governo bolsonaro

Guilherme Amado: A democracia engasga

Na semana anterior ao Carnaval, que em outros tempos sempre foi uma contagem regressiva para a folia, o país voltou algumas casas no jogo democrático

Quando escrevi, na coluna passada, sobre a pesquisa que a socióloga Esther Solano vem fazendo sobre o bolsonarismo, a democracia brasileira estava um pouco mais forte. Analisei como Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Complutense de Madri, havia identificado, a partir de entrevistas com bolsonaristas moderados de classes C e D, os atributos antissistêmico, antipartidário/antipetista, anti-intelectual, religioso e militar que motivaram o voto desse segmento em 2018. Decidi voltar ao tema na coluna desta semana por três razões.

Primeiro, percebi que, por falha minha, houve incompreensão de alguns leitores sobre o que é esse tipo de pesquisa, usada não só nas ciências sociais, mas também no marketing, na produção cultural e em diversos outros campos.

Voltei a ele também porque, ao ler os comentários de leitores da coluna no Instagram sobre um vídeo que mostra livros da biblioteca do Planalto empilhados no chão, percebi que ali estavam outros testemunhos ainda mais reveladores do bolsonarista como ele é. Mas, sobretudo, voltei ao tema porque concordo com o que meu colega Helio Gurovitz escreveu algumas edições atrás em ÉPOCA: a imprensa tem o desafio de buscar entender por que, apesar de tudo, cerca de um terço do país segue apoiando Bolsonaro. E o “tudo” só fez aumentar nos últimos dias.

Nesta quinta-feira 20, dia do fechamento desta edição de ÉPOCA, torço para que chegue logo a hora do desbunde, e que samba, frevo e pagode engulam a radicalização política que ganhou ainda mais ritmo desde a terça-feira 18.

Naquele dia, Jair Bolsonaro acordou ofendendo a jornalista Patrícia Campos Mello de maneira misógina e covarde, em mais um stand-up comedy de agressividade na porta do Palácio da Alvorada. Horas mais tarde, graças a um descuido numa transmissão ao vivo via Facebook da cerimônia de hasteamento da bandeira no Planalto, o ministro Augusto Heleno, um ex-fardado que tem trabalhado para escalar o ódio no país, foi flagrado aconselhando Bolsonaro a convocar o “povo” contra o Congresso, a que acusou de chantagear o governo.

Na quarta-feira 19 as bordoadas continuaram. Soube-se que, imiscuindo-se no jogo político, Sergio Moro tirou da gaveta a autoritária e anacrônica Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura para perseguir opositores, e a empregou em “plena democracia” contra um de seus mais ferrenhos... opositores. No mesmo dia, como em Macondo, o senador Cid Gomes (PDT) peitou policiais amotinados em Sobral, Ceará, subiu numa retroescavadeira e, ao tentar invadir o batalhão local da Polícia Militar, foi baleado com dois tiros. Ciro Gomes dirigiu-se a Eduardo Bolsonaro no Twitter para afirmar que a ação de seu irmão Cid era contra a tentativa de milícias controlarem o Ceará, como, segundo Ciro, “os canalhas” da família Bolsonaro teriam feito com o Rio de Janeiro.

O barata-voa da esquerda merece uma análise mais detida, que ficará mais para a frente. Voltemos aos bolsonaristas e ao porquê de, apesar de tudo, apesar de uma semana como esta, o apoio ainda subsistir. Para isso, selecionei alguns comentários feitos por leitores claramente defensores do presidente sobre o vídeo, publicado no domingo 16 no site de ÉPOCA, que mostra livros da Biblioteca da Presidência da República empilhados sem nenhum cuidado num corredor, para dar lugar à obra que abrigará a sala da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Como a colunista Bela Megale, de O Globo, mostrara dias antes, o Planalto decidira diminuir a centenária biblioteca, criada no governo de Wenceslau Braz (1914-1918) e especializada em ciências sociais, Direito, economia e administração. Provavelmente, muitos dos livros mostrados no vídeo eram, portanto, edições de décadas ou séculos.

Cerca de 700 comentários pipocaram no Instagram da coluna ao publicarmos as imagens. Além do contumaz repositório de ira, eles formaram um retrato fidedigno do bolsonarismo em sua essência. Curiosamente, apareceram ali o anti-intelectualismo, o antipartidarismo/antipetismo, a negação do sistema, a influência religiosa e a militar.

O anti-intelectualismo saltou aos olhos. “Parabéns! A primeira-dama Michelle merece, tem feito nos dias de hoje muito mais para o Brasil do que esses livros”, defendeu um leitor. “Esses livros já estão empoeirados há muito tempo. Primeiro, no governo petista ninguém lia, (...) porque não sabem ler”, disse outro. Um terceiro foi mais duro: “Tem é de botar fogo nisso. Livros velhos só servem para juntar pó”.

Solano defende em sua pesquisa que professores e intelectuais são intermediadores da transmissão do conhecimento e, como todo intermediador, colocado em xeque pelo bolsonarismo. Também é assim com o político profissional e com o jornalista. “Por que devo aceitar uma política conduzida por políticos profissionais? Por que devo aceitar verdades científicas e acadêmicas validadas por intelectuais? É a negação daqueles que tradicionalmente atuaram como mediadores entre os indivíduos, o conhecimento e a participação política”, escreveu a socióloga em “Elementos do bolsonarismo”, artigo ainda não publicado e que resume uma parte da pesquisa, feita em fevereiro e março de 2019.

Naqueles dois meses, Solano fez 24 entrevistas em profundidade — uma técnica de pesquisa qualitativa que busca, a partir de uma interação presencial de horas com o entrevistado, entender aspectos de um assunto que os números são incapazes de mostrar. Foram escolhidos brasileiros C e D com um mesmo perfil. “Escolhemos o que chamamos de bolsonaristas moderados, que votaram em Bolsonaro, mas não são os mais radicalizados. É aquela pessoa que não tem uma adesão total e já demonstra certo arrependimento”, explicou Solano.

A rotulação da academia e do intelectualismo como de esquerda ou petista também aparece nos comentários, como mostra essa sequência, de três leitores diferentes: “Já que o pessoal que vota em Lula é intelectual, esses livros devem ensinar somente uma coisa, a roubar”; “Os livros de valor o Lula já roubou todos”; “Livros que o Lula fingia ler”.

Outros comentários nas redes da coluna trazem também exemplos da influência religiosa e militar na concepção de mundo do bolsonarista, o que também é abordado na pesquisa de Solano. Estaria em curso uma cruzada moral, com os valores familiares cristãos em xeque. A sociedade viveria uma crise de valores causada por não ter a religião como bússola. “Mil vezes um evangélico batendo em minha porta do que um bandido protegido pelo PSOL pulando meu muro”, escreveu um leitor, desta vez no Facebook, ao comentar uma notícia sobre parlamentares evangélicos. “Antes uma bancada da Bíblia que uma bancada comunista”, afirmou outro na mesma seção de comentários. Já os fardados, com autoridade e disciplina, seriam capazes de impor respeito. “Com a graça de Deus. Coloca o Exército nas ruas, vai ficar bom demais”, defendeu uma leitora, numa nota sobre o crescimento do número de militares na Esplanada. “Verde-oliva na área. Qualquer reclamação, falar com os generais”, comemorou outro.

