governo bolsonaro
William Waack: Mais do mesmo
O teatro da política no Brasil sugere que pouca coisa vai mudar
É um dos movimentos mais “naturais” na política alguém ocupar o lugar que um outro deixou. No fundo, é o que está acontecendo na mais recente manifestação de queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o Legislativo em torno da manutenção ou não do veto do chefe do Executivo a itens da peça orçamentária votada pelos parlamentares.
Traduzido: o que está em disputa é quem manda quanto no Orçamento. E, se Jair não percebeu antes, nesse ano e pouco de seu mandato, o Legislativo encurtou bastante a capacidade do Executivo de dispor da alocação de verbas por meio do Orçamento – além de limitar consideravelmente a utilização de medidas provisórias.
Trata-se de pura e simples redução de poder do presidente. Que se pode aplaudir ou detestar, mas não ignorar que esse fato resulta em boa parte do que se aponta há meses: a incapacidade ou o desinteresse (ou ambos) do governo em montar no Legislativo uma tropa bem coordenada. Bolsonaro não se livrou da regra do jogo do sistema de governo brasileiro, que opõe a um chefe de Executivo forte um Legislativo cheio e cada vez mais cheio de prerrogativas.
Sem ter nunca contado com uma articulação política eficaz, Bolsonaro agora escalou militares de cabeça bem organizada e acostumados a método e disciplina (além de hierarquia) para cuidar de acordos políticos que o próprio presidente propõe, depois se arrepende. É o caso nesta mais recente disputa: Bolsonaro achou que podia deixar o Congresso derrubar seu veto (ou seja, entregaria mais uns R$ 30 bilhões do Orçamento aos parlamentares), num grande “acordo” do qual foi convencido a se arrepender.
O que neste momento o move a peitar o Congresso é a exasperação da equipe econômica e mais o general Heleno, cansados das chantagens da política e das dificuldades para seguir adiante com uma ampla ação de reformas que dependem do Legislativo. O ministro Paulo Guedes está com sangue nos olhos, e promete não liberar dinheiro para deputados se eles seguirem no propósito de tolher o Executivo em questões orçamentárias. Para efeitos práticos, colocou Bolsonaro diante de “ou eles ou eu”.
Ocorre que a efervescência do teatro político brasileiro “estabilizou-se” e não surpreende nem comove mais ninguém. Virou normal. Um exemplo: por vários motivos, sendo o principal deles obter vantagens eleitoreiras das mais imediatas, o presidente abriu conflito com os governadores quando depende em boa medida deles para a grande articulação política de um projeto de enorme peso, que é o da reforma tributária. Para que mais uma briga, boceja-se.
E a cafajestice, injustificável sob qualquer ponto de vista, proferida contra uma profissional da imprensa (frente à qual obviamente ele tem o direito de manifestar todas as queixas, críticas e reclamações que quiser), reafirma que o estilo é o homem, e não vai mudar. Não está no seu horizonte ser chefe da Nação. É uma das sólidas constantes no nosso teatro político (a outra é a força do lavajatismo), e esse tipo de atuação será considerado a causa do seu êxito ou fracasso, dependendo fundamentalmente de como a economia se comportar.
Neste contexto vale a pena conferir como plateias de investidores estrangeiros estão apreciando nosso espetáculo. Tal como reportado por diversas instituições financeiras, visto de fora, o Brasil se tornou monótono. Não se consegue discernir, depois da aprovação da reforma da Previdência, qual é, afinal, o ponto prioritário para o governo. Considera-se que o País (em contraste com alguns emergentes, como a Argentina) está no “caminho certo”, mas não se disfarça certo ceticismo quanto à capacidade de “entrega” no necessário ritmo mais acelerado por parte da equipe econômica.
Diante de um país que teria tanto para oferecer, e para crescer, e para resolver, os estrangeiros estão dizendo que estamos nos esforçando para sermos um pouco mais do mesmo.
Monica De Bolle: Alegoria sem adornos
Analisando os dados da Latinobarômetro em anos diversos, constata-se que quando perguntados como avaliam a situação econômica do País em relação ao passado recente, mais de 80% dos entrevistados dizem que está pior
Há poucos dias do Carnaval e pensando em alegorias e desfiles mostrando o que há de melhor e pior no Brasil, retomo tema abordado nesse espaço há 4 meses. Trata-se da alegoria do túnel formulada por Albert O. Hirschman nos anos 70 para descrever as tensões sociais provenientes dos processos de desenvolvimento e mudanças na mobilidade social. Convido os leitores interessados a ler a coluna “Dentro do túnel”, publicada em 20 de novembro de 2019. Nele discuti como fileiras de engarrafamentos dentro de um túnel em que algumas se moviam mais rapidamente do que outras – a alegoria de Hirschman para a mobilidade social e sua tensões – davam uma boa dimensão do que acontece nas sociedades quando parte da população progride, enquanto parte permanece estagnada.
