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Efeito estufa: Impacto da degradação da Amazônia não é contabilizado
Brasil bateu novo recorde de desmatamento durante a COP26
Aldem Bourscheit / PlenaMata / Amazônia Real
A destruição da Amazônia não ocorre só pelo corte raso da floresta, mas também pela extração seletiva de árvores para o comércio de madeira ou com o uso de fogo para eliminar a vegetação. Mas as perdas pela chamada degradaçãoEliminação parcial e gradual da vegetação florestal para a extração seletiva de madeira e de outros recursos naturais. Pode ocorrer também por fogo e alterações climáticas [+] da floresta ainda não entram no cálculo das emissões de gases-estufa, o que gera um retrato distorcido da participação do Brasil nas mudanças climáticas globais.
Uma carta publicada na revista Nature por pesquisadores brasileiros e de outros países endereçada às discussões na COP26, a conferência sobre clima das Nações Unidas em Glasgow (Escócia), que acaba hoje (12), alerta que essas emissões precisam entrar nos balanços nacionais e nos debates climáticos.
Conforme o documento, grandes emissões de carbono são mascaradas porque países amazônicos não avaliam e não informam sobre a degradação florestal (+). Entre 2003 e 2015, as emissões de carbono por incêndios florestais e efeitos de borda foram estimadas em 88% das emissões brutas por desmatamento na Amazônia brasileira. A poluição climática cresce ao longo dos anos pela morte e decomposição de árvores atingidas pelo fogo.
“Conhecer as emissões por degradação em ambientes não adaptados ao fogo, como florestas úmidas com grande estoque de carbono na América do Sul, África e Ásia, ajudará o mundo a ter um cenário mais realista das emissões e das ações que devemos tomar para conter a crise do clima”, ressaltou Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e um dos pesquisadores que assina a carta.
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) apresentou um estudo na COP26 mostrando que apenas os incêndios florestais na Amazônia engrossaram em 21% as emissões brasileiras de carbono desde 2005, em relação à década anterior. O gás amplia o efeito estufa e acaba elevando a temperatura média planetária. “Estamos omitindo parte importante das emissões de florestas tropicais como a Amazônia, que são muito afetadas pelo fogo”, destacou Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam em coletiva de imprensa no Brazil Climate Hub. Segundo ela, é necessário melhorar o balanço das emissões-captações e estudos sobre a biomassa queimada antes de incorporar formalmente a degradação ao inventário.
A degradação está comendo a capacidade da floresta absorver o carbono da atmosfera. Precisamos de mais estudos sobre degradaçãopara a Amazônia e demais florestas do mundo para que tenhamos um quadro completo do problema, de forma que o IPCC incorpore a degradação de fogo em sua metodologia.
Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do IPCC
Hoje, os protocolos brasileiros e do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima) não contabilizam as emissões de gases-estufa que não estejam amarradas ao desmatamento. O Brasil tem uma estimativa de poluição climática por degradação, mas não é obrigado a somá-las nos inventários nacionais remetidos às Nações Unidas, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e colunista da plataforma PlenaMata. “A degradação está comendo a capacidade da floresta absorver o carbono da atmosfera. Precisamos de mais estudos sobre degradaçãopara a Amazônia e demais florestas do mundo para que tenhamos um quadro completo do problema, de forma que o IPCC incorpore a degradação de fogo em sua metodologia”, reforçou o pesquisador e membro do IPCC.
Munidos com imagens de satélites, pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos descobriram que a degradação da Amazônia por fogo e corte seletivo de árvores para comércio de madeiras superou o desmatamento entre 1992 e 2014. Conforme o estudo publicado na Science, enquanto 308 mil km² foram desmatados no período, uma área quase 10% maior foi degradada, ou 337 mil km².
A diferença cresceu nos últimos anos. Uma análise do InfoAmazonia sobre alertas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)Ferramenta do governo federal que gera alertas rápidos para evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia e no Cerrado [+] mostra que a degradação por fogo e perda de cobertura florestal em 2021 (5.217 km² ) é 66% da área desmatada (7.882 km²) na Amazônia Legal em 2021 (de janeiro a 31 de outubro). As cicatrizes de incêndios florestais respondem por quase 41% dessa degradação, ou 3.223 mil km².
“Há um descolamento entre áreas atingidas por desmatamento e por fogo, pois o fogo é usado para abrir pastagens e tende a se deslocar para dentro das florestas. Por isso, políticas para controle do desmatamento não necessariamente atacam as emissões de gases-estufa por fogo. Elas devem ser complementares”, ressaltou Aragão, do INPE.
De acordo com o Ipam, a queima e a decomposição de árvores, folhas e galhos atingidos pelo fogo na Amazônia lançou na atmosfera mundial quase 1,3 bilhão de toneladas de carbono entre 1990 a 2020. Se forem distribuídas ao longo dos 30 anos, as emissões anuais equivalem às do Japão. Florestas degradadas pelo fogo guardam 25% menos carbono do que as preservadas, aponta a ONG.
Apenas de fogo, foram 674 mil focos de calor na Amazônia Legal em 2021 detectados pelo satélite S-NPP/VIIRS da Nasa de janeiro a 31 de outubro. Desse total, 18% dos focos ocorreram em áreas protegidas (10,4% em unidades de conservação federais e estaduais e 7,6% em terras indígenas).
Retrato distorcido
Não pesar as emissões geradas pela degradação da Amazônia amplia o problema de metas insuficientes para cortes de poluentes na contribuição nacionalmente determinada, a NDC brasileira.
Analistas do Política por Inteiro avaliaram que os compromissos que o país apresentará às Nações Unidas, para reduzir pela metade as emissões até 2030 em relação às taxas de 2005, permitem que o Brasil siga prejudicando o clima global até o fim da década. Ou seja, o novo percentual para redução de emissões não compensa o aumento da poluição climática desde 2015, quando o Brasil prometeu cortar 43% do lançamento de gases-estufa. “Para se alinhar ao Acordo de Paris, o Brasil deveria aumentar sua ambição e prometer uma meta maior do que aquela proposta há seis anos”, avalia o estudo.
“A NDC deveria ser uma ferramenta para o Brasil reorientar seus planos de desenvolvimento para uma economia que emita pouco carbono. Sem isso, ela não sinaliza a diferentes setores, aos tomadores de decisões e à sociedade que o país quer um futuro de baixo carbono, que reduz desigualdades sociais e melhora a vida da população, como outras nações estão fazendo”, ressaltou Walter De Simoni, diretor de Articulação Política e Diálogo do Instituto Talanoa.
Não atingiremos nenhuma meta para cortar a poluição climática com esses níveis de desmatamento e de degradação florestal, que aumentam as contas de emissões. Mesmo que zeremos o desmate, muita floresta degradada por fogo e outros impactos seguirá emitindo gases-estufa.
Ane Alencar, diretora do Ipam
O problema nas contas climáticas não é exclusivo do Brasil. Um levantamento do jornal Washington Post mostrou que a grande maioria dos 196 países analisados joga para debaixo do tapete as emissões reais de gases-estufa em seus balanços às Nações Unidas. As emissões subnotificadas pelos países variam de 8,5 bilhões a 13,3 bilhões de toneladas anuais.
Na COP26, o governo brasileiro prometeu zerar o desmatamento ilegal entre 2022 e 2028. Mas alertas do INPE mostram que o desmatamento em outubro na Amazônia superou os 877 km², um dos piores índices da história. O desmate consolidado entre agosto de 2020 e julho deste ano ainda não foi divulgado pelo instituto, como ocorre durante as COPs. “Não atingiremos nenhuma meta para cortar a poluição climática com esses níveis de desmatamento e de degradação florestal, que aumentam as contas de emissões. Mesmo que zeremos o desmate, muita floresta degradada por fogo e outros impactos seguirá emitindo gases-estufa”, arrematou Ane Alencar, do Ipam.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.
Fonte: Amazônia Real
https://infoamazonia.org/2021/11/12/cop26-degradacao-amazonia-emissoes-gases-estufa/
Luiz Carlos Azedo: Federação de partidos complica as alianças regionais de Bolsonaro
O projeto político nacional se imporá às alianças regionais e provocará intensa troca de partido
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A grande novidade nas eleições do próximo ano será a formação de federações partidárias, de caráter nacional e duração de pelo menos quatro anos, o que está complicando a vida do presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição. Sua filiação ao PL, de Valdemar Costa Neto, por exemplo, subiu no telhado, porque a aliança do político paulista em São Paulo é com o candidato do PSDB a governador, Rodrigo Garcia. Mas não é somente isso. A formação de frentes partidárias exige mais nitidez em relação ao projeto nacional, o que complicou também a relação de Bolsonaro com o Centrão, a fortaleza patrimonialista e oligárquica, porque uma parte do seu eleitorado rejeita essa aliança e começa a migrar para a pré-candidatura do seu ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que se notabilizou como juiz da 13a Vara Federal de Curitiba, com a Operação Lava-Jato, por ter condenado à prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A tendência é a formação de quatro ou cinco blocos partidários. A mudança parecia um retrocesso, por facilitar a vida dos pequenos partidos em dificuldades para montar chapas proporcionais nos estados, capazes de ultrapassar o quociente eleitoral (votação mínima para eleger um candidato, cujo cálculo é a divisão do número de votos válidos pelo número de vagas de cada estado); agora, estamos vendo que a formação de federações pode ser um avanço no sentido de dar mais nitidez aos projetos nacionais, pois o eixo de formação desses blocos políticos são as candidaturas à Presidência da República. Por enquanto, o bloco com mais nitidez é o formado pelo ex-presidente Lula, que articula uma “frente ampla”, nucleada por aliados tradicionais do PT: PSB, PSol e PCdoB.
A segunda frente em formação é o Centrão, a partir da aglutinação de três partidos: o PP de Ciro Nogueira (PI), ministro da Casa Civil, Arthur Lira (AL), presidente da Câmara, e Ricardo Barros (PR), líder do governo na Casa; o PL, do ex-deputado Costa Neto e da ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (DF); e Republicanos, do bispo Marcos Pereira, o braço político da Igreja Universal do Reino de Deus. Todos também participaram do governo Lula e são pragmáticos. Bolsonaro prometeu acabar com a política do toma lá dá cá, mas aderiu a ela e entregou a gestão das emendas parlamentares do Orçamento da União ao Centrão. Pretendia se filiar ao PL, que já estava conversando com Lula, mas deu marcha a ré.
Terceira via
Ainda não está claro o verdadeiro motivo do adiamento da filiação de Bolsonaro ao PL, tanto pode ser a gestão do fundo eleitoral da federação (que não está regulamentada, ou seja, não se sabe se esses recursos permanecerão controlados por cada partido ou se irão para um caixa único, com gestão própria) quanto a resistência do vereador carioca Carlos Bolsonaro, seu filho, porta-voz dos grupos bolsonaristas de extrema-direita, que gerencia suas redes sociais, diante das reações negativas à filiação de Bolsonaro ao PL. Bolsonaro deixou o PSL, partido pelo qual se elegeu, mas não conseguiu formar seu próprio partido, a Aliança pelo Brasil, e está sem legenda para concorrer à Presidência. A formação desse bloco é indispensável para tentar a reeleição.
Havia uma expectativa de fragmentação da chamada “terceira via”, devido ao grande número de pré-candidatos: o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT); os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), que disputam as prévias do PSDB; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); a senadora Simone Tebet (MDB-MS); o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE); e, agora, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que se filiou ao Podemos. Qualquer candidatura com possibilidade de ultrapassar 10% de votos pode ser mantida para viabilizar uma bancada federal, ainda quer isolada.
Mesmo assim, essas candidaturas correm o risco de não vingar, por pressão de deputados e senadores das respectivas legendas. Ciro e Moro são os candidatos com melhor desempenho nas pesquisas, mas têm dificuldades para fazer alianças. O primeiro está isolado na franja do bloco de esquerda; o segundo, por causa da Lava-Jato, enfrenta a ojeriza da maioria dos deputados e senadores que defendem a terceira via. Doria e Leite protagonizam uma disputa autofágica, quem vencer terá que formar uma federação robusta. Tebet é uma novidade no MDB, mas pode ser cristia nizada, como é da tradição da legenda. Mandetta e Alessandro postulam o apoio dos demais, mas são operadores declarados da “terceira via”. Em todos os casos, o projeto político nacional se imporá às alianças regionais e provocará intensa troca de partido, em razão do alinhamento aos governadores e da sobrevivência eleitoral.
Merval Pereira: A mesma linguagem de Jair Bolsonaro
Bolsonaro não é mais o mesmo porque não encontra uma legenda que aceite suas condições
Merval Pereira / Globo
A demonstração exemplar de que o presidente Bolsonaro já não é mais o mesmo está contida na discussão virtual de baixo calão que teve com seu grande líder político Valdemar da Costa Neto, dono de fato e direito do Partido Liberal (PL). Estou falando do ponto de vista de poder, e não de ideologia, pois Bolsonaro, como admitiu recentemente, sempre foi do Centrão, embora figura do baixo clero que nunca teve expressão política nos nove partidos dos quais já fez parte.
Não é mais o mesmo porque não encontra uma legenda que aceite suas condições, e nem conseguiu criar a sua própria, num quadro partidário que tem mais de 35 partidos em ação, e outros tantos pedindo registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com o PSL, seu último partido, por cuja legenda elegeu-se presidente da República, a briga foi pelo butim partidário. Junto com o PT, o PSL é o partido mais rico com os fundos partidário e eleitoral, graças ao tsunami eleitoral liderado por Bolsonaro em 2018.
Mas o partido tinha e tem dono, Luciano Bivar, que não deu a chave do cofre, agora milionário, para o clã guloso. No PL, que também tem um cofre recheado, a briga, aparentemente, foi pelos palanques regionais, mas indiretamente também pela bufunfa. Quem indica o candidato a governador de São Paulo, por exemplo, coloca a mão em mais dinheiro.
A briga foi feia, com direito a troca de xingamentos e palavrões, em negociação nada republicana. Nessa queda de braço, porém, Valdemar da Costa Neto tem mais bala na agulha. Preso no mensalão, continuou a mandar no PL de dentro da cadeia, da mesma maneira que os chefões dos comandos criminosos mandam suas orientações da própria prisão. Livre, leve e solto, com influência fundamental no Centrão, por que abriria mão de seu poder para dar parte dele a Bolsonaro e seus filhos ?
Boi preto conhece boi preto, como dizia outro grande parlamentar do baixo clero, Clodovil Hernandes, que, aliás, terminou sua carreira política no Partido da República (PR), que depois integrou-se ao PL. O sentido da frase eternizada por Clodovil deixou de ter um restrito cunho de gênero para um significado mais amplo, de que pessoas da mesma laia se reconhecem.
A vida dos Bolsonaro não será fácil também no PP, outro partido que controla o Centrão, com interesses políticos amplíssimos. Ambos já fizeram parte da base aliada de Lula, Dilma e Temer, e por isso têm interesses regionais diversificados, que abrangem também o PT. Inclusive porque, com a decadência da popularidade de Bolsonaro e o ex-presidente Lula liderando as pesquisas de opinião, não é possível, nessa concepção inortodóxica de coalizão do Centrão, fechar portas para uma provável mudança de rumo.
Se não chegar a um acordo com partidos controladores do Centrão, Bolsonaro terá que aceitar ir para um partido com menos tempo de televisão e menores fundos partidário e eleitoral, tudo o que ele não quer, mesmo sendo presidente da República. Perderá, também, poder político dentro do Congresso. Em 2018, Bolsonaro concorreu pelo então nanico PSL por não ter grandes opções. Hoje, está de olho grande na fenomenal massa de dinheiro que autorizou para os partidos, que agora, com o dinheiro sobrando devido à PEC dos Precatórios, vai ser maior ainda.
Mas Bolsonaro, que já é refém de sua base aliada na concertação política, sem voz de comando real, submetendo-se às vontades do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, agora ficará sem legenda partidária de peso, sujeito a chuvas e trovoadas no decorrer da campanha. Mesmo que se submeta ao comando real de Valdemar da Costa Neto, à medida que sua popularidade for sofrendo baixas, a debandada das seções regionais de sua suposta aliança nacional será a mesma, no sentido inverso, que ele provocou em 2018.
Acabou sendo apoiado por deputados de vários partidos, que oficialmente apoiavam outros candidatos. O eleitor foi se aproximando de Bolsonaro na proporção em que ele se tornou a alternativa para derrotar o PT. Em 2022, ele será alvo também dessa rejeição. Apoiar Lula contra Bolsonaro é uma opção que pode se apresentar a parte do eleitorado, o mesmo que em 2018 fez o contrário. Ou não apoiar nenhum dos dois, desde que um candidato alternativo se firme.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/mesma-linguagem.html
RPD || Editorial: Balanço e perspectivas
É difícil mensurar hoje os custos presentes e futuros da condescendência com um governo inaceitável, sob qualquer perspectiva
Resta menos de um ano para o segundo turno das eleições de 2022, e o calendário prossegue sua marcha. A perspectiva das eleições já domina o cenário político e a cada mês ocupará fatia maior das preocupações e projetos de todos os atores.
No plano mais geral, a conjuntura no último ano do mandato presidencial parece marcada pela estabilização e relativo sucesso do pacto firmado entre o Presidente e a maioria da Câmara dos Deputados, dividida entre governistas convictos e ocasionais, radicais e Centrão. No fundo, uma barganha simples, mas eficaz: recuo no discurso e nas manifestações golpistas, contra a garantia da continuidade do mandato. Nem golpe, nem impeachment.
É difícil mensurar hoje os custos presentes e futuros da condescendência com um governo inaceitável, sob qualquer perspectiva. Mas em algum momento, o ônus da reconstrução do país, em termos econômicos, institucionais, políticos e culturais, terá de ser enfrentado.
Na perspectiva do governo, 2022 se apresenta como um ano difícil. Apesar do arrefecimento esperado da pandemia, as consequências dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito se farão presentes. Simultaneamente, tudo aponta para o agravamento do quadro econômico, ou seja, estagnação com inflação, desemprego e pauperização da população. O vetor resultante é uma perspectiva eleitoral precária, alimentada apenas pela expectativa dos erros dos adversários.
Para a base parlamentar do governo, a incerteza é ainda maior. Deputados federais enfrentarão uma eleição na qual os ventos da opinião pública já mudaram de direção. O viés para a direita, dominante em 2018, cedeu lugar, ao que tudo indica, à inflexão para o centro e para a esquerda. Além disso, deputados federais eleitos por um sistema eleitoral personalista perderam, com a mudança da regra, uma de suas muletas: a livre coligação entre partidos, mecanismo de distorção do sistema proporcional e de incentivo à irresponsabilidade dos mandatários.
Finalmente, resta avaliar as possibilidades do conjunto das forças oposicionistas. A conjuntura, em abstrato, seria favorável a elas. No entanto, para dar concretude a essa vantagem é preciso discernimento e perseverança. Urge agora clareza para compreender as convergências e divergências no interior desse campo, bem como sabedoria para dar a prioridade devida aos vetores da unidade, mantendo no segundo plano as diferenças, legítimas, de projetos para o país.
Em outras palavras, há que articular e consolidar, ao longo do ano, principalmente no período da campanha, os objetivos eleitorais específicos de cada partido e coligação com o objetivo maior e permanente de defesa do estado democrático de direito.
RPD || Entrevista Especial - Bernard Appy: "Tributação do consumo no Brasil só tem exceção, não tem regra"
Reforma tributária precisa trazer mais simplicidade, racionalidade e equilíbrio para o Brasil ganhar competitividade, avalia Bernard Appy
Caetano Araújo e André Amado / RPD Online
Um dos maiores especialistas no complicado sistema tributário brasileiro, o economista Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal – um think thank independente, cujo objetivo é contribuir para melhorar a qualidade do sistema tributário no Brasil e para o sistema de gestão fiscal brasileiro – é o entrevistado especial desta 37a edição da Revista Política Democrática Online.
Appy, que se dedica a desatar o injusto e complexo sistema tributário brasileiro desde a década passada, quando atuou como secretário executivo e de política econômica do Ministério da Fazenda, foi um dos mentores do estudo que deu base para a criação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, do deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP). Por decisão do atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a comissão especial da Casa que analisava o mérito da reforma tributária foi sustada em maio passado.
O projeto da PEC 45 teve como principal ponto a unificação de tributos federais (PIS, Cofins e IPI), estaduais (ICMS) e municipais (ISS). Batizado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o novo tributo seguiria o modelo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), aplicado em outros países.
Atualmente a reforma tributária está em discussão no Senado Federal por meio da PEC 110/2019, que prevê a substituição de nove tributos, o IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS, ISS, pelo IBS. A diferença entre as propostas é essencialmente de prazo: 2 anos de teste e 8 de transição na PEC 45 e 1 ano de teste e 5 de transição na PEC 110.
Na entrevista à Revista Política Democrática Online, ele explica a importância de uma reforma tributária ampla, que simplifique o pagamento de tributos no Brasil e que foque, sobretudo, no aumento de produtividade. Appy também comenta o PL 2337, que trata do Imposto de Renda, que é de autoria do Poder Executivo e que tem sido alvo de críticas de todos os setores. Confira a entrevista a seguir:
Revista Política Democrática Online (RPD): Há algum tempo, costuma-se discutir as possíveis reformas tributárias a partir de eixos como a centralização, a descentralização, complexidade versus simplicidade, opacidade versus transparência, e progressividade versus regressividade. Em que medida essas questões expressam problemas reais brasileiros, e quais seriam as consequências negativas desses problemas para o país?
Bernard Appy (BA): De fato, um bom sistema tributário tem algumas características: ser simples para o contribuinte; ser transparente, ou seja, as pessoas têm de saber quanto estão pagando de imposto; tem de ser neutro, isto é, o sistema tem de distorcer o mínimo possível a forma de organização da produção, porque, ao distorcer a forma de organização da produção, o sistema geralmente resulta em ineficiência e menor crescimento da economia; e ele tem de ser progressivo, ou seja, quem tem mais capacidade contributiva tem que pagar mais do que tem menos capacidade contributiva. E isso tem de valer para todas as categorias de tributos.
Nós temos cinco categorias principais de tributos: (1) tributos sobre o consumo, que são tributos sobre a produção e a comercialização de bens de serviço, mas que, quando bem desenhados, são tributos sobre o consumo; (2) tributos sobre a renda; (3) tributos sobre o patrimônio, ou a transferência de patrimônio; (4) tributos sobre a folha de salários, que geralmente estão vinculados ao financiamento de benefícios da seguridade social; e (5) tributos regulatórios, desde tributos sobre o comércio exterior, como imposto de importação, até tributos ambientais, que têm ganhado destaque na discussão internacional, mas que é um tema ainda pouco explorado no Brasil.
O sistema tributário brasileiro não tem nenhuma das características desejáveis de um bom modelo de tributação – simplicidade, transparência, neutralidade e progressividade. Temos um sistema que é extremamente complexo - na área de tributações de bem de serviços, provavelmente o mais complexo do mundo. Temos um sistema que é extremamente opaco – quando se está comprando uma mercadoria, ou um serviço, não se tem a menor ideia de quanto de imposto está sendo pago. Temos um sistema que é tudo, menos neutro, pois no Brasil, ao menos na tributação do consumo só tem exceção, não tem regra.
Na tributação do consumo, a maior parte dos países tem um único imposto, que é o imposto sobre valor adicionado, o IVA. O Brasil tem cinco tributos gerais sobre o consumo – o PIS e a COFINS, contribuições federais que têm uma legislação semelhante, mas duas formas de incidência, cumulativa e não cumulativa, o imposto sobre produtos industrializados (IPI), que é federal, o ICMS que é estadual, e o ISS municipal. E cada um desses tributos tem uma quantidade enorme de alíquotas, de benefícios fiscais e de regimes especiais. Não é exagero, portanto, dizer que a gente tem um sistema tributário, que, pelo menos na tributação do consumo, só tem exceção e não tem regra. Ou seja, quando você só tem exceção, todo mundo vai se organizar para tentar se beneficiar da melhor forma possível das exceções, e isso acaba destorcendo completamente a forma de organização da economia e prejudicando o crescimento do país.
Por fim, temos problemas extremamente sérios do ponto de vista da progressividade do sistema tributário, porque, no Brasil, temos falhas no sistema de tributação da renda que fazem com que uma parcela extremamente relevante das pessoas de alta renda seja muito pouco tributada.
Isso decorre de uma série de falhas, como, por exemplo, o modelo brasileiro de tributar exclusivamente na empresa e isentar na distribuição de lucros. Em si, a tributação na empresa e a isenção na distribuição não é um problema distributivo, se o lucro for efetivamente tributado na empresa a 34% – que é a soma da alíquota do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) com a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Só que, no Brasil, por uma série de fatores, em muitos casos o imposto pago na empresa é muito menor do que 34%. Isso acontece no caso de grandes empresas, porque tem uma série de mecanismos que permitem que o lucro fiscal, ou seja, o lucro tributável, seja muito menor do que o lucro contábil. E acontece também, no caso dos regimes simplificados de tributação, como lucro presumido ou simples.
A título de exemplo, tome-se um profissional liberal, que trabalha por conta própria, cujo faturamento mensal é de R$ 125 mil e que tem despesas da ordem de R$ 25 mil com aluguel de escritório, secretária, outros tributos, exceto tributos sobre o lucro. Esse profissional liberal, que tem uma renda bruta de R$ 100 mil, vai pagar de tributos sobre o lucro apenas 11,9% desses R$ 100 mil pelo regime de lucro presumido, e depois vai distribuir o restante para a pessoa física com isenção.
Já um empregado formal, que tem uma renda de 100 mil reais paga não só 27,5% de imposto de renda de pessoa física (IRPF), mas a empresa ainda paga cerca de 27% de contribuição sobre folha desse empregado, sem contar o FGTS. Como o os benefícios previdenciários do empregado formal são limitados a R$ 6,4 mil, na prática a contribuição sobre a folha da empresa acima desse valor é equivalente a um imposto sobre a renda do empregado. Quando se faz a conta somando o IRPF com a contribuição sobre folha da empresa e deduzindo o valor presente dos benefícios recebidos pelo empregado, chega-se a uma alíquota sobre a sua renda de quase 38% (com proporção do custo para a empresa).
Ou seja, a alíquota incidente sobre a renda mensal de R$ 100 mil de um profissional liberal que atua como sócio de uma empresa de lucro presumido é de 11,9%, enquanto a alíquota incidente sobre um empregado formal de mesma renda é mais do que o triplo. Esse é um exemplo claro do nível de distorção na tributação da renda a que chegamos no Brasil. Enquanto o profissional “pejotizado” é tributado a uma alíquota absurdamente baixa, o empregado formal é tributado a uma alíquota excessivamente alta.
O que acontece, portanto, no Brasil? Por conta dessas múltiplas falhas no sistema tributário, temos problemas seríssimos de progressividade na tributação da renda e temos distorções que prejudicam muito o crescimento – especialmente no âmbito da tributação do consumo. Vou explicar melhor esse ponto.
A multiplicidade de tributos sobre o consumo e sua enorme complexidade, geram efeitos muito negativos para o crescimento da economia. Em primeiro lugar, o custo burocrático de pagar imposto, relativamente a padrões internacionais é extremamente elevado no Brasil. Um estudo de uma universidade alemã que compara 100 países situa o Brasil em último lugar, como o país com maior complexidade para pagar tributos.
Em segundo lugar, como já indiquei, quando se tem um sistema com muitas exceções, a tendência é sempre haver divergências de interpretação entre os contribuintes e o fisco, o que aumenta o grau de litígio tributário, que é monumental no Brasil. Um estudo do Insper indica que, hoje, o litígio tributário no país – federal, estadual e municipal, nas esferas administrativa e judicial – chega a mais de R$ 5 trilhões, o que corresponde a mais de 70% do PIB. Desse montante, talvez um trilhão e meio, dois trilhões de reais, sejam créditos podres, mas ainda sobra algo como três trilhões, três trilhões e meio de reais, de fato mais de 40% do PIB de litígio tributário ativo no Brasil.
É muito provável que o Brasil seja o campeão mundial em litígio tributário, e isso não só tem custo para as empresas e o governo – com advogados, contadores etc. –, mas também aumenta o custo do Poder Judiciário do Brasil, que dedica boa parte de sua energia à cobrança da dívida ativa. Outro efeito negativo é a própria absorção da energia da alta administração das empresas, que, ao invés de estar se ocupando em tornar a empresa mais competitiva, está preocupada em evitar que a empresa quebre, por conta de um litígio tributário que, às vezes, pode representar mais de 50% do seu patrimônio líquido. Não bastasse o custo elevado, esse sistema distorcido de tributação gera forte insegurança jurídica, o que compromete o investimento.
Em terceiro lugar, as distorções na tributação do consumo acabam onerando os investimentos e as exportações, reduzindo o potencial de crescimento do país. Um sistema bem desenhado de tributação do consumo, que é o imposto sobre valor adicionado, desonera completamente exportações, tributa as importações de forma equivalente à produção nacional, e desonera completamente investimentos. No Brasil, por conta da cumulatividade do sistema, e de falhas na desoneração dos investimentos e das exportações, estamos aumentando o custo dos investimentos, prejudicando a competitividade do país e reduzindo nosso potencial de crescimento.
Por último, a enorme complexidade da tributação do consumo acaba levando a economia brasileira a se organizar de forma muito ineficiente. Uma boa forma de entender essa distorção é imaginar um mundo sem imposto e pensar como ele se organizaria. A introdução do imposto não deveria mudar essa forma de organização. No caso do Brasil, pense que, nesse mundo sem imposto, uma empresa tivesse de montar um centro de distribuição. Onde montaria? Onde minimizasse o custo de logística, certo? Ou seja, minimizaria o custo de trabalho, que é a remuneração do caminhoneiro, e o custo de capital, que é o valor do caminhão e do combustível. No Brasil, por conta de benefícios fiscais, a maioria dos centros de distribuição são montados em locais distantes dos centros de consumo, aumentando o custo de logística para poder receber um benefício tributário.
Aquilo que do ponto de vista da empresa faz sentido, que é minimizar seu custo total, isto é, o custo econômico e o custo tributário, do ponto de vista do país não faz sentido, porque eleva o custo econômico. Ou seja, por conta de distorções no sistema tributário gastamos mais caminhões, mais trabalho de caminhoneiro, mais combustível, mais estrada, para levar a mesma mercadoria para o mesmo consumidor final. Isso, na verdade, é perda de produtividade, despende-se mais trabalho e capital para fazer uma determinada atividade econômica, do que seria preciso despender se não fosse a distorção introduzida pelo sistema de tributação.
Isso, na verdade, resulta em uma perda de produtividade que pode ser muito grande. Para vocês terem uma ideia, tem um estudo do economista Bráulio Borges, que está disponível no site do Centro de Cidadania Fiscal, que estima que a eliminação dessas distorções na tributação do consumo poderia elevar o PIB potencial do Brasil em 20 pontos percentuais em um horizonte de 15 anos. Esse maior crescimento beneficiaria todo mundo: beneficiaria obviamente as famílias, porque aumentaria o poder de consumo delas; beneficiaria as empresas, porque elevaria o volume de vendas; e beneficiaria o governo, porque, mantida a carga tributária, o maior crescimento da economia elevaria a arrecadação. Desde que esse aumento da arrecadação não virasse automaticamente gasto, o resultado seria uma trajetória sustentável para a dívida pública. A partir de certo momento, o ajuste fiscal abriria inclusive espaço para alguma ampliação do gasto público ou para uma redução da tributação.
RPD – Quais são as distorções que existem no sistema tributário brasileiro?
BA - As distorções que existem no sistema tributário são, portanto, de duas naturezas: distorções que prejudicam o crescimento, sobretudo na tributação do consumo, e distorções distributivas, sobretudo na tributação da renda. Podemos olhar a situação brasileira como um o copo meio cheio ou meio vazio. Olhar o copo como meio vazio é dizer: "O sistema tributário brasileiro é um horror: a quantidade de distorções é tão grande que, honestamente, não consigo enxergar nada parecido em outros países do mundo". Por outro lado, pode-se ver o copo meio cheio: "Tudo bem, essas distorções são tão grandes que, no Brasil, é possível fazer mudanças que tornem o sistema tributário simultaneamente mais progressivo e mais eficiente". É muito comum você encontrar na discussão sobre política tributária um trade off, um conflito, entre eficiência e progressividade. No Brasil, as distorções são tão grandes que é possível ter um sistema que seja ao mesmo tempo mais eficiente e mais progressivo. Claro que, para conseguir fazer isso, é preciso enfrentar interesses que estão consolidados dentro do sistema tributário atual. Não se trata de algo politicamente fácil, mas, tecnicamente, nossas distorções são tantas que dá para melhorar em todas as dimensões simultaneamente.
RPD: À medida que o processo de globalização avança, nossos problemas tornam-se cada vez mais problemas globais, e as soluções também precisam avançar um pouco nesse sentido da cooperação internacional, para dar conta desses problemas. No plano estritamente tributário, dois exemplos bastante claros disso seriam as tentativas de se fazerem acordos em torno da tributação dessas grandes empresas de tecnologia, tentativas recentes, e os esforços no sentido do combate aos paraísos fiscais. É possível avançar nessa direção, e a cooperação internacional pode ajudar?
BA: A cooperação internacional é fundamental em algumas áreas da tributação. Uma parte da tributação, que é a tributação do consumo, é essencialmente doméstica, e, portanto, neutra do ponto de vista do comércio internacional. Não importa se a mercadoria é produzida no país ou no exterior, se você tiver um bom sistema de tributação do consumo, a tributação vai ser a mesma, e isso não distorce o comércio internacional, nem a alocação de recursos internacionais. Uma parte da tributação sobre a propriedade também é essencialmente doméstica, como, por exemplo, a tributação sobre o patrimônio imobiliário – IPTU e ITR.
Mas tem uma área em que a cooperação e a coordenação internacional são absolutamente fundamentais – a tributação da renda. A renda é tributada no lugar onde a renda é gerada, e isso faz com que você tenha uma série de distorções internacionais que limitam a possibilidade de tributação de cada país, sobretudo na tributação do lucro de grandes empresas multinacionais. As empresas multinacionais acabam tendo possibilidade de redução da tributação de várias formas. Uma delas é alocando o lucro em jurisdições de baixa tributação. Por exemplo, muitas Big Techs têm sede na Irlanda, onde o lucro é tributado a uma alíquota de 12,5%, uma alíquota bastante baixa para padrões internacionais. Esse problema é especialmente relevante quando o lucro resulta de intangíveis, como ocorre na nova economia, pois é muito fácil realocar a propriedade intelectual entre jurisdições.
Outro método muito utilizado são operações entre estabelecimentos de uma mesma multinacional em dois países – um com alta tributação, o outro com baixa tributação. Para maximizar o lucro, a empresa busca exportar com preços abaixo do valor de mercado, do país de alta tributação para o de baixa tributação, e importar com preços acima do de mercado na situação inversa. Há uma série de medidas para tentar regular esse tipo de operação – conhecidas como legislação de preços de transferência – mas seu escopo é limitado e o controle complexo.
Por conta dessa situação, o mundo vem passando, desde meados dos anos 80, por um processo de race to the bottom, uma competição tributária mundial de redução de alíquotas na tributação da renda corporativa. Em meados dos anos 80, a alíquota média da tributação do lucro das grandes empresas nos países da OCDE era superior a 40%; hoje está em 23%. Recentemente, vem-se tentando conter esse movimento, por meio de duas iniciativas importantes. Uma delas, já com quase 10 anos, é a iniciativa BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), da OCDE e do G20, que propõe medidas voltadas à coordenação entre os países e à limitação da transferência de lucro para localidades de baixa tributação. A outra iniciativa, mais recente, envolve um processo de tentativa de tributação das Big Techs através da atuação em dois pilares. Um dos pilares é a definição de uma alíquota mínima de tributação do lucro em todos os países, de 15%, que ainda é uma alíquota relativamente baixa, mas foi a politicamente possível de ser adotada. O segundo pilar é um critério de distribuição de parte do lucro gerado pelas subsidiárias de grandes empresas, sobretudo das Big Techs, entre o país sede da empresa e o país onde é consumido ou utilizado o bem ou serviço fornecido pela subsidiária.
Avanços existem, portanto, mas ainda é muito pouco para poder, realmente, permitir uma tributação adequada do lucro entre todos os países. A alíquota mínima proposta, de 15%, ainda é muito menor que a alíquota média incidente sobre o lucro distribuído na OCDE, que é de cerca de 42% – considerada a alíquota na empresa e na distribuição. Ou seja, o reinvestimento dos lucros nos países de baixa tributação seguirá sendo um bom negócio.
A coordenação internacional é, pois, um movimento importante, que complementa aquilo que os países têm de fazer domesticamente. Depois de um longo período de race to the bottom, de contínua redução da alíquota na tributação da renda coorporativa, já se pode ver o começo de uma reversão desse processo, embora muito aquém daquilo que seria necessário para que os países, de fato, venham a ter autonomia e liberdade, na definição das suas políticas de tributação do lucro. Mas, é um avanço importante; é uma mudança que se vem acelerando e que esperamos ande ainda mais rapidamente.
RPD: Voltando ao Brasil. O que são as PECs 45 e 110 e por que não avançaram?
BA: A PEC 45 é uma proposta de emenda constitucional apresentada pelo deputado Baleia Rossi, inspirada em um trabalho que desenvolvemos no Centro de Cidadania Fiscal; e a PEC 110 é uma proposta de reforma tributária do Senado Federal, que tomou por base um trabalho realizado pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly. As duas propostas têm, basicamente, o mesmo objetivo – reformar o sistema de tributação do consumo no Brasil. Apresentam algumas diferenças, mas, na essência, têm características muito semelhantes – buscam substituir os atuais tributos sobre o consumo por um único Imposto sobre Bens e serviços (IBS), compatível com o padrão mundial de um bom imposto sobre o valor adicionado, incidente sobre uma base ampla de bens e serviços.
As duas propostas também preveem duas transições. Uma transição para os contribuintes, ou seja, dos tributos atuais para os novos tributos. A transição se iniciaria por um período de teste em que o IBS seria cobrado com a alíquota de 1%, seguindo-se um período de transição, em que as alíquotas dos tributos atuais seria progressivamente reduzida, e a alíquota do IBS seria elevada, mantendo a carga tributária. A diferença entre as propostas é essencialmente de prazo: 2 anos de teste e 8 de transição na PEC 45 e 1 ano de teste e 5 de transição na PEC 110.
Uma segunda transição diz respeito à distribuição da receita para os entes da Federação. Quando se migra de um sistema com a base fragmentada entre o ICMS e o ISS, que são cobrados dominantemente no Estado e no Município de origem, para um sistema de base ampla – que junta ICMS com ISS – e com a tributação no destino, isso afeta a distribuição da receita entre os entes da Federação. A PEC 45 prevê uma transição de 50 anos na distribuição federativa da receita, e a PEC 110, uma transição de 15 anos.
Mas há diferenças entre as duas propostas. A principal diz respeito ao número de alíquotas e à autonomia dos entes na fixação de suas alíquotas e, portanto, na gestão de sua receita. De um lado, a PEC 45 propõe que a alíquota para todos os bens e serviços seja uniforme, mas prevê que os Estados e os Municípios tenham autonomia para fixar suas alíquotas. Como o IBS é um imposto sobre o consumo, isso significa que a alíquota será a mesma para o consumo de bens e serviços, mas cada Estado e cada Município poderá decidir se tributa mais ou menos seus consumidores, que são também os eleitores. De outro lado, a PEC 110 prevê a possibilidade de múltiplas alíquotas, sem dar autonomia para Estados e Municípios quanto à definição da alíquota e, portanto, ao controle de sua arrecadação.
Outra diferença entre as duas propostas diz respeito ao escopo dos tributos substituídos pelo IBS. Na PEC 45, o IBS substituiria o PIS, a Cofins, o IPI, o ICMS e o ISS. Na PEC 110, o IBS substituiria ainda o IOF, a CIDE-Combustíveis e a contribuição para o salário-educação.
O grande problema para o avanço dessas propostas é o posicionamento do governo federal. Uma das resistências históricas ao avanço da reforma tributária, que era a posição dos Estados que não queriam perder a possibilidade de conceder benefícios fiscais, foi superada. Hoje todos os Estados da Federação, por intermédio de seus respectivos secretários de Fazenda apoiam uma reforma tributária ampla, nos moldes da PEC 45 e da PEC 110. O mesmo vale para os pequenos e médios municípios, representados pela Confederação Nacional dos Municípios.
Falta, ainda, contornar a resistência dos grandes municípios que não querem perder o poder de cobrar o ISS, mas o grande problema me parece ser o posicionamento do governo federal, que nunca apoiou a proposta. Inicialmente, como havia duas propostas – uma na Câmara e outra no Senado –, o governo dizia que não tinha como se posicionar. Por conta disso, foi criada uma Comissão Mista de deputados e senadores para compatibilizar as propostas, que começou a funcionar no início de 2020, mas teve seus trabalhos interrompidos pela pandemia. No início de 2021, o relator da Comissão Mista, Deputado Aguinaldo Ribeiro, apresentou seu parecer, mas a troca da presidência na Câmara dos Deputados passou a ser um obstáculo para a tramitação da reforma na Câmara, pois a PEC 45 era apoiada pelo grupo do ex-presidente, Rodrigo Maia, sofrendo resistência política por parte do novo presidente, Arthur Lira.
O que permanece hoje é a tramitação da PEC 110, no Senado Federal. O relator da PEC 110, Senador Roberto Rocha, aproveitou muito do trabalho da Comissão Mista e, ao mesmo tempo, fez um trabalho político junto ao governo federal, para mitigar as resistências do Ministério da Economia à reforma. A principal mudança feita pelo Senador para atender o governo federal foi substituir o modelo de um único IVA (o IBS) por um modelo com dois IVAs. Haveria um IVA subnacional – o IBS –, que substituiria o ICMS e o ISS e seria gerido conjuntamente por Estados e Municípios. Haveria também um IVA federal, que seria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituiria o PIS e a Cofins. A proposta também prevê a criação de um imposto seletivo, incidente sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, que substituiria o IPI. Com as mudanças feitas pelo Senador, a proposta não enfrenta mais a oposição do Ministério da Economia, mas tampouco tem um apoio muito entusiasmado.
Por fim, há também algumas resistências setoriais à reforma tributária. A superação dessas resistências provavelmente exigirá o tratamento favorecido para alguns setores – como saúde, educação e transporte público urbano. O Senador Roberto Rocha, a meu ver corretamente, deixou a definição dos tratamentos favorecidos para a regulamentação do IBS e da CBS.
Mesmo com o bom trabalho de mitigação das resistências políticas feito pelo Senador Roberto Rocha, no entanto, é difícil saber como andará a reforma tributária. Aparentemente há um bom apoio no Senado Federal, mas, por se tratar de um tema amplo e complexo, seu avanço depende de uma clara priorização.
RPD: Prevê-se algum calendário para a aprovação?
BA: Não. Hoje não tem um calendário previsto. Está na Comissão de Constituição e Justiça, que não se reúne há meses, por conta da resistência em tratar da sabatina do indicado pelo presidente para o Supremo Tribunal Federal. Cogita-se de levar a proposta diretamente ao plenário do Senado, medida que conta com o apoio da indústria, que reconhece a contribuição da reforma tributária para o crescimento, não só da indústria, mas também dos demais setores.
Aliás, há outro estudo, dos economistas Edson Domingues e Débora Freire – também disponível no site do Centro de Cidadania Fiscal – que mostra que, mesmo com hipóteses conservadoras de impacto da reforma sobre o crescimento, todos os setores da economia serão beneficiados. É verdade que a indústria seria mais beneficiada, não porque a reforma crie uma distorção a favor da indústria, mas, ao contrário, porque as distorções do sistema atual prejudicam mais a indústria que os outros setores, seja pela oneração dos investimentos e das exportações, seja porque o consumo de produtos industriais é, hoje, mais tributado do que o consumo dos demais bens e serviços.
Embora o cenário não seja claro, acredito que há uma possibilidade de aprovação do substitutivo da PEC 110 pelo Senado. Além do apoio de vários senadores, o presidente Rodrigo Pacheco também é favorável à proposta. O parecer do Senador Roberto Rocha é bom. Pode não ser o ideal, que seria criar um único imposto sobre bens e serviços, mas é um projeto equilibrado politicamente e que atende bastante bem as necessidades do Brasil.
RPD: Está em tramitação no Congresso uma proposta sobre o Imposto de Renda que muitos qualificam como ruim. Qual sua opinião?
BA: É o PL 2337, que é o do poder Executivo e já foi aprovado na Câmara dos Deputados. O substitutivo tem alguns elementos positivos, como a correção da tabela do imposto de renda da pessoa física, que efetivamente está defasada, e algumas mudanças na tributação das aplicações financeiras. Os problemas do projeto estão, sobretudo, nas mudanças propostas para a tributação do lucro auferido pelas empresas.
O substitutivo aprovado na Câmara propõe reduzir a tributação das empresas, de 34% para 26% introduzindo, em contrapartida, uma tributação de 15% na distribuição de dividendos. Adicionalmente, o projeto elimina o atual regime de juros sobre o capital próprio, pelo qual uma parcela do lucro distribuído pelas empresas é dedutível como despesa (deixando de pagar 34%), sendo tributado exclusivamente na fonte a 15% quando da distribuição. Desse ponto de vista, o projeto até aproxima o modelo brasileiro do padrão internacional – que é a tributação na empresa e na distribuição. O problema é que o projeto prevê alguns casos em que não haveria a tributação na distribuição de dividendos, caso, principalmente, das empresas do SIMPLES e do regime de lucro presumido, com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões, mas também da distribuição de dividendos para holdings.
Quais os problemas desse projeto? Eu diria: vários.
Para entender esse ponto, é preciso voltar ao que eu disso no início, ou seja, que um projeto que mude o sistema tributário brasileiro deveria aumentar a progressividade e contribuir para a economia se tornar mais eficiente e crescer mais. Adicionalmente, no Brasil temos duas bases tributárias que são excessivamente tributadas, que são consumo e folha de salários, e temos duas bases que que poderiam ser mais exploradas, que são renda e patrimônio. O que faz esse projeto aprovado na Câmara dos Deputados?
O primeiro problema tem a ver com a composição da carga tributária. Segundo a Instituição Fiscal Independente, o projeto reduz a tributação da renda em quase R$ 40 bilhões e aumenta a tributação do consumo, principalmente via eliminação de benefícios fiscais para medicamentos, em cerca de R$ 15 bilhões. Ou seja, o projeto vai na contramão daquilo que a precisamos fazer no Brasil, que é tributar mais renda e menos consumo. Já temos aí um problema estrutural.
Segundo, embora seja verdade que a tributação na distribuição de dividendos possa corrigir distorções distributivas, o projeto abre duas exceções que reduzem muito, ou mesmo revertem, esse efeito positivo. A primeira dessas exceções é exatamente a isenção na distribuição de lucro por empresas do SIMPLES e lucro presumido com faturamento até R$ 4,8 por ano, o que tende a ampliar distorções que já são relevantes na tributação de trabalhadores “pejotizados”. Tomando por base aquele exemplo que dei do profissional liberal, que hoje já paga uma alíquota baixíssima de 11,9% sobre sua renda de R$ 100 mil por ano, caso o projeto que passou na Câmara seja aprovado, essa alíquota cairia ainda mais, para 8,7%. Ou seja, aquele que deveria pagar mais imposto, se eu corrigisse as distorções do sistema tributário brasileiro, vai pagar ainda menos do que paga hoje, amplificando as distorções atuais.
Adicionalmente, os grandes acionistas de grandes empresas ou já têm ou irão criar holdings para receber seus dividendos. Isto significa que a maior parte da renda desses acionistas não sofrerá a tributação na distribuição de dividendos.
Não estou dizendo que está errado você não tributar o imposto que é reinvestido, mas é preciso entender que, na prática, é provável que o grande acionista da grande empresa pague menos imposto do que paga hoje, porque será beneficiado pela redução da alíquota na empresa, e, no grosso da distribuição, não será tributado. Quem é que, afinal, vai estar de fato sendo mais onerado por conta da tributação na distribuição? É o pequeno e médio acionista da grande empresa – aquele que está na bolsa de valores. Esse acionista não tem holding. Ele recebe direto na pessoa física e certamente será o grande prejudicado pela mudança.
O desenho final ficou muito desequilibrado. O profissional liberal de alta renda, que hoje já paga pouco imposto, vai pagar ainda menos. O grande acionista da grande empresa talvez pague até menos imposto do que paga hoje. E o pequeno acionista da grande empresa é quem de fato via pagar a conta com a mudança que está sendo proposta. Claro que acho que, do ponto de vista distributivo, não é uma boa solução. Em alguns casos agrava o problema e, em outros, certamente, não resolve de forma adequado o problema distributivo do modelo brasileiro de tributação da renda.
Por último, do ponto de vista do impacto sobre o crescimento, tudo indica que o projeto também está desequilibrado. É verdade que a redução da alíquota na empresa e a introdução da tributação na distribuição pode ter um efeito positivo sobre investimentos, principalmente para empresas menores, que têm mais dificuldade de acesso a crédito. Em contrapartida, várias características da proposta geram distorções que tendem a ter um impacto negativo sobre o crescimento.
Em primeiro lugar, a isenção na distribuição de lucros para empresas com faturamento até R$ 4,8 milhões, vai estimular as empresas a se fragmentarem artificialmente, ou, até pior, a reduzir seu faturamento ou a sonegar para ficar dentro do limite de faturamento.
Em segundo lugar, com a eliminação do regime de juros sobre capital próprio, amplia-se a distorção entre a tributação do capital próprio (capital aplicado em ações ou cotas da empresa) e o capital de terceiros (dívida). Ou seja, cria-se um incentivo para que as empresas se endividem mais, o que as torna mais frágeis em situações de alta volatilidade econômica.
Em terceiro lugar, e por fim, o projeto tende a tornar o sistema mais complexo, porque a tributação em duas etapas – na empresa e na distribuição – exige uma série de controles, para evitar a distribuição disfarçada de lucros. Esse pode ser um custo a pagar se os demais efeitos da mudança forem positivos, mas certamente não é o caso do projeto aprovado pela Câmara.
Em resumo, diria que o efeito final do projeto, do meu ponto de vista, é bastante ruim tanto do ponto de vista distributivo quanto do impacto sobre o crescimento. O que é engraçado é que o projeto faz isso reduzindo a arrecadação, ou seja, perdem-se recursos públicos para piorar o sistema tributário. Sem dúvida alguma, trata-se de um projeto muito mal desenhado.
RPD: O Senado tem tentado fazer avançar a questão?
BA: O projeto tem hoje a relatoria do senador Ângelo Coronel, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Ele tem dado declarações de que pretende aprovar apenas o reajuste da tabela do imposto de renda das pessoas físicas, deixando o resto do projeto para ser discutido com calma em um prazo mais longo – que provavelmente não se encerraria nesse governo. Mas na política nunca é possível ter certeza sobre o que irá acontecer.
É interessante notar que o projeto original do governo estava descalibrado, pois claramente aumentava a carga tributária, mas, pelo menos, estava mais equilibrado que o que foi aprovado pela Câmara, porque compensava a redução da alíquota na empresa com uma série de medidas antielisivas. Essas medidas elisivas foram quase todas tiradas do projeto pelo relator na Câmara do Deputados. O desenho das medidas antielisivas tinha problemas, que precisavam ser corrigidos, mas o conceito estava correto.
RPD: Depois do que foi dito hoje, pode-se concluir que os interesses setoriais têm muito mais medo de aumento de custos focados neles de forma direta do que de outros problemas até maiores, mas que sejam mais gerais e de médio prazo e longo prazo, o que dá um viés aos deputados que tentam interpretar esses interesses, um viés muito imediatista talvez, e muito particularista. Não sei se essa minha primeira avaliação bate com sua interpretação dessas tramitações tão desiguais entre as propostas, sobre as quais você falou antes, e o projeto do governo.
BA: De fato, uma boa reforma tributária não é uma reforma em que todo mundo ganha, principalmente na tributação da renda. Em uma proposta bem desenhada, quem paga muito pouco hoje por conta das distorções do sistema atual vai ter que pagar mais.
No caso da reforma da tributação do consumo, tem setores que vão passar a pagar proporcionalmente mais do que pagam hoje e outros que irão pagar proporcionalmente menos. Obviamente isso tende a gerar resistência daqueles que acham que serão prejudicados, mesmo que eles efetivamente sejam beneficiados, por conta do maior crescimento.
Estamos diante de uma daquelas reformas em que o benefício para a sociedade é muito grande. Mesmo que acarrete uma redistribuição setorial da carga tributária, o maior crescimento favorecerá a todos os setores. Essa é a compreensão que precisa haver, assim como foi no caso da reforma da previdência, que apesar de prejudicar algumas pessoas era justa e necessária para garantir a solvência do país.
No caso da reforma tributária, temos de entender que existem distorções no sistema atual que prejudicam o crescimento e prejudicam a progressividade do sistema, e que, para corrigir essas distorções, pelo menos em termos proporcionais, alguns setores e algumas pessoas vão ter de pagar mais imposto do que pagam hoje, para que o país se torne mais eficiente e mais justo. Essa é uma discussão difícil do ponto de vista político, mas é uma discussão que acredito possível de ser feita. Se os parlamentares entenderem o quanto a correção dessas distorções torna o país mais eficiente e mais justo, o quanto isso ajuda o país a crescer de uma forma mais inclusiva, acho que existe espaço sim para avançar com essa pauta.
Nunca disse que é uma pauta fácil. Não é. Tecnicamente, acho que nós amadurecemos muito na discussão da reforma da tributação do consumo. Acho que ainda precisamos amadurecer mais na discussão da reforma do Imposto de Renda – olhar as várias alternativas que existem e avaliar custos e benefícios de cada uma delas. Sem dúvida, é um daqueles temas que mais cedo ou mais tarde o Brasil vai acabar enfrentando e, espero eu, enfrentando de forma adequada. Isso vai acabar acontecendo, caso contrário vamos continuar sendo um país que não cresce; um país excessivamente desigual. Temos de enfrentar essas questões se pretendermos tornar o Brasil um país mais inclusivo, que ofereça perspectivas para as pessoas. Não adianta resolver o problema distributivo e não ter crescimento. É fundamental abrir oportunidades para as pessoas com o crescimento econômico. E a reforma tributária trata dessas questões centrais para o futuro do Brasil: a questão distributiva, a questão do crescimento e a questão da inclusão social.
Saiba mais sobre o entrevistado
Bernard Appy é diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), uma organização voltada a análises econômicas que buscam a melhora na gestão pública, além disto Bernard é o mentor da proposta de reforma tributária que está em transitou no congresso em 2019. Appy ficou em evidência nas eleições presidências de 2018, quando se tornou referência de diversos candidatos à presidência no modelo de pensar novas alternativas de pensar a aplicação do imposto de renda.
Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Alon Feuerwerker: O ovo cru e o omelete
A dúvida é como vamos sair da pasmaceira. Um caminho é sempre a eleição presidencial
Alon Feuerwerker / Análise Política
Um aspecto tem passado algo despercebido em todo esse imbróglio sobre o novo valor do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família) e de onde virão os recursos: o assunto ter provocado a necessidade de aprovar uma emenda constitucional. Isso parece ter decorrido de dois fatores: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os precatórios e o teto de gastos ter sido lá atrás introduzido na Constituição.
Tudo sempre guarda alguma explicação, mas é bastante anômalo que decisões simples de governo tenham passado a depender de mudar sistematicamente a Constituição. É um sintoma de várias coisas, antes de tudo de ter caducado a ordem constitucional construída em 1988. É sintoma também do grave enfraquecimento do Executivo. Uma tendência inaugurada pelas vicissitudes de Dilma Rousseff e acelerada no intervalo Michel Temer.
A eleição de Jair Bolsonaro representou um impulso à retomada da centralidade política do Palácio do Planalto, mas a tendência centrífuga retornou conforme o presidente se enfraqueceu devido aos próprios erros políticos, especialmente na abordagem da Covid-19. E chegamos à situação atual, quando mexer nos programas sociais depende de PEC, e a rotina diária dos ministros do STF supõe passar o tempo desfazendo o que o governo faz.
A situação agrada a quem está na oposição pois vai levando à progressiva paralisia governamental, e também neutraliza as teóricas vantagens operacionais da maioria congressual. Antigamente, governar dava trabalho. Era preciso ganhar a eleição de presidente e formar base parlamentar sólida. Hoje em dia, basta eleger meia dúzia de deputados e recorrer ao STF quando o governo faz algo que desagrada à opinião pública.
É uma situação confortável para quem, na política, não tem perspectiva de poder formal e regular, e também para quem mais influencia o ir e vir dos cordéis que movimentam a opinião pública. A dúvida é sobre a sustentabilidade. Um debate constante no Brasil é se as instituições estão funcionando. Estão funcionando sim, e funcionando tanto que o sistema de freios e contrapesos chegou ao estado da arte, com eficiência ótima: tudo travou.
A dúvida é como vamos sair da pasmaceira. Um caminho é sempre a eleição presidencial. O problema: faz muito tempo a humanidade já sabe como transformar ovo cru em omelete, mas a rota inversa é um mistério que permanece insolúvel, desde sempre, aos mais brilhantes cérebros científicos. É ilusão imaginar que bastará eleger alguém para “as instituições” recolherem-se à casinha.
Mas História não é Biologia ou Química. Na História, o omelete pode voltar a ovo cru. Geralmente, situações assim são destravadas por alguém que acaba cortando o nó górdio. Uma coisa é certa, como já foi dito: o cenário crônico de paralisia política, baixo crescimento econômico e travamento institucional não permanecerá indefinidamente. Alguma transição virá. Há apenas duas dúvidas: quem a fará e como.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/11/o-ovo-cru-e-o-omelete.html
Baixa aprovação de Bolsonaro põe em risco projeto de reeleição
Série de pesquisas indica que Bolsonaro está aquém de índices que presidentes e governadores tinham 12 meses antes do pleito
Bernardo Mello / O Globo
RIO — Restando cerca de um ano para a eleição de 2022, e com a avaliação positiva num patamar de 20%, segundo a pesquisa Datafolha mais recente, o presidente Jair Bolsonaro disputará novo mandato diante de um histórico desfavorável para governantes com taxas de aprovação semelhantes. Levantamento da consultoria Ideia Big Data para o GLOBO mostra que, desde 1998, quando a reeleição passou a ser permitida, presidentes e governadores que foram reconduzidos costumavam ter taxas de ao menos 40% de aprovação numa janela que compreende os 12 meses antes da votação.
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Em 2018, ano em que pela primeira vez o presidente, Michel Temer (MDB), declinou de tentar outro mandato mesmo podendo concorrer, Bolsonaro chegou ao segundo turno e elegeu-se numa campanha com condições adversas. Além de pouca estrutura partidária com o então nanico PSL, Bolsonaro era o candidato com maior taxa de rejeição, sempre próxima a 40%, durante todo o primeiro turno. Para 2022, em que pesem as avaliações negativas de sua gestão, o presidente aposta no lançamento do Auxílio Brasil, programa que ocupará o lugar do Bolsa Família, para melhorar seu patamar de aprovação.
Metodologia
O levantamento da Ideia Big Data considerou as medianas — isto é, o valor intermediário, dentro de um conjunto de pesquisas — das taxas de aprovação de governantes que tentaram a reeleição. No caso de governadores, considerando pesquisas realizadas entre 12 e 9 meses antes da eleição, a mediana de avaliação positiva dos reeleitos foi de 41%. Já os não reeleitos eram aprovados por 27% a 30% do eleitorado.
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Nas três reeleições presidenciais desde 1998, a aprovação dos ocupantes dos cargos ficou acima de 30% no período de um ano que antecedeu os pleitos — a de Bolsonaro, hoje, é de 23%. A exceção, de acordo com o levantamento, foi a reeleição em 2006 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aprovado por 29% no fim de 2005. Às vésperas da eleição, porém, o petista chegou a 44%.
O diretor-executivo da Ideia Big Data, Mauricio Moura, vê pontos em comum entre o salto de Lula e o efeito buscado por Bolsonaro com o Auxílio Brasil. Com a imagem do governo desgastada à época pelo mensalão, Lula experimentou uma guinada positiva em paralelo à expansão do Bolsa Família, implementado por seu governo em janeiro de 2004. O programa, que beneficiava 8 milhões de famílias ao fim de 2005, ampliou gradativamente seu alcance até chegar a 11,2 milhões de famílias em julho de 2006, sem mexer no valor do benefício.
Bolsonaro, por sua vez, aposta no aumento do benefício para R$ 400 por família até o fim de 2022, mas sem planos de expandir a base atendida, que será menor do que no auxílio emergencial. Hoje, o Bolsa Família atende 14,6 milhões de famílias. A expectativa é que o Auxílio Brasil chegue a 17 milhões; a diferença corresponde à fila já existente para cadastro no programa. O auxílio emergencial, que também inclui desempregados e trabalhadores informais, tem hoje 39,4 milhões de beneficiários.
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— Além de uma aprovação muito menor que seus antecessores, Bolsonaro tem um saldo muito negativo entre aprovação e rejeição. Se ele apenas voltar a um patamar de 30% de aprovação, como já esteve antes, não é o suficiente. Precisaria ampliar um pouco também a faixa de eleitores que o consideram regular — avalia Moura.
Em setembro, o Datafolha mostrou que a avaliação negativa do governo era de 53%, mais de 30 pontos percentuais acima do índice de aprovação (22%).
Outras variantes
Especialistas têm avaliado que apenas o incremento do novo Auxílio Brasil, em um cenário de alta de preços, pode não ser suficiente para aumentar a popularidade de Bolsonaro. Segundo o IBGE, a inflação acumulada de 12 meses chegou a 10,6% em outubro, que registrou sua maior variação mensal desde 2002.
O cientista político Jairo Pimentel Jr. lembra que, em 2020, Bolsonaro já teve queda na popularidade após a redução pela metade do auxílio emergencial, originalmente de R$ 600, e da queda de quase 30 milhões no número de pessoas atendidas.
— Ainda que o auxílio emergencial tenha trazido um pico de popularidade a Bolsonaro em 2020, hoje ele tem cinco pontos a menos de avaliação positiva em relação ao período que antecedeu os pagamentos — afirma.
A socióloga Esther Solano aponta ainda uma percepção de “insegurança” das famílias por conta da migração de programas sociais. Em meio à tentativa de aprovar a PEC dos Precatórios — agora no Senado —, que abrirá espaço fiscal para o programa, o governo adiou o reajuste de R$ 400 do Auxílio Brasil para dezembro.
'Efeito Bolsonaro' aumenta apoio à militarização das polícias, diz pesquisa
Trabalho foi feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com profissionais da categoria de todo o País
Marcelo Godoy / O Estado de S.Paulo
Cresceu o apoio à militarização das polícias entre os profissionais de segurança pública, em mais um efeito da influência do bolsonarismo nas polícias. É o que mostra a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgada nesta quinta-feira, dia 11.
“Isso ocorre como efeito combinado da dispersão de pautas corporativistas, da divisão de interesses das várias carreiras da área e da radicalização política das polícias. O presidente Jair Bolsonaro procura cooptar as polícias sem enfrentar temas que podem dividem as polícias”, afirmou o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do fórum.
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Em três temas pesquisados pelo fórum entre os profissionais da segurança ficou claro na pesquisa o aumento do apoio à militarização da área, quando comparados os dados de 2021 aos da mesma pesquisa em 2014. O primeiro tema é a queda no suporte dado à ideia de se acabar com a Justiça Militar para os policiais militares. Ele era de 63% em 2014; agora, é de 45%. O mesmo aconteceu com a ideia de que as polícias militares e os corpos de bombeiros deixaram de ser forças auxiliares do Exército, cujo apoio caiu de 73% para 54%, bem como em relação à defesa da extinção dos inquéritos policiais militares, que recebia a concordância de 58% dos policiais e, agora, conta com o apoio de 42%.
Os dados da pesquisa Escuta dos Profissionais de Segurança Pública no Brasil mostram ainda queda do apoio à ideia de uma polícia unificada e com o chamado ciclo completo, ou seja, que atue tanto no policiamento preventivo quanto na investigação de delitos. Em 2014, essa ideia tinha a concordância de 56% dos profissionais de segurança, ante 46% agora. Isso, no entanto, não significa o apoio irrestrito ao modelo atual. Nesse caso, o suporte ao sistema permanece quase inalterado: era de 14%; hoje, é de 16%.
Apesar do crescimento do apoio à militarização do setor, os dados do fórum indicam que os policiais reconhecem, em sua maioria (76%), a necessidade de “reorientar o foco da PM para a proteção de direitos de cidadania”.
A pesquisa ouviu por meio de questionários 9.067 profissionais da segurança pública de todas as unidades da Federação e corporações policiais. Os dados foram reunidos entre abril e maio deste ano.
“Há muita convergência hoje entre os profissionais das forças de segurança”, afirmou o presidente da Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), André Gutierrez.
Entre os entrevistados, 81% dos policiais apoiam a organização das polícias em uma carreira única, com apena uma porta de entrada, como ocorre, por exemplo, na Polícia Rodoviária Federal. Esse apoio é menor entre os policiais federais. “Não acreditamos que a carreira única seja a melhor solução para a PF”, afirmou o presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva.
Atualmente, 71% dos entrevistados apoiam a ideia de investir no policiamento comunitário em vez de se priorizar as prisões. “Precisamos servir nosso patrão, que é o cidadão, e ele não vem sendo servido”, disse Gutierrez, da Cobrapol. Paiva concorda. Para ele, faltam planos plurianuais de investimento. “A polícia judiciária perde recursos com as outras polícias. Se ela tivesse plano de investimentos, isso faria a segurança pública crescer.”
A pesquisa registrou ainda que 4% dos policiais foram baleados em serviço e que existe uma visão negativa em relação à Justiça e ao Ministério Público. Para 22% dos entrevistados, a Justiça se opõe ao trabalho policial, tornando-o mais difícil. Outros 46% disseram acreditar que a magistratura seria insensível ou indiferente às dificuldades do trabalho policial. O mesmo valeria para o Ministério Público, segundo 48% dos policiais.
“O sistema de Justiça criminal não é só de responsabilidade da segurança pública, cada um dos seus componentes precisa fazer autocrítica”, afirmou Paiva.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,efeito-bolsonaro-aumenta-apoio-a-militarizacao-das-policias-diz-pesquisa,70003896380
Percepção de servidores sobre corrupção no governo aumenta na pandemia
Pesquisa sobre ética e corrupção no serviço público federal, realizada pelo Banco Mundial, ouviu mais de 22 mil funcionários da União
Weslley Galzo / O Estado de S. Paulo
A crise provocada pela pandemia de covid-19 no País estimulou casos de corrupção e a conduta antiética no serviço público. A conclusão consta de pesquisa desenvolvida pelo Banco Mundial com base na percepção de servidores públicos que atuam no governo de Jair Bolsonaro. Para 55,4% dos trabalhadores, situações como interferência política nas decisões organizacionais se mantiveram iguais ou cresceram neste período. Ao mesmo tempo, mais da metade (51,7%) respondeu não se sentir seguro o suficiente para denunciar condutas ilícitas.
A “Pesquisa sobre Ética e Corrupção no Serviço Público Federal” ouviu 22.130 funcionários públicos de maneira remota, entre abril e maio deste ano, para traçar o perfil da corrupção nos órgãos da União, como ministérios e secretarias.
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Embora boa parte dos participantes do levantamento tenha preferido não responder a perguntas sobre atos antiéticos no seu ambiente de trabalho, cerca de 50,6% dos entrevistados afirmam ter notado aumento de conflitos de interesse entre a iniciativa privada e o setor público.
O período analisado pela pesquisa coincide com as primeiras denúncias de irregularidades do governo do presidente Jair Bolsonaro no enfrentamento à pandemia. Abril e maio deste ano foram os primeiros meses de trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado.
Na semana de encerramento da pesquisa, os senadores da CPI ouviram Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação, do Ministério da Saúde. Mayra foi a responsável pelo desenvolvimento da plataforma TrateCov – o aplicativo acabou retirado do ar após denúncias de que o protocolo sugerido indicava uso de cloroquina para pacientes de todas as idades, com diferentes sintomas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que o medicamento é comprovadamente ineficaz contra a covid-19.
Além de Mayra, a CPI ouviu o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, que relatou ter feito uma oferta, recusada, de 100 milhões de doses da vacina Coronavac ao Ministério da Saúde. As declarações à CPI evidenciam a percepção de interferência política relatada pelos entrevistados no levantamento coordenado pelo Banco Mundial.
Outro aspecto apresentado pela consulta foi o aumento da falta de transparência e prestação de contas no processo de decisão sobre contratações e compras feitas com dinheiro público, um problema apontado por cerca de 22,4% dos entrevistados. Para 22,2%, houve aumento do lobby entre os setores público e privado durante a pandemia.
Entraves. Além de traçar o panorama da corrupção na administração pública federal, a pesquisa mostrou a existência de entraves nas estruturas dos órgãos que desestimulam os servidores a denunciar casos antiéticos, e até crimes, presenciados por eles. Dos que responderam que não se sentem seguros o suficiente para denunciar condutas ilícitas, 58,7% afirmaram já ter observado práticas irregulares e 33% disseram nunca ter visto condutas não recomendadas no ambiente de trabalho.
"Servidores relatam altos níveis de insegurança ao denunciar atos de corrupção, o que pode ser atenuado por capacitação em programa de integridade", diz trecho do relatório do Banco Mundial. "Ter acesso a programas de integridade está relacionado a um menor sentimento de insegurança, sendo um importante instrumento para criação de uma cultura anticorrupção", recomenda.
Nos últimos 3 anos, período que compreende a gestão Bolsonaro, um terço dos entrevistados declarou ter testemunhado ao menos um ato antiético. No mesmo período, 52,1% garantiram não ter visto irregularidades, enquanto 14,5% preferiram não responder.
Os dados foram reunidos com apoio da Controladoria-Geral da União (CGU), do Ministério da Economia, e da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Na lista dos que presenciaram algum caso de corrupção ou desvio de função, a maior parte indica ter observado comportamento antiético na formulação de políticas, projetos ou programas (37,7%) ou em compras e contratações de serviços e obras (35,3%).
Uma série de reportagens do Estadão sobre o orçamento secreto revelou como o governo Bolsonaro tem distribuído recursos da União por meio das emendas de relator do Orçamento – as chamadas RP-9 –, sem critérios técnicos, a um grupo de parlamentares, principalmente às vésperas de votações de interesse do Palácio do Planalto. O caso também ficou conhecido como “tratoraço” porque boa parte dos repasses é destinada à compra de maquinário agrícola e tratores usados em obras nos redutos eleitorais dos aliados de Bolsonaro.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,percepcao-de-servidores-sobre-corrupcao-no-governo-aumenta-na-pandemia,70003895600
Rebelião na Economia chega ao MEC, a cientistas, professores, ambientalistas... E vai continuar
Cai um atrás do outro, por desencanto e impotência, e ninguém de fora se anima a assumir, por precaução e juízo
Eliane Cantanhêde / O Estado de S. Paulo
A debandada não é só no Ministério da Economia, é também no da Educação e o presidente Jair Bolsonaro coleciona manifestos e desafetos, não mais um daqui, outro dali, mas às dúzias e das mais variadas áreas.
Já se perdeu a conta das baixas na Economia, que atingem altos escalões, como as secretarias do Tesouro, Receita Federal, Administração e Privatizações. Cai um atrás do outro, por desencanto e impotência, e ninguém de fora se anima a assumir, por precaução e juízo. Assim, o jeito é embaralhar as peças no mesmo tabuleiro: o próprio governo.
O MEC vai no mesmo caminho. Até a conclusão desta edição, já tinham se demitido 33 servidores do Inep, responsável pelo Enem, a 13 dias das provas, com 3 milhões de inscritos. Alegaram “fragilidade técnica e administrativa” – ou seja, bagunça – da atual gestão. O diretor, Danilo Dupas, é o quarto no governo Bolsonaro.
Se a crise vem de dentro, vem também de fora do governo, onde doutores da academia e das áreas científica e ambiental, para ficar só nas crises mais agudas, fazem fila para dizer um “basta” ao negacionismo, à ignorância, à falta de prioridades, às perseguições.
Grão-mestre do Mérito Científico, o que já é um escândalo, Bolsonaro cancelou a entrega de medalhas para Marcos Vinícius Guimarães Lacerda, autor de um estudo comprovando a ineficácia da cloroquina contra a covid-19, e Adele Benzaken, demitida já em 2019 do Departamento de HIV/AIDS por causa de uma cartilha para homens trans. Ambos da Fiocruz.
Como reação, 21 cientistas renunciaram à medalha, por “indignação, protesto e repúdio” à exclusão dos dois colegas, ao negacionismo e ao drástico corte de verbas para Ciência. E não ficou por aí, pois 38 professores eméritos da UFRJ foram na mesma linha.
Isso remete ao desmanche da Saúde, com um ministro que não conhecia o SUS, do Meio Ambiente, com um que jamais pisara na Amazônia, da Política Externa, pró-trump, e da Cultura, com um simpatizante de Hitler. E o desmatamento cresce e os biomas e indígenas são ameaçados, enquanto o total de multas ambientais é o menor em 20 anos! Madeireiros ilegais, contrabandistas, invasores e destruidores em geral fazem a festa.
E o presidente? Não pode comemorar o avanço da vacinação, após defender “tratamento precoce” e desdenhar das vacinas na ONU, passa ao largo da COP 26 para fugir de “pedradas” e reclama que os argumentos da ministra Rosa Weber (STF) para suspender o orçamento secreto (e o “tratoraço”) “não são justos”. Afinal, o que é e o que não é justo?
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,rebeliao-na-economia-chega-ao-mec-a-cientistas-professores-ambientalistas-e-vai-continuar,70003893302
Felipe Salto: Orçamento do país não pode ter dono
Emendas de relator deveriam se restringir à correção de erros e omissões
Felipe Salto / O Estado de S. Paulo
Adam Smith, na Teoria dos sentimentos morais (1759), escreveu que “a regra geral se forma por se descobrir, a partir da experiência, que se aprovam ou desaprovam todas as ações de determinada espécie, ou circunstanciadas de certa maneira”. Isto é, a prática e os valores precedem as leis. As emendas de relatorgeral do Orçamento desvirtuam uma regra geral fundamental: o respeito ao dinheiro público. É o patrimonialismo redivivo.
O Poder Executivo envia ao Congresso a proposta orçamentária. As únicas hipóteses para emendas parlamentares são: a anulação de despesas e a correção de erros e omissões. Está no parágrafo 3.º do artigo 166 da Constituição: “As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso: (...) II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa (...); ou III – sejam relacionadas: a) com a correção de erros ou omissões; ou b) com os dispositivos do texto do projeto de lei.”
As emendas individuais e de bancada tornaram-se impositivas, respectivamente, em 2015 e 2019 (Emendas à Constituição – ECS n.ºs 86 e 100). No caso das individuais, garantiu-se 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL, conceito usado para medir a arrecadação) em 2017, sendo metade obrigatoriamente para a saúde. Já as emendas de bancada estadual correspondem a 1% da RCL. As emendas individuais, conforme a EC n.º 95, de 2016, são corrigidas pela inflação acumulada em 12 meses até junho (regra do teto).
Antes, o Executivo podia contingenciá-las. Hoje, há uma blindagem do valor reservado já no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), que só pode ser reduzido na mesma proporção em que o Executivo cortar as suas despesas discricionárias (não obrigatórias).
Desde 1989, o Congresso reestimava as receitas calculadas pelo Executivo alegando “erro” de projeção. Isso abria espaço para emendas ao Orçamento, depois contingenciadas parcialmente por decreto. Ocorre que o teto de gastos reduziu a eficácia desse jogo. A Instituição Fiscal Independente (IFI) tem mostrado, há vários anos, a contenção das despesas discricionárias requerida para cumprir o teto. Começouse a buscar saída para emendar o Orçamento escapando das amarras do teto. Reestimar a receita já não serviria na presença de despesas próximas do teto.
A solução foi ampliar o escopo das emendas de relator-geral do Orçamento, promovendo inclusive revisões para baixo em projeções de gastos obrigatórios, como ocorreu em 2021. O papel do relator é central; coordena as alterações no Ploa em todas as etapas. Para isso, dialoga permanentemente com o Executivo. As emendas de relator deveriam se restringir à correção de erros e omissões, com amparo na Constituição. Uma brecha da Resolução do Congresso n.º 1, de 2006, tem permitido a extrapolação do texto constitucional.
Ocorre que, desde 2019 (já ocorria antes em menor intensidade), essas emendas do relator começaram a acolher demandas de parlamentares e do próprio Executivo. O relator passou a emendar o Orçamento por meio de um carimbo específico (o “RP-9”), uma forma de identificar essas mexidas e garantir os acordos a posteriori. A pulverização e o tamanho alcançados levaram aos alertas da imprensa, inicialmente do
Estadão, em matérias do jornalista Breno Pires. Na IFI, publicamos dois trabalhos sobre isso no âmbito do Orçamento de 2021.
A decisão da ministra Rosa Weber, nos últimos dias, limita o RP-9. Está correta. Não há critérios objetivos para a gestão desses vultosos recursos e as combinações entre governo e relator-geral estão muito distantes dos olhos da sociedade. Por que um município recebeu mais em RP-9 do que outro? Hoje, com dados públicos, é impossível responder a questões como essa.
O tipo de negociação aí embutida deve merecer as atenções de todos nós. A PEC dos Precatórios, por exemplo, foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados. O rombo no teto de gastos poderá ficar entre R$ 92 bilhões e R$ 95 bilhões em 2022. Uma parte relevante iria para o relator-geral distribuir no âmbito do Ploa. Os fatos estão aí. O quadro é potencialmente grave.
O orçamento das emendas de relator-geral está em torno de R$ 17 bilhões em 2021. Há gastos do Ministério do Desenvolvimento Regional, do Fundo Nacional de Saúde, dentre outros. Para 2022, as contas preliminares da IFI indicam emendas de relator na casa de R$ 15 bilhões, caso se aprove a PEC dos Precatórios.
Se o RP-9 passou a ser um instrumento novo na relação entre o Executivo e o Legislativo, ele tem de ser regulamentado. Deve haver regras para realizar tais despesas, e com transparência, ou voltaremos à idade da pedra lascada na gestão fiscal. Alternativamente, restrinja-se a emenda de relator.
Raymundo Faoro escreveu, em Os donos do poder: “A comunidade política conduz (...) os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois (...). O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo (...)”.
O Orçamento não pode ter donos.
*Diretor-executivo e responsável pela implantação da IFI
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,orcamento-nao-pode-ter-dono,70003893114
TCU decidirá se abrirá processo sobre orçamento secreto
No Tribunal de Contas da União (TCU), há, pelo menos, seis a sete processos tratando do tema
Rosana Hessel / Correio Braziliense
Não é apenas o Supremo Tribunal Federal (STF) que está de olho nas polêmicas emendas do relator-geral, as chamadas RP9, que estão no centro das denúncias do "orçamento secreto" e são moeda de troca para a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, prevista para hoje (9/11).
No Tribunal de Contas da União (TCU), há, pelo menos, seis a sete processos tratando dessas emendas do Orçamento de 2021, de acordo com o procurador do Ministério Público no TCU Júlio Marcelo de Oliveira. Ele investigou a ação que trata sobre a compra de tratores superfaturados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e contou que está tudo fragmentado.
No relatório que o procurador preparou sobre as compras do MDR, ele constatou sobrepreço de 13,8% a 63,1% sobre os valores de referência no pregão de compra de motoniveladoras e escavadeiras hidráulicas para os estados do Amapá, Goiás, Bahia e Alagoas.
Oliveira recomendou uma medida cautelar para interromper o edital e suspender os pagamentos. Contudo, o ministro relator Jorge de Oliveira, ex-ministro da Controladoria-Geral da União (CGU) e indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo, negou a cautelar.
O procurador do MP lembrou que, em outro processo, relatado pelo ministro-substituto Weder de Oliveira, identificou sobrepreço superior a 10% em itens de pelo menos oito dos 39 nove certames licitatórios conduzidos pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Cofevasf) relacionados à aquisição de máquinas e equipamentos pesados.
Na ocasião, o então ministro-relator determinou medida cautelar para que a companhia suspendesse a aquisição de máquinas e compra de tratores pela Codefasf. Foi concedida a cautelar porque há indícios de superfaturamento.
"Nesse processo da Codevasf, os tratores são mais modernos do que os que foram comprados pelo MDR, e os preços são menores", contou Oliveira. Ele fez uma nova petição discorrendo sobre as irregularidades no leilão conduzido pelo MDR e solicitando a suspensão do edital e dos pagamentos pendentes. O pedido está aguardando análise.
Amanhã, o TCU deverá analisar um outro processo, também tratando de irregularidades no uso das emendas, chamado "orçamento secreto", em troca de apoio parlamentar. Segundo a assessoria do órgão, o ministro Raimundo Carreiro é quem vai decidir sobre o encaminhamento de dois pedidos do sobre o mesmo tema, sendo um do líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), e outro do procurador Lucas Furtado.
Esse processo é de setembro, mas vale lembrar que, no caso das pedaladas da ex-presidente Dilma Rousseff, o então relator, José Múcio Monteiro, levou apenas cinco dias para levar o tema à votação no plenário. Outra denúncia sobre a existência desse orçamento paralelo de R$ 3 bilhões está sendo relatada pelo ministro Aroldo Cedraz e segue na fase das oitivas.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/11/4961676-tcu-decidira-se-abrira-processo-sobre-orcamento-secreto.html