Comentários assim e pesquisas como a de Solano mostram quais são algumas das razões, portanto, que motivam quem segue apoiando Bolsonaro. Gestos como o do presidente, atacando uma jornalista; de Moro, usando uma lei da ditadura para intimidar um opositor; ou de Heleno, incitando o presidente contra o Congresso de políticos profissionais que “chantageiam”, atendem a anseios de parte da população. É o que o cientista político alemão Yascha Mounk aborda no ótimo O povo contra a democracia.

Ainda que outras entrevistas em profundidade feitas por Solano, em setembro do ano passado, tenham apontado decepção desses bolsonaristas moderados, pesquisas quantitativas seguem mostrando o apoio de um terço dos eleitores, sem variações expressivas, para cima ou para baixo. Enquanto isso, Bolsonaro continua dobrando a aposta, cada vez mais ministros vão se radicalizando e nossa democracia vai aos poucos engasgando. Que os dias de Momo nos ajudem a recobrar o fôlego.


Ricardo Noblat: Bolsonaro, entre o apelo à ordem e o desfrute da desordem

O ex-sindicalista fardado hesita

Uma vez que o governador Camilo Pena (PT), do Ceará, pediu o envio de tropas da Força Nacional para restabelecer a ordem no seu Estado ameaçada por policiais fantasiados de milicianos, Jair Bolsonaro fez o que lhe cabia – atendeu-o.

Mas é a favor dos baderneiros mascarados, que usam seus próprios familiares como escudos humanos a exemplo dos terroristas do Estado Islâmico, que bate o coração do outrora sindicalista militar afastado do Exército por indisciplina.

Foi por ser um bom atleta que Bolsonaro começou a chamar a atenção dos superiores em sua fase inicial na caserna. Na fase terminal, destacou-se por reivindicar melhores salários para a soldadesca e tramar atentados a bomba em quartéis.

O sindicalista fardado deu lugar ao deputado federal de uma nota só – a defesa intransigente de tudo o que pudesse interessar aos seus antigos pares. Foi entre eles que montou sua base eleitoral. O resto é história conhecida.

Empossado na presidência, dedica-se desde o primeiro instante em fazer o gosto dos que o apoiaram incondicionalmente – e, entre esses, estão os militares e os policiais beneficiados com suas medidas.

E agora? Como comportar-se quando o dever lhe impõe que não compactue com greves ilegais, e ele, no entanto, hesita em bater de frente com seus devotos? É real o perigo de a sedição armada no Ceará alastrar-se a galope por outros Estados.

Anteontem, em Fortaleza, no 18º batalhão da Polícia Militar transformado na central da desordem, os amotinados receberam a visita de um deputado que lhes prometeu o apoio de Bolsonaro. A massa respondeu com gritos de “Mito. Mito”.

Assim como Bolsonaro não disse até aqui uma só palavra a respeito do ataque do general Augusto Heleno ao Congresso chamado por ele de “chantagista”, também não disse uma só contra a insubordinação dos seus seguidores no Ceará.

Pelo contrário. No número semanal que encena no Facebook, preferiu debochar do senador Cid Gomes (PDT-CE), atingido por dois tiros ao valer-se de uma retroescavadeira para tentar pôr fim à ocupação de um quartel em Sobral.

Ontem à noite havia 10 quartéis no Ceará sob o controle de policiais em pé de guerra. A Força Nacional não será usada para desalojá-los. Em apenas dois dias, 51 pessoas foram assassinadas. Antes da rebelião, a média era de 12 homicídios.

Bolsonaro não é o primeiro presidente da República a testemunhar rebeliões de policiais militares durante o seu governo. Mas nenhum presidente como ele foi tão umbilicalmente ligado e dependeu tanto do voto dessa gente.


Marco Aurélio Nogueira: O gabinete fardado

‘Militarização’ coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente

E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República.

O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.

Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.

Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.

A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos políticos, não para fazer política.

Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também, aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário, como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.

Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado. Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível. Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões típicas do mundo político.

No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e “desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo. Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem democraticamente.

A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada, mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais. A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e modo de pensar.

Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias, ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da República num poço sujo e sem fundo.

O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe do Parlamento.

 


Demétrio Magnoli: Limite legal da palavra vale para cidadãos comuns, mas não para políticos com cargo

Os leninistas da direita invejam e imitam os leninistas originais, da esquerda

A Associação Brasileira de Imprensa clamou por uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) diante dos insultos proferidos por Jair Bolsonaro contra a jornalista Patrícia Campos Mello. Simultaneamente, vozes diversas pediram ao Facebook a remoção das ofensas contra a mesma jornalista oriundas do deputado Eduardo Bolsonaro e de uma testemunha que lhe ofereceu a sujeira em depoimento ao Congresso. A primeira solicitação faz sentido. A segunda é um equívoco e, secundariamente, uma prova de infinita ingenuidade.

O modelo de negócio do Facebook baseia-se na promoção de correntes de ódio e na difusão de fake news. Delira quem nutre a esperança de que a empresa se policie. O único remédio é seu enquadramento como veículo de imprensa, o que implicaria a possibilidade de responsabilizá-la judicialmente, na forma da lei. Mas, nesse caso específico, os ataques deram-se numa CPMI parlamentar, o que os torna notícia de interesse público. Assim, solicitar sua remoção da rede social equivale a pedir censura –e, pior, atribuir ao Facebook o poder de Grande Censor.

Já o “episódio triste” (Rodrigo Maia) das ofensas presidenciais situa-se em esfera distinta. O silêncio do procurador-geral indica que, como Davi Alcolumbre, ele pretende encará-lo como “página virada”, uma evidência do quanto já avançou o Executivo no propósito de quebrar a independência do Ministério Público. As frases boçais do presidente configuram dois crimes catalogados: injúria e difamação. A PGR foge ao seu dever constitucional ao fingir que nada ouviu.

Num país sem censura prévia, a palavra encontra limite na punição prevista em lei. Mas, desde sempre, nosso sistema de Justiça tende a ignorar a lei quando se trata da palavra criminosa de políticos com cargo. Nos tempos áureos das milícias intimidatórias lulistas, um deputado do PT da Bahia rotulou-me nas redes como “racista” para incitar militantes a melarem um debate do qual eu participava na Festa Literária de Cachoeira. Advogados convenceram-me da inutilidade de processar o patife escondido no buraco da imunidade parlamentar.

Políticos ofendem cidadãos comuns à sombra da prevaricação ritualizada de procuradores e juízes. Dias atrás, Rosa Weber extinguiu a interpelação do jornalista Glenn Greenwald a Bolsonaro, que o difamara e ameaçara de prisão. A ministra do STF acatou servilmente a alegação presidencial de que exercitava o “direito constitucional de livre manifestação do pensamento” num mero “discurso político”. São exatamente os pretextos que usaria para o caso de Patrícia Campos Mello, na hipótese improvável de que o procurador-geral Augusto Aras ensaiasse um gesto de cumprimento da lei.

O limite legal da palavra, alternativa democrática à censura, vale para os cidadãos comuns mas, aparentemente, não para os “incomuns” –isto é, os que têm cargos políticos. O certo seria valer para todos, mas não linearmente. O princípio da igualdade perante a lei solicita o tratamento desigual dos desiguais. Autoridades públicas detêm prerrogativas especiais, como as de editar leis, ordenar investigações ou mandar prender. Daí que, quando praticado por autoridades, o crime de ofensa merece punição maior.