O efeito túnel prevê, entre outras coisas, que a população tende ao otimismo quando percebe o progresso de algum segmento da sociedade, ainda que as condições econômicas em geral não sejam favoráveis – ou percebidas como tal. Tal efeito é mensurável em pesquisas de opinião. Analisando os dados da Latinobarômetro em anos diversos, e em 2018 especialmente, constata-se que quando perguntados como avaliam a situação econômica do País em relação ao passado recente, mais de 80% dos entrevistados dizem que está pior. Contudo, quase 60% afirmam que sua situação econômica pessoal e familiar haverá de melhorar. Embora esses dados se refiram a 2018, em todos os anos é possível observar algo semelhante. Não se trata de um comportamento irracional, mas de um reflexo da previsão de Hirschman de que se alguma parcela da população está se beneficiando mais rapidamente do que outras, em algum momento todos haverão de colher os frutos dessa melhoria. Ou seja, os atores econômicos – trabalhadores, empresários, classe média, classe alta, ou os mais pobres – fazem julgamentos a respeito de sua situação pessoal de modo relativo, não absoluto. Essa simples observação é fonte de enormes tensões sociais esteja o País crescendo muito ou relativamente pouco.
Tomemos os anos Lula como exemplo. Sem querer desmerecer de forma alguma a corrupção espantosa com a qual seu partido, e outras agremiações partidárias se envolveram durante os seus governos, os mandatos consecutivos de Lula tentaram atender dois anseios em aparente contradição: agradar os empresários por meio do crédito farto e barato, além das práticas clientelistas de praxe e da corrupção em nome dos “amigos”, e dar aos trabalhadores e às pessoas de renda baixa acesso a diversos bens e serviços dos quais antes não podiam compartilhar. Ao tentar conciliar os desejos desses dois segmentos da sociedade em constante tensão, o Estado teve crescentemente de adaptar suas políticas desaguando na farra do crédito público e na gastança que marcaram os anos Dilma – Lula teve a sorte de mascarar políticas inconciliáveis em tese devido ao ambiente externo ineditamente favorável. A corrupção, que muitos ainda entendem como um projeto de poder – não que não o tenha sido – foi também a forma encontrada de agradar gregos e troianos mantendo a ilusão de que todos se moviam dentro do túnel brasileiro.
Velocidade
Contudo, os movimentos se davam em velocidades diferentes, sobretudo nos anos Dilma quando a bonança externa acabou. Ressentimentos se agravaram e tensões começaram a borbulhar, como vimos em 2013. O desfecho fica para a interpretação de cada um. No entanto, alguns fatos são inescapáveis: a política da gastança para agradar empresários e trabalhadores desaguou numa imensa crise fiscal e no desmonte de alguns pilares básicos da economia. Abalado também pela corrupção generalizada, o País não resistiu e caiu em profunda recessão entre 2015 e 2016. Anos e mais anos tentando manter todos em movimento dentro do túnel sem dar a devida atenção às suas saídas – a melhoria da educação, da infraestrutura do País, entre outras medidas – foram responsáveis pela perda de dinamismo da economia e pela situação atual, em que difícil é achar um argumento razoável para defender a tese de que o crescimento brasileiro vai pegar no tranco, é só esperar as reformas.
As tensões descritas e o profundo descontentamento também ajudam a entender esse Brasil do ódio que vem surgindo há algum tempo. Há ressentimentos velados e explícitos contra aqueles que conquistaram alguns ganhos sociais – sim, penso na fala de Paulo Guedes sobre as empregadas domésticas. Na mesma linha, não existe um senso de urgência suficiente, seja no governo ou no empresariado que o apoia de forma mais fervorosa – não falo de todos os empresários, evidentemente – de que o Brasil não crescerá sem que haja uma retomada da mobilidade social que testemunhamos recentemente. Essa é a alegoria sem adornos, as alas que se movimentam de modo quase catatônico pelo túnel escuro em que se transformou o Brasil.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Revista Política Democrática || José Luis Oreiro: Por que o crescimento da economia brasileira não decola?
