governo bolsonaro
Raul Jungmann é o entrevistado especial da sexta edição da Revista Política Democrática Online
Elucidar o caso Marielle, diante da captura de partes das instituições do Estado por uma aliança satânica entre o crime organizado, a política e a corrupção no Rio de Janeiro, é fundamental, avalia Raul Jungmann, em entrevista à Revista Política Democrática Online
“É fundamental desvendar o caso Marielle, mas ele pode ser apenas o fio da meada para algo mais amplo. Como imaginar que os dois suspeitos presos, profissionais com possível ligação com o “escritório do crime”, tenham passado três meses planejando o assassinato motivados apenas por “motivo torpe”, uma motivação de ódio?”, questiona Raul Jungmann, o entrevistado especial desta sexta edição da Revista Política Democrática Online.
» Confira a aqui a Revista Política Democrática – Edição 06
Jungmann, um dos fundadores do Partido Popular Socialista (PPS), atual Cidadania (23), já foi vereador, deputado estadual, deputado federal e ocupou diversos cargos importantes nos governos FHC e Temer, tendo sido Ministro da Defesa e Ministro da Segurança Institucional neste último.
Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Raul Jungmann também comenta a situação atual do Rio de Janeiro por conta do crime organizado, particularmente as milícias, que dominam de 800 a 830 comunidades da capital fluminense e a sobre a intervenção federal, que durou 10 meses e foi tomada pelo então presidente Michel temer com base em um instrumento da Constituição de 88, que nunca fora testado antes.
A crítica situação da Venezuela também é um dos temas tratados por Raul Jungmann na entrevista. Para ele, “processos de transição de regimes autoritários para regimes democráticos têm de contar com as garantias de quem é oposição que, quando chegar ao governo, não vai punir quem agora é governo e,
efetivamente, vai deixar de ser”, avalia.
“Isso é uma coisa absolutamente central e, no caso da Venezuela, uma debilidade”, completa. De acordo com Jungmann, “nem a oposição tem condições de assegurar a incolumidade, a não perseguição, a integridade, seja o lá o que for, desses que estão no poder, sobretudo o estamento militar, e tampouco, do lado de lá, há a percepção de que quem está hoje fazendo oposição terá condições de assegurar isso”.
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Demétrio Magnoli: Governo Bolsonaro é só uma escala técnica na rota do Partido dos Procuradores
O voo suicida do STF concentrou as atenções, desviando os olhares do fenômeno que motiva o inquérito
A crise institucional em curso transbordou como crise constitucional pelas decisões do STF de agir, simultaneamente, como parte, promotor e juiz no inquérito das fake news e de impor censura à divulgação de notícias. Curiosamente, o governo Bolsonaro tem relação apenas lateral com uma crise cujos protagonistas são o próprio STF e a corrente jacobina do Ministério Público.
Atuando em dobradinha, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes conduzem um inquérito abusivo já na origem aos descaminhos da truculência. Desconhecendo os limites da lei, acalentam a ilusão de que seus alvos se deixarão intimidar. O fruto prático de seus atos arbitrários é a desmoralização do STF —ou seja, exatamente a finalidade buscada pelos promotores da campanha difamatória disseminada nas redes sociais. O recuo de Moraes, revogando o ato de censura, restabelece parcialmente a legalidade. Falta, ainda, devolver as prerrogativas de investigar e acusar a quem a detém, ou seja, ao Ministério Público.
O voo suicida do STF concentrou as atenções, desviando os olhares do fenômeno que motiva o inquérito. Não são meia dúzia de haters de redes sociais: há anos, como subproduto tóxico da Lava Jato, a corrente jacobina dos procuradores engajou-se num projeto de poder.
Os sinais iniciais emergiram em maio de 2017, na “operação Joesley Batista” e no artigo de Rodrigo Janot que denunciava “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. O procurador-geral enunciava, então, nada menos que um objetivo estranho à missão judicial da Procuradoria: limpar a República, substituindo a elite política tradicional por uma outra, pura e casta. É essa meta que os pretendentes a Robespierres continuam a perseguir.
Janot foi protagonista circunstancial numa engrenagem que alastrou suas bases pelo Ministério Público, extravasou para setores da Polícia Federal e da Receita e se disseminou entre militares da reserva e políticos (tanto governistas como de oposição). Hoje, o projeto de poder tem seu próprio candidato presidencial, que atende pelo nome de Sergio Moro, e seu veículo oficioso de mídia, que é o site censurado pelo ato ilegal do STF. Bolsonaro flerta alegremente com a engrenagem, sem se dar conta de que seu governo é apenas uma escala técnica na rota imaginada pelo Partido dos Procuradores.
Mundo afora, da Rússia à Turquia, o populismo vale-se do pretexto do combate à corrupção para quebrar as mediações institucionais que limitam o poder do governo. O núcleo da Lava Jato ganhou popularidade ao atacar eficazmente a corrupção sistêmica que envenena a política brasileira. Dessa plataforma, nasceu o projeto do Partido dos Procuradores, que agora esculpe as investigações segundo as necessidades de seu objetivo político. É nessa lógica que se inscreve a ofensiva contra a Corte Suprema.
“Tenho vergonha do STF” —a frase lançada por um obscuro advogado contra Lewandowski funciona como palavra de ordem da campanha de mídia. O site O Antagonista publica fragmentos de notícias verídicas, mas descontextualizadas, oferecendo munição aos guerrilheiros das redes, que as convertem em petardos difamatórios contra os magistrados escolhidos como alvos. Pretende-se, no fim, eliminar as restrições legais à perseguição de inimigos políticos do Partido dos Procuradores. Nas Filipinas, o governo Duterte fez da “guerra às drogas” o alvitre para execuções extrajudiciais. No Brasil, faz-se da “guerra à corrupção” o pretexto para assassinatos de reputações.
O exército da difamação opera nas sombras, combinando vazamentos seletivos com torrentes de desinformação impulsionadas nos subterrâneos da internet. O STF tem a obrigação de expor os contornos da campanha criminosa por meio dos instrumentos legais, solicitando à Procuradoria inquéritos sobre fatos específicos. A luz do dia sempre é o melhor antídoto contra os combatentes das trevas.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Eliane Cantanhêde: Dilma ou Guedes?
Bolsonaro: entre o estatizante dos 28 anos de Congresso ou o liberal da campanha
Independência do Banco Central, ponto positivo para o presidente Jair Bolsonaro. Ingerência na Petrobrás, ponto negativo para Bolsonaro. Na primeira, ele cumpriu a promessa liberal e modernizante de campanha, afinado com o ministro Paulo Guedes. Na segunda, foi intervencionista e atrasado, repetindo um dos erros grosseiros de Dilma Rousseff.
O aumento de 5,7% no preço do diesel foi uma decisão da Petrobrás que certamente teve boas justificativas técnicas, mas na hora errada e com um forte efeito político. O anúncio foi justamente no dia em que Bolsonaro comemorava os cem primeiros dias do governo e embaçou a repercussão do pacote de medidas. Mais do que isso, foi em meio a uma ameaça que paira sobre o governo e o País: a movimentação de caminhoneiros.
Ao saber do aumento, Bolsonaro agiu a la Dilma: mandou cancelar, sem avaliar consequências. Estava pensando no impacto sobre a inflação e a economia? Na sua popularidade? Ou nos caminhoneiros? Fortes e audaciosos, eles tiveram apoio do então deputado Jair Bolsonaro no teste de força com o governo Temer. Ganharam, causaram um colapso de abastecimento e interromperam a retomada do crescimento. Agora, voltam à carga e ameaçaram nova paralisação em 30 de março. Abortaram a ideia, mas deram seu recado.
Portanto, a decisão do presidente foi política e o mercado reagiu duramente. As ações da Petrobrás despencaram 8,76% na sexta-feira, com um prejuízo de R$ 32 bilhões. E a nova semana começa com reuniões palacianas e grandes dúvidas sobre o preço do diesel, a independência da Petrobrás e o compromisso liberal de Bolsonaro. Os investidores e a opinião pública estão boquiabertos.
Em vez de ajudar, o presidente piorou as coisas ao tentar justificar sua impulsividade. Diante de microfones, ele questionou como o preço do diesel pode subir 5,7%, se a inflação ficou abaixo de 5% (na verdade, 3,9%). Logo, ele desconhece que a inflação é a média de uma cesta de preços, uns sobem, outros caem. Na campanha, chamava o “Posto Ipiranga” para socorrê-lo. Agora, decidiu da própria cabeça, mesmo dizendo, candidamente: “Não sou economista, já falei que não entendo de economia”. E lascou: “Quem entendia afundou o Brasil, certo?”
Referia-se à economista Dilma, que contaminava as decisões da economia com suas convicções políticas e ideológicas. Adoeceu a Petrobrás e, com uma canetada, desestruturou o setor elétrico e passou aos investidores internacionais a mensagem de desrespeito não só ao liberalismo, mas aos próprios contratos. Dilma, porém, nunca enganou ninguém. Até tentou se ajustar à realidade nomeando Joaquim Levy como chefão da economia, mas ela foi o que sempre foi: estatizante, intervencionista, uma brizolista estacionada na década de 1960. Bolsonaro não. Ele pode até ser tudo isso, mas se elegeu com um discurso, uma promessa e um Posto Ipiranga em sentido contrário. Daí o rebuliço no mercado e nas mentes.
Quando se fala da quebradeira da Petrobrás nos anos do PT, associa-se à corrupção, ao aparelhamento, ao fatiamento partidário da maior e mais simbólica companhia do País. Mas não foi só isso. Um dado relevante na tragédia foi a política de preços populista do ex-presidente Lula e sua sucessora. Como vender abaixo dos preços internacionais? Só de 2014 a 2017, os prejuízos bateram em R$ 72 bilhões.
O presidente Bolsonaro tem todo o fim de semana para conversar, ouvir, ler e refletir para, na terça-feira, decidir se ele quer ser o Bolsonaro intervencionista e estatizante dos seus 28 anos de Congresso ou o Bolsonaro liberal e privatizante da campanha. Vai ter de optar entre Dilma Rousseff e Paulo Guedes e, de preferência, parar de sabotar o seu próprio governo.
Alon Feuerwerker: O equilíbrio é estável. E a enésima aposta perdida de quem acredita em tutelar um presidente popular
Jair Bolsonaro está como o malabarista que precisa manter em pé e rodando muitos pratinhos sobre varetas: precisa ao mesmo tempo manter o apoio popular, do mercado financeiro, das Forças Armadas e da imprensa.
Ah, sim, e conquistar o de um Congresso que o presidente também precisa de vez em quando esmurrar, para continuar falando ao povão. Não seria missão fácil para um calejado. E nessa escola Bolsonaro é calouro.
No essencial, entretanto, os pratinhos estão rodando. A variável a medir é a estabilidade do equilíbrio. Se perturbações localizadas tendem a desarrumar completamente a cena ou se a natureza trabalha para o sistema sempre se reequilibrar.
Desde que a perturbação fique dentro de certos limites, o cenário até agora é de equilíbrio estável. Em linguagem matemática, a segunda derivada por enquanto é positiva. Ou seja, perturbações localizadas não desestabilizam o conjunto.
Por duas razões. A primeira: não há alternativa imediata real de poder fora do bloco de direita conservador-liberal. Ah, mas o vice-presidente é paquerado por quem sonha com um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Essas aspas são autoexplicativas.
A segunda: toda a base social e política do bolsonarismo trabalha para ajudar o governo no essencial: a economia. Todos apoiam firmemente Paulo Guedes, na esperança de quebrar o ciclo de estagnação, essa marca da década que termina.
Um exemplo é a imprensa. Os rififis com o poder são diários, mas apenas em questões, para a opinião pública(da), acessórias. No que conta, a reforma da previdência, o modo é de campanha. A crítica? Só ao que pode atrapalhar a aprovação.
A previdência virou a “Lava-Jato da economia". É desse apoio que o governo precisa. Ele não quer ceder totalmente ao fisiologismo da velha política. Pois 1) o povão chiaria e 2) já distribuiu ou reservou as melhores posições para a nova.
E o mercado financeiro? Vai resmungar, os ativos vão oscilar, mas se na última linha da planilha o governo entregar pelo menos uns 50% da reforma prometida, e assim ganhar velocidade, o dinheiro vai festejar. E já tem uma nova cenoura na frente: a reforma tributária.
Para as Forças Armadas, Bolsonaro acoplou um belo plano de carreira na mudança “previdenciária”. Na contabilidade oficial, os fardados são responsáveis por uns 15% do déficit e vão entrar com 1% do sacrifício. Melhor que isso só dois disso, como se diz.
Resta o principal: o povão. O governo aplica aí medidas tópicas, como o 13° do Bolsa Família, mas o jogo será decidido no crescimento e na geração de empregos. Se ambas as curvas embicarem para cima, 2020 e 2022 serão menos íngremes. Se não...
Qual é então o principal vetor a acompanhar? Partindo da premissa de que alguma reforma da previdência será aprovada em 2019, e alguma reforma tributária vai andar, qual será o impacto disso, imediato e nos próximos três anos?
O prometido boom de investimentos compensará uma maior propensão do consumidor a poupar? Até que ponto as deficiências estruturais (educação, infraestrutura, pouca inovação) continuarão segurando o necessário aumento de produtividade?
Por enquanto, as expectativas não são brilhantes. Mas governo é governo. Como está demonstrado no caso do preço do diesel. Não há antecedente de governo que tenha se suicidado para manter a coerência. Se a coisa não anda, muda-se o roteiro do filme.
*
Pela enésima vez, frustram-se os teóricos da esperança de um presidente popular ser tutelado. Tem gente que vive de - e gosta de - (se) enganar.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Pedro S. Malan: Começos – o principal agora
Executivo precisa de grande habilidade para conduzir a sua agenda legislativa
“O PRINCIPAL, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros (começos), foi estabelecer alguma ordem na administração.” Assim escreveu Graciliano Ramos em relatório de gestão da prefeitura de Palmeira dos Índios endereçado ao governo de Alagoas. A palavra principal está grafada em maiúsculas no original. O eventual leitor perguntará: mas Graciliano numa hora destas? E logo sobre um assunto tão árido, uma citação velha de 90 anos? São várias as razões que me fazem começar puxando esse fio, que, creio, tem muito que ver com nosso presente – e com nosso futuro.
Primeiro, porque o Brasil tem 5.570 prefeitos, que estarão, ao longo dos próximos 18 meses, a preocupar-se não só com a administração de suas cidades e com seus vereadores, como também com sua reeleição ou sucessão em outubro de 2020. Estarão atentos à relação com os respectivos governadores e com o que acontece em Brasília e no resto do Brasil (o que não é exatamente a mesma coisa). Impossível dizer quantos desses prefeitos – presentes e futuros – terão o estilo objetivo, seco, direto ao ponto de Graciliano (seus dois relatórios são imperdíveis). Mas para a grande maioria o principal problema, de que depende a solução de todos os outros, é a extensão em que conseguirão “estabelecer alguma ordem” nas suas respectivas administrações.
Segundo, porque há também 27 governadores que entram agora no quarto mês de seus mandatos e estarão chegando quase à metade deles em 18 meses mais, e com as mesmas preocupações dos prefeitos de hoje, de olhos postos em outubro de 2022. Para a esmagadora maioria também vale a observação inicial de Graciliano. Alguns Estados estão à beira da insolvência, resultado da falta de “alguma ordem” na administração passada de dívidas, derivadas, por sua vez, do excesso de crescimento de gastos sobre o crescimento de receitas. Em alguns casos, mais preocupantes, da transformação de receitas transitórias em gastos permanentes e crescentes – em particular com as duas rubricas mais importantes: pessoal e, crescentemente, inativos e pensionistas. Vários governadores em início de mandato são, basicamente, gerentes de folhas de pagamento, que em alguns casos excedem 70% de sua receita corrente líquida.
Penoso e aborrecido como possa parecer, esse é o principal problema para a maioria dos gestores públicos. Um problema que exige conhecimento do nível, composição e eficiência de suas despesas e receitas, presentes e futuras. Exige, em particular, cercar-se de pessoas qualificadas e dotadas de capacidade de execução. Disso depende não só o controle da trajetória de sua dívida, como também, e principalmente, a qualidade e quantidade dos serviços públicos que têm a obrigação de prestar às respectivas populações. Alguém dirá – e não sem razão – que por mais que Estados e municípios possam fazer nesse sentido, estarão sempre afetados positiva ou negativamente pelo contexto mais amplo do desempenho da economia do País; que, por sua vez, é fortemente influenciado pelas políticas do Executivo federal, deliberações do Congresso Nacional, decisões do Judiciário – e pelo grau de funcionalidade das relações entre os Poderes, em particular entre Executivo e Legislativo.
Esse é o terceiro ponto. O novo governo está no poder há cem dias. O novo Congresso assumiu há 70 dias. Muitos dizem, e dirão por algum tempo ainda: “É muito cedo, as coisas vão se acomodando e o Executivo acabará por formar sua base de apoio no Congresso, suficiente para a aprovação, em prazo razoável, de uma ampla agenda legislativa”. O tempo dirá, mas este terceiro aspecto envolve uma pergunta de importância crucial: a que responde cada congressista, num Parlamento repleto de novatos, em que nenhum partido tem mais que 11% (Câmara) ou 15% (Senado) dos votos?
A quatro fatores, é a resposta que arrisco esboçar. 1) À família nuclear imediata e estendida de cada congressista, que começa por pais, mães e filhos e alcança compadres, agregados e amigos; quem já viveu em Brasília sabe da importância desses vínculos, dada a quantidade de empregados no setor público. Posturas e votos sobre a reforma da Previdência, por exemplo, sempre foram, e agora serão mais ainda, afetados por estes vínculos. 2) A seu eleitorado potencial, sua base eleitoral no respectivo Estado, região e município, a ser atendida por emendas e obras que consiga; e, para muitos, às suas alianças corporativistas de caráter nacional, que nunca devem ser subestimadas. 3) Ao que percebem como o cambiante “sentimento geral” da opinião pública mais ampla, tal como refletida nas mídias – rádio, televisão, jornais, revistas e, cada vez mais, redes sociais. 4) Por último, mas não menos importante, ao que percebem como o grau de empenho e convicção do Executivo federal, dos ministros e da respectiva capacidade de articulação, convencimento e conhecimento do tema em deliberação, inclusive, e muito importante, do presidente da República.
Cada deputado e cada senador tem antenas muito sensíveis para os pontos acima mencionados, todos sentem que têm legitimidade: afinal, seus mandatos também emergem das escolhas do eleitorado. Julgam que o Legislativo sempre pode, e deve, “aperfeiçoar” os projetos encaminhados pelo Executivo, pois a Constituição assegura a independência dos Poderes. Se os partidos são fracos, o Congresso, em seu conjunto, quando quer, e puder, é forte. O Executivo precisa de grande habilidade e lideranças experientes para conduzir sua agenda legislativa, em particular quando esta envolve mudanças constitucionais. A eventual percepção por parte do Congresso de que o Executivo não está coeso e de que o próprio presidente não está convencido dos rumos pode ser algo nefasto nos meses que faltam deste crucial ano de 2019, afetando negativamente as expectativas de retomada do investimento e do crescimento do País. É muito sério o que está em jogo nestes “começos”.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.
Luiz Carlos Azedo: A tentação populista
“Ainda não é possível definir claramente o caráter do governo Bolsonaro, embora o senso comum permita afirmar que seja conservador nos costumes e liberal, na economia”
Na terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro terá uma reunião com sua equipe de governo e a cúpula da Petrobras para discutir a política de preços dos combustíveis, depois de pôr em xeque a orientação do ministro da Economia, Paulo Guedes, em relação à estatal: a autonomia para atuar de acordo com as necessidades do mercado, sobretudo a flutuação do dólar. Na sexta-feira, Bolsonaro mandou a estatal cancelar um aumento no preço do diesel após ser pressionado por líderes dos caminhoneiros, à revelia do ministro, porque acha que o preço dos combustíveis deve estar alinhado à inflação e não ao mercado mundial de petróleo. A decisão provocou queda abrupta das ações da Petrobras, que perdeu R$ 32 bilhões do seu valor patrimonial. Nos bastidores do governo, há uma queda de braços entre Guedes, que nomeou o atual presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, e os ministros da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni, e de Minas e Energia, Bento Costa Lima, ao qual a estatal está formalmente vinculada.
A decisão de Bolsonaro não é a primeira em relação a segmentos estratégicos de sua campanha eleitoral; também cedeu aos ruralistas, ao anunciar que anistiará dívidas no valor de R$ 17 bilhões. O presidente da República minimizou a queda de 15 pontos percentuais de sua aprovação nas pesquisas de opinião, porém, desde então, dá sinais de preocupação e adotou medidas que podem contribuir para melhorar a própria imagem, como o fim do horário de verão e o décimo terceiro do programa Bolsa Família. Nas redes sociais, resolveu dar mais ênfase à divulgação de suas ações administrativas. A estratégia de desprezar os meios de comunicação tradicionais e se comunicar por meio das redes sociais já bateu no teto.
Nos primeiros 100 dias de mandato, o comportamento de Bolsonaro foi uma espécie de “ensaio e erro”, se considerarmos a avaliação feita pelo ministro da Casa Civil ao apresentar o balanço de realizações do governo. Bolsonaro está aprendendo a ser presidente da República, sem nunca antes ter exercido um cargo executivo. A aprendizagem por ensaio e erro consiste em eliminar gradualmente os ensaios e tentativas que levam ao erro e manter comportamentos que conquistaram o efeito desejado, segundo a lei do efeito (um ato é alterado pelas suas consequências) e a lei do exercício (estímulos e respostas fortalecidos pela repetição). Erro, porém, anda de braço dado com o fracasso. Seria melhor que Bolsonaro aprendesse com os seus antecessores, como Collor de Mello e Dilma Rousseff, por exemplo, em relação ao Congresso e à Petrobras, respectivamente.
Bonapartismo
Ainda não é possível definir claramente o caráter do governo Bolsonaro, embora o senso comum permita afirmar que seja conservador nos costumes e liberal, na economia. Um governo eleito democraticamente, mas assumidamente de direita, pode ter características bonapartistas ou populistas. Por enquanto, o viés predominante é bonapartista, porque seu eixo está na forte presença militar, policial e técnico-burocrática. Bolsonaro se coloca acima dos partidos e dos demais poderes, o que é uma contradição com o regime democrático no qual foi eleito. Nesse aspecto, a Lava-Jato desempenha um papel crucial, ao manter sob pressão a elite política e a cúpula do Judiciário. Não será surpresa o surgimento de propostas no sentido de adaptar a legislação vigente às conveniências do bonapartismo, como a extinção dos conselhos de políticas públicas, por exemplo.
A perda de popularidade do governo, porém, tende a provocar uma deriva populista por parte de Bolsonaro, de acordo com a receita já conhecida: busca de proximidade com as massas sem passar por nenhuma instituição política; favorecimento de segmentos sociais que lhe dão apoio; e fragilização dos partidos. Nesse aspecto, a queda de braços de Bolsonaro com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes do chamado Centrão, PP, PR, DEM, PRB, Solidariedade e Podemos, tende a se tornar uma batalha sangrenta, por causa da Lava-Jato.
Bolsonaro praticamente já abriu mão da meta de R$ 1 trilhão de economia em 10 anos, grande objetivo da equipe econômica. Estará satisfeito se o Congresso aprovar o aumento da idade mínima e do tempo das contribuições, sem que seja necessário entrar em confronto com a sua própria base eleitoral, que compõe o eixo de seu governo. A reforma possível tem maioria no Congresso, mas esse apoio não virá por gravidade. É plausível que os líderes do Centrão queiram obstruir a reforma por causa da não participação no governo. Entretanto, a maior resistência às reformas vem da própria base de Bolsonaro, que é muito corporativista. O problema é que um governo populista não tem chance de fazer o país voltar a crescer de forma sustentável.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-tentacao-populista/
Ricardo Noblat: O pagador de promessas
O capitão e suas circunstâncias
Diga-se o que quiser do presidente Jair Bolsonaro a propósito dos seus primeiros cem dias de governo, menos que seja um mal pagador de promessas. Ou menos que sua eleição foi um estelionato eleitoral assim como a de tantos outros que o antecederam no cargo.
Bolsonaro está simplesmente fazendo o que prometeu fazer e o que resumiu assim durante a campanha do ano passado: “Eu sou o candidato contra o sistema. Eu vou quebrar o sistema”. Pode até não quebrar, mas se empenha para isso, sim.
Fracassaram todas as tentativas até aqui de normalizá-lo. O que significaria: pô-lo sob as rédeas curtas do sistema político, partidário e econômico. Antes de tudo, Bolsonaro é ele e as suas circunstâncias, e não é de todo mal que assim seja. Só aprendemos votando.
Mal seria se ele decepcionasse os milhões de eleitores que o puseram na presidência. Os que já começaram a abandoná-lo são apenas aqueles que o cavalgaram na esperança de derrotar o PT. Os demais seguem acreditando nele.
Bolsonaro sempre defendeu um Estado forte, regulador, capaz de intervir em quase tudo em nome do bem dos brasileiros. O Brasil acima de todos e só abaixo de Deus. Não foi de graça que como deputado tanto votou no Congresso alinhado com o PT.
Nada mais justo, pois, que resista a vestir a fantasia de liberal. Não é. Jamais será um liberal por sua própria formação. Nada entende de economia como já disse e repete. Mas não foi só por ignorância que decidiu meter-se na política de preços da Petrobras.
Foi por duas razões pelo menos: para pagar a dívida com os caminhoneiros que paralisaram o país há menos de um ano e que em seguida votaram em peso nele, e porque é mínima sua adesão às chamadas regras do mercado. Se preciso, que o mercado exploda.
Novamente Bolsonaro e o PT acabam por juntar os trapinhos. Lula e Dilma manipularam os preços dos combustíveis por achar que o mercado não pode tudo todo o tempo. Bolsonaro não pensa diferente deles, embora se negue a admitir.
No caso de Lula e Dilma havia uma razão a mais: a manipulação dos preços tinha a ver também com o seu desejo de se eternizarem no poder. Oito anos de Lula, oito ou quatro de Dilma, mais quatro ou oito de Lula, quem sabe mais oito de um aliado… Quase deu certo.
Bolsonaro, não. Ele foi candidato a presidente para reeleger os filhos e arrumar a vida da família. Aí o maluco do Adélio Bispo mudou seus planos esfaqueando-o em Juiz de Fora às vésperas da passeata do 7 de setembro. Acertou até na data.
Bolsonaro reconhece que sua vida foi salva por milagre, e que outro milagre salvou-o da derrota previsível. Suas recentes manifestações a respeito indicam que ele não estava pronto para governar. Que não gostaria de governar. Que governa de má vontade.
Mas uma vez que governa, não está disposto a renunciar ao que pensa, isso não. Ao cargo, muito menos porque seus filhos não deixariam, nem seu orgulho. Mas não é desejo dele ir além do atual mandato desde que possa exercê-lo naturalmente ao seu modo.
Rio, terra sem lei
Uma esculhambação
É possível que a prefeitura do Rio não soubesse que milicianos haviam construído em área de proteção ambiental e sem autorização dos órgãos competentes os dois prédios que desabaram, ontem, na Zona Oeste da cidade matando cinco ou mais pessoas e deixando outras tantas feridas?
O prefeito Marcelo Crivella disse que tentou interditar a construção de prédios ali, mas que não conseguiu. Não conseguiu por quê? A Justiça negou-se a interditar? A polícia preferiu cruzar os braços a cumprir a ordem? Os encarregados do serviço de demolição recusaram-se a cumprir a tarefa?
A resposta à primeira pergunta é sim. A prefeitura sabia que milicianos construíam prédios, lucravam com a venda dos apartamentos e lucravam com a cobrança de taxas de proteção aos seus ocupantes. A resposta à segunda pergunta também é sim. Ele tentou interditar, mas não conseguiu.
A resposta às perguntas seguintes ficou faltando. Nem o prefeito, nem a justiça, muito menos os compradores e moradores da área querem se arriscar ao revide dos milicianos. Eles mandam ali. Eles mandam em outras áreas da cidade. O Rio virou “uma grande “esculhambação”, como já disse Crivella. Uma cidade sem lei.
Ou para ser preciso: uma cidade onde impera a lei dos milicianos, de um lado, e a lei do tráfico, do outro. Milicianos e traficantes são bandidos e se enfrentam para ver quem manda mais e em mais gente. Quando não se enfrentam, se associam. A intervenção federal do ano passado na segurança pública de pouco ou nada adiantou.
Os cariocas são bons de gogó e muito criativos. Sabem cantar as belezas do Rio e sabem protestar quando lhes convém. Dá gosto ver. Mas há muito tempo que são ruins de voto para vereador, prefeito, deputado, senador e governador. Que Estado tem tantos políticos outrora graduados gravemente encrencados com a justiça?
Somente os cariocas darão ou não um jeito no seu Estado. Somos todos cariocas – como seríamos mineiros, paulistas, gaúchos – quando ocorrem tragédias do porte das últimas que assolaram o Rio. Inclua-se entre elas a que reduziu a cinzas o Museu Nacional. Mas as tragédias só voltam a ser lembradas quando outras se sucedem.
Só pelo voto a realidade do Rio poderá ser transformada, e isso é com os cariocas.
Míriam Leitão: Inúmeras ideias sem números
Governo apresenta várias ideias para a reforma tributária, mas não mostra detalhes e números que comprovem a sua viabilidade
Para acabar com a contribuição previdenciária das empresas, o governo teria que saber onde conseguir em torno de R$ 250 bilhões. A reforma tributária que a equipe econômica está formulando tem boas ideias, algumas não são novas, mas ela contém o que o presidente Jair Bolsonaro negou durante toda a campanha, e até na transição, uma nova CPMF. A novidade estratégica é separar em fases a unificação dos impostos. Primeiro, unir alguns tributos federais. E só depois mexer com os impostos estaduais e municipais. A proposta que o governo defende de tirar a tributação sobre o trabalho é ótima, desde que seja exequível.
O ministro Paulo Guedes, em palestra em Nova York, e o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, entraram em alguns detalhes da proposta que ainda não foi apresentada ao Congresso. Segundo Cintra, seriam unificados PIS, Cofins, IPI, uma parte do IOF e talvez a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Em NY, Guedes disse que são todos a mesma coisa. Falta ainda mostrar os números.
Guedes tem falado, sem entrar em detalhes, em algo que foi repetido por Marcos Cintra: a retirada da tributação sobre a folha de salários. Segundo o ministro, essa contribuição é arma de destruição em massa de emprego. Cintra falou que a folha seria desonerada de forma permanente e para todos os setores. Isso é música para os ouvidos dos empresários. O problema é que será necessário outro imposto que arrecade bastante para financiar a Previdência. No ano passado o governo recolheu R$ 390 bilhões dos empregados e empregadores. Só a parte patronal deve ser pelo menos R$ 250 bilhões. No governo Dilma, houve uma desoneração de alguns setores, que deixaram de pagar contribuição previdenciária sobre a folha e passaram a recolher um percentual sobre o faturamento. Isso deu errado, elevou o rombo das contas públicas e, como se sabe, o governo Temer teve que iniciar o processo de reoneração.
O ministro Paulo Guedes tem razão quando critica a tributação que recai sobre a empresa quando ela cria empregos. Num país com 13 milhões de desempregados, mais cinco milhões em desalento, e com 37 milhões de trabalhadores informais, é óbvio que essa forma de financiar a Previdência está errada. Além disso, o mundo do emprego está mudando rapidamente, com relações de trabalho completamente diferentes das que se via no passado, quando foi montada essa forma de custear as aposentadorias e pensões. Mas o nosso grande problema é o rombo da Previdência e por isso é preciso saber o que pôr no lugar. O governo está dizendo que pretende substituir por um tributo que incida sobre todos os meios de pagamento, ou seja, uma grande CPMF. Exatamente o que Jair Bolsonaro tanto negou quando candidato e depois de eleito.
Quando anuncia reformas ainda não formuladas, o Ministério da Economia pode acabar tirando o foco do que tem que aprovar agora, que é a reforma da Previdência. Mas a estratégia que eles querem seguir é essa mesma. Informar que no futuro breve haverá pautas mais interessantes e palatáveis do que a Previdência, como uma forma de estimular a aprovação mais rápida. É por isso que Guedes sempre pergunta, quando fala aos políticos ou sobre eles, quanto tempo eles querem ficar discutindo uma pauta difícil como a da Previdência.
Uma ideia interessante é deixar para depois aquilo que travou todas as propostas de unificação de impostos, apresentadas até agora, para a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Nos projetos derrotados, eram incluídos no mesmo bolo o ICMS e o ISS. Desta vez, o governo diz que um novo imposto será criado sobre bens e serviços, como resultado da unificação desses tributos. Mas os estados e municípios é que terão que decidir quando e de que maneira fazer. A unificação de alguns tributos federais está ao alcance do governo propor, mas a junção de fontes de receitas de outros entes da federação só pode ser feita com a concordância de todos eles.
O governo está querendo fazer tudo isso e ainda reduzir a carga tributária em quase quatro pontos percentuais do PIB e aumentar as transferências para estados e municípios. Antes, é preciso apresentar muitas contas para ver se as propostas ficam de pé
De: Gabeira Para: Bolsonaro
Por Morris Kachani, de O Estado de S. Paulo
Com a vivência de quem já participou do sequestro de um embaixador americano, foi preso e torturado, passou 10 anos no exílio, revolucionou os costumes vestindo uma icônica tanga rosa na praia de Ipanema em 1980, primeiro ano da abertura após a anistia, fundou o Partido Verde, elegeu-se deputado, rompeu com o PT, abandonou a carreira política e hoje apresenta um belo programa de reportagens documentais na GloboNews, Fernando Gabeira oferece sua visão 360 graus sobre os primeiros 100 dias do governo.
Eugênio Bucci: A mentira na política e o ideário fascista
Ou a sociedade civil se levanta ou as piadas de mau gosto ganharão a fisionomia do horror
Antes de tratar da mentira devo dissipar eventuais impressões de que alguém aqui vá falar como dono da “Verdade”. Nem a filosofia detém a propriedade da “Verdade”, que lhe foge como nuvem nas rarefações da metafísica. A ciência também não pontifica sobre a “Verdade”. Uma conclusão científica tem crédito não por ser perfeita ou inabalável, mas por ser falível; só vai vigorar por ser falha e só vai prevalecer até que sua falha seja demonstrada. Confiar na ciência é confiar num método, não numa “Verdade”. Bem sabemos que, por vezes, a ciência se desvia e seus representantes começam a falar como se fossem profetas, mas aí a razão se perde e o discurso da ciência vira um dispositivo de poder para interditar o pensamento. É a treva.
De sua parte, a política, também ela, já se deu conta de que não tem como apresentar respostas para a questão da “Verdade”. Quando tentou, a história não terminou bem. Os iluministas do século 18 prometiam que a opinião pública faria emergir a “Verdade”, que brotaria dos subterrâneos da fome. Depois deles, na Rússia czarista do início do século 20, os bolcheviques vieram com um jornalzinho chamado Pravda (nada menos que “a verdade”, em russo). Deu no que deu. Os iluministas perderam a cabeça. Os bolcheviques, a alma. De minha parte, portanto, não sou candidato a ser dono de nenhuma “Verdade” grandiosa. Nem dono, nem inquilino.
Feito o preâmbulo obrigatório, vamos ao que interessa: mesmo sem saber o que é a “Verdade”, cada um de nós sabe muito bem apontar a mentira na política. Não precisamos da ajuda de filósofos ou de cientistas nesse campo. A natureza e a cultura já nos deram as faculdades e as habilidades necessárias para identificar os fatos objetivos. Sabemos dizer se é noite ou se é dia, sabemos comprovar se faz frio ou calor e, coletivamente, aferimos se há crianças sem escolas, se faltam remédios em hospitais e se homens e mulheres não encontram empregos. Aqui não falamos mais de uma “Verdade” celestial e perpétua, mas da simples e comezinha “verdade dos fatos”, ou a verdade factual. Trata-se de uma verdade “menor” (conforme nos ensina Hannah Arendt), mas, mesmo “menor”, faz a maior diferença.
Por sabermos o que são fatos objetivos, sabemos apontar a indústria da mentira. Sabemos que é mentirosa essa conversa de que o nazismo é de esquerda. Sabemos que mente quem diz que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado e que no IBGE se usam metodologias fajutas. Acima disso, sabemos que todas essas mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram a público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo (a palavra é chata, mas não há outra).
Os indícios estão postos. Estão aí os discursos que tentam inventar um passado de glórias contra inimigos inexistentes. Estão aí as narrativas heroicas que enaltecem a banda mais animalesca da ditadura militar, aquela que torturava adolescentes, matava opositores e censurava as artes e a imprensa (este jornal, inclusive). Aí está o ódio explícito aos jornalistas disseminado sob o patrocínio do Palácio do Planalto. Estão aí as campanhas de moralização violenta dos costumes, que elegem o universo masculino como ideal de mando e elogiam a docilidade feminina como selo de obediência. (Na Itália de Mussolini o homem era instado a ser “marido, pai e soldado”.)
Está aí a militarização dos signos da República – ou a estetização do Estado pelo figurino da caserna. Está aí, declarada, a meta de transformar as escolas em extensão dos quartéis e de reescrever a história da ditadura nos livros escolares. Está aí a vinculação orgânica entre gangues (ou milícias) e os propagandistas do bolsonarismo: o palavreado, a indumentária e o gestual furibundo dos milicianos pautam o estilo meio pistoleiro dos “influenciadores digitais” da direita inculta. Está aí o desprezo bonapartista com que o chefe do Executivo trata o Parlamento. Estão aí os insultos difusos contra o Judiciário.
Está aí a sujeição da política externa a slogans fundamentalistas que atropelam o interesse nacional. Está aí a vilanização da política a pretexto de combater o “crime organizado”. Está aí um Poder que se atribui o monopólio sobre os símbolos nacionais, que se julga sinônimo da nação e banca o arauto da “Verdade”.
Tudo isso é impostura. Tudo isso é fascismo canastrão, requentado, que seria paródico se não fosse letal. A usina de mentiras controlada pelos governistas planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem. As armas de fogo são os novos amuletos da virilidade que espanca mulheres e homossexuais. Socialistas, artistas, gays, professores e intelectuais são os inimigos da pátria, da família e de Deus.
Por fim, é mentira que o poder de turno reúna condições para promover “reformas” que atendam ao bem comum. Esse governo não é um mal necessário para promover “limpezas ideológicas” ou “saneamentos” da máquina pública – é apenas a necessidade do mal.
Quando vamos entender? Em política, nenhum fim justifica nenhum meio. Ao contrário, os meios determinam os fins. Nada de virtuoso virá de um governante que ofende a história da humanidade e não guarda respeito pela ordem que lhe conferiu o mandato: ao bajular a ditadura extinta, enxovalha o juramento que fez de “manter, defender e cumprir a Constituição”. Ou a sociedade civil se levanta ou o que hoje vem sendo engolido como piadas de mau gosto (há quem dê risada) ganhará a fisionomia do horror. Lamento, mas são os fatos.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
El País: Cem dias de um vice com agenda própria
O EL PAÍS analisou os compromissos públicos de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão nos três primeiros meses de Governo e encontrou a dedicação recente do presidente dos caciques partidários e o aceno de Hamilton Mourão ao PIB e à diplomacia
Nos cem primeiros dias de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro dedicou-se a encontros com sua equipe (ministros, assessores, dirigentes de estatais) e com políticos e caciques partidários —estes últimos ganharam espaço especialmente depois de o Planalto ser cobrado a atuar na negociação com o Congresso. Enquanto isso, Hamilton Mourão se destacou por receber empresários, presidentes de entidades da sociedade civil, diplomatas e a imprensa – as frequentes declarações do general da reserva aos jornalistas moldaram nestes três meses o perfil de um vice nada decorativo e sem constrangimentos em se firmar como um contraponto ao chefe. As ênfases da atuação das duas maiores autoridades do Poder Executivo ficam evidentes ao se analisar os dados que constam de suas agendas públicas.
No repasse do dia a dia da dupla de militares da reserva com assento no Palácio do Planalto, a mudança de comportamento do presidente é eloquente: Bolsonaro criou tempo para receber os caciques partidários, tendo que modular seu discurso contra a "velha política" e a ideia de que seu Governo era capaz de negociar por meio de "eixos temáticos" com o Parlamento, e não com as legendas. Na lista do vice, uma maior diversidade nos compromissos, com um aceno ao PIB e à diplomacia. Chama atenção as pontes de Mourão para além do bolsonarismo: ele já recebeu representantes da oposição, como governadores do PT e do PCdoB, senador da REDE e dirigentes da Central Única dos Trabalhadores. Só com a CUT, foram dois encontros para debater a reforma da Previdência.
Entre 1º de janeiro e 10 de abril, quando se completaram os 100 dias, Bolsonaro esteve com 193 vezes com ministros e dirigentes de estatais, 79 com deputados e senadores, além de 12 com dirigentes partidários. Enquanto o presidente esteve em 25 encontros com empresários e investidores, Mourão foi a 62, entre eles duas vezes com dirigentes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), uma com o Banco Mundial e outras com petroleiras, instituições financeiras e mineradoras. Até por conta das atividades diferentes que desenvolve e pelas declarações que tem feito, na visita que fez aos Estados Unidos nesta semana, o vice foi apresentado como uma espécie de antagonista de Bolsonaro, mas que acabava dando previsibilidade ao seu Governo. Algo que, de pronto, refutou. “Eu sou complementar a ele”. O mesmo já havia dito ao EL PAÍS, em uma entrevista publicada em fevereiro.
Aproximação com o Congresso e espaço para os filhos
O desenrolar das semanas fez com que Bolsonaro reavaliasse ao menos duas de suas estratégias, a da articulação política e a de comunicação. Após ser criticado por não ter se empenhado no andamento de sua reforma da Previdência, passou a receber mais parlamentares e representantes de partidos. Nas últimas semanas, reuniu-se com 12 presidentes e dirigentes de legendas, com o objetivo de pedir o empenho delas no projeto que é a espinha dorsal de seus planos econômicos. “Ele se rendeu à velha política. Notou que esse discurso de novo, sem agir, não vale nada. Só valia para a eleição”, analisou o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília.
Com relação à comunicação, o presidente passou usar uma estratégia dupla: abriu espaço a jornalistas dos grandes veículos, ainda que nas redes sociais incentive os ataques aos meios de comunicação. Promoveu ao menos três encontros com jornalistas pré-selecionados e intensificou sua agenda de entrevistas exclusivas. Sempre que faz uma viagem internacional, fala com alguma emissora ou jornal local. Isso ocorreu nos Estados Unidos, em Israel e no Chile.
Uma comparação com a agenda de Mourão mostra que o vice é muito mais próximo à imprensa. Nesse início de Governo ele já concedeu 46 entrevistas a veículos nacionais e internacionais. Enquanto que o presidente deu apenas dez, conforme os dados oficiais. Esses dados, contudo, estão subestimados. Nas informações divulgadas pelo Planalto, raramente constam as entrevistas do presidente. Três exemplos: na viagem a Suíça, em janeiro, o presidente concedeu entrevista à Record TV que não foi contabilizada. O mesmo ocorreu em março, quando falou para a Band e nesta semana, quando foi entrevistado pela rádio Jovem Pan. O vice-presidente, por sua vez, detalha cada conversa que tem, citando o nome dos meios de comunicação e dos entrevistadores.
Para o professor Fleischer, a comparação entre os dois políticos mostra que Mourão tem “luz própria” e acaba fazendo parte de um grupo de militares responsável por indiretamente “tutelar” o presidente. Ele cita dois exemplos. Em fevereiro, o vice decidiu de última hora viajar a Bogotá, na Colômbia, para participar do Grupo de Lima e deixar claro que o Brasil era contrário a uma intervenção militar na Venezuela com o objetivo de depor o regime de Nicolás Maduro. “O ministro Ernesto Araújo [Relações Exteriores] estava pronto para apoiar a intervenção. Mas o Mourão viajou para fazer diplomacia”, diz o cientista político. O outro exemplo foi a viagem do vice aos Estados Unidos, onde ele se participou de encontros mais diversificados do que Bolsonaro e se encontrou com representantes da comunidade brasileira em Boston. “Parece que ele viajou aos Estados Unidos para limpar as sujeiras que Bolsonaro deixou por lá. Queria melhorar a imagem do país”, afirmou.
Os números não representam a totalidade das rotinas de Bolsonaro e Mourão. As inconsistências nas agendas, algo que em países como os EUA poderiam ser consideradas deslizes legais, ocorrem com maior frequência que se imagina. No caso da de Mourão, por exemplo, há menos encontros com diplomatas do que realmente ocorreram. Um deles que foi consultado pela reportagem disse que esteve com o vice-presidente “quatro ou cinco” ocasiões. Mas nos registros oficiais seu nome aparece duas vezes. Já na de Bolsonaro, nem todos os encontros que têm com seus filhos que são políticos aparecem nos dados oficiais. Conforme o levantamento, o presidente se reuniu seis vezes com o senador Flávio, seis com o vereador pelo Rio de Janeiro Carlos, apontado como o estrategista de comunicação do pai, e duas com o deputado federal Eduardo.
Ricardo Noblat: Cem dias jogados no lixo
Bolsonaro x Bolsonaro
E no centésimo dia do seu governo, por mais que possa dizer o contrário, o presidente Jair Bolsonaro pouco tem a comemorar.
Se até aqui há algo de original neste governo é o fato de que dispensa oposição. Ele detém o monopólio da oposição.
A oposição conhecida como tal ainda padece da surra que levou nas eleições do ano passado e se ocupa em lamber suas feridas.
O espaço reservado a ela por enquanto foi totalmente ocupado pelo governo. Ele é seu principal adversário. E à sua cabeça, Bolsonaro.
O ex-presidente Fernando Henrique notabilizou-se por desinflar as crises que batiam à porta do seu gabinete. Lula, também.
A exemplo de Dilma Rousseff, mas talvez muito mais do que ela, Bolsonaro faz justamente o contrário. Infla as crises. Ele é a crise.
Dois ministros foram decapitados, quatro secretários-gerais de ministérios e dois presidentes da Agência de Promoção das Exportações.
O novo ministro da Educação tomou posse dizendo que governará para todos. Em seguida, disse que demitirá quem pisar fora da linha.
Saiu da Educação um discípulo do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, o guru do clã Bolsonaro. Entrou outro.
Segue o governo dividido em três grupos: o dos militares, o ideológico de extrema direita, e o dos técnicos.
Os militares tentam apagar os incêndios provocados pelo capitão e sua turma ideologizada que nega ser ideológica.
Os técnicos tentam trabalhar – e à falta de um projeto verdadeiramente de governo, orientam-se pelo próprio faro.
A política externa foi entregue aos cuidados de um ministro que não se envergonha de dizer que é trumpista. É também incompetente.
O presidente da República mais viaja do que governa e dá a impressão de que trabalha pouco, e sem gosto.
O Congresso aprovará a reforma da Previdência. Mas não a reforma dos sonhos do ministro Paulo Guedes. Longe disso.
A maioria dos políticos pensa assim: se Bolsonaro os trata mal quando mais precisa deles, imagine depois se deixar de precisar?
Portanto, nada de lhe dar o que pede. Bolsonaro deve ser alimentado com pouca coisa e mantido sob rédea curta.
Se a receita serve para a reforma, servirá também para o pacote de medidas contra o crime do ministro Sérgio Moro, da Justiça.
A má vontade com o que Moro pede será maior porque Moro é Moro. Ninguém mais do que ele demonizou a política.
A não ser que mude de ideia, Bolsonaro celebrará seus 100 dias de governo com o anúncio do 13º salário para o Bolsa Família.
Para quem diz que programas sociais não tiram ninguém da miséria, o anúncio só prova que Bolsonaro não sabe o que fala.
Um presidente agastado
O desabafo do capitão
E no 99º dia desde que subiu pela primeira vez a rampa do Palácio do Planalto, o capitão da reserva Jair Messias Bolsonaro recebeu em seu gabinete a visita dos deputados Paulinho da Força (SP), presidente do Solidariedade, e Augusto Coutinho, líder do partido na Câmara. Em pauta, a reforma da Previdência Social.
“Bom dia, presidente, onde devo me sentar?” – perguntou Paulinho à chegada. “Desde que não seja em meu colo, pode sentar onde quiser”, respondeu Bolsonaro com o sorriso largo de sempre. Foi o que bastou para ditar o ritmo descontraído da conversa, testemunhada pelo ministro Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil.
Bolsonaro alternou momentos de bom humor com outros de sonolência, segundo Coutinho. E sempre que os dois deputados faziam críticas ao projeto da reforma despachado pelo governo ao Congresso, Bolsonaro se apressava em concordar com eles. “É, vamos dar um jeito nisso”. Ou: “Isso dá para mexer, sim”.
Concordou, por exemplo, que daria para tirar do projeto a parte que trata da reforma da Previdência de Estados e municípios. Assim como outros pontos já criticados pelos políticos. A certa altura do encontro, Bolsonaro fez um desabafo que causou forte impacto nos dois deputados:
– Sabe, Paulinho, eu já poderia estar aposentado, em casa, tomando uma caipirinha… Mas estou aqui nesta porra…
E sorriu, para variar.
Um afiado observador da política brasileira, que recentemente esteve com Bolsonaro no Palácio do Planalto, saiu de lá com a impressão que nem mesmo João Batista de Oliveira Figueiredo, o último general-presidente da ditadura militar de 64, pareceu mais agastado com as funções do cargo do que o capitão.