Não é o que pensam Aras e Weber. Na sua doce leniência, os dois refletem a herança multissecular brasileira de supremacia do Estado sobre a sociedade civil. O mandonismo do “coronel”, a truculência do agente estatal, o sequestro da lei para benefício da elite política, o desprezo pela cidadania –todos esses traços antiliberais de nossa formação histórica encontram-se sintetizados na dupla omissão.

De curioso, aqui, há o aplauso dos “liberais bolsonaristas” (expressão que condensa uma falácia lógica) à violação estatal dos direitos dos indivíduos. Os leninistas da direita invejam e imitam os leninistas originais, da esquerda.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


El País: Ala radicalizada da PM no Ceará ecoa bolsonarismo e cria bomba-relógio difícil de desarmar

Motim expõe disputas internas na corporação e não tem liderança clara. Eleição municipal e contexto nacional turvam xadrez político. Estado, que terá Exército nas ruas, contabiliza 51 mortos em 48 horas

Está fragmentado e sem lideranças definidas o movimento grevista de policiais militares no Ceará ―cuja escalada de tensão chegou ao ápice na última quarta-feira, quando o senador Cid Gomes foi atingido por dois tiros enquanto tentava entrar, dirigindo uma retroescavadeira, numa área militar ocupada por pessoas encapuzadas na cidade de Sobral. O episódio agravou uma crise que começou a se desenhar no fim do ano passado, com as negociações por reajuste salarial para a categoria. O governador Camilo Santana chegou a incorporar algumas das reivindicações na sua proposta inicial e, embora associações ligadas aos policiais tenham chegado a aceitar um acordo, parte da base o recusou e se rebelou. Batalhões em distintas cidades foram ocupados desde então. E um clima de pânico se abateu sobre o Estado diante da paralisação de parte da PM às vésperas do Carnaval. Quatro policiais foram presos e outros 300 estão sendo investigados por crimes que vão da tomada de viaturas civis ao incêndio de veículos de cidadãos críticos ao movimento. Em meio a uma categoria rachada e uma crise explorada à exaustão por políticos locais e nacionais, um novo protagonista tem se fortalecido: uma ala mais radical da corporação, formada principalmente por jovens soldados e empoderada por um discurso autoritário que vem ganhando força nas polícias na esteira do bolsonarismo.

“Foi a primeira vez na vida que vimos um quartel ocupado dessa forma. Todos encapuzados. Não dá pra saber quantos são policiais nem se eles são mesmo policiais”, relatou o senador pelo Estado de São Paulo, Major Olímpio, que visitou um dos batalhões ocupados, em Fortaleza. O político integra a comitiva de senadores que foi até o Ceará para buscar uma saída à crise. O receio deles é de que a grave crise local provoque um efeito dominó violento no restante do país, em um contexto no qual pelo menos seis estados já receberam demandas desses trabalhadores, que têm porte de armas de fogo e são proibidos por lei de fazer greve. Os holofotes sobre o Ceará, porém, também expõem um xadrez de políticos locais e nacionais que têm ajudado a converter a crise em uma bomba-relógio difícil de ser desarmada. Segundo levantamento do site G1, foram ao menos 51 mortes nas últimas 48 horas no Estado, contra uma média de 6 assassinatos por dia em 2020 até então. Entre as vítimas, há desde uma mãe que foi morta diante dos filhos durante um assalto a um adolescente morto por homens em motocicletas.

O presidente Jair Bolsonaro, principal autoridade do país e eleito com apoio de categorias policiais, ainda não condenou os motins em unidades militares cearenses. Em uma live no Facebook na noite da última quinta-feira, anunciou ter autorizado o envio das Forças Armadas ao Estado e voltou a defender o excludente de ilicitude para militares que atuarão na crise. “Se estamos em guerra urbana, temos que mandar gente para lá para resolver esse problema", afirmou. Horas antes, o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) havia acusado Bolsonaro de empoderar os manifestantes mais radicalizados com seu discurso, que inclui perdão a agentes de segurança pública que tenham cometido crimes culposos. “Você acha que um garoto de 20 e poucos anos teria coragem de atirar em uma pessoa assim se não achasse que estava a serviço do poder maior no Brasil?”, perguntou o pedetista a jornalistas. Ciro também citou como parte desse empoderamento a presença de uma deputada federal do Rio de Janeiro ligada à família Bolsonaro no Estado. Major Fabiana chegou ao Ceará na quarta-feira acompanhada de lideranças locais que fizeram carreira política a partir de uma greve anterior, em 2012, quando Cid era governador. “Pela primeira vez a gente tem um presidente que sabe o que é ser policial militar”, discursou a grevistas num quartel ocupado, interrompida por gritos de “mito! mito!”.

Em meio a essa disputa política, o motim que começou com as reivindicações salariais ganhou ainda outra pauta prioritária diante da escalada de tensão dos últimos dias que terminou com um senador baleado: a anistia de policiais amotinados nos batalhões. O governador Camilo Santana ―aliado da família Ferreira Gomes― já sinalizou não estar disposto a discutir a proposta. O Governo não demitiu nenhum grevista até o momento, mas já anunciou que cortará salários de quem não se apresentar ao trabalho. Ainda assim, policiais decidiram manter a paralisação. “Quem pode resolver isso está fazendo uma estratégia equivocada. Eles [policiais] agora precisam lutar para garantir pelo menos a anistia”, diz o vereador de Fortaleza, Sargento Reginauro, que também fez carreira política na esteira das mobilizações policiais dos últimos anos. As tensões que explodem agora não são inéditas. A atual crise no Ceará é marcada por uma série de mudanças alcançadas a partir de outro movimento grevista, há quase uma década, que influenciou tanto decisões nas políticas de segurança do Estado quanto mudou estruturas na corporação. Especificamente no Ceará, as principais forças de oposição tanto no âmbito da Prefeitura de Fortaleza quanto do Governo do Estado é composta por políticos que alçaram carreira a partir de greves policiais.

As origens da crise
Quando policiais militares do Ceará pararam suas atividades em dezembro de 2011, a capital Fortaleza se converteu praticamente em uma cidade fantasma, com comércios fechados e um toque de recolher informal que a população assumiu pelo medo. Um pânico generalizado tomou a quinta capital brasileira por ao menos um dia, que precedeu outros cinco de tensão, mesmo com os reforços da Força Nacional. Homens encapuzados ―supostamente policiais que reivindicavam melhorias salariais ao então governador Cid Gomes― furavam pneus de viaturas e tomavam as chaves de batalhões para impedir que colegas que não aderiram à greve trabalhassem. Cabia às esposas deles o papel de mostrar à sociedade as insatisfações da categoria, uma estratégia para blindar os maridos de represálias administrativas e buscar um apoio popular que acabou vindo em alguma medida.

No meio daquela crise, um nome se instalou no debate público cearense. Capitão Wagner ―um suplente de deputado até então desconhecido fora das corporações policiais― despontou como a principal liderança do movimento. Wagner havia fundado uma associação de agentes de segurança e costumava usar frequentemente as redes sociais (à época Orkut e Facebook) para denunciar a cúpula de segurança no Estado. Aglutinava em torno de si várias forças de uma categoria que conta com pelo menos oito associações representativas no estado do Ceará. A greve lhe impulsionou politicamente. No mesmo ano, foi eleito o vereador mais votado da história de Fortaleza. Depois, conquistou mandatos na Assembleia Legislativa e na Câmara Federal. E ainda ajudou a eleger a diferentes Parlamentos pelo menos outros três policiais de distintas patentes que atuaram naquela greve ao seu lado: Cabo Sabino, Soldado Noélio e Major Reginauro.

Personagem central do aumento da representatividade dos policiais militares no parlamento cearense, Capitão Wagner (PROS) têm usado com frequência as redes sociais nos últimos para denunciar a “falta de diálogo” do Governo com os policiais militares, mas tem modulado o discurso. Ele é um dos principais pré-candidatos à Prefeitura de Fortaleza nas eleições deste ano e demorou a apoiar publicamente o presidente Bolsonaro, que não venceu as últimas eleições na capital cearense. Até o momento, Wagner não têm um oponente claro para a corrida municipal. Embora ainda seja influente na categoria, já não tem a mesma centralidade que tinha na greve de janeiro de 2012 sobre ela.

“Não existe uma representação homogênea [no movimento de policiais militares do Ceará]. Não dá pra tratar como se fosse uma coisa só”, explica o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), com forte atuação na área de segurança e direitos humanos. Ele conta que o efetivo da PM no Ceará quase dobrou nos últimos dez anos e que há lideranças muito diferentes entre os 21.000 agentes que integram a corporação hoje. Além disso, são cerca de 10.000 novos agentes que não vivenciaram a greve de 2011. Uma ala mais radicalizada nesse movimento, a maioria de soldados, estaria agindo principalmente na periferia da capital e em cidades do interior. “Há policiais atuando como milícias, aterrorizando a população”, acusa.

A esse contexto, o pesquisador Luiz Fábio Paiva adiciona outro: o histórico processo de intervenção política nas polícias. “Cada nova gestão teve a Polícia Militar como objeto. No Ceará, tivemos políticos testando programas de segurança que interferiam na estruturação das polícias. Isso tem efeitos”, explica Paiva. Quando assumiu o Governo do Ceará, Cid Gomes criou um programa chamado Ronda do Quarteirão, que criava uma polícia de monitoramento com melhores salários, farda desenhada por estilistas e Hilux como veículos oficiais. As diferenças nas condições geraram animosidades dentro da corporação. Quando Camilo Santana assume o poder, institui uma política semelhante, dessa vez dando melhores condições ao Raio (polícia especializada que atua na Ronda de Ações Intensivas e Ostensivas). “Os Governos historicamente tentam criar suas próprias polícias dentro da PM”, analisa o pesquisador.

O histórico conflito entre as bases policiais e os Governos agora ganham maior imprevisibilidade no Ceará. “Temos um Governo Federal que estimula a violência, a agressão contra politicos de oposição, contra jornalistas, contra quem pensa diferente. É preciso ficar atento a como esse discurso repercute nas bases das polícias”, alerta Paiva. Apesar da escalada violenta no Estado nos últimos dias (foram 51 homicídios em 48 horas de greve), o pesquisador pondera para falar de atuação de milícias no Ceará. “É complicado falar que há milícia no modelo que existe no Rio de janeiro. Historicamente, o Ceará tem grupos armados, grupos de extermínio, com a presença de policiais. Neste momento, o que a gente observa é como esses grupos estão se sentindo à vontade para operar. Por mais esdrúxulo que possa parecer, esses grupos encapuzados que estão secando pneus da viatura produzindo esse enfrentamento de fato mostram a fragilidade das instituições no Brasil”, afirma.


Hélio Schwartsman: Um ferrabrás ferrando o Brasil

De baixaria em baixaria, Bolsonaro arrasta Presidência para o esgoto

Eu adoraria ver o presidente Jair Bolsonaro sofrendo impeachment, mas receio que isso não vá, pelo menos por ora, acontecer. E não porque ele não mereça. Bolsonaro age como um verdadeiro ferrabrás de botequim, que vai, de baixaria em baixaria, arrastando a Presidência para o esgoto.

Não seria difícil enquadrá-lo em vários dos artigos da lei n° 1.079, que regula o impeachment, uma peça que abusa de definições vagas e tipos abertos. No caso de Bolsonaro, porém, nem é necessário recorrer a interpretações criativas. O artigo 9°, 7, que tipifica como crime de responsabilidade "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo", parece ter sido escrito para ele.

Com efeito, as impropriedades ditas e perpetradas pelo presidente são tantas que cada um dos 54 senadores necessários para decretar a perda do mandato poderia escolher um episódio diferente de quebra de decoro para justificar seu voto condenatório. O grosseiro ataque à jornalista Patrícia Campos Mello é só o mais recente de uma série que teve até exibição de vídeo com cena explícita de urofilia.

Não acho, contudo, que o impeachment seja provável. Encontrar a razão jurídica para o afastamento é a parte fácil do processo. Procurando bem, todo presidente faz alguma coisa que pode ser interpretada como violação a algum dos 65 tipos listados na 1.079. O difícil é arregimentar a maioria de 2/3 dos deputados federais para autorizar a cassação e de 2/3 dos senadores para decretá-la. Isso só costuma acontecer quando a economia se deteriora a olhos vistos, como vimos nos casos de Collor e Dilma.

Por enquanto, não há sinais de que um cenário desses esteja no horizonte. Mas o futuro é contingente e, se Bolsonaro e seus ministros, civis e militares, insistirem em dizer sempre a coisa errada na hora errada, não é impossível que produzam uma crise capaz de materializar o impeachment.


Rogério Furquim Werneck: Uma estratégia mais realista

Já não há qualquer esperança de que o governo possa montar uma coalizão governista eficaz no Congresso

Já há muitos meses, o governo tem mostrado alarmante despreocupação com a exiguidade de tempo com que se debate a condução da política econômica. Fevereiro se foi. E a agenda de reformas, postergada para este ano de eleições municipais, pouco ou nada avançou, num momento em que a recuperação da economia se mostra bem menos convincente do que se esperava. E em que se dissemina o temor de que o círculo virtuoso que parecia ter ganho força no final do ano passado tenha perdido fôlego.

Já não há qualquer esperança de que o governo possa montar uma coalizão governista eficaz no Congresso. O presidente insiste em se mover na direção oposta. O avanço da militarização do Planalto — com a nomeação do general Braga Netto para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República — não deixa qualquer dúvida sobre a exacerbação do encastelamento de Bolsonaro.

Não surpreende que boa parte dos analistas esteja convencida de que, para todos os efeitos, o presidencialismo de coalizão desapareceu da cena política brasileira. Há até quem se apresse a assegurar que desapareceu de vez. E, diante do não sistema presidencialista que hoje se tem, não falta quem se agarre à esperança de que, no avanço do pesado programa de reformas, a desalentadora falta de empenho do presidente venha a ser plenamente suprida pelo protagonismo do Congresso. Pode até ser. Mas é inevitável constatar que, nessa esperança, há muito mais torcida do que análise.

Os argumentos que vêm sendo brandidos são frágeis e pouco convincentes. E têm o travo das racionalizações apressadas. Mal comparando, o que vem à mente é a famosa frase que teria sido sussurrada por Galileu, após ter sido obrigado a abjurar a ideia de que a Terra girava em torno do Sol: E pur si muove. (E, no entanto, se move.) Não obstante tudo que acabara de dizer, tinha sólidas evidências de que, de fato, a Terra se movia.

Em contraste, boa parte dos analistas do problemático quadro econômico e político que vive o país vem se comportando como Galileu às avessas. Confrontados com infindáveis dúvidas e indicações em contrário, insistem em sussurrar, sem qualquer fundamentação mais sólida, sua inabalável convicção de que o Congresso voltará a se mover, como em 2019, em novo e inexorável surto de protagonismo reformista.

Mesmo que a deficiência do presidente fosse tão somente falta de empenho no avanço das reformas, já seria muito difícil que tal carência pudesse ser plenamente compensada pelo protagonismo do Congresso. Muito mais difícil se afigura essa compensação, no entanto, quando se leva em conta o incorrigível papel desestabilizador que vem sendo desempenhado por Bolsonaro.

Sem ir mais longe, basta ter em mente o pandemônio político armado pelo presidente ao longo das duas últimas semanas. Assombrado pelos possíveis desdobramentos da morte do miliciano Adriano da Nóbrega em cerco policial na Bahia, o presidente se permitiu desencadear uma crise federativa de proporções inusitadas, que redundou em carta de protesto contra sua postura, subscrita por 20 dos 27 governadores. De Flávio Dino a João Doria.

É fácil perceber como episódios desestabilizadores desse tipo, recorrentemente deflagrados pelo Planalto, têm amplificado em grande medida as dificuldades de mobilização do Congresso com a tramitação das reformas. E nada indica que tais episódios estejam prestes a se tornar menos frequentes ou menos danosos. Muito pelo contrário.

Não há como ter ilusões. Sem empenho decisivo do Poder Executivo, o avanço do complexo programa de reformas que o país tem pela frente ficará seriamente comprometido. Pode até ser que, mesmo em condições tão adversas, uma parte restrita das reformas em pauta venha a ser aprovada pelo Congresso. Mas se o jogo possível é esse, há que se adotar estratégia mais realista. É fundamental que os presidentes da Câmara e do Senado saibam exercer sua seletividade e se concentrem nas reformas cruciais cuja aprovação seja factível. Desde já. Não há tempo a perder.


Fernando Gabeira: Deportação em tempo de bananas

Se a sucessão de erros de Bolsonaro der certo, creio que estaremos diante de um milagre

Num espaço de dias, Bolsonaro deu uma banana para a imprensa e agrediu com piada de sexo a jornalista Patrícia Campos Mello. Quanto às bananas, Bolsonaro costumava discursar sobre elas, em defesa dos plantadores do Vale do Ribeira.

Andei por lá, entrevistando as pessoas, e percebi um grande potencial, até de industrialização. Mas não constatei nenhuma política de estímulo para o setor. Bolsonaro deixou as bananas concretas e passou a usar as simbólicas. É constrangedor conviver com um presidente que dá bananas e pode até pôr a língua de fora.

Da mesma forma, é constrangedor ver um presidente que se diz evangélico usar os termos que Bolsonaro usou contra Patrícia. Muito provavelmente um evangélico anônimo jamais faria piadas desse teor. Bolsonaro despojou-se da dignidade do cargo e da dignidade implícita numa visão religiosa.

Como ele é o presidente, ainda é necessário falar dele, não no nível que propõe, mas chamando a atenção para problemas sérios, de que se omite. Um deles é a perspectiva de deportação de 28 mil brasileiros que trabalham ilegalmente nos EUA. Um fenômeno inédito em nossa História. A posição de Bolsonaro limitou-se a reconhecer que a lei norte-americana está sendo cumprida.

Sua visão política se alinha com governos com clara política antiemigração, como da Hungria. Não se esperava dele nenhuma tentativa de negociar essa deportação em massa.

Qualquer outro governo dificilmente o conseguiria, sobretudo neste período de eleições nos EUA. No entanto, é possível negociar a forma dessa deportação. Notícias vindas de abrigos no México indicaram que os brasileiros estão sendo maltratados e até as crianças são castigadas com suspensão de comida. É possível constituir um grupo para acompanhar esse processo e negociar com os americanos os termos mais adequados para a nossa dignidade.

Ah, eles são ilegais. É verdade. No entanto, muitos deles trabalham em atividades legais e necessárias na economia americana. Grande parte economiza dinheiro para enviar para o Brasil. Outros poupam para investir quando aqui chegarem.

Tive a oportunidade de visitar Governador Valadares e ouvir muitos deles. A saúde econômica da cidade dependia muito do dinheiro que vinha do exterior. Academias, lanchonetes, lojas foram abertas com a poupança de longos anos de trabalho.

Não me parece razoável a omissão do governo só porque eles são ilegais. Muito menos o silêncio da oposição, que não consegue acompanhar os fatos.

Fomos capazes de montar uma estrutura para os venezuelanos, uma Operação Acolhida, algo que sempre elogiei nas minhas reportagens. Não era necessário o mesmo tipo de acolhida. Porém, uma vez que são trabalhadores, muitos deles talentosos, era possível um esforço para realocá-los no mercado.

Nada foi feito, sob o argumento de que se trata de ilegais. Mas são brasileiros, esperavam uma chance de legalização. Nem todos começaram sua trajetória nos EUA de forma legal.

Toda essa indiferença pode custar caro. É possível que o processo de deportação se intensifique. Às vezes, uma foto de uma criança sofrendo pode mudar. Aliás, o New York Times publicou uma longa reportagem sobre o poder dessas imagens. Uma delas era de uma criança nicaraguense chorando diante da polícia.

Acho perfeitamente viável que dois países aliados negociem os termos de deportação de 28 mil pessoas. Exercer a influência nacional para que tenham tratamento digno é tarefa inescapável.

Bolsonaro pode dar uma banana para essa tese, envolto nas lutas ideológicas, num clima eleitoral. Ele supõe que essas agressões o mantenham ligado ao seu eleitorado.

Existe uma parte do eleitorado que, tanto aqui como nos EUA, valoriza o que considera a sinceridade de seus líderes, um contraponto à linguagem política clássica. Mas há limites, mesmo para esse eleitorado. Cada vez que Bolsonaro dá uma banana para a imprensa, ele pode até pensar que a enfraquece. Mas, na verdade, está se desqualificando e rumando para o isolamento.

Afastou os governadores do Conselho da Amazônia e entrou em choque com o governo da Bahia, disputando a versão da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. É uma tática que vai reduzi-lo à dimensão de uma extrema direita no Brasil, sem chances majoritárias. Assim mesmo, a própria extrema direita pode produzir gente mais qualificada.

Quando um presidente trabalha tanto para o próprio isolamento, a melhor tática para combatê-lo é isolá-lo ainda mais, aproveitando o próprio impulso. Com os últimos acontecimentos, torna-se mais fácil mostrar a muitos eleitores de Bolsonaro que ele não está preparado para dirigir o Brasil.

Embora procure tratá-los com frieza, os fatos são impressionantes. Jamais imaginei que um presidente desse bananas, ofendesse jornalistas com piadas grosseiras, iniciasse uma batalha em torno da morte de um miliciano, da qual, teoricamente, deveria distanciar-se.

Se essa sucessão de erros der certo, creio que se estaria diante de um milagre. Os termos de razoabilidade política foram estremecidos com as eleições. Mas não foram destruídos, creio eu.

* Fernando Gabeira é jornalista


Folha de S. Paulo: Projeto de Bolsonaro é destruir a imprensa livre, diz Eugênio Bucci

Vitória dele implica destruição da imprensa livre, declara o professor da USP

Maurício Meireles, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O primeiro debate do 3º Encontro Folha de Jornalismo, que aconteceu nesta quarta-feira (19), contou com falas contundentes de Eugênio Bucci, professor da USP e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Bucci comparou o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores aos bonapartistas do século 19 e aos fascistas do século 20.

“São pregadores do fascismo. São machistas, misóginos, militaristas. Não suportam a ciência. Não suportam o jornalismo. A vitória do projeto dele implica a destruição da imprensa livre, e a vitória da imprensa livre coloca em sítio o projeto de poder autoritário que ele tem”, afirmou.

Com mediação da ombudsman, Flavia Lima, Bucci debateu com Mônica Bergamo, colunista da Folha, e Ana Cristina Rosa, assessora-chefe de comunicação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Como tema da mesa, a pergunta: “Jornalistas são mesmo animais em extinção?”

Flavia iniciou o encontro mencionando levantamento da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), que computou mais de cem ataques à imprensa cometidos pelo governo Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. Lembrou alguns, como o insulto com insinuação sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, registrado nesta terça-feira (18).

“É um desprazer discutir uma fala tão desqualificada”, afirmou Bucci sobre o ataque. “É um desprazer considerar essas palavras como passíveis de interlocução. Elas não são, são ultrajes, são golpes verbais. Têm o objetivo de nos calar, nos humilhar.”

Bergamo afirmou que, no começo de sua carreira, a única preocupação era conseguir informações exclusivas. Agora, disse, há maior escrutínio do trabalho dos jornalistas —o que é positivo, ressaltou —, mas também uma rápida disseminação de mentiras e tentativas de desqualificação dos repórteres.

“O fato de haver um governo com essa animosidade contra a imprensa aumenta o número de ataques e a pressão contra nós. Há vários elementos de tensão [profissional], mas não daquela tensão com a qual deveríamos estar nos preocupando. Deveríamos nos preocupar em fazer matérias, não em nos defender de ataques”, afirmou, lembrando que o tempo gasto com tais ataques poderia ser usado, por exemplo, para apurar as circunstâncias da morte de Adriano da Nóbrega, miliciano ligado a Flávio Bolsonaro que foi morto pela polícia na Bahia.

Para Ana Cristina Rosa, do TSE, o papel de órgão públicos é usar as notícias negativas como instrumento para aprender e melhorar sua atuação. “[Mesmo] em relação aos erros, não é aceitável que se demonize profissionais. Erros fazem parte.”

Na parte aberta à plateia, um participante perguntou se a imprensa não teria contribuído para a ascensão de Bolsonaro ao supostamente apoiar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato.

“O primeiro cuidado que precisamos tomar é saber o que estamos chamando de imprensa”, ressalvou Bucci. “A imprensa tem inúmeras contradições. Ela tem tensões internas, ela têm pluralidade. Não é bem ‘a imprensa apoiou o impeachment’. Podemos dizer que a linha editorial opinativa de alguns veículos aderiu [ao processo] de maneira declarada.”

Mônica Bergamo discordou da avaliação sobre o impeachment que a pergunta embutia, mas afirmou ver tal paradoxo na forma como a imprensa tratou o hoje ministro da Justiça Sergio Moro.

“[Ele] é o centro e o mais importante apoio de um projeto autoritário. Acho que ele foi tratado de maneira não crítica pela imprensa, e ele é o grande suporte de tudo isso. Mas excluo a Folha, que foi o único órgão a ir para cima dele”, afirmou.

O debate integrou evento que marca o início das comemorações dos centenário da Folha, que ocorre em 2021.


Folha de S. Paulo: Brasil sofre vácuo de lideranças, e polarização é ameaça, diz FHC

Para tucano, ataque de Jair Bolsonaro a repórter da Folha é inaceitável e ele deveria se comportar como presidente

Igor Gielow, da Folha de S. Paulo

O Brasil precisa de liderança, e o posto hoje está vago. A opinião é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou de 1995 a 2002.

Para ele, o comportamento de Jair Bolsonaro, que insultou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, foi "inaceitável". O atual titular do Planalto precisa se comportar como um presidente, avalia FHC.

Ele descarta risco institucional. Afirma, contudo, que "o alarme precisa ser dado" porque a polarização vigente no país ameaça a democracia —e aponta para a rejeição à corrupção e ao PT como ponto de partida do debate atual.

No seu campo político, de olho no Planalto em 2022, ele elogia o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) pela gestão e pela juventude (34 anos).

Sobre um protegido político seu, Luciano Huck, ele disse que o apresentador da TV Globo precisa "se transformar num líder político", porque hoje "conhece o caldeirão" [referência ao nome de seu programa e ao contato com a população em quadros da atração]. Já o governador João Doria (PSDB-SP) "conhece o poder".

O tucano, 88, elogiou os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ) e do Senado (Davi Alcolumbre, DEM-AP). Ele falou no fim da tarde de quarta (19), na Fundação FHC, no centro paulistano.

Como o sr. vê o clima político do país?
O risco é a polarização. Você não pode deixar que a polarização afete o jogo democrático, que supõe a diferença. É preciso que algumas pessoas que têm responsabilidade institucional, como foi o caso dos presidentes da Câmara e do Senado, manifestem sua estranheza.

Eu sou bastante cuidadoso, sobretudo no exterior, porque fui presidente e sei que as coisas são difíceis. Mas está chegando um momento em que os que são responsáveis pelas chefias do aparelho institucional se comportem institucionalmente. Quem tem função presidencial tem de se comportar como tal. Eu sei que às vezes você fala por falar.

No episódio da repórter da Folha, o limite foi ultrapassado, não?
Aí a coisa passou para outro plano. É inaceitável, não tem cabimento você fazer referências assim a qualquer mulher, pelo que apareceu na mídia. Não acho que haja risco institucional, não sou alarmista. Acho apenas que é preciso ter um certo cuidado. Vamos pegar uma pessoa que me deu muita dor de cabeça política, o Lula. Ele agiu institucionalmente no cargo —no que diz respeito às questões pelas quais ele foi preso.

Nós sentimos o gostinho da liberdade. Só quem viveu com censura, como eu vivi, sabe. Isso acabou. Você não pode atacar todo dia a mídia. Eu sei que a mídia exagera também, talvez até seja sua função.
Quem tem poder político não pode utilizá-lo contra isso. Pode reclamar, mas não pode usar sua força para coibir. Não vai dar certo, vai abrir espaço para o regime que não se quer.

Mas o sr. vê risco disso?
A democracia é uma planta tenra, não pode dar de barato que não vai virar outra coisa. Temos de dizer: "Cuidado, hein? Não passe desse ponto, senão passa". O alerta tem de ser dado, sem alarmismo. Quem tem poder não pode exagerar. Você tem de se autocontrolar.

Como vê a renovada militarização do governo?
Eu não tenho nenhuma versão negativa das Forças Armadas, nem poderia ter. Meu pai era general, meu avô foi marechal.

Quando vejo os generais nomeados, tudo bem, é preciso ver como é a pessoa, se funciona ou não funciona. Agora, tem limite para tudo. Tem de haver um certo equilíbrio que, quando é rompido, as prejudicadas são as Forças Armadas. Você não pode confundi-las com o poder político.

Governadores escrevem carta contra o presidenteMaia bate-boca com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), o Congresso toca a agenda mais positiva. Como o sr. vê isso?
Veja as reformas. O Parlamento assumiu a primazia, o que leva a crer que uma parte do Executivo não assumiu como tarefa sua fazer passar.

Isso é inegável. O Brasil não é uma República parlamentarista, o povo rejeitou isso. Num regime presidencialista, a iniciativa é do Executivo, o Parlamento não pode substituir, pode suprir lacunas.
E levar adiante as reformas não significa só mandar a reforma. Tem de falar com os parlamentares e tem de convencer a nação sobre a necessidade delas.

Como o sr. vê a atuação do Paulo Guedes? Em todo governo há um ministério cujo titular é mais capaz de liderar. Eu não conheço o Guedes, mas sou favorável à reforma da Previdência, tentei fazer uma também. Está faltando falar com o país. Quando o presidente não tem interesse ou qualidade, o ministro precisa falar.

Sim, mas aí o ministro falou que as domésticas não deveriam ir tanto à Disneylândia.
Ele não tem experiência política.

Isso não trai um espírito da certa elite brasileira?
É algo cultural. Nos Estados Unidos, eles conseguiram acreditar na Constituição, em que todos são iguais perante a lei. Aqui não é bem assim. As pessoas não se sentem iguais. Todos nós temos, em graus diferentes, impulsos que não são democráticos, que não são de igualdade.

Não deveria ser assim. Então, acho que essas expressões contra mulheres, contra pobres, vêm daí, de um desprezo de classe que é incompatível com a regra democrática.

Fala-se muito em uma extensão do mandato do Rodrigo Maia, por exemplo, vamos mudar a Constituição.
Não acho que seja solução, nem creio que ele aceite isso. Tem de respeitar as regras. Se você as desrespeita no Congresso, vai começar a desrespeitar no Executivo.

O sr. promoveu mudança em 1997, com a adoção da reeleição. Não é contraditório? É diferente agora?
Veja, eu sempre fui favorável a um mandato maior. Nós não discutimos na Constituinte, e quatro anos não é nada para alguém governar. É melhor ter uma reeleição. Mas você não pode ser favorável à permanência. Tem limite.

O tumulto político segue até a eleição de 2022?
Depois da eleição municipal de outubro, tudo vai girar em torno da expectativa de futuro. Apesar das instituições, elas não funcionam sem lideranças. É preciso ter pessoas. Você não leva o eleitorado a votar pelo que você fez, mas sim pelo que você pode fazer. Alguém vai encarnar esse futuro. Pode ser o próprio Bolsonaro, com a permanência da polarização. Eu não gostaria.

Quem é o tal centro? Huck, Doria e Eduardo Leite?
Eu vejo o Eduardo Leite positivamente porque ele faz um bom governo e é jovem. Eu vou fazer 90 anos no ano que vem, é preciso passar o bastão.
Veja os movimentos de renovação da política, eles não estão nos partidos. Mas não basta ser jovem. O que eu vejo, em renovação, está por aí, neles [o trio acima]. Quem vai ser, vai depender do que vai acontecer.

E o ar está sulfuroso, a polarização de 2018 ainda está presente.
Exatamente, ela vem de trás. A polarização vem da oposição ao PT, é isso. Corrupção e PT. Aí você vem imaginar que tem comunismo no mundo? Isso é ridículo, é anacrônico, para dizer o mínimo.

E o Huck? Ele se colocou, não?
Ele se colocou um pouco mais. Mas o Huck por enquanto é uma celebridade. Ele está se transformando num líder político. Vai ter que se transformar se quiser ser presidente, vai ter de passar por essa etapa. Pode? Pode.

E o Doria?
Ele tem, digamos, virtudes diferentes. O Huck conhece o caldeirão. O João conhece o poder. É difícil saber o que vamos precisar mais daqui a um ano e meio, o que vai sensibilizar mais o povo. Será a capacidade de conhecer o Estado e trabalhar com as forças organizadas ou será a erupção de um sentimento coletivo? Eu não sei. Idealmente, todos deveriam se unir.

Parece difícil.
É difícil. E é indiscutível que o presidente tem força, a hipótese de reeleição precisa sempre ser considerada. Ele já se elegeu e a polarização rende para quem está polarizando. Ela é ruim para o país e para a democracia, mas rende voto.

Em 1995, o sr. enfrentou aquela greve dos petroleiros. Eles estão parados de novo. O sr. faz algum paralelo de pressão, vê a possibilidade de outras agitações sociais?
Essa é a principal questão do mundo, a crise das instituições. A explosão moderna se dá não só nas relações formais de classes, há curtos-circuitos em qualquer coisa.

Eu me lembro que encontrei por acaso o ministro Eliseu Padilha [Casa Civil de Michel Temer] durante a greve dos caminhoneiros de 2018 e ele não tinha com quem conversar. Não havia líder, partido, sindicato. Isso obriga a liderança de pessoas, que falem com a nação. Pode acontecer de novo? Pode.

Os protestos de 2013 tiraram algo dessa pressão, não?
Sim, mas mostraram a possibilidade. Não sei quando vai estourar de novo ou em que setor. Há um mal-estar, insegurança, basta ver o desemprego. As pessoas se sentem inseguras, precisam de liderança. Não quero ser injusto com quem exerce a liderança, é difícil.

A liderança também se impõe pela situação, como ocorreu quando Winston Churchill virou premiê britânico no começo da Segunda Guerra Mundial. O posto de líder no Brasil está vago?
Acho que sim. Há alguns candidatos.

O Brasil é um país muito diverso, é difícil você exercer influência. Estamos em um momento em que é preciso construir pontes. É mais difícil do que saltar no vazio. E estamos construindo muralhas.


Maria Cristina Fernandes: Quem te irrita te domina

Método Bolsonaro desvia debate e desorienta a nação

Quem te irrita te domina. Um general da reserva foi buscar em sua memória de caserna a frase com a qual tenta explicar o método Jair Bolsonaro. Se esgotada em si mesma, a necessária indignação com a abominável ofensa à jornalista Patrícia Campos Mello cumprirá o objetivo perseguido por seu autor. Para cada brasileira indignada, há outra que não entende - ou não quer entender - de que furo Bolsonaro falou e prefere se encantar com o (raro) elogio de Roberto Carlos a um presidente da República.

A misoginia não é um detalhe tão pequeno pra esquecer, mas tornou-se um abrigo para o presidente da República. Seu campo de batalha é outro. No momento em que soltou o despautério, era indagado sobre a relação de sua família com as milícias e sobre a manifestação de 20 governadores a respeito do cabo de guerra do ICMS sobre combustíveis e de seu desempenho como obstáculo à democracia. Mas podia um outro tema, entre tantos que afligem o quarto andar do Palácio do Planalto, como o revelado pelo general Heleno Ribeiro.

A desbocada indiscrição do ministro do Gabinete de Segurança Institucional revela o grau de tensão envolvido na equação da governabilidade bolsonarista. O Congresso adquiriu, neste governo, poderes nunca dantes alcançados, pelo valor e pela prerrogativa de execução de emendas orçamentárias, e pela gestão dos fundos eleitoral e partidário. É um governo paralelo. Tem parlamentar assinando ordem de serviço, ou seja, invadindo prerrogativas de prefeitos, governadores e dos próprios ministros.

Já faz tempo que a saída dos ministérios para fazer investimentos é negociar com parlamentares para que as prioridades de suas pastas estejam contempladas nas emendas orçamentárias. O orçamento impositivo, a crise fiscal e o desenho do governo fez com que aquilo que era um arranjo em consonância com o funcionamento de um parlamento, se tornasse um tenso imperativo.

O loteamento ainda corre solto nos Estados e mantém janelas de oportunidades na Esplanada traduzidas pelas infindáveis disputas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ou pelas agências reguladoras. A própria oposição reconhece, no entanto, que a corrupção foi reduzida no primeiro escalão.

Os caciques partidários já não têm a mesma liberdade de instalar pedágios nas autarquias do governo. Em contrapartida, têm pátrios poderes sobre as verbas da política. Se os ministros têm um ministro da Economia de quem podem se queixar e os prefeitos, um caixa favorecido pelo fôlego do setor de serviços, contribuintes municipais, o mesmo não se dá com os governadores.

Em outros tempos, uma carta assinada por 20 deles teria reverberado de uma maneira muito mais eloquente no Congresso do que esta o fez. Em grande parte porque tão inaudita quanto a manifestação, é a autonomia adquirida pelos parlamentares em relação aos chefes dos executivos estaduais.

Em regiões como o Nordeste, com gestões majoritariamente de esquerda, a aliança pontual entre Bolsonaro e parlamentares têm o objetivo de desalojá-las a partir de seu enfraquecimento nas eleições municipais.

São os governadores - e não os parlamentares ou o presidente - que têm de lidar com o subproduto da asfixia fiscal dos Estados, como a ameaça de greve policial deflagrada no Ceará e que ontem resultou nos tiros contra o ex-governador do Ceará, Cid Gomes.

Some-se a isso a estratégia do presidente de se vitimar no episódio da morte do ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, jogando a responsabilidade numa polícia militar sem controle e tem-se aí a tempestade perfeita para os governadores, um dos temas encobertos pela cortina de fumaça bolsonarista da semana.

Outro, sem solução fácil, é aquele que hoje mobiliza, principalmente, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a mudança constitucional que lhe permitiria disputar a recondução ao cargo. A pretensão do senador é alimentada pelos arroubos bolsonaristas. A cada sandice presidencial, o discurso de que o Congresso pode servir de anteparo ganha terreno.

Parlamentares que não querem perder seus feudos no Estado, dos Correios à Eletrobras, também fazem das pretensões de Alcolumbre um guarda-chuva para sua guerrilha parlamentar. A causa ainda tem como trunfo o parecer de um ex-advogado, hoje ministro do Supremo, encomendado pelo ex-senador Garibaldi Alves e favorável à tese da recondução.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, igualmente interessado no tema, tem sido mais discreto. Além de os adversários da tese na Casa serem mais barulhentos, o deputado parece confiar que, se a porteira for aberta para o Senado, não terá como se manter fechada para a Câmara.

A pretexto de conter um desabalado presidente da República, o movimento liderado por Alcolumbre arrisca transformar o Congresso num legislativo como aquele que um dia foi comandado pelos Picciani, no Rio. O que começa com a recuperação de privilégios, como aquele que estendeu o plano de saúde para filhos de servidores de até 33 anos, não custa a desandar para um feudo de desmandos e corrupção. É um vetor contrário àquele pretendido pela reforma administrativa. Não surpreende que a proposta, anunciada para hoje, tenha sido adiada.

A despeito da cidadela de austeros generais, o presidente enfrenta essas batalhas com peões egressos da velha ordem em funções-chave. É o caso, por exemplo, do ex-subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da gestão Michel Temer, Gustavo do Vale Rocha, que hoje ocupa função semelhante no governo do Distrito Federal mas mantém o pé no Palácio do Planalto como integrante do Conselho de Ética da Presidência.

Foi ele o relator da decisão que inocentou Fabio Wajngarten, dono de empresas beneficiadas por sua gestão como chefe da comunicação do presidente. Eis um soldado do qual Bolsonaro não pretende prescindir para manter em operação as milícias digitais com as quais irrita, desorienta e radicaliza. É dessa guerra que o capitão emerge, em seu palácio militarizado, como a força pacificadora de uma nação bestificada.


Maria Hermínia Tavares: Perigo no terceiro piso

Militares somam 9 dos 22 ministros deste governo

"Ficou completamente militarizado o meu terceiro andar", disse o presidente Bolsonaro ao substituir por um general do Exército na ativa o ministro Onyx Lorenzoni, até então chefe da Casa Civil e último político profissional a ter gabinete no Palácio do Planalto. Agora, são todos militares os ministros instalados no coração do governo: coordenando a ação dos diferentes ministérios, fazendo a articulação do Executivo com o Legislativo ou ainda assessorando a Presidência em assuntos de segurança.

Ao todo, eles somam pouco mais de 40% dos que comandam o primeiro escalão: 9 em 22 ministros, sem contar o vice-presidente Mourão. Essa porcentagem supera a da Venezuela de Maduro, onde membros das Forças Armadas comandam 30% das pastas. E é inédita entre as democracias dignas do nome.

Ao mesmo tempo em que se cercou de fardas, Bolsonaro —ele mesmo ex-capitão de carreira tumultuada— tratou de blindar o sistema de previdência dos militares do enxugamento geral promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Por fim, no primeiro ano de seu governo, pautado pelos esforços de austeridade fiscal, o presidente encontrou recursos para projetos importantes da Marinha e protegeu o orçamento da Defesa de cortes que atingiram outros setores. Como observou o professor Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, no Boletim Macro do IBRE-FGV de fevereiro, que circula esta semana, o Orçamento de 2020 deixa patente a preferência aos gastos com Defesa sobre os dispêndios na área social.

É possível que as Polianas de costume, embaladas pela ilusão de vivermos em tempos normais, considerem que não há nada de incomum nos afagos do governo à instituição militar. Muito menos no engajamento de lideranças reconhecidas da corporação no dia a dia da gestão nacional. Afinal, argumentam, a nação precisa contar com três Armas bem equipadas; remuneração e previdência decentes são devidas a quem tem como missão proteger o país; além disso, mais do que a vestimenta, contam a dedicação e competência na condução das tarefas de governo.

É fato. Mas sabemos também, por dura experiência própria, que, ao deixarem as Forças Armadas sua posição de defensoras do Estado e da Constituição, sendo arrastadas pelas disputas políticas do dia a dia dos governos, o resultado é igualmente desastroso para a corporação e para a democracia.

Mais perigoso ainda se os governos têm inclinação populista. Veja-se a Venezuela de Maduro, hoje sustentado nas Forças Armadas, primeiro cooptadas, depois corrompidas e, enfim, transformadas em guarda pretoriana do ditador.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap