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Paulo Delgado: Fãs e amigos da onça
Prestígio mundial da autonegação da política pode levar a experimento desaconselhável
Ainda não estamos na fase da traição e do abuso da confiança que marca nosso presidencialismo. Mas já vemos atrasos e danos. Para analisar de forma desengajada é preciso se convencer de que adesão ou oposição automática são burrices da vida política. É a comodidade da ideologia que leva o governo à impertinência de preferir a dificuldade de governar para uns à felicidade que é poder governar para todos.
“Jogue fora a luz, a definição. Diga lá o que você vê na escuridão.” A surpreendente falta de energia da economia, mesmo com inflação controlada, com crônico baixo crescimento, pouca capacidade de atrair investimento e de diminuir a desconfiança de quem dá emprego, não permite à família planejar o seu futuro e pode identificar uma estagnação estrutural ou ausência de foco na compreensão da nação que realmente somos. Mãos à obra, é impossível dirigir o Estado na forma como ele foi desenhado.
Embora o processo político nunca cumpra uma trajetória linear, a análise dos cem dias de governo não deve ser uma anamnese, essa mania de ouvir eleitor sobre dores que não sente, como quem faz exame médico só porque tem plano de saúde. A endoscopia invasiva da pesquisa produz um resultado muito parecido com as próprias perguntas. O momento não é de guerra fria, é de guerra quente e visível. Especialmente em razão do baixo equilíbrio institucional alcançado até aqui e da permanência dos traços de personalidade eleitoral do presidente.
Parece claro o seu desinteresse em convergir para uma posição de centro, relacionar-se melhor com a cúpula dos Poderes, diminuir o noticiário negativo e, assim, melhor acomodar as forças parlamentares e partidárias, que continuam desorganizadamente em ação. Como não conseguiu ver andar nenhum dos seus projetos e medidas provisórias enviados ao Congresso, é compreensível que use microblogs como tábua de salvação, desvinculados de qualquer estratégia coletiva de governo. O consolo é que a fase atual é de desapontamento, não de frustração.
O governo tem uma confusa matriz decisória, com a dupla Guedes-Moro, seus principais animadores políticos. O presidente tem uma mentalidade defensiva, reforçada pela linguagem agressiva e politicamente debilitante. Não temos na sua figura um liberal à la Thatcher que possa deter, pela autoridade e pela convicção, o custo da sabotagem política à abertura econômica. O que se vê na Bolsa, no dólar, nos indicadores de confiança e na paralisia econômica são consequências do caótico e desencontrado centro de decisão, com diferentes atores tentando se afirmar sobre um pano de fundo, interno e externo, em que alguns alinhados se comportam como porca que come sua ninhada.
Pelo que tenho visto, está mantida a tradição brasileira da paz violenta em todos os setores, marcada pela predominância da rixa política sobre a busca do desenvolvimento econômico. Brigar ajuda a ocultar os reveses de governo insincero no desejo de mudança. Para os militares, seus movimentos imprudentes na política externa podem estar deixando claro que ele tem uma perspectiva ingênua da instrumentalidade das Forças Armadas, tanto como capacidade permanente de dissuasão infalível, na sociedade civil, quanto como potencial ilimitado de condução de poder, na sociedade global.
A comunicação direta com seu público alimenta um mandato de fãs. Melhor seria apostar na influência da persuasão na sociedade organizada e no establishment econômico, pois, agenda liberal em economia burocratizada, sem os princípios da ordem espontânea, não funciona. Outro ponto dispersivo é a ilusão belicosa de afirmar identidade própria usando o contrapensamento. Não é de pregadores morais que o Brasil sente falta, é de líderes. Um MEC ácido e um Itamaraty impalatável são leões sem dentes, apenas passatempos nacionais.
A lógica do conflito sempre serviu a governos que querem atribuir a outros a responsabilidade por seus problemas. No caso atual está estimulando o surgimento de ativos esconderijos parlamentaristas. Não vejo vantagem em tirar do Congresso o seu maior orgulho, que sempre foi o de apoiar o governo.
Os parlamentares lutam para construir uma identidade, mas o destaque é para o celular, o ogro do político atual. O Congresso quer dosar oxigenação online com amadorismo presencial e Paulo Guedes foi a primeira grande vítima desse charlatanismo. Uma base desprestigiada ouve calada desaforos ensaiados por 20 anos. Há muita coisa velha fantasiada de nova. Todavia podemos dizer que, se nada está em rota de aprovação, nada, também, sofreu nenhum abalo fatal. O maior problema é o presidente continuar ambíguo em relação à defesa da modernização previdenciária tornando fracas as chances de a reforma ter a amplitude imaginada pela equipe econômica.
Nessa mistura de tensões e perspectivas sobressaem mais inércia e jogos ocultos do que crise política. Como o presidente foi eleito para dificultar a vida dos políticos tradicionais, parece que decidiu que o custo político da agenda das reformas deve ser assumido por cada poder separadamente. Melhor se dar conta de que, se o governo se movimenta de flanco, resta ao Congresso o rompimento frontal. Desde Otelo é o desprezo que leva ao ciúme.
O jogo oculto é poder estar em curso uma estratégia de impasse dentro da ideia de renovação por caos e uma certa indiferença estudada aos procedimentos protocolares. O conformismo da sociedade, conectada às bobagens das redes sociais, ajuda. E o prestígio mundial da autonegação da política pode dar curso a um experimento desaconselhável. Aventura de amigos da onça que querem ver o presidente romper os dois pilares da lealdade em combate: desconsiderar a distribuição ordenada do poder na hierarquia e considerar coragem, e não erro inominável, atentar contra os próprios.
* Paulo Delgado é copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomércio/SP
Daniela Chiaretti: Sobre lebres e sardinhas
Mudar de status na OMC pode repercutir em fóruns climáticos
Como se divide a conta do clima entre os países? Como se reparte o espaço que resta na atmosfera para emissões de gases-estufa de modo que os impactos do aquecimento global não sejam tão desastrosos? Como se estabelecem critérios justos para que nações em desenvolvimento possam crescer sem comprometer a vida na Terra? Esta equação incômoda ronda as negociações climáticas há anos. Trata-se de compartilhar o orçamento de carbono na atmosfera para que o aquecimento da temperatura não ultrapasse 2°C até 2100 - para ficar em 1,5° C os cálculos são muito mais drásticos. Existem várias contas feitas por pesquisadores de diferentes lugares com diversos critérios. O único ponto em comum é que governo algum gosta de falar neste assunto.
Governos mencionam datas e objetivos para reduzir suas emissões, mas não o caminho para alcançar o compromisso. Fala-se em "descarbonizar a economia até 2050", por exemplo, mas a trilha até lá é indefinida. Uma aposta é imaginar que novas tecnologias irão surgir e resolver o problema do carbono - costuma ser o jeito de pensar dos Estados Unidos. Outra forma é estimular produção e consumo sustentáveis, ou consumir menos - estratégia que tem mais eco entre europeus. Outra via é entender o que dizem os cientistas: limitar o aquecimento em 2°C significa que os países podem emitir, juntos, cerca de mil gigatoneladas de CO2 até 2100, a começar em 2014. Estourar a barreira causará impactos maiores e piores. Então, é preciso definir quem pode emitir e quanto. É aí que acaba a ciência e começa a política.
"É como se todos os condôminos de um prédio tivessem que dividir o volume da caixa d'água durante uma crise hídrica", explica o pesquisador Oswaldo Lucon. Ele introduziu o assunto em três páginas do "Global Environment Outlook", o GEO 6, a mais completa radiografia sobre o estado do ambiente global, desenvolvida pela ONU Meio Ambiente durante os últimos cinco anos. O relatório foi lançado no mês passado durante reunião em Nairóbi, no Quênia.
Na divisão dessa conta, cada um puxa a sardinha para o seu lado, mesmo que ninguém goste do peixe. Chineses, por óbvio, preferem o critério que divide as emissões per capita. O Brasil sempre defendeu a responsabilidade histórica, lembrando que quem causou o problema foram os países ricos em seu processo de industrialização e, portanto, têm de fazer cortes maiores nas emissões e pagar para que os outros também se desenvolvam. Os indianos pensam até nos direitos de quem ainda não nasceu e querem garantir que eles possam emitir o mesmo tanto que os americanos emitem hoje. As reivindicações são legítimas, mas não há Terra que aguente tal pressão nos recursos naturais sem aquecer a níveis que coloquem tudo a perder.
Voltando ao exemplo da caixa d'água, os americanos se justificam dizendo "devo, não nego, mas não tenho como pagar. Não dá para mudar a matriz de produção e consumo de uma hora para a outra. Não podemos parar de tomar banho", segue Lucon, assessor da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, professor colaborador da Universidade de São Paulo e membro do IPCC, o painel da ONU que reúne cientistas climáticos.
Os europeus, a bem dizer, já dividem sua conta domesticamente - têm meta climática única e compartilham esforços entre si -, mas não querem ficar neste jogo sozinhos. No Brasil, técnicos do governo costumam dizer que o debate em torno ao orçamento de carbono é colonialista. Argumentam que os países ricos usaram toda a capacidade atmosférica e agora que a coisa complicou querem restringir os outros.
Os países já reconheceram formalmente as cerca de mil gigatoneladas de CO2 ao aprovar o último relatório do IPCC, em 2014. "Agora precisam reconhecer que isso deve ser repartido. Quanto cabe a cada um é uma etapa seguinte, tão complexa cientificamente quanto na mesa de negociação", diz Lucon. "É algo difícil, mas necessário. Ou a janela de oportunidade para manter o limite dos 2°C estará perdida."
As três páginas incluídas no GEO 6 introduzem a discussão pela primeira vez em um documento de prestígio internacional. Uma das ideias expressas ali é a da "convergência". Todos os cidadãos do planeta emitiriam a mesma quantidade de gases-estufa em 2035 - os de países ricos teriam que emitir bem menos que hoje, e os dos em desenvolvimento emitiriam mais do que os níveis atuais. Daí em diante as emissões totais convergeriam até chegar a zero em 2070. O exemplo escolhido por Lucon é apenas um ponto de partida para a discussão. Não está escrito em pedra. "É só para reconhecer que o jeito que estamos consumindo e produzindo hoje é insustentável. Vamos ter que resolver."
Este debate se torna particularmente importante para os interesses brasileiros agora. São ainda indefinidos os desdobramentos da decisão do governo de Jair Bolsonaro de fazer com que o Brasil mude de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio. Em março, nos EUA, o governo conseguiu o apoio de Donald Trump para que o Brasil integre a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Mas, para entrar no clube dos ricos, terá que abrir mão do tratamento diferenciado na OMC.
Se este conceito transbordar para as rodadas climáticas, posições históricas defendidas pelos diplomatas do Itamaraty poderão ser questionadas. O Brasil é líder tradicional no grupo dos países em desenvolvimento, o chamado G-77 - terá que abandonar esta turma? Os negociadores brasileiros batem forte para que os recursos financeiros que vão pavimentar a transição das economias ao baixo carbono fluam dos países ricos aos mais pobres. O que acontece diante desta nova composição, se o Brasil entrar na OCDE? Como ficará o país se for identificado como de maior renda e passar a receber menos empréstimos do Banco Mundial? Os compromissos climáticos dos ricos para os pobres - US$ 100 bilhões ao ano a partir de 2020 - deixarão de beneficiar o Brasil? Os recursos do Fundo Verde do Clima vão passar ao longe? Não há respostas ainda para estas questões, mas é bom saber que vão levantar a lebre.
Merval Pereira: Choque de acomodação
Guedes está convencido de que se forma no país uma compreensão da urgência de mudança da Previdência
O ministro Paulo Guedes considera que as desavenças entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente Bolsonaro são consequências de um “choque de acomodação” resultante da nova composição de forças políticas vitoriosas nas eleições de outubro, com a centro-direita tomando o lugar da centro-esquerda que governou o país nos últimos 30 anos.
O que se viu ontem, no debate promovido pelo GLOBO e “Valor Econômico” dentro do projeto “E agora, Brasil?”, foi um ministro da Economia utilizando-se de uma veia política que ele nega existir, e um presidente da Câmara mostrando-se preocupado com a viabilização de aspectos econômicos dos projetos do governo.
Para Maia, uma visão do conjunto das reformas deve ser a prioridade na análise dos parlamentares, que poderão ser beneficiados com os avanços da economia, mas o governo tem que focar também na discussão do pacto federativo, uma consequência natural da aprovação da Nova Previdência.
A campanha pela Nova Previdência, apresentada como combate aos privilégios, “com o guarda da esquina ganhando tanto quanto um general na aposentadoria”, parece estar dando certo, pois o nome do ministro Guedes foi aclamado em passeata neste fim de semana em São Paulo por grupos de apoiadores de Bolsonaro.
Paulo Guedes está convencido de que se forma no país uma compreensão da urgência de mudança do sistema, e ele não acredita que o Congresso vá decidir contrariamente à posição majoritária da população.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, rejeita a ideia de que muitos deputados, mesmo convencidos de que a reforma da Previdência é necessária, não darão tudo o que o governo pede apenas para não fortalecer politicamente o presidente Jair Bolsonaro, que se tornaria um candidato imbatível à reeleição se a economia deslanchar.
Seria um contrassenso, argumentou, já que se a reforma trouxer o crescimento econômico, os que a apoiaram tirarão benefícios disso juntamente com o presidente Bolsonaro. Já Paulo Guedes ressaltou em mais de uma ocasião que o Legislativo sairá ganhando com as reformas, que darão ao Congresso o controle do Orçamento.
Ele disse que a aprovação de uma reforma parcial, aquém da redução de despesas de 1 trilhão de reais em dez anos que considera necessária para o equilíbrio do sistema, terá como consequência natural a necessidade de uma nova reforma mais adiante. E o abandono do projeto de capitalização, que considera a grande chance de as novas gerações prepararem um futuro por conta própria.
Os que não tiverem condições de, ao final do tempo mínimo exigido para a aposentadoria, obter uma renda igual ao salário mínimo, terão a garantia do governo de complementação. Fazer uma reforma desidratada a esta altura pode dar um fôlego para o governo, mas aumenta a médio prazo a crise fiscal e o risco de uma crise institucional grave, ressaltou.
Guedes admitiu que está sendo difícil para o presidente Bolsonaro abraçar a reforma da Previdência, pois ele sempre votou contra quando era deputado. Mas garante que ele tem uma visão muito clara de que agora, presidente do país, precisa olhar para o conjunto do povo brasileiro, e não a defesa de corporações, como fazia quando as representava como deputado.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, admitiu que as diversas corporações pressionam os deputados e senadores em defesa de seus interesses, mesmo quando eles vão de encontro às necessidades do país. Mas acredita que já existe uma compreensão maior da importância da reforma.
Rodrigo disse que, no entanto, desistiu de ajudar na coordenação política para angariar os votos necessários para a aprovação da emenda constitucional depois que o presidente Bolsonaro decidiu que seu governo não seria um presidencialismo de coalizão, em que o governo atuava em conjunto com o Parlamento.
Ele reafirmou que é favorável à reforma, mas não tem mais a responsabilidade de ajudar a formar a maioria. Apesar de dizer que aceita e compreende a escolha do presidente, Maia revelou descontentamento com o que chamou de mal-entendido provocado pela discussão que teve com Bolsonaro recentemente, o que provocou uma reação dos bolsonaristas pelas redes sociais. “Não tenho vocação para mulher de malandro”, afirmou.
Hélio Schwartsman: O incrível homem que derreteu
Surpreende a intensidade com que a avaliação de se desmilinguiu
A queda na popularidade de Jair Bolsonaro após os primeiros três meses de governo era esperada. O fenômeno é universal, atingindo democraticamente todas as gestões. O que talvez tenha surpreendido é a intensidade com que a avaliação do presidente se desmilinguiu.
O índice de ruim e péssimo de Bolsonaro atingiu a marca de 30%, a maior de todos os dirigentes eleitos em seu primeiro mandato, desde a redemocratização. Num distante segundo lugar vem Fernando Collor com 19% —e Collor, vale lembrar, confiscara a poupança.
Há dois fatores que, creio, ajudam a entender o derretimento. O primeiro é que o governo é mesmo um caos. Despreparo e foco nas coisas erradas resumem bem esses três meses iniciais. O segundo é que há um descasamento entre as ideias defendidas pelo presidente e as preferências do eleitorado. Isso já ficara claro na pesquisa Datafolha de janeiro, que mostrou que a maioria das bandeiras do dirigente —coisas como Escola sem Partido, política ambiental, indígena, facilitação do porte de armas— era rejeitada pelos eleitores, por margens às vezes graúdas.
Basicamente, as pessoas votaram em Bolsonaro não pela pauta que ele propôs, mas por ele ter sido o candidato que melhor encarnou o papel de antípoda do PT e do próprio sistema político, percebido como corrupto pela população.
Bolsonaro não vai mudar. É da natureza do neopopulista insistir na retórica inflamada, apostando em criar inimigos, mesmo que imaginários, para agregar aliados. O problema é que essa tática antissistema se torna meio autofágica quando se é governo, isto é, quando se está no centro mesmo do sistema.
Acho até que Bolsonaro conseguirá, aos trancos e barrancos, atravessar os quatro anos de mandato, se não houver uma piora notável da economia. Mas, se vier uma deterioração, em especial se a inflação de alimentos voltar a subir, o jogo muda, e a impopularidade pode tornar-se letal.
Eliane Cantanhêde: Almas penadas
Assim como Vélez, há uma fila de embaixadores esperando o ‘bilhete azul’ que não vem
A demissão de Ricardo Vélez Rodríguez do MEC foi decidida antes da viagem a Israel, em 30 de março, e anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro três dias antes de ser formalizada e finalmente publicada ontem no Twitter e no Diário Oficial. Se parece esquisito, não é caso único e não será o último.
Bolsonaro também anunciou no dia 13 de março, antes da ida aos EUA, que iria trocar 15 embaixadores, inclusive Sérgio Amaral, de Washington. Deu um motivo para o “bilhete azul” num encontro com jornalistas: “Não está vendendo uma boa imagem do Brasil no exterior”. E para ser só na volta: ficaria muito ruim às vésperas de chegar ao país.
O presidente foi para os EUA no dia 17, voltou, foi ao Chile, voltou, foi a Israel, voltou. Mas os embaixadores continuam exatamente onde estavam, como almas penadas. O que mudou, nesse meio tempo, foi o número dos que estavam com os dias contados.
Se Bolsonaro havia falado em 15, a lista que o chanceler Ernesto Araújo enviou para a Casa Civil continha três vezes mais nomes, em torno de 45 embaixadores que ocupam efetivamente embaixadas ou consulados e chefias de representações do Brasil em organismos internacionais nos diferentes continentes. Entre eles, seis estão se aposentando neste ano. Os demais entram na dança das cadeiras.
Até agora, porém, praticamente um mês depois do anúncio feito pelo próprio presidente da República, ninguém veio, ninguém foi para posto nenhum. O próprio embaixador Sérgio Amaral, nomeado no governo Michel Temer, não só continua em Washington como participou ativamente da viagem de Bolsonaro e, agora, participa da visita do vice Hamilton Mourão.
O tempo vai passando e Amaral vai ficando. Ele já estava fazendo as malas, arrumando as gavetas, cuidando das conveniências da família, quando o Itamaraty deu uma contraordem, mandou parar tudo e aguardar novas orientações. Que ainda não chegaram, provavelmente porque alguém deve ter feito as contas: quanto custa a mudança de mais de 40 diplomatas?
Sérgio Amaral não é Vélez Rodríguez nem causou tanta confusão, tanto rebuliço, tantas demissões e tantos recuos, mas sofre nesses três meses o mesmo processo que atingiu o agora ex-ministro da Educação: fica no limbo, sabendo de seu destino pela mídia.
Assim como ele, embaixadores brasileiros pelo mundo afora, na Europa, na Ásia, na África, nas Américas. E, claro, seus assessores diretos, sejam diplomatas, sejam funcionários. Em consequência, suas famílias.
Se há insegurança entre os que saem, há também entre os que podem entrar. Para Washington, o vice Mourão queria o cientista político Murillo de Aragão, da consultoria Arko Advice, um frequentador assíduo da Vice-Presidência. Já a cúpula do Itamaraty preferia o embaixador de carreira Nestor Forster, do grupo de Ernesto Araújo. Os dois enfrentam resistências e obstáculos concretos para assumir o que é, nada mais, nada menos, a embaixada mais importante do Brasil. Aliás, de todos os países.
No MEC, sai Vélez, filósofo, e entra Abraham Weintraub, um homem das finanças, mas uma coisa é certa: a ideologia fica. Além de professores universitários, ambos são também arraigadamente de direita, conservadores nos costumes, simpatizantes das ideias do tal guru Olavo de Carvalho. Lembram-se daquela velha corrente que via comunistas em toda a parte, até debaixo das camas das famílias brasileiras?
Agora, é acompanhar a montagem da equipe e identificar os impostos por Olavo de Carvalho, os indicados pelos militares e os simplesmente técnicos, que querem ver o ministério andar. Sim, porque a Educação está paralisada. Mas a guerra no ministério continua.
Marco Aurélio Nogueira: Guinada não é líquida e certa
A demissão de Vélez Rodríguez não pegou ninguém de surpresa. Dada como certa, abriu uma janela de oportunidade para o governo Bolsonaro. Antes de tudo, porque limpou um território minado. O governo se desgastava ao permanecer sancionando o despreparo de Vélez e deixando-se contaminar pelas disputas entre “olavetes” e militares – e agora pode começar a pensar a Educação como dimensão estratégica, dando a ela um mínimo de atenção.
A guinada, porém, não é líquida e certa. O novo ministro, Abraham Weintraub, um bolsonarista de primeira hora, também é jejuno em gestão educacional, ensino médio e educação básica. Não se trata de um técnico da área, um intelectual ou um articulador político, qualidades sempre preciosas no complicado mundo da Educação. Além disso, gosta de se apresentar como adversário do “marxismo cultural”, o que poderá levá-lo a alimentar a guerra ideológica de Olavo de Carvalho, de quem se diz um admirador e um “adaptador”.
A decisão presidencial puxa um freio de arrumação no MEC, mas não se sabe se esfriará a influência de Olavo. Se o novo ministro, à diferença de seu antecessor, apresentar um plano para gerir a Educação no País, ajudará a dar ao governo um eixo que até agora não foi encontrado. Se permanecer agarrado ao doutrinarismo, a janela de oportunidade não passará de uma fresta, que logo se fechará.
*É cientista político do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
El País: Abraham Weintraub, um segundo ‘olavete’ no MEC para gerir a “terra arrasada”
Economista e professor, novo ministro da Educação prega contra o "marxismo cultural" e terá desafio de romper paralisia na pasta e encontrar solução para impressão do ENEM
Um professor universitário contra o “marxismo cultural”, que trata seus opositores como inimigos, especialista em Previdência social, que passou pelo mercado financeiro, mas nunca gerenciou nada na área educacional. Foi aluno de Olavo de Carvalho – o ideólogo do bolsonarismo. Esse é o novo ministro da Educação, o economista Abraham Weintraub. Ao lado de seu irmão, o advogado e professor Arthur Weintraub, administrou o Centro de Estudos em Seguridade e prega a bandeira ideológica e conservadora do Governo Jair Bolsonaro (PSL). Chega ao cargo com o desafio de administrar uma “terra arrasada” deixada por seu antecessor Ricardo Vélez. Entre idas e vindas, Vélez demitiu mais de dez assessores e quatro secretários-executivos, além de não conseguir dar andamento a quase nenhum projeto em pouco mais de três meses de gestão.
Aos 47 anos de idade, Abraham Weintraub é professor universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2014. Dois de seus colegas consultados pela reportagem disseram que ele teve uma passagem discreta pela universidade porque parecia se dedicar mais aos seus projetos pessoais do que à academia. Em 2014, apoiou a campanha presidencial de Marina Silva (REDE). Antes de abraçar a carreira acadêmica, Abraham atuou no Banco Votorantim e na Quest Corretora.
A aproximação dos irmãos Weintraub com presidente se iniciou há quase dois anos, por intermédio de Onyx Lorenzoni (DEM), o ministro da Casa Civil. Ao mesmo tempo ganhou a confiança do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho mais novo do presidente. Em princípio, Abraham atuaria no ministério da Economia como um dos responsáveis por elaborar a reforma da Previdência. Mas o ministro Paulo Guedes preferiu nomear alguém com experiência legislativa para a função de secretário especial de Previdência e Trabalho. Afinal, era necessário convencer parlamentares sobre a necessidade de se aprovar a reforma. Assim, a vaga ficou com o ex-deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN). Abraham acabou, então, na secretaria executiva da Casa Civil. Enquanto isso, o irmão dele, Arthur, tornou-se chefe da assessoria especial da Presidência da República.
Na Cúpula Conservadora das Américas no ano passado, evento promovido pelo deputado Eduardo, Abraham chamou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de sicofanta (mentiroso), disse que o ex-ditador cubano Fidel Castro era um playboy e que o petismo não estava morto, por isso teria de ser combatido. “Quando caiu o muro de Berlim, teve um monte de goiaba que falou: agora o comunismo acabou. Agora, que o Jair Bolsonaro ganhou, tem muita gente dizendo que o PT está derrotado, que podemos ficar tranquilos. Não, não podemos”. Ressaltou, ainda, lições de Carvalho, caso seus colegas professores passassem criticá-los por serem de direita. “A gente adaptou a teoria do Olavo de Carvalho de como enfrentar eles [comunistas] no debate intelectual. Não precisa mandar pastar. Quando eles falam, a ciência é burguesa, então vá embora daqui porque aqui é o templo da ciência, seu religioso”.
Nessa segunda-feira, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, disse que não precisa seguir na íntegra o que o ideólogo sugere. “Ele tem ideias muito boas, mas não sigo ipsis litteris tudo o que ele fala. Não é porque gosto de música clássica que não escute rock and roll de vez em quando”. Dentro do MEC, contudo há a expectativa do retorno de boa parte dos olavetes que foram demitidos nas últimas semanas por Ricardo Vélez. Outras declarações do ministro também já provocam repercussão negativa, como a de que "crack foi introduzido de caso pensado no Brasil". "Em vez de as universidades do Nordeste ficarem aí fazendo sociologia, fazendo filosofia no agreste, [devem] fazer agronomia, em parceria com Israel", disse ele no ano passado, em uma transmissão ao vivo citada no UOL.
Os desafios na pasta
Entre seus desafios na pasta está a impressão e organização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), já que a gráfica que faria o trabalho declarou falência, e a definição de uma agenda na área de educação básica e a aproximação de áreas sensíveis, como ciência e tecnologia.
Desde que Vélez começou a perder força no cargo, há quase duas semanas, uma lista de nomes foi sugerida ao presidente. Além de Abraham, outros dois corriam por fora. O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) foi defendido pela bancada evangélica e o empresário e consultor em educação Stravos Xanthopoylos foi sugerido por membros do mercado educacional. O que pesou na escolha do presidente foram seus dois padrinhos Olavo e Onyx. Ambos foram consultados por Bolsonaro e a decisão anunciada nesta segunda-feira.
A troca foi vista de maneira positiva por apoiadores de Bolsonaro. “O MEC precisa de um bom gestor e não de um ideólogo do atraso, que defenda a revolução contramarxista do século XIX”, afirmou o cientista político Antonio Testa, um antigo colaborador do presidente na área de educação. Segundo ele, Abraham é um técnico capaz de gerenciar a pasta com o segundo maior orçamento do Governo, com 115 bilhões de reais.
Outros especialistas, contudo, entendem que a troca não deverá surtir efeito no Governo. Entendem, por exemplo, que é necessário empossar alguém com experiência na área educacional. “Todo esse jogo de cena, trazendo para o MEC pessoas completamente alheias ao sistema educacional tem como objetivo o desmonte”, afirmou o sociólogo César Callegari, ex-membro do Conselho Nacional de Educação e presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada.
Na opinião de Callegari, o papel de Abraham será o de defender os planos do ministério da Economia de desvincular a educação do orçamento da união. Conforme a Constituição, o Governo federal tem de investir 18% de seu orçamento em educação, enquanto que as gestões estaduais e municipais são obrigadas a gastar 25%. Uma proposta de emenda constitucional deverá ser enviada nas próximas semanas revisando esses percentuais.
Demétrio Magnoli: Deus, o hino e a bandeira
‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O mantra de Bolsonaro é mais do que parece. A invocação da fé religiosa pontilha os discursos oficiais, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando pelo ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, por atos ou palavras, o governo insiste nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o Hino Nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?
As pessoas cultas inclinam-se a descartar isso tudo, transferindo a ladainha carola e nacionalisteira para o arquivo morto dos anacronismos. De modo geral, não se atenta ao sentido mais profundo dessas exaustivas referências: o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.
Há algumas décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto o ácido da ironia dissolvia a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.
A direita populista manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua faceta oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua faceta pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos —ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” — pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum — e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.
As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) mas, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” de Bolsonaro também desempenha dois papéis. Na sua face escura, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na sua face luminosa, porém, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.
No plano filosófico, a doutrina do multiculturalismo enfraqueceu os pilares dos direitos humanos. A condição humana foi rebaixada ao estatuto de mito liberal, abstração destinada a esconder as singularidades étnicas, raciais ou culturais. A direita populista nutre-se dessa renúncia à humanidade universal para negar os direitos dos “indesejáveis”, sejam eles imigrantes, refugiados, gays ou marginais.
No plano político, o multiculturalismo abandonou a ideia de unidade, que se conecta estreitamente à de igualdade. O conceito de unidade nacional, fundado no contrato de cidadania, foi reinterpretado como ferramenta de exclusão das minorias. O populismo de direita ocupou a trincheira deserta para embrulhar a unidade no celofane da autoridade. Na sua equação, o governo identifica-se com a nação, e a divergência política transforma-se em traição.
Bolsonaro não está só. Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhadas por Donald Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e Matteo Salvini, na Itália. O comboio populista avança pelas clareiras desmatadas no longo intervalo de abjuração multiculturalista. A direita autoritária sequestrou os estandartes da igualdade e da unidade. Foi fácil: ninguém mais cuidava deles.
Alon Feuerwerker: Bolsonaro aposta que outros farão a articulação política por ele. Talvez não esteja tão errado assim
A dificuldade política do governo não está na falta de diálogo ou habilidade. Se fosse só isso, e se o presidente reservasse para cada parlamentar da potencial base uns 30 minutos, e se gastasse umas quatro horas diárias na coisa, em menos de dois meses o problema estaria resolvido e a reforma da previdência seria votada no primeiro semestre.
Restaria a questão da habilidade, mas Jair Bolsonaro sabe ser boa praça quando precisa. O ponto é outro: os parlamentares, deputados principalmente, não querem ajudar o governo a dar certo e depois serem atropelados em suas bases na eleição de 2022 por bolsonaristas armados do discurso da nova política e vitaminados pelos cargos federais.
Pois, no mentalmente entorpecido Brasil, deputados que pressionam por poder são rotulados fisiológicos, enquanto as divisões do bolsonarismo avançam como legiões romanas sobre os cargos federais. E os conflitos internos entre os subgrupos deles são tratados respeitosamente pela opinião pública como disputa entre ideológicos e pragmáticos.
Aí a palavra “fisiológico” não aparece. E ainda dizem que o governo tem problemas de comunicação. Nessa operação de promover a ocupação maciça da máquina enquanto os outros são acusados de fisiologismo o governo é um sucesso absoluto de comunicação. Mas não existe almoço grátis e o Parlamento está inquieto. Também pudera!
Os (e as) parlamentares sabem que cada novato no primeiro e segundo escalão no Executivo é potencial candidato em 2022. Ainda mais se tiver autoridade sobre dinheiro para prefeituras, que aliás têm eleição ano que vem. Se Bolsonaro chega bem na reta final, estarão dadas as condições para o bolsonarismo esmagar os atuais aliados na urna.
Em algum grau essa disputa é insolúvel, pois o bolsonarismo também tem boas razões para tentar diminuir a força eleitoral dos aliados. Depender muito de aliados na política não é bom. E Bolsonaro é produto de uma demanda bonapartista, ou cesarista, não seria prudente ele repentinamente vestir a roupa de conciliador e agregador.
Então não tem solução? Melhor ir com calma. O presidente sabe: em condições razoavelmente normais de temperatura e pressão o Congresso aprova alguma reforma da previdência. E isso vai injetar algum otimismo no mercado e velocidade na política. Já se fala na reforma tributária. Mas, e o risco de desidratar a previdenciária?
Bem, até agora “um trilhão de economia em dez anos” é postulado, ou dogma, não questionado. Ninguém diz exatamente quanto será economizado com cada medida. Sabe-se apenas a cota de sacrifício dos militares: 1% do total. O resto é mistério. E não é impossível o número final estar subestimado, já prevendo a lipoaspiração.
Ou seja, o Planalto espera que o Congresso, especialmente os presidentes das duas Casas, entregue a mercadoria para o ansioso mercado, em nome do superior interesse nacional, enquanto as tropas bolsonaristas se ocupam de tomar o Estado para a partir dele consolidar seu poder. E é exatamente isso que o eleitor fiel de Bolsonaro espera dele.
Se vai dar certo? Os fatos dirão, mas a probabilidade é razoável. Apesar dos resmungos localizados, o centro da agenda governamental, a política econômica, mantém apoio maciço nos grupos sociais hegemônicos e na opinião pública. E a Lava Jato continua à caça da velha política. E o Judiciário está sob ataque. E as Forças Armadas estão coesas.
Claro que vai depender da execução. Mas não é tão difícil assim. O governo precisará errar muito para não entregar nada. E se entregar quase qualquer coisa isso será avaliado como avanço. O risco maior? A política econômica não dar o resultado esperado no médio e longo prazos. Um “Efeito Macri”. Mas isso, se é perfeitamente possível, ainda não está no radar.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Luiz Carlos Azedo: Acabou o horário de verão
“Um balanço dos primeiros 100 dias do governo no período explica por que a popularidade de Bolsonaro caiu 16 pontos entre janeiro e março passado“
Nos 100 dias de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro não fez uma revolução na vida nacional, apesar das turbulências que o presidente da República, seus filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado federal) e, principalmente, Carlos (vereador carioca) protagonizaram nas redes sociais, sem falar nos disparates do ministro da Educação, o atabalhoado Ricardo Vélez Rodriguez, e nas desbocadas tuitadas do ideólogo do bolsonarismo Olavo de Carvalho. Um balanço da atuação do governo no período explica por que a popularidade de Bolsonaro caiu 16 pontos entre janeiro e março passado. Para melhorar a popularidade, Bolsonaro anunciou o fim do antipático horário de verão.
A mudança mais estratégica promovida por Bolsonaro nesses 100 dias foi a guinada à boreste na política externa brasileira. Na marcação relativa de suas prioridades geopolíticas (Estados Unidos, Chile, Israel), os resultados são duvidosos. Na relação com os Estados Unidos, frustrou o presidente Donald Trump em relação à participação brasileira numa eventual intervenção norte-americana na Venezuela (ainda bem); com o Chile, deixou o presidente Sebastián Piñera na maior saia justa, por causa de seus elogios à ditadura de Pinochet; finalmente, no “fan tour” em Israel, recuou da intenção de transferir a embaixada do Brasil para Jerusalém, anunciando a instalação de um escritório comercial. Agora, corre atrás dos prejuízos na imagem internacional e dos desgastes com árabes e chineses.
Depois de muita perda de tempo, caiu a ficha de que o governo precisa se empenhar na aprovação da reforma da Previdência. Bolsonaro busca uma aproximação com os partidos, depois de um cessar fogo no tiroteio com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no qual queimou cartuchos desnecessariamente. Entretanto, a cada conversa política do presidente da República, o ministro da Economia, Paulo Guedes, perde alguns bilhões da economia de R$ 1 trilhão que pretendia fazer em 10 anos. Para Bolsonaro, o essencial é aumentar a idade mínima e o tempo de contribuição. Ou seja, vem aí uma reforma mitigada, para garantir um alívio fiscal nos quatro anos de mandato. A grande dúvida é se Guedes e a economia aguentam esse tranco.
Guedes é a principal âncora do governo; a outra, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, com a Operação Lava-Jato, uma espécie de “big stick” na relação com os políticos. O mundo de Moro — a magistratura, o ministério público e as polícias federais e agentes ficais — é contra a redução dos próprios privilégios, forma um lobby que está sendo engrossado pelos magistrados, procuradores, policiais civis e militares dos estados. O sucesso do governo depende do desfecho dessa contradição. Se prevalecerem as corporações e o mercado, haverá um colapso nas políticas sociais, desemprego e baixo crescimento; se atender às corporações e à maioria da população, populismo e recessão; a melhor alternativa para o crescimento é acabar com os privilégios.
Estão na lista dos pontos fortes do governo o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, que vem dando um show de competência com seu programa de concessões, e os ministros da Agricultura, Teresa Cristina; da Cidadania, Osmar Terra; e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. São políticos bem-vistos pelos colegas e não fazem marola. O ponto mais fraco, disparado, é o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, cuja cabeça pode rolar amanhã. Outro ponto frasco é o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, enrolado no escândalo dos candidatos laranjas do PSL, o partido de Bolsonaro. Os militares, que ocupam cada vez mais espaços na área meio do governo, tentam salvar a pátria e tutelar Bolsonaro, sem êxito.
Pesquisas
Em números, os resultados desses 110 dias de governo estão na pesquisa do Ibope, entre os dias 16 e 19 de março: apenas três em cada 10 brasileiros (34%) avaliam de forma positiva (ótima ou boa) o governo de Jair Bolsonaro. A mesma parcela considera a gestão como regular e praticamente um quarto (24%) como ruim ou péssima. Aqueles que não sabem ou não respondem à pergunta somam 8%. No primeiro levantamento, aqueles que avaliavam a gestão como ótima ou boa eram 49%, em fevereiro caíram para 39% e recuam para 34% em março. A avaliação ruim ou péssima registra um aumento de 13 pontos no mesmo período: os que avaliavam negativamente a administração de Bolsonaro eram 11% em janeiro, passaram para 19% em fevereiro e, atualmente, somam 24%.
Entretanto, 51% ainda aprovam a forma como Bolsonaro governa, contra 38% que desaprovam; 10% não sabem ou preferem não opinar. O problema é a velocidade da queda: 67% aprovavam em janeiro, índice que caiu para 57% em fevereiro e recuou agora para 51%, ou seja, uma redução de 16 pontos. A desaprovação vai numa escalada: subiu de 21% para 31% e 38%, respectivamente, entre janeiro e março. A confiança no presidente regrediu: 49% da população confiam, contra 44% que não confiam e 6% que não sabem ou preferem não responder. Em janeiro, 62% confiavam no presidente ante 30% que não confiavam. Em fevereiro, os percentuais eram 55% e 38%, respectivamente. Desse modo, a queda da confiança entre janeiro e março é de 13 pontos, e o crescimento dos que não confiam, de 14 pontos.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/agora-vai-acabou-o-horario-de-verao/
Creomar de Souza e Eduardo Viola: O Brasil e sua agenda de reformas entre as urgências da sociedade e o provincianismo dos políticos
O presente artigo tem como interesse fundamental contribuir para o debate acerca do processo de reformas e modernização da sociedade brasileira. Aqui, serão expostos três componentes que se julgam fundamentais para esse diálogo: a premissa de que o Brasil é uma democracia de baixa qualidade; os impactos desta baixa qualidade no processo eleitoral com a consequente eleição de Bolsonaro e a fragmentação das oposições e uma reflexão ensaística acerca da necessidade de implementação de um projeto de reformas e inserção do Brasil nas cadeias produtivas globais, incluindo uma política de ciência, tecnologia e inovação que aloque recursos de modo racional.
Antes de fechar questão ou esgotar o diálogo, os autores acreditam que é importante marcar posição em favor de uma agenda de abertura comercial, desburocratização estatal e transparência política. Tais valores que já se manifestam em setores da sociedade nacional e concretamente se organizam em movimentos de renovação política e em algumas organizações empreendedoras de outros matizes, dentro e fora do Estado, são de extrema importância para a melhoria do ambiente de negócios e transformação do Brasil em um hub de negócios competitivo globalmente.
Nestes termos, a leitura oferece alternativas de reflexão que são fruto do diálogo dos autores com acadêmicos, investidores internacionais, empreendedores brasileiros e políticos preocupados em construir um novo ambiente regulatório. Tal premissa se faz presente na assunção de que o país encontra-se em situação de estagnação e degradação, sobretudo, pelo fato de que as estruturas do governo estão cooptadas pela coalizão de interesses corporativistas, patrimonialistas e protecionistas e que, sem um enfrentamento claro destes, o ambiente regulatório não conseguirá prover segurança jurídica e institucional necessárias para colocar o Brasil na rota do investimento estrangeiro direto que inclua setores de avançada tecnologia.
Brasil, uma democracia de baixa qualidade
Imperfeita, de baixa qualidade, em consolidação, são vários os eufemismos e medições que podem qualificar a democracia brasileira (Viola e Leis 2007). De um ponto de vista analítico, a maior parte dos problemas relacionados ao regime democrático nacional estão vinculados a alguns elementos, tais como: sistema político fragmentado, baixa qualidade dos serviços públicos ou até mesmo a baixa aderência da população à ideia de que democracia é um valor positivo.
Tendo como referência o Democracy Index do Economist Intelligence Unit, em sua edição de 2018, é possível compreender alguns dos elementos que geram as principais travas da democracia nacional. Vale, porém, caracterizar os medidores de democracia do índice de referência em duas categorias. A primeira que trata de elementos que envolvam componentes sociais de aderência à lógica democrática, aqui se encontram a medição de funcionamento do governo, participação e cultura política.
De outro lado, são colocados elementos que mensuram a qualidade do sistema eleitoral e a própria percepção das liberdades civis como um todo. Ao verificar comparativamente os dois matizes de ranqueamento, tornam-se perceptíveis dois componentes importantíssimos: as notas atribuídas ao Brasil no que concerne aos elementos formais de uma lógica democrática, tais como o pluralismo político e eleitoral e a percepção de liberdades civis, que são notas altas (variando entre 8,24 e 9,58 em 10); e, de outro lado, quando são tratadas as notas que envolvem a participação direta do cidadão na lógica eleitoral e no cotidiano político, são baixas (variando entre 5 e 6,57 em 10).
A interpretação de tais números traz a possibilidade de compreender os problemas da democracia brasileira em duas ordens. Há avanços relativamente consistentes na possibilidade de organização partidária, apesar de o sistema sofrer como contraponto a uma elevada fragmentação. Apesar de a teoria política da democracia identificar alta fragmentação do sistema partidário como uma vulnerabilidade da democracia, isso não foi bem incorporado no The Economist Index.
Para reforçar aqui o argumento de que a fragmentação partidária é um problema a ser levado em conta, faz-se uso do argumento desenvolvido por Leonardo Martins Barbosa em “O Congresso entre a fracionalização e a polarização (2018)”. Vale compreender que fracionalização, termo criado por Douglas Rae, consiste na possibilidade de que dois parlamentares escolhidos aleatoriamente sejam de partidos distintos. Nestes termos, com uma variação que vai de 0 a 1, quanto mais próximo de 0 menor é o nível de fracionalização, e quanto mais próximo de 1, consequentemente, maior será o índice.
A medição realizada por Barbosa resulta em um índice que marca 0,94 (29 partidos) na Câmara dos Deputados e 0,92 (22 partidos) no Senado Federal a partir do resultado das eleições para o Congresso Nacional em 2018. A fracionalização do Congresso acaba servindo, portanto, como um marcador concreto do processo de fragmentação política, por tornar o cotidiano de negociação entre Executivo e Legislativo muito mais oneroso para o primeiro. A fragmentação e a fracionalização, portanto, atendem a interesses de grupos políticos patrimonialistas e se aderem a uma lógica burocrática de apropriação da coisa pública, fazendo com que os avanços institucionais se tornem uma armadilha à própria consolidação democrática.
De outro lado, existe uma clara trava cultural no que envolve a participação política. E quais seriam as raízes da baixa participação e de seus índices correlatos como cultura política e funcionamento do governo?
A resposta direta ao questionamento anterior tem duas dimensões: o baixo nível educacional geral da população e o baixo nível de cultura cívica. Ou seja, existe limitado interesse pelas questões públicas e baixo conhecimento sobre como funciona uma economia moderna e suas instituições. O Pisa (Programme for International Student Assessment da OCDE) classifica o Brasil na 60ª posição entre 76 países avaliados. Este indicador reforça a premissa aqui expressa de que a baixa qualidade dos processos educacionais é um elemento que se manifesta na baixa qualidade de elementos culturais importantes para democracia.
Não por acaso, a 50ª posição do Economist Democracy Index e o alto grau de fracionalização partidária (0,94 e 0,926) anteriormente expostos, encontram em certa medida espelho com o posicionamento dado em termos de índices e qualidade educacional entregue aos estudantes. A correlação é bastante simples, visto que indivíduos pouco instruídos não conseguem compreender nem tampouco defender de maneira eficaz seu espaço e direitos em uma sociedade marcada por distribuição desigual de oportunidades e alto grau de corporativismo.
Neste aspecto, vale uma reflexão acerca da moldura política resultante da Constituição Federal de 1988. A carta, que é fruto do protagonismo de forças políticas que guiaram o processo de redemocratização, apresenta um forte viés garantista, altamente justificado naquele momento pela memória recente de um período de regime autoritário. O resultado prático em termos de análise política é que se de um lado o documento permite o avanço de direitos e causas sociais importantes, de outro, ele dá vazão à captura do Estado por corporações de ofício das mais diversas ordens.
Dando maior ênfase a esse aspecto da reflexão, é possível afirmar que existe na Constituição de 1988 um desequilíbrio na relação entre direitos e deveres: enquanto os direitos são afirmados quase infinitamente (sobremaneira, para grupos com maior capacidade de articulação de seus interesses junto às esferas governamentais), não há uma correspondência com os deveres necessários à satisfação desses direitos. O exemplo mais consistente deste processo, na visão dos autores, é o tratamento diferenciado dado a algumas categorias privilegiadas de servidores públicos – juízes, diplomatas, analistas tributários, membros de carreiras de controle e políticos com cargos eletivos, entre outros – cuja relação entre trabalho entregue e benefícios recebidos choca o restante da sociedade pela sua desproporção.
O resultado prático desta lógica patrimonialista é um aprofundamento da percepção de desigualdade de direitos entre aqueles que estão acomodados dentro do espaço de estabilidade do governo e os que estão de fora, relegados a um ambiente com forte percepção de desamparo. A Constituição acaba, por fim, prometendo muito a todos, mas o governo, por suas limitações e compromissos corporativistas, entrega pouco para a maioria.
Custeio é maior do que investimentos
É possível afirmar, portanto, que sob o manto de proteger os interesses nacionais, o Estado brasileiro passou a operar dentro de uma lógica de inchaço, em que o custeio passou a suplantar os investimentos e as agendas destinadas a proteger grupos específicos. Neste aspecto, o país é um excelente caso dos dilemas expostos por Garrett Hardin em sua Tragédia dos Comuns (1968), tendo em vista a incapacidade dos marcos políticos e regulatórios de distribuírem as benesses de maneira equilibrada. De subsídios ao paternalismo funcional, as estruturas estatais brasileiras se tornaram uma grande rede de benefícios privados, em que a capacidade de pressão ou peticionamento faz com que agendas exclusivistas suplantem interesses comuns.
Esse modelo político, com uma das explicações mais exatas na terminologia “Presidencialismo de Coalizão”, de Sergio Abranches, encontrou um momento de grande desgaste a partir dos protestos cívicos de 2013 (Abranches 2018). Nesse ano, a política econômica de orientação heterodoxa e estatista iniciada no segundo governo Lula e aprofundada no governo Dilma deu fortes sinais de exaustão. Combine-se a esse elemento dois outros muito importantes: a incapacidade do governo Rousseff de construir uma relação harmoniosa com o Congresso Nacional e a massiva exposição midiática da corrupção sistêmica da coalização no governo liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) durante o julgamento do “Mensalão”, em 2012.
A conjunção dos equívocos econômicos, com uma péssima estratégia congressual e o desgaste imagético do grupamento partidário representado pelo PT, criaram o ambiente político e institucional propício para o afastamento de Dilma Rousseff do poder. Como pano de fundo deste processo, é possível visualizar a disputa de poder entre forças políticas conservadoras que rapidamente abandonam a coalização da presidente. E, de outro lado, de uma tecnocracia vinculada às carreiras de controle, amplamente fortalecidas pela constituição de 1988, que percebem a possibilidade de forçar uma renovação das estruturas políticas pela via judicial.
Neste sentido, a partir de 2014, a Operação Lava Jato se encarregara de mostrar que a corrupção afetava o conjunto dos partidos políticos, e não apenas a coalizão governante. O conflito aberto entre a representação política e as carreiras de controle propiciou que, mesmo após o afastamento de Rousseff, a crise política e institucional persistisse. O fato é que a presidência de Michel Temer implicou uma mudança parcial da coalizão governante em favor de reformas econômicas pró-mercado, mas também um esforço politicamente arquitetado para destruir as investigações anticorrupção e enfraquecer a tecnocracia de controle do Estado nacional.
Sobre o governo Temer é possível afirmar, categoricamente, que este foi um dos mais paradoxais da história recente do Brasil: de um lado, a administração dá uma virada econômica racional e modernizante, que evita uma desorganização generalizada da economia nacional. Mas, de outro lado, tenta organizar a resistência sistêmica da classe política contra as investigações anticorrupção. Esse choque de intenções e forças que caracteriza o momento político sob Michel Temer terá implicações profundas na democracia brasileira.
O fato é que o fortalecimento das instituições de controle com forte apoio da opinião pública impôs derrotas sucessivas ao establishment político, seja ele representado pelo governo federal ou pelo Congresso. Tal processo tem como produto a construção de uma percepção coletiva de necessidade difusa de renovação política, que acaba alçando Jair Bolsonaro à condição de presidente da República após um processo eleitoral institucionalmente estável, porém politicamente bastante polarizado.
Um mapa político do Brasil em 2019: o governo Bolsonaro e a oposição
As eleições de 2018 marcam, em nível federal, a ruptura de um ciclo político iniciado em 1994, em que os partidos governantes, PSDB, PT e PMDB (posteriormente renomeado de MDB) se dedicaram a implementar os princípios doutrinários da Constituição de 1988. Diante da profunda crise de legitimidade dos partidos dominantes do ciclo anterior, forma-se, em 2018, uma coalizão eleitoral de mudança difusa em relação ao status quo. A coalizão do governo Bolsonaro, saída vencedora da corrida eleitoral, é marcada pelo seu alto grau de heterogeneidade. Com dois meses de governo pode se definir que existem dois grupos bastante contraditórios: um liberal modernizante e outro denominado conservador nativista. Numa posição diferente, de algum modo intermediária, mas diversificada internamente, encontram-se os ministros militares.
Os liberais modernizantes liderados por Guedes, Mourão e Moro têm uma agenda de promoção de uma sociedade aberta. Essa agenda se compõe dos seguintes elementos: reformas pró-mercado, internacionalização da economia, desenvolvimento científico-tecnológico, enfrentamento dos interesses corporativistas estabelecidos no Estado. Pode-se afirmar, resumidamente, que a agenda liberal do governo Bolsonaro tem como objetivo claro o fortalecimento do Estado Democrático de Direito (rule of law) com uma mescla de abertura econômica visando à competitividade e à criação de marcos legais que possibilitem combate mais eficaz à corrupção, ao crime organizado e aos crimes violentos.
Os conservadores nativistas, por sua vez, sob inspiração ideológica de Olavo de Carvalho – liderados pelos filhos de Bolsonaro e pelos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Ricardo Vélez Rodríguez (Educação) e Damares Silva (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) – estão interessados em combater algumas dimensões da globalização (em particular a governança global, por eles denominada de ideologia globalista), promover os valores religiosos no sistema educacional e na sociedade em geral, um combate duríssimo à criminalidade (ultrapassando os limites do Estado de Direito, quando necessário) e reformas econômicas limitadas, mantendo importantes barreiras protecionistas. Bolsonaro partilha, no fundamental, as posições dos conservadores nativistas, mas em relação à economia tem se convertido, mesmo que não plenamente, às posições liberais emanadas por Guedes.
Por fim, os ministros egressos das forças armadas têm como preocupação principal uma lógica de estruturação e eficiência do Estado, com forte componente geoestratégico. Nestes termos, destacam-se dentro deste grupo o fortalecimento do combate à corrupção e à criminalidade; a modernização da economia, com proteção de setores vistos como estratégicos; um aumento da autoridade e da hierarquia nas instituições e na sociedade em geral. Associados a tais componentes é possível identificar também uma preocupação com o crescimento do papel do Brasil no mundo e um aumento do orçamento da defesa que permita reequipar as forças armadas à altura da modernidade tecnológica.
Tais grupamentos, de maneira quase natural, disputam protagonismo entre si e buscam aproveitar-se de espaços que, porventura, sejam criados dentro das estruturas de poder do governo. Essa heterogeneidade interna erode a capacidade da administração Bolsonaro e cria espaços de imobilismo e confronto. Exemplos claros são a tutela do grupamento militar sobre a política externa e a vitória de interesses corporativistas do agronegócio sobre intenções de Guedes de liberalizar o mercado brasileiro de leite em pó.
Contudo, essa erosão é limitada pelo fato de que a oposição não apresenta grau de coesão suficiente para enfrentar os projetos até agora apresentados pelo governo.
E quais são as raízes da falta de coesão das oposições? A primeira e mais forte é a base hegemônica do discurso do Partido dos Trabalhadores. O fato de que o PT se mostra incapaz de construir qualquer tipo de discurso autocrítico quanto aos escândalos de corrupção envolvendo seus dirigentes. Ao mesmo tempo em que suas estratégias eleitorais buscam erradicar opções alternativas no campo político à esquerda, vide o caso de destruição de biografia de Marina Silva, ou a insistência em candidatura própria em 2018.
O fato é que o PT conseguiu construir uma polarização entre aqueles que não queriam o presidente Bolsonaro eleito. E o resultado é que, hoje, em termos congressuais e de atuação partidária, a oposição está fragmentada. O efeito prático de tal processo é uma maior facilidade teórica para o governo avançar em agendas reformistas desde que possa construir um diálogo pragmático com o Congresso e com outros polos de poder presentes na Esplanada dos ministérios, tal como o forte lobby das carreiras do serviço público federal.
O que reformar, quando reformar, como reformar?
Diante de um contexto de democracia de baixa qualidade, níveis educacionais paupérrimos e um ambiente político marcado por fracionamento e polarização, qual o caminho para o Brasil iniciar a superação da armadilha da renda média e se inserir nas cadeias globais de valor de maneira efetiva? A palavra que surge automaticamente a esse questionamento é reforma.
Uma parte limitada do mundo político e setores econômicos e sociais mais cosmopolitas da sociedade parecem ter compreendido a necessidade de reformar estruturas políticas, econômicas e institucionais do Estado brasileiro. Entretanto, as resistências bem organizadas perpassam os vencedores do pacto político e federativo resultante da constituição de 1988, setores da economia sustentados por subsídios, a grande maioria dos servidores públicos federais, estaduais e municipais e, sobretudo, políticos com um forte viés corporativista, formam uma enorme coalizão que resiste à modernização das estruturas produtivas e sociais do Brasil.
O estabelecimento de uma reflexão acerca da necessidade de modernização do país em termos institucionais leva à necessidade de integração do país às cadeias globais de valor. Neste sentido, tendo como marco de referência outras democracias de mercado, vale o exercício de hierarquização das reformas em três níveis distintos.
O primeiro destes níveis envolveria a melhora do ambiente de negócios e, neste aspecto, entrariam em curso um aprofundamento da modernização de regras trabalhistas iniciadas com a reforma de Temer, uma reforma previdenciária robusta dentro dos parâmetros estabelecidos pelo projeto enviado ao Congresso e um processo rápido e consistente de abertura comercial.
O segundo nível trataria dos mecanismos de melhoria da infraestrutura nacional e da redução da intervenção do Estado na vida econômica nacional. O avanço deste nível envolveria um processo constituído pela rápida concessão de portos, aeroportos, rodovias, ferrovias e outros tipos de ativos para a iniciativa privada. Cabe destacar, acessoriamente, a importância da expansão de projetos energéticos tendo como parâmetros o desenvolvimento de baixo carbono e a resiliência a fenômenos climáticos extremos (Viola & Franchini, 2018).
Naquilo que envolve uma otimização da participação estatal direta na economia, cabe destacar que o país conta hoje com mais de 150 empresas estatais, a grande maioria delas sendo ineficientes, contribuindo ao déficit fiscal e sendo fontes de corrupção. Uma privatização rápida e ampla de empresas estatais é, nestes termos, fundamental para dar credibilidade ao governo frente a investidores nacionais e internacionais. Este último elemento é bastante importante, ao mostrar que a administração federal possui coragem para diminuir excessos e “cortar na própria carne” em prol de interesses de bem comum. Seguindo esta mesma orientação de melhoria dos marcos regulatórios nacionais, a proteção ambiental e o desenvolvimento de baixo carbono são marcas irreversíveis do século 21. E, exatamente por isso, urge um aperfeiçoamento da legislação ambiental e uma modernização e consolidação das agências ambientais em sintonia com os princípios da economia de mercado.
O terceiro nível, por sua vez, envolveria uma ampla reforma da educação no país, criando indicadores realmente robustos de mensuração da qualidade e dando aos professores e aos estudantes as melhores condições possíveis para desenvolverem suas atividades. A prioridade na educação deveria ser a educação pré-escolar, primária e secundária (com investimento massivo no ensino técnico). O sentido da reforma do ensino médio realizada pelo governo Temer deveria ser aprofundado, tendo o Pisa como marco referencial de habilidades e competências educacionais a serem desenvolvidas durante a vida escolar.
No concernente às universidades, considera-se fundamental o estímulo ao desenvolvimento de fundos patrimoniais e outras iniciativas que dessem ao menos às instituições mais competitivas maior capacidade de captar recursos privados no mercado e desenvolver parcerias fora do mundo acadêmico. Em específico, no caso das universidades federais, considerasse fundamental uma mudança nos modelos de governança, com objetivo de modernizar estruturas e garantir o máximo de retorno à sociedade dos investimentos públicos lá realizados. De outro lado, parece inevitável aceitar o fato de que se faz necessária uma diminuição das interferências corporativistas e populistas que drenam recursos intelectuais e econômicos destas instituições.
Processos eleitorais nas universidades federais
Como roteiro para esse aprimoramento, o presente texto propõe que nas universidades federais os processos eleitorais se guiem estritamente pelos requisitos da lei universitária que definem que os reitores e demais autoridades são eleitos em um pleito em que o voto dos professores vale 70% do total e o voto dos funcionários e alunos 15% cada um. Tal posicionamento parte da premissa de que os professores são os entes com maior grau de responsabilização dentro destas instituições e que, exatamente por isso devem ter maior poder relacional para delineamento dos processos de gestão.
Relacionada ainda com o ensino superior de maneira ampla, constituir uma política de ciência, tecnologia e inovação à altura da terceira década do século 21 é fundamental. Tal política pública deve partir do reconhecimento da importância decisiva das tecnologias disruptivas sintetizadas no conceito de quarta revolução industrial (Schwab & Davis 2018).
Desse modo, a política de ciência e tecnologia deveria ter como um dos eixos estruturantes fundamentais a promoção da formação e pesquisa nas grandes famílias tecnológicas de ponta, assim descritas: 1) tecnologias digitais – inteligência artificial, internet das coisas, novas tecnologias computacionais, blockchain, segurança cibernética; 2) tecnologias físicas – robótica avançada, novos materiais avançados, manufatura aditiva, impressão multidimensional, drones, captura, armazenamento e transmissão de energia, tecnologias de baixo carbono, geoengenharia, tecnologias espaciais; e, 3) tecnologias biológicas - biotecnologias, neurotecnologias, interface cérebro-computador, realidade virtual e aumentada. Tendo recursos humanos na fronteira tecnológica, o Brasil conseguiria atrair investimentos estrangeiros diretos que aumentariam a densidade tecnológica da economia, um dos gargalos fundamentais do desenvolvimento nacional.
Fazendo um retorno necessário à educação básica vale, ainda, pontuar a necessidade de trabalhar habilidades básicas – leitura, escrita e raciocínio matemático – que encarecem o custo de mão de obra no Brasil em termos de treinamento, já identificadas no Pisa. De outro lado, vale mensurar que este país não é um polo de atratividade para mão de obra qualificada, o que por si é um dado concreto de diminuição de competitividade internacional do país.
À medida que este texto marca posição no que concerne os elementos de reforma em âmbito produtivo e educacional, surge a necessidade de um retorno à discussão já pontuada do papel da estrutura política face aos processos de modernização. Neste sentido, uma reforma política que alterasse a dinâmica de financiamento eleitoral, dando maior transparência às estruturas partidárias, é fundamental para a melhoria do ambiente político. A reforma política, portanto, deveria se pautar por uma liberalização das práticas políticas, no que concerne à associação e um reforço à ideia de que o partido deve ser minimamente competitivo para receber recursos públicos.
Dessa mesma forma, a ampliação e o aceleramento da cláusula de barreira é um dos elementos que tendem a dar racionalidade ao processo de melhoria do sistema político. Acredita-se, assim, que uma maior sinergia entre uma lógica política mais transparente e um ambiente de negócios mais competitivo e aberto dará os instrumentos necessários para um choque modernizante no país em médio e longo prazos.
Considerações finais
Longe de esgotar o diálogo sobre as reformas, este artigo buscou marcar posição em favor de uma agenda modernizante que, a partir da implementação de políticas de viés liberalizantes na economia e na política, possam ajudar a superar os gargalos construídos por décadas de estatismo, corporativismo e protecionismo. Esses avanços somente poderão materializar-se em uma clara vitória da corrente liberal modernizante sobre a conservadora nativista na coalizão governante.
Caso essa vitória liberal aconteça, o principal benefício direto é a criação de instrumentos que possam superar a armadilha da renda média em que o país se encontra. Essas políticas públicas, por sua vez, devem ser implementadas com o objetivo de prover um aumento rápido do nível educacional médio da sociedade e um incremento da produtividade e da competitividade sistêmica da economia. Vale ressaltar que tais ações não devem se vincular apenas às áreas associadas à exploração dos vastos recursos naturais do país, ao contrário, devem estar abertas à incorporação e disseminação dos sistemas produtivos e tecnologias da quarta revolução industrial. Para isso, é decisiva a superação do provincianismo presente em vastos setores da sociedade brasileira e particularmente no mundo político.
Acredita-se que a atual conjuntura permite a construção de um processo de confluência entre setores modernizantes da sociedade civil e do governo, de maneira que possam ser implementadas agendas de modernização nos eixos um e dois aqui expostos, resultando em práticas que tornem a mão de obra mais barata e gerem maior otimização no uso dos recursos advindos dos impostos dos cidadãos. De outro lado, faz-se importante pressionar a representação política de forma que o próprio sistema político se torne mais racional e eficiente.
Provavelmente, setores comprometidos com lógicas corporativistas construirão narrativas de demonização das reformas sem, contudo, deixar claro para o restante da sociedade a defesa de seus privilégios em um ambiente de escassez de recursos e escolhas difíceis. Neste sentido, cabe o alerta de que uma estrutura governativa incapaz de se desvencilhar das amarras do corporativismo é uma estrutura incapaz de prover serviços com o mínimo de qualidade aos seus cidadãos.
E, neste sentido, o arranjo político e institucional resultante da constituição federal de 1988 precisa ser revisto. Tal revisão se faz necessária não apenas por opções de cunho interpretativo da realidade, mas, sobretudo, pelo fato de que a capacidade do Estado nacional de atender à multiplicidade de interesses expressos pelo pacto político que redemocratizou o país impede um avanço consistente na capacidade da sociedade em atrair e gerar riquezas de forma consistente. De outro lado, o risco cada vez mais eminente de o Brasil ficar estagnado na armadilha da renda média se consolida no horizonte diante do fato de que um sistema político fragmentado e polarizado tem consistentemente erodido o espaço de diálogo e escolha de prioridades em termos de políticas públicas.
O fato é que a sociedade brasileira possui em sua vizinhança exemplos bastante concretos, vide o caso argentino, de atores internacionais que fracassaram na consolidação de estruturas básicas de democracias de mercado. Tais processos e incapacidades colocaram os atores na posição de reféns do corporativismo político e estatal de um lado e das mazelas da falta de competitividade econômica de outro. Cabe, portanto, o estreitamento e o reforço da coalizão liberalizante em produzir uma agenda de Estado mínima que dê, de um ponto de vista político e eleitoral, apoio àquela parcela, ainda minoritária, do sistema político que é favorável aos processos de reforma política, econômica, burocrática e educacional da sociedade brasileira.
Referências Bibliográficas:
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LA, Eduardo: FRANCHINI, Matias. Brazil and Climate Change. Beyond the Amazon. New York, Routledge, 2018
Julianna Sofia: Vagas à vista
Dois ministros na corda bamba podem abrir espaço para partidos na Esplanada
Deve ter soado como um hit de música caipira aos ouvidos de Jair Bolsonaro a notícia revelada por esta Folha sobre os elementos nas mãos da Polícia Federal apontando para a participação do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, no esquema de candidaturas laranjas no PSL de Minas nas últimas eleições.
Em 30 dias de apuração, os investigadores farejaram indícios de que o mineiro tenha cometido crime de falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Uma quarta candidata laranja foi encontrada pela polícia e já estão na mira uma quinta e uma sexta. Novos áudios e recibos de pedágio corroboram depoimentos em que o ministro é acusado de malfeitos.
O presidente tem demonstrado desconforto com as peraltices de Álvaro Antônio e admite o desgaste para o governo. Já avisou que havendo “uma conclusão com provas robustas, toma a decisão”. Em outras palavras, muito em breve surgirá vaga no gabinete ministerial.
A vacância no Turismo calha com os interesses de partidos ávidos por orbitar em torno do Palácio do Planalto. Após três meses de negação, o bolsonarismo rendeu-se às evidências de que precisa negociar com os ícones da política tradicional caso queira aprovar a nova Previdência.
Em encontros com presidentes de legendas nesta semana, Bolsonaro pediu desculpas por caneladas e abriu um canal ao sinalizar com a criação de um conselho para azeitar a articulação política. Diante da atmosfera de desconfiança mútua, ele não acenou com cargos, por ora. Tampouco as siglas pediram.
Mas é disso que se trata.
Centrão e congêneres dispensam os postos que sobraram na xepa resultante da nova política. O único sinal pouco mais enfático de adesismo à base parlamentar de Bolsonaro vem do DEM porque já conta com três ministérios —e quer mais.
Nesta sexta-feira (5), o presidente indicou que o ministro Ricardo Vélez(Educação) poderá desocupar a cadeira na próxima semana. Timing apropriado para abertura de vaga na Esplanada dos Ministérios.