Produção da indústria brasileira recuou 1,1% em 2019 na comparação com 2018, segundo informações divulgadas na primeira semana de fevereiro deste ano pelo IBGE. Os dados jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020
Entre 1980 e 2014, a economia brasileira cresceu a um ritmo médio de 2,81% a.a, segundo dados do IPEADATA. A grande recessão, iniciada no segundo semestre de 2014, produziu queda acumulada de 8,3% do PIB até o último trimestre de 2016. Formalmente a economia brasileira saiu da recessão no início de 2017, ano que apresentou crescimento do PIB de 1,32%, valor 53% inferior à tendência de longo-prazo para o período 1980-2014. Em 2018, o crescimento foi de 1,31%, repetindo assim o desempenho de 2017 e ficando novamente abaixo da tendência de longo-prazo.
Os dados divulgados pelo IBGE em dezembro sobre o comportamento do PIB no terceiro trimestre do ano passado deram ensejo a um aumento (temporário) do otimismo entre os analistas econômicos, não só sobre a performance da economia em 2019. Eles também alimentaram uma narrativa de que, em 2020, o crescimento da economia brasileira iria finalmente decolar, podendo situar-se acima de 2,5%. Em artigo que publiquei no jornal O Estado de São Paulo (3/12/2019), chamei atenção para o fato de que o crescimento observado no terceiro trimestre do ano – de 0,6% na comparação com o período imediatamente anterior – havia sido puxado, pelo lado da oferta, pela agropecuária e pela indústria extrativa. Pelo lado da demanda, as exportações haviam apresentado queda expressiva de 2,8%, ao passo que as importações apresentaram crescimento de 2,9%, sinalizando clara tendência de piora das contas externas brasileiras no médio prazo. Argumentei que a estagnação da produção da indústria de transformação, fonte dos retornos crescentes de escala, absolutamente indispensáveis para a sustentabilidade do crescimento econômico no longo prazo, combinada com a deterioração do saldo comercial e, consequentemente, com o aumento do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, atualmente em torno de 3% do PIB, sinaliza um retorno da general restrição externa[1], tornando insustentável qualquer aceleração mais forte do crescimento da economia brasileira no médio prazo.
Os dados divulgados na primeira semana de fevereiro deste ano jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020. Com efeito, o IBGE divulgou que a produção da indústria brasileira recuou 1,1% em 2019 na comparação com 2018, interrompendo assim o movimento de tímida recuperação da produção industrial ocorrido em 2017 e 2018. Dados divulgados pelo IPEA mostram que a formação bruta de capital fixo recuou 2,7% no quarto trimestre, na comparação com o período imediatamente anterior. Diante dos dados recentemente divulgados, os analistas do mercado financeiro já começaram a reduzir suas previsões de crescimento para 2020, as quais já se encontram bem abaixo de 2,5%, com algumas até mesmo abaixo de 2%. A esse quadro nada animador deve-se somar a incerteza quanto aos efeitos da epidemia de coronavírus sobre o crescimento da China (algumas análises projetam redução do crescimento da China para 4% em 2020 e redução de 33% no ritmo de crescimento na comparação com 2019).
Nesse contexto, é possível que a economia brasileira apresente crescimento inferior a 1,5% em 2020, completando assim quatro anos de crescimento medíocre após o fim da grande recessão. Dessa forma, não há como escapar da conclusão de que a grande recessão de 2014 a 2016 produziu redução da tendência de crescimento da economia brasileira. A questão relevante é saber qual o motivo.
Na minha visão, a redução do potencial de crescimento de longo prazo é um fenômeno que vem ocorrendo desde meados da década passada, em função da desindustrialização crescente da economia brasileira; fenômeno esse que foi tardiamente percebido pelas administrações petistas e enfrentado de forma tíbia e inconsistente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. A crise de 2014-2016 piorou esse quadro, pois (i) fez com que as empresas brasileiras suspendessem seus planos de ampliação e modernização da capacidade produtiva, o que aumentou a defasagem tecnológica da indústria brasileira; e (ii) propiciou a adoção de uma agenda de consolidação fiscal baseada na contração do investimento público e das operações de crédito do BNDES, amplificando assim os efeitos da queda do investimento privado em 2014 sobre a demanda agregada, com efeitos negativos também no lado da oferta da economia. Isso em função dos efeitos de transbordamento positivos do investimento público sobre a rentabilidade das empresas do setor privado.
* Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq e Pesquisador Associado do Centro de Estudos do Novo-Desenvolvimentismo da FGV-SP. E-mail: joreiro@unb.br.
[1] Analogia ao General inverno. Trata-se do papel que a restrição externa tem historicamente no Brasil de estrangular o crescimento econômico e desestabilizar o governo (Nota do autor).
‘Folia de Reis fortalece laços de solidariedade’, afirma Márcia Gomes
Especialista em patrimônio imaterial mostra importância da prática cultural, em artigo publicado na revista da FAP
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A Folia de Reis é uma forma de expressar a fé, fazer pedidos sagrados, cumprir a missão, abençoar a vida e de se divertir, digna e respeitosamente, de acordo com a especialista em patrimônio imaterial Márcia Gomes. Em artigo produzido para a revista Política Democrática online, ela faz uma análise profunda da manifestação cultural.
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A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da entidade. Márcia lembra que a prática da Folia de Reis foi trazida da Europa e incorporada à cultura brasileira. “Proporciona convergência de grupo e fortalecimento de laços de solidariedade, uma vez que a simbologia que carrega conduz a uma ‘cristianidade’ e vida de luta em comum”, diz a especialista.
Essa prática, de acordo com Márcia, tem a capacidade de fortalecer os vínculos, a memória e identidade de grupo, por meio da “passada” da folia de casa em casa – o “giro”, momento do auge em que o simbólico se junta à materialidade. “Ela é folclórica sob a ótica do pesquisador ou do admirador que a vislumbra da assistência”, afirma ela.
Segundo a autora do artigo publicado na revista Política Democrática online, os folieiros podem ter a consciência de que aquilo é folclórico, mas manifestam como um ato de sua vida. “É uma diferença sutil, portanto profunda”, acentua Márcia.
“Cantos, danças e estandartes compõem a manifestação. As pessoas envolvidas cantam, dançam e carregam a bandeira da Folia até as casas como forma de devoção aos Santos ou aos Três Reis Magos”, pondera.
Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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Fernando Gabeira: Política em tempos de vírus
Para que resposta a uma epidemia funcione na plenitude, é preciso que democracia ande a pleno vapor
Antes que venha o carnaval, aproveito para especular sobre a política e o coronavírus. Ficou um pouco no ar um debate sobre que tipo de governo consegue lidar melhor com a epidemia.
Os chineses fizeram um hospital em dez dias, e alguns analistas acharam que isso era uma vantagem de um governo autoritário: não precisava de trâmites burocráticos da democracia.
Acontece que a própria democracia tem meios de suprimir sua lentidão quando se trata de uma emergência nacional. Os japoneses, por exemplo, demonstraram rapidez na recuperação do país dos estragos provocados pelo tsunami.
Um outro argumento, em muitos textos ocidentais, afirmava que só um país como a China tinha o poder de isolar 12 milhões de pessoas.
Possivelmente, muitos países falhariam em isolar tantas pessoas. No entanto, a própria China falhou de uma certa forma em Wuhan. Cinco milhões de pessoas deixaram a cidade, segundo o prefeito demissionário, antes que ela fosse isolada.
Um dos fatores que dificultaram Wuhan reconhecer a expansão do vírus era precisamente o medo da burocracia local de comunicar à burocracia nacional um fato tão grave. A tendência é esconder. O medico Li Wenliang, que chamou a atenção para a propagação do coronavírus, foi visitado pela polícia política e forçado a admitir que propagava fake news.
Depois de sua morte, tornou-se um herói popular. Mas o que aconteceu com ele mostra a fragilidade maior dos regimes autoritários ao lidar com esta questão: a falta de transparência.
Há um elo entre transparência e cooperação. O modelo democrático que valoriza a transparência tem melhores condições de atrair a energia popular e avançar com o seu consentimento.
Uma resposta a uma epidemia nunca será perfeita. Entre o viés autoritário e o democrático, continuo achando que o segundo tem mais eficácia.
Mas, para que a resposta funcione na plenitude, é preciso também que a democracia ande a pleno vapor. As autoridades brasileiras, por exemplo, não escondem as grandes tragédias urbanas provocados pela chuva .
No entanto, não assumem suas consequências. Não reconhecem a fragilidade da infraestrutura, não admitem seu longo descaso, muito menos começam a adotar as medidas quase que consensuais entre os que estudam o impacto desses eventos extremos.
Espera-se muito das eleições municipais. Para se desfazer da complicação do tema, diz-se: é um ano de eleição, é preciso escolher bem.
Mas os candidatos pouco podem fazer sem uma compreensão de que o tema transcende ao âmbito municipal. Seria preciso que todas as dimensões do poder se dessem conta. E, é claro, que a própria sociedade se envolvesse na sua autodefesa.
Outro dia vi a história repetida por Bolsonaro sobre a troca de povos, japoneses para cá, brasileiros para lá. O sonho de trocar de povo tem sido recorrente. Na visão onírica, o povo deveria trabalhar e ser disciplinado como os japoneses. E não gastar dinheiro na Disney.
Os dados inquietantes sobre a crise ambiental passam um pouco em branco, como a temperatura de 20 graus na Antártica.
Os acontecimentos na China nos estimulam a buscar saídas para essas armadilhas circulares: o governo sonha com outro povo, o povo sonha com outro governo.
Assim como nas cidades, a resposta transcende à escolha eleitoral. Pede mudanças mais amplas. Na verdade, uma adaptação à nova realidade.
Não pretendo esgotar o tema, muito menos diminuir a importância das eleições. Mas só uma grande transformação cultural dará conta dessas mudanças que alteraram as bases da vida no planeta.
Mesmo sem mitificar a ciência, já no princípio do século, achava que o caminho de uma política adequada dependeria de uma sólida aliança com os cientistas.
Hoje, ao ver um governo que se distancia deliberadamente da ciência, não creio que o obscurantismo triunfou. Ele apenas torna mais difícil uma tarefa que, mesmo ao lado do melhor conhecimento científico, é uma das mais complexas que a imaginação política já enfrentou.
‘Greta ficou maior do que a causa que defende’, critica Sérgio Vellozo Lucas
Em artigo publicado na revista Política Democrática online, psiquiatra diz que boa parte das pessoas age em “efeito manada”
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Tenho as mesmas preocupações que a Greta Thunberg e concordo com boa parte do que ela diz, mas acho que, nesse momento, ela ficou maior do que a causa que defende”. A opinião é do médico psiquiatra Sérgio Vellozo Lucas, em artigo que produziu para a revista Política Democrática online. Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundaçao Astrojildo Pereira), podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.
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De acordo com Sérgio Vellozo, a polarização em torno do nome da adolescente oferece “apenas uma pequena greta” do grande debate. “Há mais pessoas que se alinham ou se opõem automaticamente à figura de Greta do que gente preocupada em discutir em profundidade as questões do meio ambiente”, afirma o psiquiatra.
Em 2019, Greta foi eleita a personalidade do ano pela revista Time. No artigo publicado na revista Política Democrática online, Sérgio Vellozo critica a mobilização em torno da menina. “A maior parte das pessoas que opinam nas redes apenas se comporta como gado atrás da manada, seguindo formadores de opinião que na maioria das vezes passaram menos tempo na escola do que a própria Greta, como ironizou Ricky Gervais, na apresentação do Globo de Ouro deste ano”, disse o autor.
Greta, conforme escreve o psiquiatra, “é mais um elemento a nos dividir em bolhas”. “Não há dúvidas que ela é uma menina incomum, pode até ter o potencial para se tornar uma liderança mundial efetiva, mas, por enquanto, é mais um produto da agenda politicamente correta, somada à passionalidade das redes sociais, que deram a ela uma atenção muito maior do que merecia e uma dimensão maior do que possui”, diz ele, em outro trecho.
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Julianna Sofia: Chama o síndico
Com Guedes fora da casinha, reformas e medidas econômicas correm risco.
As falas destrambelhadas do ministro Paulo Guedes (Economia) parecem traços de uma irritação enrustida pelas dificuldades de levar a cabo seus planos. No grito, na prensa, na declaração estapafúrdia, uma forma de fazer o Palácio do Planalto, o Congresso, a sociedade compreenderem a necessidade premente de efetivar suas propostas.
A reforma administrativa da equipe econômica, depois de arestas aparadas e vários reparos a pedido de Jair Bolsonaro, jaz pronta na mesa do presidente. Nem por isso de lá saiu —graças a pressões das alas política e militar do Planalto e à má vontade presidencial com a mudança considerada impopular. Já estava travada quando o "Posto Ipiranga" decidiu chamar servidores públicos de parasitas. Com a manifestação, quase degringolou, e agora Bolsonaro afirma que, se não houver "marola", será encaminhada na próxima semana.
A impaciência de Guedes para lidar com contrariedades e seus espasmos sincericidas provocam danos. Com o PIB rodando abaixo das expectativas, ninguém precisa de um ministro da Economia fora da casinha a fazer companhia ao núcleo ideológico radical do governo, distribuindo munição gratuita a opositores da agenda reformista.
Enquanto Guedes falava a uma plateia esvaziada barbaridades sobre o câmbio e a "festa danada" de empregadas domésticas na Disney com o real valorizado, o governo não conseguia cumprir um acordo para impedir que o Legislativo abocanhe um naco de R$ 30 bilhões do Orçamento. Sem um gerentão, o Executivo não conseguiu elaborar a tempo um projeto de lei para honrar o acerto.
O resultado de muita parolagem e pouca articulação também põe em risco uma das PECs do trio de propostas do ajuste fiscal, em tramitação no Senado. A equipe de Guedes comeu mosca, e uma manobra de aliados pode fazer com que a medida para extinção de 200 fundos públicos permita um furo de R$ 32 bilhões no teto de gastos.
Com o ministro a cometer asneiras, alguém chama o síndico?
População LGBTI+ se organiza para empoderar minorias diante de ataques de Bolsonaro
Reportagem especial da revista Política Democrática online mostra que alvos de Bolsonaro não se silenciam diante de repressão de presidente
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Integrantes da população LGBTI+ (Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexos e mais) afirmam que as minorias devem se mobilizar contra as diversas formas de preconceito e violência estimuladas pelo governo de Jair Bolsonaro. Eles alertam as minorias para se unirem e se empoderarem, como mostra reportagem especial da 15ª edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). Todos os conteúdos da revista podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.
» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online
O coordenador nacional da Diversidade do Cidadania 23, Eliseu de Oliveira Neto, demonstra preocupação com o que chama de “efeito manada” do governo Bolsonaro, referindo-se à capacidade de grupos carregados de ódio e preconceito, como homofóbicos, machistas, feminicidas e racistas, contaminarem outra parcela da população. “Esses grupos se sentem empoderados, representados, e, dessa forma, acabam convencendo pelo ódio outras pessoas que estavam sem opinião formada, no ‘meio do caminho’ e que poderiam ser conscientizadas de forma pedagógica”, lamenta ele, que já foi vítima de homofobia mais de uma vez.
Assim como Eliseu, a educadora social e mulher trans Rubi Martins do Santos Correa afirma que a população de minorias precisar se unir para não se marginalizar e se oprimir diante das práticas do governo Bolsonaro. “Somos um país de pessoas resistentes. Temos gays em todos os lugares”, acentua. “Temos que empoderar a população LGBTI+ e as outras minorias para ocuparem os espaços na sociedade. O empoderamento é chave para as minorias atuarem como sujeitos de direitos e deveres. Não sei quanto tempo vai levar, mas um dia chegaremos lá”, afirma ela.
A população LGBTI+ reconhece que sempre sofreu violência e teve de se organizar em movimentos político-sociais para terem seus direitos reconhecidos. No entanto, de acordo com Rubi, Bolsonaro “legitima atos violentos contra as minorias”. “Isso dá certa autonomia para as pessoas destilarem os seus preconceitos. Elas se sentem no poder de praticar violência porque até o presidente naturaliza isso”, assevera a educadora social, que também coordena um trabalho junto à população em situação de rua e extrema vulnerabilidade no Distrito Federal.
Como também tem dificuldade de articulação no Congresso, Bolsonaro ocupa o tempo se envolvendo em polêmicas sustentadas em pauta sobre moral e costumes. “É a pauta dos conservadores”, afirma Eliseu. “Bolsonaro é um homofóbico que não tem pudor de colocar as pessoas em risco e de mentir para se manter no poder”, acrescenta ele.
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Demétrio Magnoli: Repórter cometeu o pecado capital de expor fábrica da 'guerra da informação'
Nesse passo, Patrícia Campos Mello mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver
O governo Bolsonaro odeia o jornalismo profissional. No caso da jornalista Patrícia Campos Mello, porém, o caso é visceral. Na campanha de 2018, Bolsonaro declarou uma “guerra” à imprensa, dando a senha para uma enxurrada de calúnias e ameaças à repórter que investigava a máquina eleitoral de difusão de fake news.
Agora, na CPMI das Fake News, Eduardo Bolsonaro apoiou-se nos ombros de um pulha para, num exercício de covardia, atingir sua integridade pessoal. Não é casual: Patrícia cometeu o pecado capital de invadir uma redoma proibida, expondo os contornos da fábrica da “guerra da informação”. Nesse passo, mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver.
Fake news são o complexo de notícias falsas, operações de difamação e campanhas de promoção do ódio que ganhou dimensões inéditas com a universalização da internet. O fenômeno novo é a sofisticação do arsenal empregado na guerra virtual da informação.
No início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizada de fake news.
Os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitária obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidade que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalístico original.
O novo sistema, baseado na elevada rentabilidade da fraude, descortinou o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.
A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégias de Estados, governos, organizações terroristas e supremacistas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalmente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco.
Graças ao Facebook, as forças armadas de Mianmar deflagraram uma eficiente campanha de limpeza étnica contra a minoria rohingya e o governo nacionalista indiano consegue inflamar a xenofobia contra os muçulmanos de Assam.
Perde-se no passado o esforço amador do PT para criar um Pensador Coletivo por meio de núcleos de militantes treinados no que o responsável pelo setor classificou como “guerra de guerrilha da internet”.
Atualmente, no mundo todo, governos e partidos populistas, na direita e na esquerda, empregam aparatos especializados na difusão massiva de fake news. O governo Bolsonaro estabeleceu, com verba pública, dentro do Planalto, um “gabinete do ódio” destinado a coordenar sua “guerra da informação”. No fim, o que está em jogo é o funcionamento da democracia, como explica o jornalista Eugênio Bucci no livro “Existe Democracia sem Verdade Factual?”.
A imprensa também está em perigo, junto com a democracia. Se, no plano dos fatos, verdade e falsidade tornam-se narrativas indistinguíveis, o jornalismo profissional perde seu objeto. Daí, emerge uma nova missão jornalística: pautar as fake news, como se pautam políticas públicas, eleições, debates parlamentares, guerras reais, inundações.
A checagem ritual de notícias falsas, iniciativa útil, é totalmente insuficiente. No campo analítico, trata-se de iluminar os sentidos políticos das campanhas de fake news, evidenciando suas estruturas de linguagem, seus alvos imediatos e suas metas estratégicas. No campo investigativo, é preciso descerrar o véu que cobre as engrenagens de fabricação das fake news, expondo os atores políticos e empresariais envolvidos na guerra contra a verdade. Patrícia engajou-se nisso —e, por isso, virou alvo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Elena Landau: A Desumanização
Este governo teima em separar, desunir e antagonizar
A Desumanização é o título de um lindo livro de Valter Hugo Mãe. Em tempos de discussão sobre gravidez precoce, sua leitura é imperdível. Mostra numa escrita quase poética as consequências cruéis da falta de acolhimento familiar nesses casos. Roubei para usar aqui no seu sentido literal. Cai como uma luva para ilustrar a falta de humanidade deste governo, intolerante aos diferentes dele.
Presidente, filhos, ministros e colaboradores perderam a censura e com ela a cortesia. Pode ser bom que revelem o que realmente pensam, sem disfarces. Mas choca porque estão no comando de políticas públicas para todos os brasileiros, e não apenas seus eleitores. Políticas que deveriam ser desenhadas para integrar, unir, gerar oportunidades a quem não tem.
Essa é a essência do liberalismo. Mas este governo teima em separar, desunir e antagonizar.
Cada vez parecem se sentir mais à vontade para suas impropriedades, e vão subindo o tom. Não é só o conteúdo que ofende, mas a forma, que amplifica a ofensa. Gestos impróprios na porta do Palácio, # com palavrões, xingamentos a seguidores nas redes sociais. A agressividade dos seus apoiadores é estimulada pelo exemplo de cima, transformando a internet em uma praça de guerra.
Não deveria ser surpresa. Afinal, Bolsonaro começou sua campanha na votação do impeachment homenageando Ustra. Nada mais desumano e covarde que a tortura.
Todo dia é um 7 a 1. Compartilham ataque covarde e sexista a uma jornalista. Outra foi mandada de volta para o Japão. Debocham das aparências das mulheres. Aplaudem vídeos nos quais o homossexualismo é apresentado como origem de perversidades e dizem que portadores de HIV pesam no orçamento. Se divertem quando jornalista do “círculo do poder” faz chacota de brasileiro em palestra.
O Goebbels tupiniquim só foi demitido, a contragosto do chefe, porque se sentiu tão à vontade que saiu do armário. Na Fundação Palmares está alguém que acha que a escravidão foi uma bênção para os negros. Um ministro, que nos remete ao personagem Justo Veríssimo, acha que pobre não sabe poupar, destrói o meio ambiente e não pode ir a Miami. Vivem numa bolha. E partilham das mesmas ideias.
Tudo isso é condenável, não porque atrapalha andamento das reformas ou nos faz passar vergonha em fóruns internacionais. A falta de empatia, combinada com uma tendência autoritária, é perigosa.
Os exemplos desses despautérios são muitos. Vou me concentrar na questão da Aids, porque revela não só preconceito, mas total falta de preparo para analisar e implementar políticas públicas
O programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids é reconhecido mundialmente pela sua excelência. Iniciado em meados dos anos 90, permitiu reverter as projeções mais pessimistas do início daquela década.
O plano se baseia em distribuição gratuita de medicamentos e camisinha; testes gratuitos; profilaxia para a pré-exposição de pessoas que se relacionam com infectados. Há muito preconceito nessa área. A testagem é importante para reduzir o risco de transmissão e fundamental para melhorar a qualidade e expectativa de vida do portador. Exames para diabetes e colesterol são feitos com naturalidade, já HIV não faz parte da rotina, mas deveria. A prevenção é a chave.
Quando o coquetel foi descoberto, em 1995, o Brasil e a África do Sul tinham a mesma porcentagem de sua população infectada pelo HIV. Os dois países seguiram estratégias diferentes. Hoje são 10% de sul-africanos, maiores de 15 anos, portadores. Porcentual que aplicado ao Brasil equivaleria a 17 milhões, em lugar dos 800 mil brasileiros infectados hoje. É resultado da distribuição gratuita de medicamentos, que reduzem a carga viral e a transmissão. São milhões de vidas poupadas.
A distribuição de medicamentos custa aos cofres públicos apenas R$ 1,8 bilhão ao ano. Seria importante registrar também as despesas evitadas para tratamento da doença no SUS. A quebra de patentes e o uso de genéricos permitiu a redução sistemática do custo dos medicamentos antirretrovirais, que significa hoje menos de 0,06% dos gastos públicos anuais.
Apesar disso, o presidente Bolsonaro declarou em entrevista que “pessoa com HIV é despesa para todo o Brasil”. Faz dobradinha com o ataque ao jornalista com “cara de homossexual terrível”.
Todo tratamento, de qualquer doença, é despesa, seja pressão alta, diabetes ou sarampo. Com sua forma peculiar de fazer política pública, a declaração foi baseada no relato de uma obstetra amiga. Palpite caseiro. Ao ser cobrado pela imprensa, deu uma banana para os jornalistas. Por todo conjunto de sua obra, parece evidente que o problema do presidente com o HIV não é o custo do tratamento.
Já é lugar comum apontar as impropriedades ditas por este governo. Às vezes, voltam atrás, mas, na maioria dos casos, colocam a responsabilidade na imprensa. As falas são sempre retiradas do contexto. A culpa é sempre dos outros.
Mas as palavras ficam.
* Economista e advogada
Simon Schwartzman: A tentação de Goebbels
Devem nos preocupar os que não se importam com meios para chegar a seus fins políticos
Em 1934 o jovem Luís Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas e mais tarde criador do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels e manda uma carta entusiasmada para o presidente dizendo que o Brasil precisava de algo parecido. “O que mais me impressionou em Berlim”, escreve, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional-socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido...”.
A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o mundo (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil.
Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (...), mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.
“Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países.”
Depois de detalhar as áreas de atividade do ministério, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite, estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”.
Num apêndice há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são dez itens, começando com questões gerais da vida social e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.
Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central e a nova Constituição foi, sobretudo, uma tentativa de conciliação de Vargas com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura, em 1937.
Não é por acaso que essa carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo se encontra. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a esse ministério, em aliança com a Igreja conservadora, administrar o uso do rádio, do cinema, das artes, dos currículos escolares e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico, mobilizando o povo a favor da Nação, tal como entendida pelo governo.
Ao longo dos anos, o ministério fez o que pôde para cumprir esse papel, ao mesmo tempo que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Vargas finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a versão cabocla do ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.
Simões Lopes e Getúlio Vargas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isso mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937.
Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo esse mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz” e o esperado progresso “moral e material”.
É possível que hoje, como nos anos 1930, a grande tentação de Goebbels não seja tanto a ideologia grotesca do nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas, sobretudo, a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo e não se importam com os meios para chegar a seus fins.
É isso que nos deve preocupar mais.
* Simon Schwartzman é sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências
Fernando Luiz Abrucio: O desmonte do serviço público
Visão do governo Bolsonaro sobre a reforma administrativa está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania
A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do país.
Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.
Três elementos gerais podem ser destacados como marcas negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua filhocracia.
A qualidade da gestão pública é outro tema relevante, envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.
Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se, apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa, num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até 1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.
O balanço das características gerais da administração pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.
Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares, Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há desenvolvimento e melhoria da sociedade.
Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos construídos a duras penas.
Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a escolaridade e a expectativa de vida da população.
Parte disso veio de muitos funcionários públicos concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho com diploma.
A democratização completa esse ciclo de transformações da administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus direitos - e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.
Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.
O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da motivação dos funcionários - se o rendimento inicial é próximo do final se reduz a disposição para melhorar - e de “accountability” perante a sociedade.
A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.
Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país. Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta quando se fala do funcionalismo em geral.
A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes, mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da administração pública.
Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do Executivo. Várias dessas posições deveriam ter um comitê para avaliar os méritos dos indicados e processos de certificação que indicariam se aquela pessoa está apta à função. O uso desses mecanismos desfalcaria fortemente muitos dos ministérios do presidente Bolsonaro - em alguns casos, começando pelo próprio ministro.
Reformar a administração pública, ademais, é democratizar o Estado. Decerto que a saúde fiscal constitui um requisito para a boa gestão. Mas o serviço é do e para o público - daí vem a palavra. Sendo assim, as reformas necessárias no campo de recursos humanos não podem ser acompanhadas pela destruição dos conselhos de participação, nem pela redução dos gastos com saúde e educação, medidas que claramente estão na agenda atual do governo Bolsonaro, cuja visão está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP