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Raul Jungmann é o entrevistado especial da sexta edição da Revista Política Democrática Online

Elucidar o caso Marielle, diante da captura de partes das instituições do Estado por uma aliança satânica entre o crime organizado, a política e a corrupção no Rio de Janeiro, é fundamental, avalia Raul Jungmann, em entrevista à Revista Política Democrática Online

“É fundamental desvendar o caso Marielle, mas ele pode ser apenas o fio da meada para algo mais amplo. Como imaginar que os dois suspeitos presos, profissionais com possível ligação com o “escritório do crime”, tenham passado três meses planejando o assassinato motivados apenas por “motivo torpe”, uma motivação de ódio?”, questiona Raul Jungmann, o entrevistado especial desta sexta edição da Revista Política Democrática Online.

» Confira a aqui a Revista Política Democrática – Edição 06

Jungmann, um dos fundadores do Partido Popular Socialista (PPS), atual Cidadania (23), já foi vereador, deputado estadual, deputado federal e ocupou diversos cargos importantes nos governos FHC e Temer, tendo sido Ministro da Defesa e Ministro da Segurança Institucional neste último.

Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Raul Jungmann também comenta a situação atual do Rio de Janeiro por conta do crime organizado, particularmente as milícias, que dominam de 800 a 830 comunidades da capital fluminense e a sobre a intervenção federal, que durou 10 meses e foi tomada pelo então presidente Michel temer com base em um instrumento da Constituição de 88, que nunca fora testado antes.

A crítica situação da Venezuela também é um dos temas tratados por Raul Jungmann na entrevista. Para ele, “processos de transição de regimes autoritários para regimes democráticos têm de contar com as garantias de quem é oposição que, quando chegar ao governo, não vai punir quem agora é governo e,
efetivamente, vai deixar de ser”, avalia.

“Isso é uma coisa absolutamente central e, no caso da Venezuela, uma debilidade”, completa. De acordo com Jungmann, “nem a oposição tem condições de assegurar a incolumidade, a não perseguição, a integridade, seja o lá o que for, desses que estão no poder, sobretudo o estamento militar, e tampouco, do lado de lá, há a percepção de que quem está hoje fazendo oposição terá condições de assegurar isso”.

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Demétrio Magnoli: Governo Bolsonaro é só uma escala técnica na rota do Partido dos Procuradores

O voo suicida do STF concentrou as atenções, desviando os olhares do fenômeno que motiva o inquérito

A crise institucional em curso transbordou como crise constitucional pelas decisões do STF de agir, simultaneamente, como parte, promotor e juiz no inquérito das fake news e de impor censura à divulgação de notícias. Curiosamente, o governo Bolsonaro tem relação apenas lateral com uma crise cujos protagonistas são o próprio STF e a corrente jacobina do Ministério Público.

Atuando em dobradinha, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes conduzem um inquérito abusivo já na origem aos descaminhos da truculência. Desconhecendo os limites da lei, acalentam a ilusão de que seus alvos se deixarão intimidar. O fruto prático de seus atos arbitrários é a desmoralização do STF —ou seja, exatamente a finalidade buscada pelos promotores da campanha difamatória disseminada nas redes sociais. O recuo de Moraes, revogando o ato de censura, restabelece parcialmente a legalidade. Falta, ainda, devolver as prerrogativas de investigar e acusar a quem a detém, ou seja, ao Ministério Público.

O voo suicida do STF concentrou as atenções, desviando os olhares do fenômeno que motiva o inquérito. Não são meia dúzia de haters de redes sociais: há anos, como subproduto tóxico da Lava Jato, a corrente jacobina dos procuradores engajou-se num projeto de poder.

Os sinais iniciais emergiram em maio de 2017, na “operação Joesley Batista” e no artigo de Rodrigo Janot que denunciava “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. O procurador-geral enunciava, então, nada menos que um objetivo estranho à missão judicial da Procuradoria: limpar a República, substituindo a elite política tradicional por uma outra, pura e casta. É essa meta que os pretendentes a Robespierres continuam a perseguir.

Janot foi protagonista circunstancial numa engrenagem que alastrou suas bases pelo Ministério Público, extravasou para setores da Polícia Federal e da Receita e se disseminou entre militares da reserva e políticos (tanto governistas como de oposição). Hoje, o projeto de poder tem seu próprio candidato presidencial, que atende pelo nome de Sergio Moro, e seu veículo oficioso de mídia, que é o site censurado pelo ato ilegal do STF. Bolsonaro flerta alegremente com a engrenagem, sem se dar conta de que seu governo é apenas uma escala técnica na rota imaginada pelo Partido dos Procuradores.

Mundo afora, da Rússia à Turquia, o populismo vale-se do pretexto do combate à corrupção para quebrar as mediações institucionais que limitam o poder do governo. O núcleo da Lava Jato ganhou popularidade ao atacar eficazmente a corrupção sistêmica que envenena a política brasileira. Dessa plataforma, nasceu o projeto do Partido dos Procuradores, que agora esculpe as investigações segundo as necessidades de seu objetivo político. É nessa lógica que se inscreve a ofensiva contra a Corte Suprema.

“Tenho vergonha do STF” —a frase lançada por um obscuro advogado contra Lewandowski funciona como palavra de ordem da campanha de mídia. O site O Antagonista publica fragmentos de notícias verídicas, mas descontextualizadas, oferecendo munição aos guerrilheiros das redes, que as convertem em petardos difamatórios contra os magistrados escolhidos como alvos. Pretende-se, no fim, eliminar as restrições legais à perseguição de inimigos políticos do Partido dos Procuradores. Nas Filipinas, o governo Duterte fez da “guerra às drogas” o alvitre para execuções extrajudiciais. No Brasil, faz-se da “guerra à corrupção” o pretexto para assassinatos de reputações.

O exército da difamação opera nas sombras, combinando vazamentos seletivos com torrentes de desinformação impulsionadas nos subterrâneos da internet. O STF tem a obrigação de expor os contornos da campanha criminosa por meio dos instrumentos legais, solicitando à Procuradoria inquéritos sobre fatos específicos. A luz do dia sempre é o melhor antídoto contra os combatentes das trevas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Eliane Cantanhêde: Dilma ou Guedes?

Bolsonaro: entre o estatizante dos 28 anos de Congresso ou o liberal da campanha

Independência do Banco Central, ponto positivo para o presidente Jair Bolsonaro. Ingerência na Petrobrás, ponto negativo para Bolsonaro. Na primeira, ele cumpriu a promessa liberal e modernizante de campanha, afinado com o ministro Paulo Guedes. Na segunda, foi intervencionista e atrasado, repetindo um dos erros grosseiros de Dilma Rousseff.

O aumento de 5,7% no preço do diesel foi uma decisão da Petrobrás que certamente teve boas justificativas técnicas, mas na hora errada e com um forte efeito político. O anúncio foi justamente no dia em que Bolsonaro comemorava os cem primeiros dias do governo e embaçou a repercussão do pacote de medidas. Mais do que isso, foi em meio a uma ameaça que paira sobre o governo e o País: a movimentação de caminhoneiros.

Ao saber do aumento, Bolsonaro agiu a la Dilma: mandou cancelar, sem avaliar consequências. Estava pensando no impacto sobre a inflação e a economia? Na sua popularidade? Ou nos caminhoneiros? Fortes e audaciosos, eles tiveram apoio do então deputado Jair Bolsonaro no teste de força com o governo Temer. Ganharam, causaram um colapso de abastecimento e interromperam a retomada do crescimento. Agora, voltam à carga e ameaçaram nova paralisação em 30 de março. Abortaram a ideia, mas deram seu recado.

Portanto, a decisão do presidente foi política e o mercado reagiu duramente. As ações da Petrobrás despencaram 8,76% na sexta-feira, com um prejuízo de R$ 32 bilhões. E a nova semana começa com reuniões palacianas e grandes dúvidas sobre o preço do diesel, a independência da Petrobrás e o compromisso liberal de Bolsonaro. Os investidores e a opinião pública estão boquiabertos.

Em vez de ajudar, o presidente piorou as coisas ao tentar justificar sua impulsividade. Diante de microfones, ele questionou como o preço do diesel pode subir 5,7%, se a inflação ficou abaixo de 5% (na verdade, 3,9%). Logo, ele desconhece que a inflação é a média de uma cesta de preços, uns sobem, outros caem. Na campanha, chamava o “Posto Ipiranga” para socorrê-lo. Agora, decidiu da própria cabeça, mesmo dizendo, candidamente: “Não sou economista, já falei que não entendo de economia”. E lascou: “Quem entendia afundou o Brasil, certo?”

Referia-se à economista Dilma, que contaminava as decisões da economia com suas convicções políticas e ideológicas. Adoeceu a Petrobrás e, com uma canetada, desestruturou o setor elétrico e passou aos investidores internacionais a mensagem de desrespeito não só ao liberalismo, mas aos próprios contratos. Dilma, porém, nunca enganou ninguém. Até tentou se ajustar à realidade nomeando Joaquim Levy como chefão da economia, mas ela foi o que sempre foi: estatizante, intervencionista, uma brizolista estacionada na década de 1960. Bolsonaro não. Ele pode até ser tudo isso, mas se elegeu com um discurso, uma promessa e um Posto Ipiranga em sentido contrário. Daí o rebuliço no mercado e nas mentes.

Quando se fala da quebradeira da Petrobrás nos anos do PT, associa-se à corrupção, ao aparelhamento, ao fatiamento partidário da maior e mais simbólica companhia do País. Mas não foi só isso. Um dado relevante na tragédia foi a política de preços populista do ex-presidente Lula e sua sucessora. Como vender abaixo dos preços internacionais? Só de 2014 a 2017, os prejuízos bateram em R$ 72 bilhões.

O presidente Bolsonaro tem todo o fim de semana para conversar, ouvir, ler e refletir para, na terça-feira, decidir se ele quer ser o Bolsonaro intervencionista e estatizante dos seus 28 anos de Congresso ou o Bolsonaro liberal e privatizante da campanha. Vai ter de optar entre Dilma Rousseff e Paulo Guedes e, de preferência, parar de sabotar o seu próprio governo.


Alon Feuerwerker: O equilíbrio é estável. E a enésima aposta perdida de quem acredita em tutelar um presidente popular

Jair Bolsonaro está como o malabarista que precisa manter em pé e rodando muitos pratinhos sobre varetas: precisa ao mesmo tempo manter o apoio popular, do mercado financeiro, das Forças Armadas e da imprensa.

Ah, sim, e conquistar o de um Congresso que o presidente também precisa de vez em quando esmurrar, para continuar falando ao povão. Não seria missão fácil para um calejado. E nessa escola Bolsonaro é calouro.

No essencial, entretanto, os pratinhos estão rodando. A variável a medir é a estabilidade do equilíbrio. Se perturbações localizadas tendem a desarrumar completamente a cena ou se a natureza trabalha para o sistema sempre se reequilibrar.

Desde que a perturbação fique dentro de certos limites, o cenário até agora é de equilíbrio estável. Em linguagem matemática, a segunda derivada por enquanto é positiva. Ou seja, perturbações localizadas não desestabilizam o conjunto.

Por duas razões. A primeira: não há alternativa imediata real de poder fora do bloco de direita conservador-liberal. Ah, mas o vice-presidente é paquerado por quem sonha com um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Essas aspas são autoexplicativas.

A segunda: toda a base social e política do bolsonarismo trabalha para ajudar o governo no essencial: a economia. Todos apoiam firmemente Paulo Guedes, na esperança de quebrar o ciclo de estagnação, essa marca da década que termina.

Um exemplo é a imprensa. Os rififis com o poder são diários, mas apenas em questões, para a opinião pública(da), acessórias. No que conta, a reforma da previdência, o modo é de campanha. A crítica? Só ao que pode atrapalhar a aprovação.

A previdência virou a “Lava-Jato da economia". É desse apoio que o governo precisa. Ele não quer ceder totalmente ao fisiologismo da velha política. Pois 1) o povão chiaria e 2) já distribuiu ou reservou as melhores posições para a nova.

E o mercado financeiro? Vai resmungar, os ativos vão oscilar, mas se na última linha da planilha o governo entregar pelo menos uns 50% da reforma prometida, e assim ganhar velocidade, o dinheiro vai festejar. E já tem uma nova cenoura na frente: a reforma tributária.

Para as Forças Armadas, Bolsonaro acoplou um belo plano de carreira na mudança “previdenciária”. Na contabilidade oficial, os fardados são responsáveis por uns 15% do déficit e vão entrar com 1% do sacrifício. Melhor que isso só dois disso, como se diz.

Resta o principal: o povão. O governo aplica aí medidas tópicas, como o 13° do Bolsa Família, mas o jogo será decidido no crescimento e na geração de empregos. Se ambas as curvas embicarem para cima, 2020 e 2022 serão menos íngremes. Se não...

Qual é então o principal vetor a acompanhar? Partindo da premissa de que alguma reforma da previdência será aprovada em 2019, e alguma reforma tributária vai andar, qual será o impacto disso, imediato e nos próximos três anos?

O prometido boom de investimentos compensará uma maior propensão do consumidor a poupar? Até que ponto as deficiências estruturais (educação, infraestrutura, pouca inovação) continuarão segurando o necessário aumento de produtividade?

Por enquanto, as expectativas não são brilhantes. Mas governo é governo. Como está demonstrado no caso do preço do diesel. Não há antecedente de governo que tenha se suicidado para manter a coerência. Se a coisa não anda, muda-se o roteiro do filme.

*

Pela enésima vez, frustram-se os teóricos da esperança de um presidente popular ser tutelado. Tem gente que vive de - e gosta de - (se) enganar.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Pedro S. Malan: Começos – o principal agora

Executivo precisa de grande habilidade para conduzir a sua agenda legislativa

“O PRINCIPAL, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros (começos), foi estabelecer alguma ordem na administração.” Assim escreveu Graciliano Ramos em relatório de gestão da prefeitura de Palmeira dos Índios endereçado ao governo de Alagoas. A palavra principal está grafada em maiúsculas no original. O eventual leitor perguntará: mas Graciliano numa hora destas? E logo sobre um assunto tão árido, uma citação velha de 90 anos? São várias as razões que me fazem começar puxando esse fio, que, creio, tem muito que ver com nosso presente – e com nosso futuro.

Primeiro, porque o Brasil tem 5.570 prefeitos, que estarão, ao longo dos próximos 18 meses, a preocupar-se não só com a administração de suas cidades e com seus vereadores, como também com sua reeleição ou sucessão em outubro de 2020. Estarão atentos à relação com os respectivos governadores e com o que acontece em Brasília e no resto do Brasil (o que não é exatamente a mesma coisa). Impossível dizer quantos desses prefeitos – presentes e futuros – terão o estilo objetivo, seco, direto ao ponto de Graciliano (seus dois relatórios são imperdíveis). Mas para a grande maioria o principal problema, de que depende a solução de todos os outros, é a extensão em que conseguirão “estabelecer alguma ordem” nas suas respectivas administrações.

Segundo, porque há também 27 governadores que entram agora no quarto mês de seus mandatos e estarão chegando quase à metade deles em 18 meses mais, e com as mesmas preocupações dos prefeitos de hoje, de olhos postos em outubro de 2022. Para a esmagadora maioria também vale a observação inicial de Graciliano. Alguns Estados estão à beira da insolvência, resultado da falta de “alguma ordem” na administração passada de dívidas, derivadas, por sua vez, do excesso de crescimento de gastos sobre o crescimento de receitas. Em alguns casos, mais preocupantes, da transformação de receitas transitórias em gastos permanentes e crescentes – em particular com as duas rubricas mais importantes: pessoal e, crescentemente, inativos e pensionistas. Vários governadores em início de mandato são, basicamente, gerentes de folhas de pagamento, que em alguns casos excedem 70% de sua receita corrente líquida.

Penoso e aborrecido como possa parecer, esse é o principal problema para a maioria dos gestores públicos. Um problema que exige conhecimento do nível, composição e eficiência de suas despesas e receitas, presentes e futuras. Exige, em particular, cercar-se de pessoas qualificadas e dotadas de capacidade de execução. Disso depende não só o controle da trajetória de sua dívida, como também, e principalmente, a qualidade e quantidade dos serviços públicos que têm a obrigação de prestar às respectivas populações. Alguém dirá – e não sem razão – que por mais que Estados e municípios possam fazer nesse sentido, estarão sempre afetados positiva ou negativamente pelo contexto mais amplo do desempenho da economia do País; que, por sua vez, é fortemente influenciado pelas políticas do Executivo federal, deliberações do Congresso Nacional, decisões do Judiciário – e pelo grau de funcionalidade das relações entre os Poderes, em particular entre Executivo e Legislativo.

Esse é o terceiro ponto. O novo governo está no poder há cem dias. O novo Congresso assumiu há 70 dias. Muitos dizem, e dirão por algum tempo ainda: “É muito cedo, as coisas vão se acomodando e o Executivo acabará por formar sua base de apoio no Congresso, suficiente para a aprovação, em prazo razoável, de uma ampla agenda legislativa”. O tempo dirá, mas este terceiro aspecto envolve uma pergunta de importância crucial: a que responde cada congressista, num Parlamento repleto de novatos, em que nenhum partido tem mais que 11% (Câmara) ou 15% (Senado) dos votos?

A quatro fatores, é a resposta que arrisco esboçar. 1) À família nuclear imediata e estendida de cada congressista, que começa por pais, mães e filhos e alcança compadres, agregados e amigos; quem já viveu em Brasília sabe da importância desses vínculos, dada a quantidade de empregados no setor público. Posturas e votos sobre a reforma da Previdência, por exemplo, sempre foram, e agora serão mais ainda, afetados por estes vínculos. 2) A seu eleitorado potencial, sua base eleitoral no respectivo Estado, região e município, a ser atendida por emendas e obras que consiga; e, para muitos, às suas alianças corporativistas de caráter nacional, que nunca devem ser subestimadas. 3) Ao que percebem como o cambiante “sentimento geral” da opinião pública mais ampla, tal como refletida nas mídias – rádio, televisão, jornais, revistas e, cada vez mais, redes sociais. 4) Por último, mas não menos importante, ao que percebem como o grau de empenho e convicção do Executivo federal, dos ministros e da respectiva capacidade de articulação, convencimento e conhecimento do tema em deliberação, inclusive, e muito importante, do presidente da República.

Cada deputado e cada senador tem antenas muito sensíveis para os pontos acima mencionados, todos sentem que têm legitimidade: afinal, seus mandatos também emergem das escolhas do eleitorado. Julgam que o Legislativo sempre pode, e deve, “aperfeiçoar” os projetos encaminhados pelo Executivo, pois a Constituição assegura a independência dos Poderes. Se os partidos são fracos, o Congresso, em seu conjunto, quando quer, e puder, é forte. O Executivo precisa de grande habilidade e lideranças experientes para conduzir sua agenda legislativa, em particular quando esta envolve mudanças constitucionais. A eventual percepção por parte do Congresso de que o Executivo não está coeso e de que o próprio presidente não está convencido dos rumos pode ser algo nefasto nos meses que faltam deste crucial ano de 2019, afetando negativamente as expectativas de retomada do investimento e do crescimento do País. É muito sério o que está em jogo nestes “começos”.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.


Luiz Carlos Azedo: A tentação populista

“Ainda não é possível definir claramente o caráter do governo Bolsonaro, embora o senso comum permita afirmar que seja conservador nos costumes e liberal, na economia”

Na terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro terá uma reunião com sua equipe de governo e a cúpula da Petrobras para discutir a política de preços dos combustíveis, depois de pôr em xeque a orientação do ministro da Economia, Paulo Guedes, em relação à estatal: a autonomia para atuar de acordo com as necessidades do mercado, sobretudo a flutuação do dólar. Na sexta-feira, Bolsonaro mandou a estatal cancelar um aumento no preço do diesel após ser pressionado por líderes dos caminhoneiros, à revelia do ministro, porque acha que o preço dos combustíveis deve estar alinhado à inflação e não ao mercado mundial de petróleo. A decisão provocou queda abrupta das ações da Petrobras, que perdeu R$ 32 bilhões do seu valor patrimonial. Nos bastidores do governo, há uma queda de braços entre Guedes, que nomeou o atual presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, e os ministros da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni, e de Minas e Energia, Bento Costa Lima, ao qual a estatal está formalmente vinculada.

A decisão de Bolsonaro não é a primeira em relação a segmentos estratégicos de sua campanha eleitoral; também cedeu aos ruralistas, ao anunciar que anistiará dívidas no valor de R$ 17 bilhões. O presidente da República minimizou a queda de 15 pontos percentuais de sua aprovação nas pesquisas de opinião, porém, desde então, dá sinais de preocupação e adotou medidas que podem contribuir para melhorar a própria imagem, como o fim do horário de verão e o décimo terceiro do programa Bolsa Família. Nas redes sociais, resolveu dar mais ênfase à divulgação de suas ações administrativas. A estratégia de desprezar os meios de comunicação tradicionais e se comunicar por meio das redes sociais já bateu no teto.

Nos primeiros 100 dias de mandato, o comportamento de Bolsonaro foi uma espécie de “ensaio e erro”, se considerarmos a avaliação feita pelo ministro da Casa Civil ao apresentar o balanço de realizações do governo. Bolsonaro está aprendendo a ser presidente da República, sem nunca antes ter exercido um cargo executivo. A aprendizagem por ensaio e erro consiste em eliminar gradualmente os ensaios e tentativas que levam ao erro e manter comportamentos que conquistaram o efeito desejado, segundo a lei do efeito (um ato é alterado pelas suas consequências) e a lei do exercício (estímulos e respostas fortalecidos pela repetição). Erro, porém, anda de braço dado com o fracasso. Seria melhor que Bolsonaro aprendesse com os seus antecessores, como Collor de Mello e Dilma Rousseff, por exemplo, em relação ao Congresso e à Petrobras, respectivamente.

Bonapartismo
Ainda não é possível definir claramente o caráter do governo Bolsonaro, embora o senso comum permita afirmar que seja conservador nos costumes e liberal, na economia. Um governo eleito democraticamente, mas assumidamente de direita, pode ter características bonapartistas ou populistas. Por enquanto, o viés predominante é bonapartista, porque seu eixo está na forte presença militar, policial e técnico-burocrática. Bolsonaro se coloca acima dos partidos e dos demais poderes, o que é uma contradição com o regime democrático no qual foi eleito. Nesse aspecto, a Lava-Jato desempenha um papel crucial, ao manter sob pressão a elite política e a cúpula do Judiciário. Não será surpresa o surgimento de propostas no sentido de adaptar a legislação vigente às conveniências do bonapartismo, como a extinção dos conselhos de políticas públicas, por exemplo.

A perda de popularidade do governo, porém, tende a provocar uma deriva populista por parte de Bolsonaro, de acordo com a receita já conhecida: busca de proximidade com as massas sem passar por nenhuma instituição política; favorecimento de segmentos sociais que lhe dão apoio; e fragilização dos partidos. Nesse aspecto, a queda de braços de Bolsonaro com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes do chamado Centrão, PP, PR, DEM, PRB, Solidariedade e Podemos, tende a se tornar uma batalha sangrenta, por causa da Lava-Jato.

Bolsonaro praticamente já abriu mão da meta de R$ 1 trilhão de economia em 10 anos, grande objetivo da equipe econômica. Estará satisfeito se o Congresso aprovar o aumento da idade mínima e do tempo das contribuições, sem que seja necessário entrar em confronto com a sua própria base eleitoral, que compõe o eixo de seu governo. A reforma possível tem maioria no Congresso, mas esse apoio não virá por gravidade. É plausível que os líderes do Centrão queiram obstruir a reforma por causa da não participação no governo. Entretanto, a maior resistência às reformas vem da própria base de Bolsonaro, que é muito corporativista. O problema é que um governo populista não tem chance de fazer o país voltar a crescer de forma sustentável.

 

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-tentacao-populista/

 


Ricardo Noblat: O pagador de promessas

O capitão e suas circunstâncias

Diga-se o que quiser do presidente Jair Bolsonaro a propósito dos seus primeiros cem dias de governo, menos que seja um mal pagador de promessas. Ou menos que sua eleição foi um estelionato eleitoral assim como a de tantos outros que o antecederam no cargo.

Bolsonaro está simplesmente fazendo o que prometeu fazer e o que resumiu assim durante a campanha do ano passado: “Eu sou o candidato contra o sistema. Eu vou quebrar o sistema”. Pode até não quebrar, mas se empenha para isso, sim.

Fracassaram todas as tentativas até aqui de normalizá-lo. O que significaria: pô-lo sob as rédeas curtas do sistema político, partidário e econômico. Antes de tudo, Bolsonaro é ele e as suas circunstâncias, e não é de todo mal que assim seja. Só aprendemos votando.

Mal seria se ele decepcionasse os milhões de eleitores que o puseram na presidência. Os que já começaram a abandoná-lo são apenas aqueles que o cavalgaram na esperança de derrotar o PT. Os demais seguem acreditando nele.

Bolsonaro sempre defendeu um Estado forte, regulador, capaz de intervir em quase tudo em nome do bem dos brasileiros. O Brasil acima de todos e só abaixo de Deus. Não foi de graça que como deputado tanto votou no Congresso alinhado com o PT.

Nada mais justo, pois, que resista a vestir a fantasia de liberal. Não é. Jamais será um liberal por sua própria formação. Nada entende de economia como já disse e repete. Mas não foi só por ignorância que decidiu meter-se na política de preços da Petrobras.

Foi por duas razões pelo menos: para pagar a dívida com os caminhoneiros que paralisaram o país há menos de um ano e que em seguida votaram em peso nele, e porque é mínima sua adesão às chamadas regras do mercado. Se preciso, que o mercado exploda.

Novamente Bolsonaro e o PT acabam por juntar os trapinhos. Lula e Dilma manipularam os preços dos combustíveis por achar que o mercado não pode tudo todo o tempo. Bolsonaro não pensa diferente deles, embora se negue a admitir.

No caso de Lula e Dilma havia uma razão a mais: a manipulação dos preços tinha a ver também com o seu desejo de se eternizarem no poder. Oito anos de Lula, oito ou quatro de Dilma, mais quatro ou oito de Lula, quem sabe mais oito de um aliado… Quase deu certo.

Bolsonaro, não. Ele foi candidato a presidente para reeleger os filhos e arrumar a vida da família. Aí o maluco do Adélio Bispo mudou seus planos esfaqueando-o em Juiz de Fora às vésperas da passeata do 7 de setembro. Acertou até na data.

Bolsonaro reconhece que sua vida foi salva por milagre, e que outro milagre salvou-o da derrota previsível. Suas recentes manifestações a respeito indicam que ele não estava pronto para governar. Que não gostaria de governar. Que governa de má vontade.

Mas uma vez que governa, não está disposto a renunciar ao que pensa, isso não. Ao cargo, muito menos porque seus filhos não deixariam, nem seu orgulho. Mas não é desejo dele ir além do atual mandato desde que possa exercê-lo naturalmente ao seu modo.

Rio, terra sem lei

Uma esculhambação
É possível que a prefeitura do Rio não soubesse que milicianos haviam construído em área de proteção ambiental e sem autorização dos órgãos competentes os dois prédios que desabaram, ontem, na Zona Oeste da cidade matando cinco ou mais pessoas e deixando outras tantas feridas?

O prefeito Marcelo Crivella disse que tentou interditar a construção de prédios ali, mas que não conseguiu. Não conseguiu por quê? A Justiça negou-se a interditar? A polícia preferiu cruzar os braços a cumprir a ordem? Os encarregados do serviço de demolição recusaram-se a cumprir a tarefa?

A resposta à primeira pergunta é sim. A prefeitura sabia que milicianos construíam prédios, lucravam com a venda dos apartamentos e lucravam com a cobrança de taxas de proteção aos seus ocupantes. A resposta à segunda pergunta também é sim. Ele tentou interditar, mas não conseguiu.

A resposta às perguntas seguintes ficou faltando. Nem o prefeito, nem a justiça, muito menos os compradores e moradores da área querem se arriscar ao revide dos milicianos. Eles mandam ali. Eles mandam em outras áreas da cidade. O Rio virou “uma grande “esculhambação”, como já disse Crivella. Uma cidade sem lei.

Ou para ser preciso: uma cidade onde impera a lei dos milicianos, de um lado, e a lei do tráfico, do outro. Milicianos e traficantes são bandidos e se enfrentam para ver quem manda mais e em mais gente. Quando não se enfrentam, se associam. A intervenção federal do ano passado na segurança pública de pouco ou nada adiantou.

Os cariocas são bons de gogó e muito criativos. Sabem cantar as belezas do Rio e sabem protestar quando lhes convém. Dá gosto ver. Mas há muito tempo que são ruins de voto para vereador, prefeito, deputado, senador e governador. Que Estado tem tantos políticos outrora graduados gravemente encrencados com a justiça?

Somente os cariocas darão ou não um jeito no seu Estado. Somos todos cariocas – como seríamos mineiros, paulistas, gaúchos – quando ocorrem tragédias do porte das últimas que assolaram o Rio. Inclua-se entre elas a que reduziu a cinzas o Museu Nacional. Mas as tragédias só voltam a ser lembradas quando outras se sucedem.

Só pelo voto a realidade do Rio poderá ser transformada, e isso é com os cariocas.


Míriam Leitão: Inúmeras ideias sem números

Governo apresenta várias ideias para a reforma tributária, mas não mostra detalhes e números que comprovem a sua viabilidade

Para acabar com a contribuição previdenciária das empresas, o governo teria que saber onde conseguir em torno de R$ 250 bilhões. A reforma tributária que a equipe econômica está formulando tem boas ideias, algumas não são novas, mas ela contém o que o presidente Jair Bolsonaro negou durante toda a campanha, e até na transição, uma nova CPMF. A novidade estratégica é separar em fases a unificação dos impostos. Primeiro, unir alguns tributos federais. E só depois mexer com os impostos estaduais e municipais. A proposta que o governo defende de tirar a tributação sobre o trabalho é ótima, desde que seja exequível.

O ministro Paulo Guedes, em palestra em Nova York, e o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, entraram em alguns detalhes da proposta que ainda não foi apresentada ao Congresso. Segundo Cintra, seriam unificados PIS, Cofins, IPI, uma parte do IOF e talvez a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Em NY, Guedes disse que são todos a mesma coisa. Falta ainda mostrar os números.

Guedes tem falado, sem entrar em detalhes, em algo que foi repetido por Marcos Cintra: a retirada da tributação sobre a folha de salários. Segundo o ministro, essa contribuição é arma de destruição em massa de emprego. Cintra falou que a folha seria desonerada de forma permanente e para todos os setores. Isso é música para os ouvidos dos empresários. O problema é que será necessário outro imposto que arrecade bastante para financiar a Previdência. No ano passado o governo recolheu R$ 390 bilhões dos empregados e empregadores. Só a parte patronal deve ser pelo menos R$ 250 bilhões. No governo Dilma, houve uma desoneração de alguns setores, que deixaram de pagar contribuição previdenciária sobre a folha e passaram a recolher um percentual sobre o faturamento. Isso deu errado, elevou o rombo das contas públicas e, como se sabe, o governo Temer teve que iniciar o processo de reoneração.

O ministro Paulo Guedes tem razão quando critica a tributação que recai sobre a empresa quando ela cria empregos. Num país com 13 milhões de desempregados, mais cinco milhões em desalento, e com 37 milhões de trabalhadores informais, é óbvio que essa forma de financiar a Previdência está errada. Além disso, o mundo do emprego está mudando rapidamente, com relações de trabalho completamente diferentes das que se via no passado, quando foi montada essa forma de custear as aposentadorias e pensões. Mas o nosso grande problema é o rombo da Previdência e por isso é preciso saber o que pôr no lugar. O governo está dizendo que pretende substituir por um tributo que incida sobre todos os meios de pagamento, ou seja, uma grande CPMF. Exatamente o que Jair Bolsonaro tanto negou quando candidato e depois de eleito.

Quando anuncia reformas ainda não formuladas, o Ministério da Economia pode acabar tirando o foco do que tem que aprovar agora, que é a reforma da Previdência. Mas a estratégia que eles querem seguir é essa mesma. Informar que no futuro breve haverá pautas mais interessantes e palatáveis do que a Previdência, como uma forma de estimular a aprovação mais rápida. É por isso que Guedes sempre pergunta, quando fala aos políticos ou sobre eles, quanto tempo eles querem ficar discutindo uma pauta difícil como a da Previdência.

Uma ideia interessante é deixar para depois aquilo que travou todas as propostas de unificação de impostos, apresentadas até agora, para a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Nos projetos derrotados, eram incluídos no mesmo bolo o ICMS e o ISS. Desta vez, o governo diz que um novo imposto será criado sobre bens e serviços, como resultado da unificação desses tributos. Mas os estados e municípios é que terão que decidir quando e de que maneira fazer. A unificação de alguns tributos federais está ao alcance do governo propor, mas a junção de fontes de receitas de outros entes da federação só pode ser feita com a concordância de todos eles.

O governo está querendo fazer tudo isso e ainda reduzir a carga tributária em quase quatro pontos percentuais do PIB e aumentar as transferências para estados e municípios. Antes, é preciso apresentar muitas contas para ver se as propostas ficam de pé


De: Gabeira Para: Bolsonaro

Por Morris Kachani, de O Estado de S. Paulo

Com a vivência de quem já participou do sequestro de um embaixador americano, foi preso e torturado, passou 10 anos no exílio, revolucionou os costumes vestindo uma icônica tanga rosa na praia de Ipanema em 1980, primeiro ano da abertura após a anistia, fundou o Partido Verde, elegeu-se deputado, rompeu com o PT, abandonou a carreira política e hoje apresenta um belo programa de reportagens documentais na GloboNews, Fernando Gabeira oferece sua visão 360 graus sobre os primeiros 100 dias do governo.

Na última conversa que tivemos, antes da definição das eleições, você falou que a sobrevivência da democracia não estava ameaçada, mas sua qualidade sim.
Exatamente isso que está acontecendo. Até o momento não houve um passo que justificasse você dizer que houve um retrocesso democrático institucional. No sentido de que não foi feito nada que você pudesse apontar como ruptura com a democracia. Os contrapesos da sociedade brasileira continuam aí.
 
O Jean Wyllis por exemplo teve que sair do país. Não são sinais?
Lamento a saída dele. Há muita gente que se sente ameaçada no Brasil. Acho que a sensação de ameaça vem menos das instituições do que do clima de rivalidade nas redes sociais, o baixo nível de debate político que predomina no país. Naturalmente, o governo tem um papel na medida em que emergiu desse debate radicalizado. O general Mourão afirmou, recentemente, que o governo teria condições de dar segurança a ele. Não sei como isso seria feito. Acho, no entanto, que o melhor caminho é desanuviar o debate político, para que todos sintam-se seguros na expressão de suas ideias.
Sobre as redes sociais e o presidente…
A questão não é propriamente a rede social, a questão é de quem a usa e de como a usa. Se o Bolsonaro saísse do twitter, seria como tirar o sofá do sala. Porque ele ia continuar dizendo besteira em outros campos, em outras plataformas.
Nesse sentido eu acho que o erro mais condenável, que eu jamais vi em um presidente da república, e jamais creio que verei adiante, foi o fato de ele ter divulgado na conta dele um vídeo como o do golden shower. Eu não sou a favor de nenhum tipo de censura, mas eu sou favorável à ideia de que o presidente da República escolha os temas que vai difundir.
Eu acho que as redes sociais têm a ligação direta com a população, Bolsonaro inclusive está muito orgulhoso com o crescimento permanente nas redes sociais. Porque é uma forma também de procurar dizer o que o povo quer, de ganhar popularidade com uma série de medidas.
É por isso que o governo avança com uma série de medidas na área de costumes com debates ideológicos. É porque ele não sente avanço nas coisas materiais, objetivas.
Isso aconteceu muito com Jânio Quadros. Como ele não tinha um desenvolvimento fluido no governo, nas coisas que queria, ele trazia um tema de costume. Se ele tinha uma dificuldade na economia por exemplo, ele proibia o biquíni. Ou então ele proibia a briga de galo. Com isso ele deslocava a discussão e a transformava em algo que estava um pouco fora do centro das preocupações. Afasta o exame crítico, objetivo, do governo dele.
Como bateu pra você essa proposta de revisar o golpe de 64?(Risos)
Alguns deles acham que a história foi escrita de maneira unilateral e que não foram contemplados. Como o desejo de acabar com o comunismo, ou os que que sofreram alguma violência também. Mas para haver revisão histórica, é preciso de fatos e realidade.
O arranjo que fizemos com a anistia ampla, geral e irrestrita, foi uma forma de estabelecer um equilíbrio no qual o Brasil pudesse avançar democraticamente para outros momentos, e nesse sentido deu certo, nós conseguimos um período democrático grande da ditadura até hoje.
Acho que não tem sentido nesse momento discutir o governo militar, o golpe militar, porque daqui a pouco a gente vai chegar na Guerra do Paraguai, vai ficar todo mundo discutindo Guerra do Paraguai, com uma série de problemas caindo sobre nossas cabeças. No Rio de Janeiro por exemplo, eu vejo uma cidade sendo destruída, não vamos ficar discutindo quem ganhou a guerra do Paraguai…
Fazer isso é estar fora do mundo.
O relacionamento do governo com o Congresso anda complicado. O tom da discussão entre Bolsonaro e Maia, as gritarias nas sessões… Estamos em evolução ou indo pra trás?
Nós estaríamos indo para trás se fosse colocado imediatamente sem nenhuma máscara e reserva o sistema do toma-lá-dá-cá. Acho que Bolsonaro tentou uma forma que todos os candidatos novos tentariam necessariamente. Uma possibilidade de você fazer um governo de coalizão sem terminar em uma troca material, sem que envolvesse necessariamente um processo de corrupção. Eu acho que isso é uma coisa desejável.
No entanto eu acho que ao escolher um ministério longe das influências políticas mais imediatas, ele foi um pouco mais radical.
Um inovador bem intencionado saberia que sem o apoio do Congresso, não conseguiria fazer nada.
Esta semana ele colocou no Ministério da Educação um cara que não tem experiência na educação. Não tem sentido você fazer isso. Mesmo se ele tivesse uma grande experiência na educação, é necessário fazer uma consulta política. Se você tiver políticos com capacidade e com honradez, preparados para assumir o cargo, você tem que fazer isso.
Bolsonaro precisa buscar uma mediação entre a ideia de não tratar com os políticos, e o toma-lá-dá-cá. Ele não conseguiu formular isso no princípio e até agora está um pouco hesitante, embora recentemente tenha se aproximado um pouco mais do Parlamento.
Você acha que o Mourão é a voz do bom senso nesse governo?
Olha, acho que Mourão representa, ainda que não diretamente, a opinião de alguns generais que teriam um nível intelectual bastante diferente do Bolsonaro no meu entender. Eles têm uma experiência histórica maior, o Mourão por exemplo já serviu na Venezuela, conhece bem o problema de lá, o Heleno já esteve no Haiti, conhece bem os problemas de uma força de pacificação, o Santos Cruz já esteve no Congo também resolvendo problemas gravíssimos como comandante de uma força internacional.
São pessoas mais experientes do que o Bolsonaro, com conhecimento internacional maior que o de Bolsonaro e possivelmente com conhecimento do Brasil maior que o de Bolsonaro.
Então essas pessoas tendem a ter posições muito mais sensatas do que Bolsonaro e seus ideólogos.
Ele recebeu mais de 57 milhões de votos. Será que a sociedade brasileira compactua com sua ideologia?
A ilusão dele foi a de que por ter sido eleito, a sociedade brasileira na sua maioria estava afirmando suas ideias. Ele subestimou muito a carga antipetista enorme que havia no eleitorado dele. Ele não compreendeu que foi escolhido porque era quem tinha chances de derrotar o PT.
E ao não compreender isso e iniciar o governo com este tom e esta perspectiva, ele tem perdido muito apoio, e é hoje o presidente avaliado nos primeiros 100 dias como o mais impopular. A aprovação dele caiu brutalmente. É sinal de que ele está equivocado.
O que ele supunha ser um aval eleitoral para ele, ele não entendeu bem, continua achando que é um aval da sociedade para ele tomar essas posições. Como se a sociedade tivesse refletido sobre a construção ou a transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém. Não há uma reflexão na sociedade a esse respeito, me parece que o consenso está muito mais próximo do que existe hoje.
Ele está tomando posições que tem ideologicamente e que supõe que foram aprovadas nas urnas. Ele não foi eleito necessariamente por conta dessa visão ideológica e sim pela perspectiva de reconstruir o país a um nível de normalidade que as pessoas achavam que o governo do PT tinha tirado no final.
Outro dia li um artigo dizendo que talvez a Câmara passasse a decidir as coisas importantes e o presidente cada vez mais inexpressivo.
Acho que este ano de 2019 vai ser muito crítico. Não quero ser pessimista, mas acho que a crise vai ser a forma de governar.
Temer precisou se livrar de algumas acusações e negociar com o Congresso constantemente. O Congresso sentiu o poder dele ali. Quando ele sente o gosto de sangue, quando sente que o governo está fraco dependendo dele, ele passa a assumir progressivamente o espaço que às vezes é ocupado pelo próprio governo.
Quanto mais fragilidade, mais o Congresso vai ocupando esse espaço. Essa é a tendência.
Você acha que está havendo um desmonte do Estado brasileiro?
Não, não necessariamente um desmonte, mas eu acho que em alguns setores está havendo transformações perigosas, como no caso das relações exteriores, e no caso da educação.
Nesses dois setores há um impacto ideológico maior, muito maior do que a posição pragmática e necessária para conduzir as coisas.
No caso da política externa, você abandona uma linha tradicional, brasileira, construída ao longo de todo esse período, e não coloca no lugar nada, apenas algumas afirmações muito vagas.
Originalmente, seria importante uma aproximação maior com os Estados Unidos, mas essa aproximação não poderia ser uma aproximação que emulasse algumas posições americanas, sem que a gente tenha condições de ser os Estados Unidos.
Podemos ser aliados, mas somos um país com condições diferentes, ambições diferentes, interesses diferentes.
E o que foi colocado no lugar da política externa foi uma adesão ampla, uma confiança no Trump como o salvador do Ocidente, e um certo messianismo, uma certa vontade de levar ao mundo a fé e os valores.
Richelieu, no século 17, já dizia que o indivíduo tem salvação, tem uma alma, ele vai para o outro mundo e se salva. Mas o Estado não tem isso, ele tem que se salvar aqui e agora.
Até hoje me parece muito equivocada, toda a política externa.
 
Estava há pouco assistindo uma entrevista com o Ciro Gomes feita nos Estados Unidos…
Nos Estados Unidos está se discutindo mais o Brasil do que aqui. Todos eles estão lá.
(Risos) Ciro falou que esse governo está saqueando nosso país, citando o acordo de Alcântara e a venda da Embraer.
O acordo de Alcântara é mais ou menos um consenso entre nós que acompanhamos aquele pântano que foi a relação com a Ucrânia nesse processo. Este acordo passa a ser uma coisa interessante para o Brasil, para a exploração espacial, porque o lugar é privilegiado, a instalação já está mais ou menos colocada. Eu acho que é um acordo interessante, uma vez que ele determinou bem, que o Brasil está cedendo para que os Estados Unidos usem Alcântara apenas em determinadas circunstâncias.
Por isso eu acho que o acordo de Alcântara talvez tenha sido o único aspecto positivo dessa relação. Então nesse sentido nós divergimos.
Também no caso da Embraer houve quase um consenso de que era um negócio a ser feito, não havia grandes problemas no fechamento desse acordo.
Não são esses acordos que me preocupam. O que me preocupa são as posições mais ideológicas.
Por exemplo, um questão mais delicada, mais próxima, mais preocupante, que é da Venezuela. Nós temos tido uma posição de condenação do Maduro e uma tentativa para contribuir com a democracia, mas sempre definindo que nossos limites são os limites políticos e diplomáticos. Ao passo que os Estados Unidos afirmam que todas as cartas estão sobre a mesa. O que significa indiretamente também, uma intervenção militar.
Aqui no Brasil as posições têm sido um pouco diferentes,
porque a nós que somos vizinhos e vamos continuar tocando essa relação ao longo dos anos, não interessa resolver o conflito desta forma.
O problema é que a posição brasileira é diferente, a posição representada pelo general Mourão, que se estabeleceu no Grupo de Lima, é uma posição que exclui essa alternativa, então há uma divergência nítida aí.
Marca a diferença entre interesses brasileiros e interesses americanos. Ambos querem contribuir com democracia, mas o Brasil não aceita a carta de intervenção militar, pelo menos em tese.
Embora as últimas declarações do Bolsonaro tenham sido um pouco enigmáticas…
Você usou o termo messianismo. Como ele se manifesta nesse governo?
Por exemplo, nas declarações e artigos do ministro das relações exteriores, em que o Trump aparece como líder do Ocidente e o potencial salvador de um mundo em que segundo ele é preciso afirmar os valores cristãos, democratas etc
Eu acho que quando você se coloca em política externa querendo reformar o mundo, é difícil.
Você tem alguma opinião sobre o Olavo de Carvalho?
Olha, eu não tenho opinião. A única vez em que Olavo me mencionou, foi em um livro chamado O Imbecil Coletivo, há muitos anos. Sobre mim ele disse que eu militarmente era inferior a um sargento do exército de Uganda ou de Zâmbia, já não lembro mais. Esperei Uganda ou Zâmbia protestarem (risos), mas como não protestaram nunca mais me interessei.
Mas realmente, discutir um pensador que está fora do Brasil, cujos livros sinceramente não li, eu não tenho condições.
A influência dele se dá através de cursos, palestras, ideias que são adotadas pelos filhos do Bolsonaro, e também pelo próprio presidente.
Um filósofo que tem a visão ideológica de reformar a cultura brasileira através de um governo determinado (risos), necessariamente está muito mais longe do pragmatismo.
Digamos que ele representa no governo Bolsonaro aquele setor que a gente chama de revolucionário, que pensa em alterar completamente as condições. Entra em choque necessariamente com outro setor, que tem a proximidade do real, que necessariamente tem que ser conduzido de forma mais pragmática. Esse setor são os militares.
Você consegue visualizar até onde vai essa perspectiva ideológica?
Até o momento essa questão tem um enorme peso nesse governo. De certa forma a questão ideológica tinha um peso também nos governos de esquerda, apesar do pragmatismo em alguns momentos. A questão ideológica definia nossa política externa, por exemplo empurrando a balança de relações mais pro lado dos países bolivarianos – coisa que não acontece agora.
Mas eu acho que a questão ideológica hoje está mais concentrada em três setores.
Primeiro, relações exteriores. Segundo, educação. E terceiro, direitos humanos.
No ministério dos direitos humanos, temos a ministra disse, que a partir de agora os meninos vestem azul e as meninas vestem rosa.
Você imagine uma mulher que bate na mesa com alguns funcionários ao lado, dizendo o seguinte, ‘agora vamos mudar o país, com meninas vestindo rosa e meninos vestindo azul’ (risos).
Qual o poder que uma mulher e seus funcionários têm para alterar e definir uma situação nesse campo?
Essas questões não se formam a partir de uma definição de governo. Essas coisas se definem na sociedade em várias dimensões nas quais o governo não está presente. Na cultura, nas relações cotidianas, nas relações com os outros países…
Mas o governo pode interferir bastante, inclusive com cortes na cultura justamente…
O governo pode se preparar para isso, mas não deixa de ser idealista, na medida em que está supondo que estas coisas se definem na sociedade a partir da orientação de alguns burocratas, quando na verdade elas são bem mais amplas.
O que está havendo é uma retropia. Que vem a ser o contrário de utopia. Zygmunt Bauman fala isso do mundo, uma tentativa de voltar atrás, uma mitificação do passado. Um passado idealizado, que de fato não existiu assim exatamente, e que é semelhante às utopias, só que em um caminho invertido. A utopia te aponta para o futuro fantasiado, e a retropia te remete para um passado fantasiado para o qual você deve voltar.
Robert Shiller, vencedor do Nobel de Economia, afirmou que o Brasil merecia mais, depois de assistir ao discurso de Bolsonaro no Fórum de Davos.
É verdade, o problema é esse, o Brasil precisa de mais. Eu não sei se ele merece mais, mas ele precisa de mais. Porque ele teve a oportunidade de escolher nas eleições, e o caminho que ele decidiu escolher foi esse, então ele está de uma certa maneira aprisionado neste caminho que escolheu, pelo menos até 2022.
Nós falamos do núcleo ideológico. Existe outro mais pragmático, que procura resolver as questões que foram as mais decisivas na campanha, no meu entender.
O Bolsonaro talvez não pensa assim, ele pensa que o mais decisivo na campanha foi supor que as crianças estavam usando mamadeira de piroca, mas na verdade não é isso, o mais decisivo é a reconstrução econômica, e nesse sentido foi encaminhada a proposta de uma reforma da previdência que não é perfeita, tem alguns defeitos que precisam ser corrigidos, mas é uma reforma da previdência que se dá em um momento em que o Brasil precisa fazê-la. Porque se não o fizer, muito provavelmente ela será feita contra a nossa vontade, como aconteceu na Grécia.
Outro ponto importante e que teve um peso enorme nas eleições, é a questão da segurança pública e combate à criminalidade.
Então eu vejo esses dois núcleos importantes, que dependem menos do comando dele. O Guedes que funcionou pra ele como espécie de Posto Ipiranga, ele já disse que não entende de economia e confia no Paulo Guedes. E o Sergio Moro que é o elemento mais popular do governo dele.
Como está se construindo o campo de oposição a esse governo?
Acho que tem uma desagregação muito grande ainda. Primeiro porque de um lado a própria esquerda está dividida. Há uma parte da esquerda tentando se articular como oposição ao próprio Bolsonaro, e a outra parte da esquerda significativa que é do PT, ainda muita baseada em uma palavra de ordem Lula Livre.
Enquanto uma tem a perspectiva de buscar encontrar um caminho de apresentar alternativas e críticas, a outra concentra a energia maior na libertação de seu líder.
O que possivelmente vai acontecer é a confluência da oposição em determinados níveis e questões. É possível que surja na sociedade movimentos de oposição, ideias de oposição, que não necessariamente se alinhem com a esquerda.
Já estão surgindo. A deputada Tabata Amaral talvez seja um exemplo.
Exatamente. Uma linha de oposição séria que realmente tenha algumas ideias sobre o Brasil e queira discutir e neutralizar as bobagens do governo através dessas ideias.
Esse tipo de oposição que não tem as características da oposição que o PT sabe fazer, e fazia no passado. Mais agressiva, mais disruptiva, do tipo “quanto pior, melhor”.
No estágio em que o Brasil está, qualquer pessoa que diga “quanto pior, melhor”, certamente ficará isolada porque nossa consciência é de que já estamos muito mal.
Há uma nova geração de políticos.
Acho que existe um processo de renovação com algumas pessoas interessantes. Existem também alguns sobreviventes interessantes. A minha tese sempre foi essa, de que era preciso haver encontro dos novos com os sobreviventes que tivessem alguma experiência. Porque a história não começa do zero. Você precisa de experiência e energia para poder seguir adiante.
Tenho procurado contato com parlamentares que conheço, e falado sobre a importância disso, de se formar um núcleo trabalhador, estudioso, que pudesse encaminhar uma oposição programática.
Esse grupo pode não ser suficiente para alterar a correlação de forças, mas tem potencial para alterar algumas situações, desde que saiba se aliar com a opinião pública.

Eugênio Bucci: A mentira na política e o ideário fascista

Ou a sociedade civil se levanta ou as piadas de mau gosto ganharão a fisionomia do horror

Antes de tratar da mentira devo dissipar eventuais impressões de que alguém aqui vá falar como dono da “Verdade”. Nem a filosofia detém a propriedade da “Verdade”, que lhe foge como nuvem nas rarefações da metafísica. A ciência também não pontifica sobre a “Verdade”. Uma conclusão científica tem crédito não por ser perfeita ou inabalável, mas por ser falível; só vai vigorar por ser falha e só vai prevalecer até que sua falha seja demonstrada. Confiar na ciência é confiar num método, não numa “Verdade”. Bem sabemos que, por vezes, a ciência se desvia e seus representantes começam a falar como se fossem profetas, mas aí a razão se perde e o discurso da ciência vira um dispositivo de poder para interditar o pensamento. É a treva.

De sua parte, a política, também ela, já se deu conta de que não tem como apresentar respostas para a questão da “Verdade”. Quando tentou, a história não terminou bem. Os iluministas do século 18 prometiam que a opinião pública faria emergir a “Verdade”, que brotaria dos subterrâneos da fome. Depois deles, na Rússia czarista do início do século 20, os bolcheviques vieram com um jornalzinho chamado Pravda (nada menos que “a verdade”, em russo). Deu no que deu. Os iluministas perderam a cabeça. Os bolcheviques, a alma. De minha parte, portanto, não sou candidato a ser dono de nenhuma “Verdade” grandiosa. Nem dono, nem inquilino.

Feito o preâmbulo obrigatório, vamos ao que interessa: mesmo sem saber o que é a “Verdade”, cada um de nós sabe muito bem apontar a mentira na política. Não precisamos da ajuda de filósofos ou de cientistas nesse campo. A natureza e a cultura já nos deram as faculdades e as habilidades necessárias para identificar os fatos objetivos. Sabemos dizer se é noite ou se é dia, sabemos comprovar se faz frio ou calor e, coletivamente, aferimos se há crianças sem escolas, se faltam remédios em hospitais e se homens e mulheres não encontram empregos. Aqui não falamos mais de uma “Verdade” celestial e perpétua, mas da simples e comezinha “verdade dos fatos”, ou a verdade factual. Trata-se de uma verdade “menor” (conforme nos ensina Hannah Arendt), mas, mesmo “menor”, faz a maior diferença.

Por sabermos o que são fatos objetivos, sabemos apontar a indústria da mentira. Sabemos que é mentirosa essa conversa de que o nazismo é de esquerda. Sabemos que mente quem diz que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado e que no IBGE se usam metodologias fajutas. Acima disso, sabemos que todas essas mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram a público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo (a palavra é chata, mas não há outra).

Os indícios estão postos. Estão aí os discursos que tentam inventar um passado de glórias contra inimigos inexistentes. Estão aí as narrativas heroicas que enaltecem a banda mais animalesca da ditadura militar, aquela que torturava adolescentes, matava opositores e censurava as artes e a imprensa (este jornal, inclusive). Aí está o ódio explícito aos jornalistas disseminado sob o patrocínio do Palácio do Planalto. Estão aí as campanhas de moralização violenta dos costumes, que elegem o universo masculino como ideal de mando e elogiam a docilidade feminina como selo de obediência. (Na Itália de Mussolini o homem era instado a ser “marido, pai e soldado”.)

Está aí a militarização dos signos da República – ou a estetização do Estado pelo figurino da caserna. Está aí, declarada, a meta de transformar as escolas em extensão dos quartéis e de reescrever a história da ditadura nos livros escolares. Está aí a vinculação orgânica entre gangues (ou milícias) e os propagandistas do bolsonarismo: o palavreado, a indumentária e o gestual furibundo dos milicianos pautam o estilo meio pistoleiro dos “influenciadores digitais” da direita inculta. Está aí o desprezo bonapartista com que o chefe do Executivo trata o Parlamento. Estão aí os insultos difusos contra o Judiciário.

Está aí a sujeição da política externa a slogans fundamentalistas que atropelam o interesse nacional. Está aí a vilanização da política a pretexto de combater o “crime organizado”. Está aí um Poder que se atribui o monopólio sobre os símbolos nacionais, que se julga sinônimo da nação e banca o arauto da “Verdade”.

Tudo isso é impostura. Tudo isso é fascismo canastrão, requentado, que seria paródico se não fosse letal. A usina de mentiras controlada pelos governistas planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem. As armas de fogo são os novos amuletos da virilidade que espanca mulheres e homossexuais. Socialistas, artistas, gays, professores e intelectuais são os inimigos da pátria, da família e de Deus.

Por fim, é mentira que o poder de turno reúna condições para promover “reformas” que atendam ao bem comum. Esse governo não é um mal necessário para promover “limpezas ideológicas” ou “saneamentos” da máquina pública – é apenas a necessidade do mal.

Quando vamos entender? Em política, nenhum fim justifica nenhum meio. Ao contrário, os meios determinam os fins. Nada de virtuoso virá de um governante que ofende a história da humanidade e não guarda respeito pela ordem que lhe conferiu o mandato: ao bajular a ditadura extinta, enxovalha o juramento que fez de “manter, defender e cumprir a Constituição”. Ou a sociedade civil se levanta ou o que hoje vem sendo engolido como piadas de mau gosto (há quem dê risada) ganhará a fisionomia do horror. Lamento, mas são os fatos.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP


El País: Cem dias de um vice com agenda própria

O EL PAÍS analisou os compromissos públicos de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão nos três primeiros meses de Governo e encontrou a dedicação recente do presidente dos caciques partidários e o aceno de Hamilton Mourão ao PIB e à diplomacia

Nos cem primeiros dias de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro dedicou-se a encontros com sua equipe (ministros, assessores, dirigentes de estatais) e com políticos e caciques partidários —estes últimos ganharam espaço especialmente depois de o Planalto ser cobrado a atuar na negociação com o Congresso. Enquanto isso, Hamilton Mourão se destacou por receber empresários, presidentes de entidades da sociedade civil, diplomatas e a imprensa – as frequentes declarações do general da reserva aos jornalistas moldaram nestes três meses o perfil de um vice nada decorativo e sem constrangimentos em se firmar como um contraponto ao chefe. As ênfases da atuação das duas maiores autoridades do Poder Executivo ficam evidentes ao se analisar os dados que constam de suas agendas públicas.

No repasse do dia a dia da dupla de militares da reserva com assento no Palácio do Planalto, a  mudança de comportamento do presidente é eloquente: Bolsonaro criou tempo para receber os caciques partidários, tendo que modular seu discurso contra a "velha política" e a ideia de que seu Governo era capaz de negociar por meio de "eixos temáticos" com o Parlamento, e não com as legendas. Na lista do vice, uma maior diversidade nos compromissos, com um aceno ao PIB e à diplomacia. Chama atenção as pontes de Mourão para além do bolsonarismo: ele já recebeu representantes da oposição, como governadores do PT e do PCdoB, senador da REDE e dirigentes da Central Única dos Trabalhadores. Só com a CUT, foram dois encontros para debater a reforma da Previdência.

Entre 1º de janeiro e 10 de abril, quando se completaram os 100 dias, Bolsonaro esteve com 193 vezes com ministros e dirigentes de estatais, 79 com deputados e senadores, além de 12 com dirigentes partidários. Enquanto o presidente esteve em 25 encontros com empresários e investidores, Mourão foi a 62, entre eles duas vezes com dirigentes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), uma com o Banco Mundial e outras com petroleiras, instituições financeiras e mineradoras. Até por conta das atividades diferentes que desenvolve e pelas declarações que tem feito, na visita que fez aos Estados Unidos nesta semana, o vice foi apresentado como uma espécie de antagonista de Bolsonaro, mas que acabava dando previsibilidade ao seu Governo. Algo que, de pronto, refutou. “Eu sou complementar a ele”. O mesmo já havia dito ao EL PAÍS, em uma entrevista publicada em fevereiro.

Aproximação com o Congresso e espaço para os filhos

O desenrolar das semanas fez com que Bolsonaro reavaliasse ao menos duas de suas estratégias, a da articulação política e a de comunicação. Após ser criticado por não ter se empenhado no andamento de sua reforma da Previdência, passou a receber mais parlamentares e representantes de partidos. Nas últimas semanas, reuniu-se com 12 presidentes e dirigentes de legendas, com o objetivo de pedir o empenho delas no projeto que é a espinha dorsal de seus planos econômicos. “Ele se rendeu à velha política. Notou que esse discurso de novo, sem agir, não vale nada. Só valia para a eleição”, analisou o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília.

Com relação à comunicação, o presidente passou usar uma estratégia dupla: abriu espaço a jornalistas dos grandes veículos, ainda que nas redes sociais incentive os ataques aos meios de comunicação. Promoveu ao menos três encontros com jornalistas pré-selecionados e intensificou sua agenda de entrevistas exclusivas. Sempre que faz uma viagem internacional, fala com alguma emissora ou jornal local. Isso ocorreu nos Estados Unidos, em Israel e no Chile.

Uma comparação com a agenda de Mourão mostra que o vice é muito mais próximo à imprensa. Nesse início de Governo ele já concedeu 46 entrevistas a veículos nacionais e internacionais. Enquanto que o presidente deu apenas dez, conforme os dados oficiais. Esses dados, contudo, estão subestimados. Nas informações divulgadas pelo Planalto, raramente constam as entrevistas do presidente. Três exemplos: na viagem a Suíça, em janeiro, o presidente concedeu entrevista à Record TV que não foi contabilizada. O mesmo ocorreu em março, quando falou para a Band e nesta semana, quando foi entrevistado pela rádio Jovem Pan. O vice-presidente, por sua vez, detalha cada conversa que tem, citando o nome dos meios de comunicação e dos entrevistadores.

Para o professor Fleischer, a comparação entre os dois políticos mostra que Mourão tem “luz própria” e acaba fazendo parte de um grupo de militares responsável por indiretamente “tutelar” o presidente. Ele cita dois exemplos. Em fevereiro, o vice decidiu de última hora viajar a Bogotá, na Colômbia, para participar do Grupo de Lima e deixar claro que o Brasil era contrário a uma intervenção militar na Venezuela com o objetivo de depor o regime de Nicolás Maduro. “O ministro Ernesto Araújo [Relações Exteriores] estava pronto para apoiar a intervenção. Mas o Mourão viajou para fazer diplomacia”, diz o cientista político. O outro exemplo foi a viagem do vice aos Estados Unidos, onde ele se participou de encontros mais diversificados do que Bolsonaro e se encontrou com representantes da comunidade brasileira em Boston. “Parece que ele viajou aos Estados Unidos para limpar as sujeiras que Bolsonaro deixou por lá. Queria melhorar a imagem do país”, afirmou.

Os números não representam a totalidade das rotinas de Bolsonaro e Mourão. As inconsistências nas agendas, algo que em países como os EUA poderiam ser consideradas deslizes legais, ocorrem com maior frequência que se imagina. No caso da de Mourão, por exemplo, há menos encontros com diplomatas do que realmente ocorreram. Um deles que foi consultado pela reportagem disse que esteve com o vice-presidente “quatro ou cinco” ocasiões. Mas nos registros oficiais seu nome aparece duas vezes. Já na de Bolsonaro, nem todos os encontros que têm com seus filhos que são políticos aparecem nos dados oficiais. Conforme o levantamento, o presidente se reuniu seis vezes com o senador Flávio, seis com o vereador pelo Rio de Janeiro Carlos, apontado como o estrategista de comunicação do pai, e duas com o deputado federal Eduardo.


Ricardo Noblat: Cem dias jogados no lixo

Bolsonaro x Bolsonaro

E no centésimo dia do seu governo, por mais que possa dizer o contrário, o presidente Jair Bolsonaro pouco tem a comemorar.

Se até aqui há algo de original neste governo é o fato de que dispensa oposição. Ele detém o monopólio da oposição.

A oposição conhecida como tal ainda padece da surra que levou nas eleições do ano passado e se ocupa em lamber suas feridas.

O espaço reservado a ela por enquanto foi totalmente ocupado pelo governo. Ele é seu principal adversário. E à sua cabeça, Bolsonaro.

O ex-presidente Fernando Henrique notabilizou-se por desinflar as crises que batiam à porta do seu gabinete. Lula, também.

A exemplo de Dilma Rousseff, mas talvez muito mais do que ela, Bolsonaro faz justamente o contrário. Infla as crises. Ele é a crise.

Dois ministros foram decapitados, quatro secretários-gerais de ministérios e dois presidentes da Agência de Promoção das Exportações.

O novo ministro da Educação tomou posse dizendo que governará para todos. Em seguida, disse que demitirá quem pisar fora da linha.

Saiu da Educação um discípulo do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, o guru do clã Bolsonaro. Entrou outro.

Segue o governo dividido em três grupos: o dos militares, o ideológico de extrema direita, e o dos técnicos.

Os militares tentam apagar os incêndios provocados pelo capitão e sua turma ideologizada que nega ser ideológica.

Os técnicos tentam trabalhar – e à falta de um projeto verdadeiramente de governo, orientam-se pelo próprio faro.

A política externa foi entregue aos cuidados de um ministro que não se envergonha de dizer que é trumpista. É também incompetente.

O presidente da República mais viaja do que governa e dá a impressão de que trabalha pouco, e sem gosto.

O Congresso aprovará a reforma da Previdência. Mas não a reforma dos sonhos do ministro Paulo Guedes. Longe disso.

A maioria dos políticos pensa assim: se Bolsonaro os trata mal quando mais precisa deles, imagine depois se deixar de precisar?

Portanto, nada de lhe dar o que pede. Bolsonaro deve ser alimentado com pouca coisa e mantido sob rédea curta.

Se a receita serve para a reforma, servirá também para o pacote de medidas contra o crime do ministro Sérgio Moro, da Justiça.
A má vontade com o que Moro pede será maior porque Moro é Moro. Ninguém mais do que ele demonizou a política.

A não ser que mude de ideia, Bolsonaro celebrará seus 100 dias de governo com o anúncio do 13º salário para o Bolsa Família.

Para quem diz que programas sociais não tiram ninguém da miséria, o anúncio só prova que Bolsonaro não sabe o que fala.

Um presidente agastado

O desabafo do capitão
E no 99º dia desde que subiu pela primeira vez a rampa do Palácio do Planalto, o capitão da reserva Jair Messias Bolsonaro recebeu em seu gabinete a visita dos deputados Paulinho da Força (SP), presidente do Solidariedade, e Augusto Coutinho, líder do partido na Câmara. Em pauta, a reforma da Previdência Social.

“Bom dia, presidente, onde devo me sentar?” – perguntou Paulinho à chegada. “Desde que não seja em meu colo, pode sentar onde quiser”, respondeu Bolsonaro com o sorriso largo de sempre. Foi o que bastou para ditar o ritmo descontraído da conversa, testemunhada pelo ministro Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil.

Bolsonaro alternou momentos de bom humor com outros de sonolência, segundo Coutinho. E sempre que os dois deputados faziam críticas ao projeto da reforma despachado pelo governo ao Congresso, Bolsonaro se apressava em concordar com eles. “É, vamos dar um jeito nisso”. Ou: “Isso dá para mexer, sim”.

Concordou, por exemplo, que daria para tirar do projeto a parte que trata da reforma da Previdência de Estados e municípios. Assim como outros pontos já criticados pelos políticos. A certa altura do encontro, Bolsonaro fez um desabafo que causou forte impacto nos dois deputados:

– Sabe, Paulinho, eu já poderia estar aposentado, em casa, tomando uma caipirinha… Mas estou aqui nesta porra…

E sorriu, para variar.

Um afiado observador da política brasileira, que recentemente esteve com Bolsonaro no Palácio do Planalto, saiu de lá com a impressão que nem mesmo João Batista de Oliveira Figueiredo, o último general-presidente da ditadura militar de 64, pareceu mais agastado com as funções do cargo do que o capitão.