fazia? Você escrevia um artigo e às vezes vinha o redator-chefe e dizia "olha, essa frase não passa". Quantas vezes no jornal não saíam poesias, que era a maneira de dizer "fui censurado"?
Então você dizer hoje que não houve ditadura, que não houve um movimento de controle da liberdade, é completamente desassisado. Por que se diz? Porque a política não é feita por historiadores, é feita por personagens ativos, incentivando o medo.
BBC News Brasil - O senhor fica mais preocupado quando isso vem institucionalizado, quando vem do Planalto?
FHC - Sim, claro que preocupa. Mas se você comparar com o que aconteceu em 1964... Em 1964, havia Guerra Fria. Era uma realidade, não era uma invenção. Havia um alinhamento político ora para um lado, ora para o outro. Hoje não tem essa realidade. Mesmo que venha do Planalto, como você vai assentar essas coisas que o Planalto quer colocar como verdade? No passado, tinha [uma forma], porque de fato havia briga, havia União Soviética, hoje não tem.
Você vai dizer o quê? O perigo vem da China? A China está preocupada em vender o que produz.
BBC News Brasil - Ao falar sobre as novas versões históricas a respeito do golpe de 1964, o senhor disse que elas são prejudiciais para o futuro do país. Muito se discute hoje sobre ameaças à democracia brasileira. Vê esse risco?
FHC - Sobre o Brasil, quando as pessoas dizem o que você acabou de me perguntar, querem dizer o seguinte: há o perigo de um regime sem liberdade. Sempre há, você tem que prestar atenção. Mas não acho que possamos comparar com 64 porque em 64 havia um confronto real entre concepções do mundo ancoradas em Estados, simbolicamente a União Soviética e os Estados Unidos. Você tem diferenças no mundo hoje, mas não tem mais ideologias ancoradas só num Estado. É mais difuso.
Por outro lado, no passado, os partidos de esquerda e de direita tinham não só uma ideologia como se organizavam. Eles queriam representar interesses de classe. Não há isso no Brasil de hoje. Estive recentemente na Europa e era uma dificuldade, porque os jornalistas me perguntavam na pressuposição de que isso existia. E não há.
Quem votou por A, B ou C no Brasil, não votou numa concepção orgânica, votou numa pessoa que emitiu sinais que captaram um sentimento.
BBC News Brasil - O senhor está falando de Bolsonaro?
FHC - É. Ou de outro qualquer. Quem votou no Bolsonaro, por exemplo. Por que ele foi eleito? Ele falou de temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse "eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo". Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?
BBC News Brasil - Logo depois que o presidente Bolsonaro foi eleito, o senhor falou que as ações dele iriam desmentir ou confirmar os temores despertados no senhor na época. E hoje?
FHC - Meu temor não é só sobre o Brasil. Como eu disse, está difícil [em todo o mundo] a noção de representatividade e democracia. Aqui meu temor hoje é outro, é a falta de qualquer coerência.
BBC News Brasil - No governo?
FHC - No governo. Não estou com temor de que acabe a liberdade de imprensa. Não tem força para isso. Claro que vai depender da reação da sociedade, sempre. Não se pode fechar os olhos e dizer "deixa então". Tem que se opor, porque se não se opuser, as coisas vão se organizando.
Vamos falar em coisas concretas. Você tem uma enorme quantidade de militares no governo, em geral da reserva. Mas não tem um Exército, uma força armada no governo. Não houve uma tentativa de uma corporação tomar conta e dar um certo rumo. Não é a mesma coisa. Em 1964, houve uma ocupação com uma ideologia, tinha uma cabeça. O general Golbery [do Couto e Silva, um dos principais articuladores da ditadura militar] não era nenhum desinformado, ele tinha uma linha. Aqui não tem, é uma coisa mais precária.
Não acho que estejamos na ameaça concreta de uma força organizada tomar conta do poder. O que não quer dizer que não seja um risco, porque você precisa ter alguém para apontar um caminho. Com muita confusão, as coisas ficam difíceis, porque o mundo está avançando.
Qual é a briga dos Estados Unidos com a China hoje? Não é só comunismo e democracia. É quem domina melhor a tecnologia, o que faço com ela.
presidente diz que esperava "um caminho" do governo Bolsonaro, algo que não viu até agora
BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala que o Brasil sempre teme perder oportunidades. Estamos perdendo?
FHC - Estamos perdendo oportunidades. Num mundo difícil, confuso, você tem que ter algum objetivo e estratégia. Se nos perdermos no que se chama de "curto-prazismo", não acontece nada. O que vai ser daqui a dez anos? Daqui a vinte? O que eu quero fazer? Quero mandar o homem para Lua? Eu quero fazer o quê? [...] Alguma coisa mais concreta para que você possa orientar o sentimento e o comportamento das pessoas em uma certa direção.
BBC News Brasil - Mas em relação aos temores que o senhor mencionou, esses três meses foram melhores ou piores do que tinha imaginado?
FHC - Acho que piorou no seguinte sentido: não vi nada.
BBC News Brasil - É pior do que o senhor esperava?
FHC - É.
BBC News Brasil - O que o senhor esperava?
FHC - Um caminho. Vamos pegar uma coisa concreta. O setor econômico do governo parece ter um caminho, posso concordar ou não, mas é um caminho. Só que não vi esse caminho se transformar numa realidade congressual. E vivemos numa democracia, não adianta eu saber. Tem que fazer com que os outros estejam de acordo e votem do meu lado. Não vejo organização no Congresso para isso.
Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né? Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia "mas não é meu terreno". Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo. Só se transforma num processo quando você atua sobre os outros e tem o consentimento, a adesão dos outros.
Nos outros setores, [fora o econômico] você não vê nada. Você uma coisa idílica... Escola Sem Partido. Não tem que ter partido em escola mesmo, não cabe, mas traduzem isso de uma maneira antiquada. Todo mundo tem ideologia mesmo, de um jeito ou de outro. Você influencia o aluno queira ou não queira, mas você não pode organizadamente inculcar uma ideia no aluno. Sou contra isso aí. Mas a ideia do Escola Sem Partido é outro partido. Então, você vai tirar o evolucionismo e botar o criacionismo... Tenha paciência.
BBC News Brasil - O senhor citou recentemente a possibilidade de queda de um presidente que não entende como se articula o Congresso. O senhor está falando de Bolsonaro? Vê risco de queda?
FHC - Sempre existe. Sempre fui, pessoalmente, muito renitente à ideia de impeachment. Lembro-me do caso do presidente Lula, por causa do mensalão. Quando o tema veio à baila, eu era contrário. Não porque tivesse dúvida quanto ao mau procedimento e ao combate do mensalão, mas digo "meu Deus, vamos colocar para fora da Presidência um homem que foi líder sindical, ganhou as eleições, que tem enraizamento popular"? Isso deixa uma marca na história.
Na minha cabeça, naquela época, eu comparava com Getúlio Vargas. Eu era menino no tempo do Getúlio, quando derrubaram o Getúlio. Vocês não imaginam a tensão que havia na política brasileira, na vida brasileira, entre Getúlio e anti-Getúlio, nas famílias, era uma coisa insuportável. Eu disse "bom, vamos repetir isso aqui?". Historicamente não é bom.
No caso da Dilma Rousseff, nunca fui fanático pelo impeachment, embora houvesse elementos, como havia no caso do Lula. Porque você tem que pensar que é uma coisa complicada. Depois da Constituição de 88, eleitos pelo voto direto foram o Collor, que sofreu impeachment; eu, que consegui (concluir dois mandatos); o Lula, que conseguiu, mas está na cadeia. A Dilma sofreu impeachment. E agora o Bolsonaro.
É uma coisa complicada do ponto de vista nacional. Por que alguns conseguiram? Eu fiquei oito anos, na verdade fiquei dez porque no tempo do Itamar eu tinha muito controle. O Lula ficou mais que oito, porque no tempo da Dilma ele tinha controle. Por quê? Porque, de maneiras diferentes, tanto eu como o Lula conhecíamos as forças da sociedade. Se você não entender a diversidade e necessidade de ter apoio, você perde a força. E quando é o impeachment? Quando não tem apoio.
BBC News Brasil - Apoio que se consegue com articulação política.
FHC - É, articulação. É uma questão em todos os governos, não só no Brasil. Mesmo nas ditaduras você tem que ter apoio. Pega a ditadura aqui no Brasil, não tinha apoio? Tinha. Pode não ser o apoio que você deseja, não é voto, mas tem que ter apoio em alguns grupos da sociedade. Aqui temos um regime democrático, que precisa de voto, e os parlamentares nesse regime têm peso. E temos tremenda dificuldade hoje com uma fragmentação partidária sem tamanho; quando você não tem essa fragmentação é mais fácil discutir o apoio.
Como você discute apoio? A pior maneira feita aqui foi comprar, com dinheiro, que é insustentável e corrompe tudo, não só as pessoas como as instituições. Mas você tem que negociar: você está de acordo? Quem está do meu lado? Se você estiver de acordo, você vai ser ministro. Mas no Brasil se criou a ideia de que fazer acordo é crime, corrupção. Aí não tem como governar, só com a ditadura. Como é que faz? Quem ganhou manda?
Sempre disse isso: tem que ser com base em um programa. Quando não tem programa, e esse programa não tem apoio da sociedade, o governo fica muito frágil, e o Congresso derruba.
BBC News Brasil - O senhor vê esse risco para Bolsonaro, de não terminar o mandato?
FHC - Espero que não, porque o Brasil precisa de continuidade, precisa que as instituições se reforcem. Então não torço por esse lado, nem estou vendo que isso possa ocorrer já. Não gostaria que isso ocorresse, na verdade, por questões históricas. Mas acho que o governo tem que andar depressa.
Costumo fazer uma comparação grosseira, do cavalo e o cavaleiro. O Congresso e o Executivo é a mesma coisa. O Congresso fica te olhando lá: "esse cara não sabe montar a cavalo, e se não sabe, vou dar um pinote". E de repente dá um pinote e te tira. Então você tem que estar o tempo todo tentando convencer o Congresso e o povo de um certo caminho.
Como é que você convence o Congresso? Tendo apoio popular fica mais fácil, porque o Congresso pensa na própria eleição. Segunda parte: você tem que compartilhar o poder e ter objetivos - o que estou propondo, o que vou fazer. Pega uma coisa essencial para o Brasil, a reforma da Previdência. Por que é essencial? Porque daqui a pouco o governo vai ter que emitir moeda, volta a inflação.
Já no meu tempo tentamos fazer [a reforma da Previdência], conseguimos um pouquinho. Cada um fez um pouquinho. Pouco a pouco, até no momento atual, a população começa a entender isso.
Para fazer uma reforma você tem que gastar muita saliva, e explicar muito para a população o porquê, para ganhar o apoio. Para o Congresso também te apoiar. O caminho mais fácil é você cooptar o Congresso, seja com cargos, seja com dinheiro. Mas não é o melhor. O melhor é você ter capacidade política para ganhar a luta na agenda. O que eu fiz no tempo do Real? Eu falei.
BBC News Brasil - O senhor disse em entrevistas que, no processo de aprovação do Plano Real, assumiu o papel de articulador como ministro da Fazenda quando o presidente Itamar Franco preferiu ficar de fora. Esse é um modelo que poderia funcionar para a reforma da Previdência? Guedes poderia ser o "FHC" de Bolsonaro?
FHC - Não do jeito que ele está pensando. Ele tem que ser político.
Eu era senador, então eu ia às bancadas todas do Congresso e discutia inclusive com a oposição, não tinha medo de bicho papão, os enfrentava. E eu falava na televisão. Vou dar um exemplo: eu fui convidado uma vez para falar sobre o plano Real no programa Silvio Santos. Cheguei lá no barracão na marginal do rio Tietê, onde era o estúdio. Silvio estava em uma salinha fazendo maquiagem e me chamou lá. Ele me dizia: repete. Eu repetia. Ele falava "ih, vai ser um desastre, não vão entender nada".
Ele acabou a maquiagem e entramos em um salão do auditório. Ele me disse "olha, minha audiência tem uma idade mental de 12 anos. Em média". Ele foi lá e deu um show. Explicou muito melhor e mais apropriadamente do que eu seria capaz, para o auditório dele, o que era o Plano Real, a URV. Mas fui lá falar com ele. A questão de obter apoio implica em explicar.
BBC News Brasil - E no que o senhor vê falhas em Guedes? Ele foi falar no Congresso…
FHC - Sim, foi lá responder, respondeu bem, como um professor. Não falei como professor, falei como político. Se você falar como professor é uma coisa: quem entende é quem está na aula. E quem não está em aula? Não estou dizendo que Guedes não seja capaz, estou falando que, até agora, não vi ninguém que explicasse dessa maneira.
Sendo líder, você tem que traduzir de maneira que as pessoas sintam. Está faltando isso. Não é propaganda, é a crença de que o líder vai fazer aquilo. Alguém vai ter que assumir esse papel. Vou dar um exemplo que eu gosto muito, do Lula, no Palácio da Alvorada, falando sobre poluição.
"[Ele disse:] a poluição, vocês sabem, vem lá de cima. A Terra é redonda e ela gira. Se ela fosse plana, a poluição seria um problema deles, porque são eles que poluem. Mas como ela gira, cai na nossa cabeça; então nós temos que proteger o meio ambiente". Ele explicou. Fundamento científico zero, mas a maneira de dizer "atenção, porque isso pega em você também" é assim.
BBC News Brasil - O governo está gastando saliva nos lugares errados?
FHC - Sou prudente nessas coisas. Acho que tem que dar um pouco de tempo ao tempo para ver como o governo vai atuar. O estilo de comunicação que vejo no presidente é a internet. Não é minha área, não sei dizer se está funcionando, se não está funcionando.
Mas quando sai da internet e vai falar, é um estilo mais "o homem comum". Pode pegar? Pode. Mas precisa falar, repetir, de uma maneira mais fácil, mais direta. Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente, que a gente saiba que quando ele está falando, está falando pelo governo. Isso não é só aqui, é no mundo todo onde há democracia.
BBC News Brasil - Mas o presidente tem declarado que ele já fez sua parte ao entregar a proposta ao Congresso. Disse que, por ele, nem seria favorável à reforma.
FHC - Acho que ele está errado. Isso está errado. É porque ele vem de uma corporação e todas as corporações ficam com preocupação quando muda a Previdência, eu entendo. Sou de uma família que tem muitos militares. Você não imagina a dificuldade que eu tive com a reforma da Previdência, [com] minha irmã, meus irmãos. [Eles diziam:] 'meu pai contribuía, tenho direito'. E o que eu dizia? Eu lavo as mãos? Alguém vai ter que botar a mão na massa.
BBC News Brasil - Como os empresários e o mercado têm percebido o governo nessa situação?
FHC - Não tenho tanta familiaridade, mas o que posso dizer é: o mercado e o Congresso têm uma conversa de surdos. Um não entende o outro e adivinha, aposta. Muitas vezes o mercado aposta que vai haver tal coisa que é inviável, e o Congresso é absolutamente insensível ao nervosismo do mercado. Então é por isso que precisa de alguém que faça pontes, explique.
BBC News Brasil - Na semana passada, a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de "aprendiz de presidente", dizendo que faltava a ele conhecimento sobre o próprio emprego. O senhor concorda?
FHC - Não estou lá próximo para saber como ele tem desempenhado. O que vi foi em Davos, [quando] perdeu uma oportunidade. Agora foi lá para Israel e prometeu que ia abrir uma embaixada, recuou para abrir um escritório, provavelmente desagradou aos dois lados. Nos EUA, ele foi muito pró, foi pró demais.
Acredito que tem que se dar tempo ao tempo. A verdade é que ele esteve por muitos anos no Congresso. Eu tive escolinha de presidente: porque eu fui líder [durante o governo] Sarney, depois veio Itamar que era meu colega, vi [a política] mais de perto. Não é necessário isso, o Lula nunca foi tão perto e aprendeu. A Dilma não aprendeu. Para você ver que tem alguma coisa que depende do estilo da pessoa. Mas acho que é cedo para dizermos "é assim". E temos um ministro do Exterior que quando fala, complica, né... (risos).
BBC News Brasil - O senhor já declarou que não está vendo oposição ao governo.
FHC - Só de dentro do próprio governo.
BBC News Brasil - Durante a eleição, o senhor disse que não apoiaria nem Bolsonaro nem o PT, por tratarem-se de "dois extremos", e foi criticado por não ter se posicionado. Só se disse oposição em janeiro.
FHC - Eu nunca apoiei o Bolsonaro, não era isso. Mas estou em uma situação difícil. O PT deu com os burros n'água, levou o Brasil a um desastre enorme. As ideias não mudaram, eu não quero.
Por outro lado, eu não acreditava também no voluntarismo do Bolsonaro. Mas nunca apoiei. Não torço contra o Brasil, nunca. Não é que necessariamente vai fazer bobagem, vamos ver. Tomara que não faça. Se fizer, eu estou contra.
BBC News Brasil - Mas na sua análise dos primeiros três meses…
FHC - É como eu disse, não vejo caminho.
BBC News Brasil - Nesta semana, Paulo Vieira de Souza, acusado pelo MPF de ser operador de políticos do PSDB de São Paulo, assumiu ter quatro contas na Suíça. O senhor acha que o PSDB pode voltar a se diferenciar dos outros partidos em termos de ética?
FHC - Vamos ver, eu leio toda hora "o Paulo Preto é operador do PSDB". Não é verdade. Quem é o tesoureiro do PSDB? Não sei, não é uma figura importante, nem o Paulo Preto jamais foi ligado a um tesoureiro do PSDB. Pode ter sido usado por pessoas do PSDB, o que é diferente de constituir o elo entre a corrupção e o partido.
Agora, houve casos que comprometem o partido, a crítica recai, todo o sistema foi alcançado por essas críticas. Qual vai ser o futuro dos partidos? Ou se renovam efetivamente e têm lideranças que expressam essa renovação ou vão continuar o que são: máquinas de fazer voto.
BBC News Brasil - O senhor já disse que não gosta de ver o presidente Lula preso.
FHC - Nem ele, nem nenhum.
BBC News Brasil - Agora vai fazer um ano da prisão dele. Como vê esse processo?
FHC - Uma coisa é o sentimento pessoal: não gosto de ver pessoas que eu conheço na cadeia. Mas, no Brasil, as regras existem. Está preso porque foi condenado em segunda instância. Antigamente pela Constituição diziam que você só poderia ser preso quando o processo transitasse em julgado.
O Supremo Tribunal voltou [com] uma interpretação que já existia e diz o seguinte: [trânsito] em julgado quer dizer o quê? Quando você vai em segunda instância e é a última na qual se apresentam provas sobre o fato. A partir daí, a interpretação é jurídica.
Então pode prender, e depois apela da cadeia em questões jurídicas. O Lula está preso de acordo com essas regras. Não posso ser contra as regras, seria contra a democracia. Ele não está preso arbitrariamente.
Houve um arbítrio agora? Houve. Quando prenderam o presidente Temer, arbitrariamente, porque não havia, a meu ver, a necessidade de daquele espetáculo.
BBC News Brasil - A bandeira Lula Livre, que a esquerda defende, é uma arbitrariedade na opinião do senhor?
FHC - É uma bandeira, né, de luta política. Acho que a partir de certa idade, digamos, de 70, 75 anos, deveria ficar preso em casa. Mas aí tem que ser uma regra, não é para A, B ou C, não é porque foi presidente, é porque tem a idade.
BBC News Brasil - Há uma crítica em relação à Lava Jato, da espetacularização das prisões.
FHC - No caso do Lula, ele foi condenado.
Vou dar um exemplo de um que é do meu partido. Eduardo Azeredo, foi governador de Minas Gerais. Foi condenado a 21 anos de cadeia. O que o Eduardo Azeredo fez? Houve um alguém... Um ex-ministro do Lula (Walfrido Mares Guia) e um presidente de uma importante federação empresarial (Clésio Andrade) fizeram um contrato com o governo dele para usar o dinheiro na campanha dele. Está errado. Preso está ele, não estão os outros. Está injusto.
Mas ele está preso porque foi condenado, não posso sair por aí [dizendo] "libere ele". É um momento triste do Brasil. Necessário, porque a corrupção contaminou tudo, os partidos, as lideranças, a máquina pública, as empresas. Necessário. Tem abuso? Pode ter, mas qualquer [abuso] tem que ser coibido.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro, uma obra malparada
Construção civil volta a cair, e governo corta investimento, também um risco político
O investimento do governo em obras deve voltar a cair neste 2019, a não ser que aconteça um milagre a partir de meados do ano. Isto é, que a arrecadação federal passe a crescer muito, o que depende de uma reação improvável de forte da economia.
Além de ser mais um preguinho no caixão da recuperação econômica, menos obras são também um problema político adicional.
O governo acaba de anunciar um corte em tese provisório no Orçamento (“contingenciamento”). O talho maior é em investimento, em obras, o que frustra ou irrita parlamentares, governadores, prefeitos, empresários e, claro, o povo.
O governo está se enrolando até com pagamentos mínimos do Minha Casa, Minha Vida. Os empresários estrilam.
Trocando em miúdos, corte em investimento tem significado menos obras de habitação popular, estradas e educação. Menos obras podem levar a construção civil de volta à recessão.
O investimento no setor pelo menos deixara de cair entre setembro e novembro do ano passado, em termos anuais, fechando 2018 com uma ligeira baixa. Agora, despenca 2,9% (no acumulado de 12 meses até fevereiro, soube-se nesta quinta-feira, 4, pelo Ipea) e 1%, no ano.
No auge recente dos investimentos, em meados de 2012, o governo federal destinava para obras já parcos 7,8% de seu gasto total, o equivalente a R$ 91,8 bilhões por ano (em termos reais. Não se está levando em conta aqui o pico de gastos de 2014, uma demência insustentável).
Agora, o governo gasta míseros R$ 53,7 bilhões ao ano, menos de 4% do total da despesa federal.
Desse talho de R$ 38 bilhões, a maior parte saiu do Minha Casa, Minha Vida (R$ 16 bilhões). No segundo lugar do pódio da degola, vêm as despesas de investimento do Ministério da Educação, menos R$ 8,2 bilhões.
Do que dá para depreender da barafunda das rubricas de despesas, o grosso saiu de obras de infraestrutura de escolas para crianças e jovens, de expansão de universidades e até de de material de transporte escolar (nesse caso, o gasto necessário pode ter sido todo realizado).
A seguir, o ministério que mais perdeu dinheiro foi o dos Transportes (R$ 5,1 bilhões). Basicamente, foram suspensas obras de construção, conserto e ampliação de estradas e grandes vias expressas metropolitanas.
Curiosamente, aumentou um tico o investimento do Ministério da Saúde. Sintomaticamente, o Orçamento de investimento do Ministério da Defesa, atualmente o maior, permaneceu com seus valores quase intocados. É gasto em equipamento de guerra, em controle aéreo e de fronteiras e em estatal militar.
A situação poderia ser remediada com investimento privado, por meio de concessões de infraestrutura.
Uma ou outra coisa até sai do papel, mas ainda em ritmo e volume insignificantes. Desde 2016 o governo de Michel Temer prometia um pacotão de obras privadas. Não rolou. Não há, por ora, sinal de que a coisa vá deslanchar sob Jair Bolsonaro, pelo menos neste primeiro ano.
Sem investimento em obras pública, feitas pelo governo ou por empresas privadas, a recuperação econômica, se ainda houver uma, continuará esta lerdeza revoltante.
Sabemos que do governo não haverá dinheiro direito em obras. Não há outro impulso relevante e imediato à mão, como taxas de juros, aumento de salário, mais emprego ou, menos ainda, comércio exterior.
Outros investimentos privados dependem da redução da incerteza política e econômica, de reforma da Previdência, mas não apenas.
Difícil.
Fábio Fabrini: Governo virou usina de factoides
Às vésperas dos cem dias, presidente e equipe dão mais resultado na geração de polêmicas vazias
Jair Bolsonaro está perto de completar cem dias de governo sem alcançar metas para o período.
Na saúde, prometeu ampliar a cobertura de cinco vacinas, mas as campanhas de imunização não ocorreram.
Medidas econômicas para facilitar o comércio internacional empacaram por falta de ambiente tributário.
O Itamaraty compromete-se a baixar tarifas do Mercosul. Ainda falta, porém, combinar o jogo com argentinos, paraguaios e uruguaios.
Se falta ao presidente e seus ministros eficiência para essas e outras missões administrativas, eles têm mostrado talento de sobra para fabricar polêmicas baseadas em premissas falsas ou fatos inexistentes.
Quase que semanalmente Bolsonaro e sua equipe elegem um cavalo de batalha sem vínculo com as prioridades do país e dele se ocupam.
Já se lançou suspeita sobre o valor pago pelo Ibama no aluguel de carros. Descobriu-se que o contrato gerou economia e tinha OK do TCU.
Na Educação, o que o ministro Ricardo Vélez produziu de mais expressivo foi uma Lava Jato de estimação, que mira desvios em programas.
Bolsonaro defendeu a iniciativa. Semana passada, Vélez admitiu que não há fato concreto a ser apurado.
O presidente estigmatizou o carnaval no episódio do golden shower.
Dias atrás, negou a história e declarou que não houve ditadura militar. Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tirou da manga outro embuste ao contrariar o consenso acadêmico e defender que o nazismo era de esquerda.
Produzir factoides em série desvia a atenção popular dos desafios reais do governo e só cumpre o propósito de escamotear a já demonstrada inépcia do presidente e seus auxiliares para as funções que exercem.
Bolsonaro embarcou para Israel deixando uma desordem, criada por ele próprio, na articulação política. A economia continua estagnada, a reforma da Previdência faz água, o desemprego sobe, mas a tendência é que se invente mais uma parlapatice diversionista para tirar o foco de tudo isso que está aí
Merval Pereira: Dificuldades na reforma
Caiu de 68,8% para 55,96% o percentual dos deputados que afirmam ser favoráveis à PEC da Previdência
Duas pesquisas divulgadas ontem sobre a receptividade na Câmara da reforma da Previdência mostram um ambiente volátil, em que a ênfase é uma posição ambígua dos parlamentares quando se trata de apoiar a reforma: a maioria apóia em tese, mas há muitos questionamentos que precisam ser dirimidos pelo governo, até mesmo sobre a idade mínima.
A pesquisa da consultoria Arko Advice, feita com 109 deputados federais de 25 partidos políticos entre os dias 26 e 28 de março, mostra uma piora na avaliação do governo. Aumentou 50% o número de deputados que consideram o governo de Jair Bolsonaro ruim ou péssimo, de 22,95% em fevereiro para 33,95% dos entrevistados hoje.
Para se ter uma idéia da relação conturbada entre Executivo e Legislativo, nada menos que 60,55% a classificam como ruim ou péssima, um aumento considerável de três vezes e meia em relação à última pesquisa, quando esse índice estava em 17,4%.
Embora a reforma da Previdência continue tendo o apoio da maioria, caiu de 68,8% para 55,96% o percentual dos deputados que afirmam ser favoráveis a ela. Aumentou também de 39,5% para 52,29% de fevereiro para março o percentual contrário à idade mínima de aposentadoria de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens.
Esse é um dos pontos mais delicados da reforma, que hoje já tem uma maioria contrária nesse universo que representa 20% da Câmara. Como se esperava, 76,14% são contra as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que dá um salário mínimo para os idosos a partir de 65 anos em condição de miserabilidade, com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo, e inválidos, sem limite de idade. O governo quer passar a idade mínima para o recebimento desse beneficio para 70 anos.
Uma compensação seria que entre 60 e 69 anos os que se enquadram na categoria receberiam R$ 400. Outro ponto de discórdia é a aposentadoria rural, que tira dos sindicatos a comprovação do tempo trabalhado no campo, criando um Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) para segurados rurais, que seria alimentado pelas prefeituras. O objetivo é coibir as fraudes.
Além de apenas 3% dos agricultores estarem cadastrados, há desconfiança de que esse cadastramento dará margem a manipulação política por parte dos políticos regionais, notadamente os prefeitos.
O projeto de aposentadoria para os militares é considerado por 59,64% ruim ou péssimo, sendo que 59,63% discordam também da reestruturação da carreira da categoria.
Já o site jurídico JOTA ouviu 200 deputados, cerca de 40% da Câmara, e 53,2% acham que a reforma da Previdência a ser aprovada pelo Congresso resultará em economia menor do que o trilhão de reais nos próximos 10 anos, definido como a meta mínima pelo ministro da Economia Paulo Guedes. Só 14,9% dizem que a economia será maior, e outros 31,9% que será igual.
O prazo dado pelo governo, aprovar a reforma ainda no primeiro semestre, é considerado viável apenas por 6% dos entrevistados. Outros 32% dizem que ela pode ser aprovada no primeiro semestre, mas no final de junho. 45% dos deputados ouvidos acreditam que a reforma da Previdência será aprovada no Congresso entre julho e setembro deste ano, e outros 13% somente no quarto trimestre, entre outubro e dezembro. Os 4% mais pessimistas dizem que a reforma da Previdência só será aprovada a partir de 2020.
Com o ambiente político ainda conturbado, apesar dos sinais de que tanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quanto o presidente Jair Bolsonaro estão dispostos ao diálogo, o presidente passará a conversar com as bancadas estaduais em busca de votos, e mandou um recado de Israel: a reforma não pode ser desidratada, termo usado pelos os políticos para se referir a uma desfiguração da proposta.
Há muito tempo o presidente Bolsonaro não emitia opinião tão afirmativa sobre a reforma da Previdência, que já admitiu que o incomoda, embora a entenda imprescindível, ao contrário do tempo em que votava, como deputado federal, contra as iniciativas de todos os governos.
Até mesmo um esdrúxulo pacto entre os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário está sendo negociado, em apoio à reforma da Previdência. Estranhável que o Judiciário, através do presidente do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, faça parte desse pacto, já que o STF certamente receberá várias contestações, seja qual for a reforma aprovada.
Luiz Carlos Azedo: Uma casca de banana
“O Brasil sempre teve uma presença equilibrada no Oriente Médio, devido ao papel do chanceler Osvaldo Aranha na criação de Israel e às boas relações com os países árabes”
O presidente Jair Bolsonaro visitou ontem o Muro das Lamentações, em Jerusalém, ao lado do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. No local sagrado, orou e depositou um pedido entre as pedras, um ritual de muito simbolismo para os judeus. O que mais irritou os palestinos e os países árabes, porém, não foi o gesto religioso, mas o anúncio da instalação de um escritório comercial em Jerusalém, que muda a política externa brasileira no Oriente Médio.
A reação foi imediata: o embaixador da Palestina em Brasília, Ibrahim Alzeben, classificou o anúncio como um “passo desnecessário” e revelou que, há 10 dias, todos os embaixadores de países árabes solicitaram uma audiência com Bolsonaro, mas até hoje não obtiveram resposta. O Ministério das Relações Exteriores da Autoridade Palestina, em nota, anunciou que “entrará em contato com o embaixador da Palestina no Brasil para consultas, a fim de tomar as decisões apropriadas para enfrentar tal situação”, ou seja, convocou seu embaixador, o que é uma forma de protesto.
No antigo Mughrabi Quarter (Quarteirão Marroquino), após a ocupação israelense, 135 famílias árabes foram removidas para a abertura da esplanada do Muro das Lamentações, local sagrado para os judeus, por ser o último pedaço do antigo Templo de Herodes, que foi destruído pelos romanos. Do outro lado do Muro, fica a Mesquita de Al-Aqsar, na parte sul do Haram al-Sharif (o “Nobre Santuário”), terceiro local mais sagrado para o Islã depois de Meca e Medina. A maior mesquita de Jerusalém tem capacidade para receber cerca de cinco mil fiéis. O status diplomático de Jerusalém é um assunto muito controverso na ONU.
O Brasil sempre teve uma presença equilibrada no Oriente Médio, devido ao papel do chanceler Osvaldo Aranha na criação de Israel e às boas relações com os países árabes. Desde 2006, por exemplo, com 250 homens, a Marinha brasileira é responsável pelo navio capitânia da Força-Tarefa Marítima da ONU no Líbano (FTM-UNIFIL), criada pelo Conselho de Segurança, para evitar contrabando de armas e treinar a Marinha libanesa. No mês passado, a fragata “União” substituiu a fragata “Liberal”, que regressou ao Brasil após 22 patrulhas em 89 dias na costa libanesa. A força é formada por navios da Alemanha, Bangladesh, Brasil, Grécia, Indonésia e Turquia, além de dois helicópteros, sob comando do contra-almirante brasileiro Eduardo Augusto Wieland.
Bolsonaro acredita que a abertura do escritório em Jerusalém é uma saída para o impasse criado com os países árabes, após ter manifestado publicamente, após ser eleito, a intenção de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, a exemplo do que fez o presidente norte-americano Donald Trump. Ao contrário, sinaliza o futuro reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, e também a intenção de transferir a embaixada. Os ministros da Fazenda, Paulo Guedes, e da Agricultura, Tereza Cristina, com apoio dos generais que assessoram Bolsonaro, conseguiram convencer Bolsonaro a adiar a transferência da embaixada, temendo retaliações comerciais dos países árabes, grandes consumidores de carne bovina e de frango.
Impasse
“É direito deles reclamar”, minimizou Bolsonaro. “A gente não quer ofender ninguém. Agora, queremos que respeitem a nossa autonomia”, completou. Entretanto, deixou no ar a intenção de transferir a embaixada: “Tem o compromisso, mas meu mandato vai até 2022.E tem que fazer as coisas devagar, com calma, sem problema. Estou tendo contato com o público também de outras nações e o que eu quero é que seja respeitada a autonomia de Israel, obviamente”.
Jerusalém é um beco sem saída para o conflito árabe-israelense. Nem judeus nem palestinos aceitam um acordo que garanta um status binacional para Jerusalém, simplesmente porque Israel não aceita a existência do Estado Palestino e os palestinos não reconhecem Israel. Com a ocupação dos territórios árabes, todas as negociações de paz entre judeus e palestinos fracassaram. O que vigora é um cessar-fogo violado sistematicamente pelos dois lados.
A política de ampliação e consolidação de assentamentos nos territórios árabes ocupados por Israel de Benjamin Netanyahu torna cada vez mais difícil um acordo com a Autoridade Palestina e fortalece o Hamas, na Faixa de Gaza. Como Israel se define como um Estado judeu, a população palestina de Jerusalém Oriental e demais territórios ocupados precisa ser contrabalançada pelos colonos, que já representam mais de 10% do eleitorado israelense. A existência de um Estado multiétnico é inimaginável, uma contradição da democracia em Israel.
O mais grave, porém, é o fato de que o conflito na região é alimentado pelos Estados Unidos e os países árabes, com apoio da Rússia e da China. Sem uma mudança de postura dessas potências, não há acordo possível, até porque a forte presença de ex-militares e ex-guerrilheiros na política de Israel e da Palestina, respectivamente, dificulta ainda mais as negociações. São políticos que se fortalecem com a guerra. O Brasil mantinha distância regulamentar de tudo isso, até o presidente Bolsonaro escorregar nessa casca de banana.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-uma-casca-de-banana/
Hélio Schwartsman: Foi golpe mesmo
Ruptura da ordem constitucional em 1964 não deve ser descrita de outra forma
A mente de cada indivíduo constitui um universo próprio, que opera sob um conjunto único de paixões, condicionamentos e preferências. Além disso, em termos filosóficos, demonstrar a existência de uma realidade externa objetiva e cognoscível permanece um desafio irrealizado. Nesse contexto, em que até o estatuto de verdade das ciências duras se torna precário, o da historiografia desmancha no ar.
Isso significa que devemos abraçar de vez o relativismo? Está autorizado o vale-tudo hermenêutico, que permite descrever o mesmo conjunto de eventos como golpe ou como sucessão dentro da lei? Eu não iria tão longe.
Pragmaticamente, creio que faz sentido supor que palavras e definições conservam valor mais ou menos estável, que acessamos através de uma intersubjetividade comum. Nem todos concordarão sempre com tudo, mas não é desprezível o número dos que aceitam bem aquilo que se convencionou chamar de fatos, isto é, juízos empiricamente verificáveis, como o de que a água ferve a 100°C ao nível do mar.
É filosoficamente frágil, admito, mas esse acordo intersubjetivo já deu mostras de ser útil. Ele está na raiz da revolução científica, que tanto fez pela humanidade, e de alguns consensos políticos importantes.
E, nesse estranho mundo em que a linguagem significa algo, a ruptura, “manu militari”, da ordem constitucional vigente, como ocorreu em 1964, precisa ser descrita como golpe. E o período de governos autoritários que a sucedeu, em que as principais eleições diretas foram suspensas, liberdades civis, suprimidas, e em que agentes do Estado torturavam e matavam concidadãos, à revelia das leis editadas pelo próprio poder central, não comporta outra designação que não a de ditadura.
Podemos discutir até o fim dos tempos se o que ocorreu foi bom ou ruim para o país —esse é terreno legitimamente aberto a especulação—, mas não que houve um golpe seguido de duas décadas de ditadura.
Alon Feuerwerker: A disputa sobre o passado histórico é arma na guerra pelo futuro político
A eleição de Donald Trump funcionou também como destampador de um assunto que parecia velho: as pendências remanescentes entre os dois lados da Guerra Civil americana. Na Alemanha, a memória dos maciços bombardeios aliados na reta final da Segunda Guerra, sobre cidades alemãs sem nenhum significado militar, vem alimentando o revisionismo de direita.
O Brasil curte uma autoflagelação, mas a disputa política sobre o passado é algo universal. Não é jabuticaba. A narrativa sobre o que ficou para trás é fonte de poder para o discurso pelo futuro. Exige porém certos cuidados: a verossimilhança é importante, e não escorregar para muito longe dos fatos é essencial. Os fatos, sabe-se e ando repetindo aqui, são teimosos.
A retomada da narrativa de 1964 como revolução democrática é fonte de poder para a coalizão que demoliu, primeiro nas celas e tribunais e depois nas urnas, a Nova República. Que um dia já foi chique (Diretas Já, Tancredo, Constituinte). Hoje é escombros. E chegou a hora de o outro lado insistir numa história embelezada sobre os fatos de meio século atrás.
A Nova República virar Velha Política foi a deixa para reavivar a versão de os militares terem sido chamados pela sociedade em 1964 para impedir que os comunistas tomassem o poder. Assim como o endurecimento do regime em 1968/69 foi a deixa ideal para que apoiadores da derrubada de Jango (Juscelino, Ulysses, Montoro) vestissem a roupa de líderes democráticos.
Falta um “alta” na afirmação de que “a sociedade” chamou os militares para derrubar João Goulart. E se o problema era o comunismo bastava prender, exilar e eventualmente matar os comunistas, e fazer a eleição de 1965 sem os comunistas e sem os amigos dos comunistas. Mas não foi assim. As listas de cassações falam por si. E a eleição só voltou mesmo em 1989.
Mas quem quer saber de fatos? Então bola pra frente. Mostrar 1964 como revolução democrática e não golpe militar é combustível político para a coalizão no poder, que reproduz não só as alianças do imediato pós-1964 mas também a política econômica. E o governo pode alimentar a base social com ideologia enquanto não chegam os resultados.
Nesse debate, por enquanto, o bolsonarismo mantém a iniciativa. Governos têm potencialmente vantagem nisso, mas o atual parece sistemático: vai lançando ao ar teses, até mais mais disparatadas, e faz a discussão orbitar em torno delas. Enquanto se discute se o nazismo era de esquerda ou se a Terra é plana, ninguém conhece direito a proposta para a previdência.
Algumas coisas ajudam o bolsonarismo nessa tática. Ajuda-o a generalizada insuficiência em cultura e intelecto, um traço nacional. É também inteligente disseminar teses absurdas. A tentação da crítica é focar no ridículo da coisa, e deixa-se de enfrentar o debate no mérito. O “nossa, que absurdo” substitui a argumentação, e aí vira um Fla-Flu.
Sem contar que manter um fluxo ininterrupto de acusações obriga os adversários a passar o tempo se defendendo. Foi um expediente muito usado pelo PT, em especial nas campanhas presidenciais. E funcionou. Agora assiste-se à volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Vamos ver de que jeito o pessoal sai dessa. E uma hora vai sair.
Pois, como não existe mesmo almoço grátis, a linha governamental ajuda a amplificar e tirar a poeira de uma oposição que vinha algo isolada e paralisada, isolamento e paralisação naturais em início de governo. É a antiga constatação: quando o sujeito interfere na realidade, ela também o transforma em algum grau. A cada ação, gera-se uma reação.
Falta porém ainda à oposição um componente essencial: o mal-estar do povo. Poderá ser medido nas pesquisas sobre a popularidade do governo. Se de fato a provável reforma da previdência desencadear um ciclo de crescimento, o governo vai se segurar. Se não, aí sim haverá motivo para o uso da expressão “crise”.
*
Sobre a reforma da previdência, é razoável supor que se houver mesmo economia imediata de recursos do Tesouro o efeito imediato será recessivo. Menos dinheiro na mão do público e mais estímulo a poupar implicarão menos impulso a consumir. A menos que o comércio exterior compense, ou que sejam adotadas medidas keynesianas compensatórias.
Esta eu vi nas redes e gostei: não há nada mais parecido com um keynesiano do que um liberal politicamente pressionado. Ainda mais quando tem eleição municipal logo ali, e quando o Parlamento depende de eleger bases municipais se quiser reproduzir dois anos depois os próprios mandatos.
#FicaaDica
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Elena Landau: O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade
Este governo escolheu o confronto: nós os virtuosos, contra eles, os corruptos
Uma briga que começou sem ninguém entender bem o porquê escalou para uma grave crise entre Executivo e Congresso. Antes disso a expectativa era de aprovação da reforma da Previdência ainda este semestre e a Bolsa chegou aos 100 mil pontos refletindo o otimismo.
Nem mesmo a pesquisa Ibope quebrou o clima do mercado. Mas deve ter mexido com o núcleo próximo ao presidente. Só a tentativa de reverter os baixos índices de aprovação, radicalizando na pauta que o elegeu, poderia explicar a operação política que se seguiu.
Bolsonaro elegeu Maia como inimigo público número 1, o representante da velha política, e se negou a fazer uma articulação política para a aprovação da reforma. Sua missão teria se encerrado com a ida ao Parlamento para a entrega da PEC 06/2019. De fato, esse gesto do presidente foi simbólico e importante. O erro é imaginar que seu papel acaba ali. Formar uma base parlamentar é parte do jogo democrático, não há governo possível sem o Congresso, na velha ou na nova política. A forma de se obter essa base, e apoio para suas reformas, pode, e deve, ser diferente do presidencialismo de cooptação. O resultado das urnas já havia revelado o esgotamento das práticas do passado com forte votação contra os partidos que governaram o País desde a redemocratização.
Este governo escolheu o confronto: nós os virtuosos, contra eles, os corruptos. Já vimos isso antes, nada de novo na Nova Política. Bolsonaro não tem o monopólio da virtude como ele quer fazer crer. Tem também seus telhados de vidro; em casa e no ministério.
O Olavo, o guru, e seguidores fanáticos contribuíram para acirrar os ânimos, partindo para a defesa de uma democracia direta. Esquecem que, por aqui, quem tentou governar sem o Congresso não terminou o mandato.
Com um contorcionismo narrativo, os bolsonaristas tentam dar racionalidade a essa trajetória desastrosa. Alegam que é uma legítima estratégia para acabar com o toma lá dá cá que, segundo o presidente, é a única forma de negociação que o Congresso aceita fazer.
Seus anos na Câmara provavelmente dão suporte a essa visão. Mas assim como deve ter visto muitas dessas transações, sem denunciá-las, com certeza presenciou articulações políticas legítimas para aprovação de projetos essenciais para o País, como aconteceu no Plano Real 25 anos atrás. O economista Edmar Bacha, até ganhou o apelido de senador de tanto frequentar o Congresso atendendo a pedidos de esclarecimentos dos parlamentares sobre a transição para a nova moeda. Governar numa democracia dá trabalho mesmo.
O confronto não é a resposta aos equívocos do passado. Ao ignorar a grande renovação ocorrida no Congresso, tratando todos como chantagistas, Bolsonaro apenas reafirma seu desprezo pela política. Nem seu partido recebe alguma consideração. Nem mesmo os jovens que chegam merecem o benefício da dúvida. São todos mal-intencionados.
O astrólogo, sem cargo no governo, tem mais influência que o Parlamento. Sobrou até para os militares, que surpreendentemente dão o tom de ponderação. Nem sequer a convocação para a celebração do dia 31 de março, quando o golpe completa 55 anos, encontrou apoio entre eles. Alguma coisa está fora de ordem. O tiro saiu pela culatra e a sociedade reagiu revivendo tenebrosas histórias de tortura e provocando atos de repúdio. A inabilidade lembra muito a chamada de Collor para que a população saísse às ruas de verde e amarelo. A pá de cal de seu governo. Por que Bolsonaro resolveu reviver um tema tão sensível só ele sabe. Mas não surpreende vindo de alguém que faz elogios a Stroessner e Pinochet.
O currículo de Bolsonaro sugere que não se trata de algo calculado, mas que é despreparo mesmo. Foram 27 anos de apagada vida parlamentar, cujos destaques foram homenagens ao torturador Brilhante Ustra e a briguinha pessoal com Jean Wyllis. O Messias liberou um grito conservador da sociedade e se qualificou para a corrida presidencial. Ninguém estava interessado em sua pauta econômica, nem ele. Bolsonaro nunca prometeu nada diferente do que está fazendo hoje. Não há razão para perplexidade com seu governo.
A resposta da Câmara também não foi boa. A irresponsabilidade em recuperar pautas que podem agravar ainda mais a crise fiscal, acaba reforçando o discurso do presidente. Enquanto isso, a sociedade fica espremida no meio da luta do rochedo contra o mar. Sem reformas, a conta vai sobrar para todos nós.
Em tempo: quando terminei a coluna ontem, os bombeiros haviam entrado em campo, mas com esse governo nunca se sabe o dia de amanhã. Não se trata de uma crise conjuntural.
*Economista e advogada
Antônio Britto: Ideia de fazer país civilizado sem política fracassa
Jânio, Collor e Bolsonaro são um só. Anti-políticos estão dando vexame
O Brasil democrático e sensato (existe) tem um dever de gratidão com Jair Bolsonaro. Em menos de 3 meses, ele conseguiu, com velocidade e eficiência admiráveis, envergonhar e explodir o maior dos riscos que o Brasil corria —o sucesso de um populismo travestido de ódio à velha política, a demagogia do “eu represento o novo”.
Desde sempre –e especialmente a partir das manifestações de junho de 2013– os brasileiros carentes de quase tudo, mas especialmente carentes de esperança, flertaram com a ideia do “sou contra tudo o que está aí”.
Nāo se lembravam de Jânio nem de Collor. E, talvez no futuro, diga-se que ao elegerem o mais caótico governo da nossa história tenham ajudado a destruir de vez a suicida tendência de votar em alguém em função daquilo a que ele se opõe e não do que defende ou pratica.
Nesses 3 meses, nāo se vive o fracasso de uma pessoa, apenas. É preciso que o Brasil aprenda: quem está fracassando é a ideia simplista, populista e inútil de que se fará um país civilizado sem política.
E política sem gente decente e preparada. Para colocar-se no mínimo à altura de uma Presidência da República. Preparada psicologicamente para entender que as instituições são o campo onde se pratica o que uma nação tem em comum. Não o que lunáticos, daqui ou da Virgínia, querem que pensemos.
Preparada, por último, com experiência e sabedoria para convencer o Brasil que só uma alternativa definitivamente não nos serve: a saída fácil, daquelas que cabem em 140 caracteres.
Tudo que vemos nesses constrangedores 100 dias nasce exatamente daí. Elegeu-se quem caçou os marajás da vez e prometeu varrer a sujeira do momento. No fundo, Jânio, Collor, Bolsonaro –soma de grandes fracassos no exercício da Presidência– sāo 1 só. A tentativa simplista de administrar um país do nosso tamanho e da nossa complexidade com duas ou 3 frases mal pensadas e mal pronunciadas, apesar do teleprompter.
Em respeito às dificuldades de todos, nāo cabe torcer para que o fracasso aumente, ainda que isso seja altamente provável. Mas, sejamos sinceros, terá sido muito bom que tudo isso esteja ocorrendo se diante da 3ª repetição do mesmo filme decidamos buscar roteiros, estes sim, verdadeiramente novos.
A propósito: sabemos onde andam os anti-políticos. Dando verdadeiros vexames na gestão da educação ao Itamaraty, circulando com afoiteza e despreparo pelo Congresso, exibindo egos prepotentes em setores do Judiciário e do Ministério Público.
Mas onde andam os políticos? Seria bom avisá-los para que saiam de onde se esconderam desde o ano passado. A vez deles parece que volta logo. Pedir que a esquerda democrática tenha coragem de romper com o monopólio Curitiba-Caracas.
E que os tucanos parem de fugir, uns com medo do passado, outros sem coragem para descer do longínquo muro onde subiram. A direita liberal? Essa será mais fácil de localizar. Procurem quem aparece de cabeça baixa no meio do bolsonarismo.
Míriam Leitão: Reforma no meio das trapalhadas
Reforma da Previdência está atolada na CCJ. Governo comete erros em sequência e se mostra incapaz de organizar forças
A confusão de ontem na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) era esperada. Como o ministro da Economia, Paulo Guedes, comunicou algumas horas antes que não iria e mandaria representante, evidentemente haveria reação. Com isso, atrasou-se mais um pouco a tramitação do projeto da Previdência. Todo o episódio mostra o grau de descoordenação do governo. E como se não fosse confusão suficiente, um dia depois de desprestigiar a Câmara, Guedes confirmou a ida hoje ao Senado. No fim do dia, a Câmara manda um recado forte à equipe econômica ao aprovar a emenda do Orçamento impositivo, que é o oposto do que o Ministério da Economia quer fazer.
A tramitação começa na Câmara, então o lógico é que fosse lá o primeiro comparecimento do ministro. Mas ele vai é ao Senado. A CCJ era considerada a etapa mais fácil. A ser queimada rapidamente. A discussão é apenas para admissibilidade da proposta e exige cinco sessões em plenário. O projeto de Temer ficou uma semana na CCJ. Foi recebido no dia 7 de dezembro e aprovado na madrugada do dia 15. O atual chegou na CCJ no dia 22 de fevereiro, mas só no dia 13 de março foi instalada a Comissão e ainda nem teve seu relator indicado. Senão há relator, não há parecer e nada está valendo ainda, um mês e 5 dias depois. A reforma da Previdência de Bolsonaro está na verdade atolada na CCJ, comissão que ontem foi palco da briga que impediu o secretário Rogério Marinho de falar.
Depois de passar lá é que vem a etapa difícil, o debate do projeto em si na Comissão Especial. Na PEC 287, houve um período de três meses entre a instalação dessa Comissão, que aconteceu depois do recesso, até a aprovação do substitutivo do deputado Arthur Maia (DEM-BA), no dia 9 de maio de 2017. Poucos dias depois, no dia 17, a divulgação das gravações do empresário Joesley Batista com o então presidente fez aquele governo perder o rumo e o projeto.
Desta vez, o que se tem é uma administração no seu início, que tinha muito mais chances de andamento rápido do projeto. Mas o governo comete erros seguidos e se mostra incapaz de organizar as forças, mesmo dentro do seu próprio partido. O que houve ontem foi prova de “desarrumação e fragilidade” do governo, segundo o comentário de parlamentar que tende a votar a favor da reforma. O fato de não se conseguir um deputado que aceite relatar a admissibilidade da PEC é péssimo sinal.
A instalação da Comissão Especial é sempre difícil, os debates exigirão uma base coesa e congressistas dispostos a defender as propostas, além de maioria para aprovação. O problema é que o fogo amigo tem imperado até agora nesta massa disforme que pode vir a ser a base parlamentar.
Quanto tempo vai demorar a tramitação dessa proposta ninguém sabe, mas será preciso instalar a Comissão Especial e iniciar a discussão assim que passar na CCJ. A avaliação de especialistas é que pode demorar na Comissão Especial mais tempo do que a reforma do governo anterior porque é mais complexa. O que torna mais difícil aprovar neste semestre.
O manifesto dos 13 partidos que ontem apoiaram a reforma deixou claro os pontos dos quais discordam. Isso mostra no que o governo terá que ceder. Primeiro, a mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Esse ponto o governo já sabe que terá que entregar. A dúvida é porque incluiu um item que facilmente seria atacado por todos, enfraquecendo o apoio ao projeto. Afinal, para ter direito ao B PC hoje a pessoa precisa ter 65 anos e estar em condições de “miserabilidade”. O segundo ponto é o da aposentadoria rural. E o terceiro é mais complicado. É o da desconstitucionalização, que o governo acha importante e quer defender, masque será muito difícil aprovar.
O recado ontem à noite pela Câmara, ao aprovar o Orçamento impositivo, já é um aviso contra a outra reforma pré-anunciada, da desvinculação. Além disso, um alerta de que sem se organizara base, o governo será surpreendido o tempo todo.
Na verdade, o que o governo Bolsonaro deveria ter feito desde o começo, na avaliação de quem entende de tramitação e torce pela reforma, é aprovado o projeto que já tinha passado por todas estas etapas. Bastava uma emenda aglutinativa em plenário. Se isso estivesse aprovado, outras mudanças mais profundas poderiam ser apresentadas depois. O que fez o governo querer começar do zero foi só a vaidade de ter uma reforma para chamar de sua. Isso está levando o país a perder tempo. Muito tempo.
O Globo: 'Festejar a ditadura é apologia a atrocidades massivas', diz MPF sobre determinação de Bolsonaro
Órgão afirmou que a orientação do presidente merece 'repúdio social e político' e que pode configurar improbidade administrativa
Vinicius Sassine, O Globo
BRASÍLIA - A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), colegiado que funciona no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR) , criticou a decisão do presidente Jair Bolsonaro de determinar a comemoração do golpe que implantou a ditadura militar no Brasil em 31 de março de 1964 . Em um texto duro, assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e por três procuradores auxiliares, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que "festejar a ditadura é festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos".
"Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo de repercussões jurídicas", diz a nota pública divulgada nesta terça-feira.
Bolsonaro, que admira e exalta os regimes militares da América Latina, determinou que os quartéis comemorem o 31 de março e os 21 anos de ditadura militar no Brasil. Reportagem publicada no site do GLOBO na tarde desta terça revelou que a determinação terá um efeito prático nos principais comandos militares .
Uma cerimônia será realizada, diferentemente do que era feito em anos anteriores. Generais ouvidos pela reportagem preferem evitar o termo "comemoração", mas falam em "lembrança de um fato histórico". A cerimônia vai contar com tropas em forma em quartéis; aviso pelo mestre de cerimônia de que os militares estão ali para "relembrar um fato histórico ocorrido em março de 64"; execução do Hino Nacional; leitura da chamada ordem do dia, que é um texto elaborado pelo Ministério da Defesa; e desfile para encerrar o evento. No Exército, houve quem sugerisse tiros de canhão ao fim da cerimônia, o que acabou descartado por líderes dos comandos militares, conforme as fontes ouvidas pela reportagem.
Improbidade administrativa
A PFDC afirma na nota pública que a defesa de crimes constitucionais e internacionais – como um golpe militar – pode se caracterizar um ato de improbidade administrativa. Os procuradores federais dos Direitos do Cidadão afirmam "confiar" que as Forças Armadas e "demais autoridades militares e civis" deixarão de celebrar o golpe militar de 1964 e cumprirão seus "papéis constitucionais" na defesa do Estado Democrático de Direito. "Seria incompatível com a celebração de um golpe de Estado e de um regime marcado por gravíssimas violações aos direitos humanos."
Se a recomendação de Bolsonaro para que se comemore o golpe tem sentido de "festejar", trata-se de um ato de "enorme gravidade constitucional", conforme a PFDC. "O golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, a conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto na Constituição."
O colegiado vinculado à PGR lembra que a Comissão Nacional da Verdade foi instituída por lei e seu relatório final, concluído no fim de 2014, é a versão oficial do Estado sobre o que aconteceu nos 21 anos de ditadura militar. "Nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da comissão, dado o seu caráter oficial", diz a nota da PFDC.
Agentes da ditadura mataram ou fizeram desaparecer 434 opositores do regime e 8 mil indígenas, como cita a PFDC. Entre 30 mil e 50 mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas, afirma o colegiado. "Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República."
Eliane Brum: Bolsonaro manda festejar o crime
Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964. Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história, apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir, mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis. No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas por 21 anos, de 1964 a 1985; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura; obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio; prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças, e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro, é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados. Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma “faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz que fará com os opositores.
O que as instituições vão fazer diante do anúncio de Bolsonaro? Apequenar-se, como de hábito?
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200 pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente, siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem neste 31 de Março.
Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o terror, parte delas somente por diversão.
Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil. O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo, como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna. Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada. Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000 civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números. Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi – e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais, mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz apologia ao crime nem incitação à violência.
Não se trata de esquerda ou de direita, mas de apologia ao crime e incitação à violência
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil, infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo" e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo. É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter certeza que vai sair dela vivo.
À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões. Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil, porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a vida, precisam mostrar qual é a diferença.
A oposição está dominada pelo jogo de guerra do bolsonarismo: só sabe reagir
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal, é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita do bolsonarismo faz com que a necessidade de aumentar a violência “contra todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a sensação de guerra interna, também aumenta. Sem projeto consistente, o governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça que Bolsonaro não quer.
O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação, mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público. Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de solidariedade global.
“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em 22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão, ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o assassinato de Marielle Franco e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja: Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo”.
Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir: a apatia e a indiferença triunfam
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot, está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima, inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou 1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de 2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum