governo bolsonaro
Fernando Reinach: Coronavírus veio para ficar
Entramos em uma fase da epidemia em que o objetivo não é mais exterminar o vírus
Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
Já é consenso entre os epidemiologistas que o coronavírus se espalhará por todo o planeta e seremos obrigados a conviver com ele por muitas décadas. A grande dúvida é com que velocidade e intensidade ele se espalhará. É difícil acreditar, mas hoje é mais fácil prever o futuro distante (daqui 3 ou 4 anos) do que o futuro próximo (1 a 2 anos). Entender a causa dessa inversão é essencial para evitar pânico.
Daqui 3 ou 4 anos teremos uma relação com o coronavírus semelhante à que temos hoje com o vírus de sarampo, gripe e poliomielite. O vírus estará entre nós, mas terá dificuldades de se espalhar. Em 3 ou 4 anos, as vacinas muito provavelmente estarão disponíveis. E nessas condições, o vírus vai aparecer ocasionalmente, em pequenos surtos localizados. É claro que esse cenário não é certeza absoluta, mas é o mais provável dado o que conhecemos sobre epidemiologia, sobre vírus e as doenças que eles causam. Agradeça à ciência.
Agora vejamos por que o cenário de curto prazo (12 a 24 meses) é mais difícil de prever. Como ficou claro na China e agora na Itália, Irã e Coreia do Sul, esse vírus se espalha rapidamente e infectados, mesmo com poucos sintomas, são capazes de transmiti-lo. E o mais importante é que toda a população mundial nunca teve contato com esse vírus. Em outras palavras, qualquer pessoa é uma vítima potencial. A grande incógnita é o quão rápido o vírus vai se espalhar. A boa notícia é que a humanidade, graças a séculos de investigação científica, é capaz de interferir na velocidade de propagação.
Vejamos possíveis cenários para os próximos 24 meses. No pior deles, o vírus infecta toda a população nos próximos 12 a 24 meses. Nesse cenário, 85% da população terá uma espécie de gripe forte que poderá ser tratada em casa, estará curada e ficará parcial ou totalmente imune ao vírus após uma ou duas semanas. Os 15% restantes terão de ser tratados em hospitais. Aproximadamente 10% da população terá complicações e algo como 2% morrerá.
Nesse cenário, quando a vacina estiver disponível, grande parte da população já estará imune. O principal problema nesse cenário, além de 2% de mortes, é o colapso do sistema de saúde como ocorreu em Wuhan, na China. Em ambientes onde o sistema médico não existe ou colapsa, a taxa de letalidade pode ser muito maior do que 2%.
Os outros cenários envolvem um espalhamento mais lento do vírus. Vamos imaginar o melhor cenário possível. Propriedades intrínsecas do vírus, associadas a variações climáticas e medidas de contenção, garantem que o número de casos por mês nos próximos meses não passe de, por exemplo, 40 mil (cerca de 50% do que tivemos nos últimos 30 dias). Nesse caso teríamos 6 mil hospitalizações por mês e aproximadamente 800 mortes por mês. Após 2 anos, a vacina estaria disponível e entramos em uma nova fase tendo convivido com um número menor de mortes e com um número de hospitalizações administrável. Nessas condições, é possível que a letalidade seja menor do que 2% pois os sistemas de saúde não serão sobrecarregados.
Nesse caso a imunidade contra o vírus no longo prazo vai depender de uma vacinação generalizada mais adiante, pois somente uma pequena parte da população terá sido infectada. Este também é um cenário extremo, difícil de acontecer, pois provavelmente exigiria medidas globais semelhantes às adotadas na China. Os outros cenários estão entre esses dois extremos e, em todos eles, o que determina a velocidade de espalhamento são medidas adotadas pelos governos, a disposição da população de aceitar essas medidas, e o custo para a economia global.
Essas minhas previsões são extremamente rudimentares. Os epidemiologistas que trabalham com modelos matemáticos estão quebrando a cabeça para produzir modelos mais precisos, enquanto outros cientistas tentam desenvolver a vacina. Em todos os cenários, o crucial é ganhar tempo, não deixando o vírus se espalhar rapidamente.
Agora estamos entrando em uma fase da epidemia em que o objetivo não é mais exterminar o vírus. Essa foi a batalha perdida na China nos últimos dois meses. Estamos no início da segunda, que será mais longa e difícil - seu objetivo é atrasar o espalhamento do vírus pelo planeta diminuindo ao máximo sua velocidade de propagação. E nela todos podemos e devemos nos envolver.
*É BIÓLOGO
Juan Arias: Por que choram os brasileiros
Choram os brasileiros não porque gostariam de ver o Congresso fechado, mas porque gostariam que fosse a casa do povo
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em polêmica com a jornalista de O Estado de S. Paulo Vera Magalhães, pelas manifestações anunciadas para o próximo dia 15 contra o Congresso e o STF, se perguntava irônico se os brasileiros chorariam no caso de “uma bomba H cair no Congresso”.
A verdade é que o pranto dos brasileiros seria outro diferente do sonho dos bolsonaristas mais radicais que prefeririam a volta da ditadura militar ao Brasil. Tanto é assim que uma pesquisa internacional acaba de revelar que entre os brasileiros está crescendo o amor pelos valores da democracia, talvez porque os vejam ameaçados.
Os brasileiros choram sim, em relação ao Congresso e há tempos, não porque prefeririam fechá-lo como gostaria esse punhado de bolsonaristas, e sim porque os que o ocupam, que deveriam responder somente e com o exemplo dos que os elegeram, se mostram tantas vezes indignos do cargo.
Choram os brasileiros não porque gostariam de ver o Congresso fechado, mas porque gostariam que fosse o que deveria ser pela Constituição, a casa do povo, com todos os sentidos abertos para ouvir os desejos e as dores das pessoas.
Choram porque em vez de oferecer um serviço à população dando exemplo de austeridade, porque o dinheiro gasto é das pessoas, fruto de seu trabalho às vezes pesado e mal remunerado, utilizam o cargo para aumentar seus privilégios, para enriquecer e enriquecer os seus. Choram porque parecem estar lá para pensar mais nos interesses pessoais e partidários do que nos problemas reais da nação.
Choram porque o que custam ao Estado, entre salário e privilégios, a maioria desnecessária e injustificável, acaba escandalizando os que precisam trabalhar duro para quase não chegar ao final do mês. Li que somente a lavagem dos carros oficiais dos deputados custa mais caro do que o orçamento separado ao Museu Nacional do Brasil.
Choram porque se perguntam se é necessário um Congresso com gastos bilionários com mais de 500 deputados quando na realidade os que estão verdadeiramente preparados à delicada tarefa de legislar à sociedade são uma pequena minoria. O restante passa anos sem produzir uma só lei importante, como foi o caso dos quase 30 anos como deputado do hoje presidente da República, Jair Bolsonaro, que já peregrinou por nove partidos menores e que sempre fez parte desse baixo clero que desprestigia a função sagrada do Congresso com suas maracutaias.
Choram porque gostariam que algum Governo tivesse a coragem de fazer uma profunda reforma da instituição sagrada do Congresso que representa os anseios de toda a sociedade. Uma reforma política séria, discutida com a nação, que reduzisse, por exemplo, a uma dezena os partidos políticos e não essa loucura de partidos sem identidade.
É o que estão pedindo os chilenos nas ruas contra os abusos dos políticos injustos e aburguesados mais preocupados em agradar o novo capitalismo excludente do que suas vítimas.
Choram os brasileiros porque gostariam de poder elegê-los com outro sistema eleitoral para que não chegassem ao Congresso candidatos que eles nunca teriam escolhido.
Querem um Congresso que seja capaz de escutar os gritos das ruas, os anseios mais verdadeiros das pessoas, de todos, não só de uma minoria de privilegiados.
Sim, choram os brasileiros porque gostariam de um Congresso mais sintonizado com os que mais sofrem, os sem trabalho, os das filas de espera da Bolsa Família, nos corredores dos hospitais, os que voltaram a cair na pobreza e até na miséria.
Choram os brasileiros das comunidades periféricas das cidades, carne de canhão de todas as violências juntas, a da pobreza e a do Estado incapaz de tirá-los de seu inferno e do da polícia, cada vez mais com carta branca para matar impunemente.
Choram os heroicos professores com salários de fome e seu assédio para que ensinem de acordo com as ordens do Governo e não com os critérios da moderna pedagogia para formar homens livres, capazes de se defender na vida contra a tirania das ideologias totalizantes.
Choram os trabalhadores que veem impotentes como perdem direitos conseguidos com tanta dor e tantas lutas ao longo de sua vida.
Choram os aposentados que precisarão trabalhar mais anos para compensar as aposentadorias dos privilegiados que continuarão aproveitando-as.
Choram os indígenas aos que pretendem expulsar de suas terras sagradas, de suas tradições, de sua sabedoria milenar para lançá-los ao inferno da alienação das periferias modernas.
Choram os artistas, os pensadores, os que fazem cultura, a quem desejariam castrar e domesticar sua criatividade que é o coração da democracia.
Choram as mulheres e todos os diferentes que não se encaixam nos modelos pré-fabricados pelo poder. Por que costumam ser eles os mais desprezados por todos os ditadores da história? Não será pelo medo que causam ao deixar a descoberto suas frustrações e misérias ocultas e inconfessáveis?
Esse é o pranto dos brasileiros que, apesar de ser vítimas de tantas injustiças, continuam confiando nas instituições e nos valores da democracia porque, os pobres, melhor do que ninguém, sabem que têm pouco a esperar da tirania dos ditadores.
Que não se iluda essa minoria de exaltados e saudosos do autoritarismo barato com vontade de voltar aos tempos das trevas que o Brasil já sofreu e condenou.
Não, os brasileiros não querem uma bomba H contra o Congresso como ironiza com raiva o filho deputado frustrado de Bolsonaro. Querem, pelo contrário, que alguém tenha a coragem de devolver a essa casa do povo sua verdadeira sacralidade para que deixe de ser, em expressão dura do evangelho, um “covil de ladrões”.
Que não se iludam Bolsonaro e família que os brasileiros sonhem como eles com modelos políticos autoritários. Essa país já viveu a atroz ditadura da escravidão e mais tarde a ditadura dos que fizeram da política um instrumento de domínio dos poderosos contra os mais fracos. Os brasileiros aprenderam a pensar e não querem ser transformados nos novos escravos dos modernos tiranos do momento.
Roberto Simon: A previsão furada de Geisel sobre os militares
Brasil é caso extremo, mas não isolado de volta de generais à política
Em uma entrevista a historiadores da FGV em 1993, o ex-presidente Ernesto Geisel argumentou que “a política entrando no Exército” havia sido algo “mais ou menos tradicional” no Brasil. “Tem raízes históricas, mas agora, com a evolução, vai acabar.”
Para ilustrar seu ponto, Geisel referiu-se ao que via como uma anomalia completa: um deputado federal que, à época, convocava militares a voltarem ao poder. “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar.”
Geisel foi o arquiteto do retorno dos generais à caserna, com o desmanche da ditadura ao longo de uma década. Imagine sua reação se alguém lhe dissesse o seguinte: em menos de 30 anos, o presidente será Bolsonaro, militares formarão um terço do gabinete –incluindo a chefia da Casa Civil e da articulação com Congresso–, e a imagem de quatro generais estrelados ilustrará um panfleto conclamando a uma manifestação contra Congresso, STF e imprensa. Pobre Alemão, seu apelido entre os soldados.
Claro, não há problema em um militar da reserva, em razão de suas qualificações, ocupar cargo civil ou entrar na política. Mas a presença, em massa, de oficiais no governo – incluindo alguns da ativa – e a “política entrando no Exército” são duas faces da mesma moeda. Mentes sensatas, civis e militares, entendem que esse status quo é nocivo tanto à nossa democracia quanto às nossas Forças Armadas.
Como viemos parar aqui? Levará tempo para responder à questão, mas olhar ao nosso redor pode ser um bom começo. Afinal, em várias partes da América Latina, militares têm cada vez mais influência política. Ver o Brasil de uma perspectiva regional permite entender que a eleição de Bolsonaro foi uma circunstância excepcional, mas há causas estruturais para a transformação nas relações civis-militares.
A última edição da Americas Quarterly –revista com a qual contribuo como editor e colunista– trata a fundo do novo papel dos militares na região. É uma história que, nos últimos meses, pode ser contada por meio de uma sequência de imagens.
Praticamente todos os presidentes que enfrentaram ondas de protesto –o equatoriano Lenín Moreno, o chileno Sebastián Piñera, o colombiano Iván Duque– apareceram cercados de generais, quando as crises estouraram. Na Bolívia, o comandante das Forças Armadas colocou, física e simbolicamente, a faixa presidencial em Jeanine Áñez, no dia em que Evo Morales fugiu ao México.
O Brasil é um caso extremo, mas não isolado –há causas comuns na região que estão levando os militares a entrarem no espaço da política. Uma delas é o enfraquecimento da classe política, dos partidos e do apoio à democracia, enquanto as Forças Armadas continuam a ser uma das instituições mais respeitadas. Uma série de escândalos de corrupção contribuiu para esse desgaste: uma pesquisa da Universidade Vanderbilt revelou que quase 40% dos latino-americanos concordam que “um golpe militar pode ser justificado quando há muita corrupção” (no Brasil, são 35.4%).
As democracias que proliferaram nos últimos 30 anos propiciaram ganhos socioeconômicos sem precedentes, mas também criaram expectativas inéditas a uma nova classe média. Os últimos quatro anos foram os de menor crescimento em sete décadas na região, e insatisfação política toma essas jovens democracias.
Ao mesmo tempo, com o fim da Guerra Fria, as Forças Armadas passaram por uma crise de identidade. Hoje, do México ao Brasil, militares estão cada vez mais envolvidos com operações policiais e a guerra às drogas.
Todos esses fatores minaram a “evolução” que Geisel pensava ser inevitável –o “mau militar” Bolsonaro é sua consequência, e não causa. Encará-los de frente é a única forma de reequilibrar as relações civis-militares.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
Demétrio Magnoli: Com fórmula 'Povo e Exército', Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar ruptura institucional
Enquanto isso, chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis
Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo político do governo como sinal de marginalização dos extremistas do bolsonaro-olavismo. Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura de Maduro, Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois motins paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A estratégia avança à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos comandantes militares, que se curvam diante do espectro disforme das redes sociais.
O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos policiais anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando carona em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às hostes de Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal esconde seu apoio à baderna.
A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os métodos das facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços cruzados, a transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro, respondeu Sergio Moro: “o governo federal veio para serenar os ânimos, não para acirrar”.
No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água, exigir a rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir a polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme um tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o governo estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos armados. A novela ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá adiante, anistia. O crime compensa.
O 15 de março nasceu da divisão no entorno militar de Bolsonaro. A adesão de Augusto Heleno ao extremismo abriu caminho para a convocação de marchas contra o Congresso, que têm o respaldo explícito do presidente. Não se trata, ainda, de consumar a ruptura, mas de testar a espinha dorsal das instituições democráticas. A meta é acuar, intimidar. Os alvos explícitos são os parlamentares e o STF. Mas, paralelamente, investe-se na agitação da oficialidade: o Povo e o Exército.
As declarações evasivas de Hamilton Mourão evidenciam uma rendição. Protestos contra o Congresso certamente “fazem parte da democracia”, mas não uma convocação a eles oriunda do chefe do Executivo. Os paralelos apropriados são com a “marcha sobre Roma” de Mussolini ou os cercos à Assembleia Nacional promovidos por Maduro. Celso de Mello foi ao ponto quando disse que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional” e, portanto, “não está à altura do cargo que exerce”.
No início, o cordão de generais do Planalto definia limites à retórica presidencial. Desde a demissão de Santos Cruz e o bombardeio virtual contra Mourão, os homens estrelados baixaram a cabeça. Como no caso das PMs, as redes extremistas engajam-se na cooptação de oficiais da ativa de escalão intermediário, ameaçando a disciplina militar. Santos Cruz tem razão ao alertar para o risco de “confundir o Exército com assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas”.
Bolsonaro imagina que é capaz de mobilizar incontáveis milhões pois enxerga nas suas redes sociais a imagem do Povo. Os líderes do Congresso e os comandos das Forças Armadas compartilham a ilusão presidencial. Daí, o temor geral de pronunciar a palavra “Basta!”.
Os chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis. Os políticos vacilam diante do imperativo de deflagrar um processo de impeachment. A opção pelo apaziguamento encorajará os extremistas a avançar mais um passo, testando uma nova fronteira. Às vezes, as democracias morrem de uma enfermidade chamada medo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Hélio Schwartsman: Bolsonaro, o pior do sistema
Conjuntura política excepcionalíssima permitiu que ele chegasse à Presidência
O presidente Jair Bolsonaro gosta de apresentar-se como um político antissistema, mas isso é "fake news". Parece mais preciso descrevê-lo como uma das piores coisas que o sistema já produziu.
Com efeito, Jair Bolsonaro não é uma flutuação quântica que se materializou do nada. Ele passou quase três décadas na Câmara, onde teve atuação apagadíssima. Apenas dois projetos de lei de sua autoria foram aprovados —média de um a cada 14 anos. Ainda que inevitáveis —não dá para pôr meta de produtividade para parlamentares—, situações como essa não configuram uma das virtudes do sistema.
E é interessante reparar que Bolsonaro só chegou ao Parlamento devido a outras vulnerabilidades do sistema. Depois de ter sido quase expulso do Exército, conseguiu, graças à votação proporcional, eleger-se para postos no Legislativo defendendo a pauta corporativista das carreiras militares. Mais tarde, ampliou seu eleitorado, agregando os votos de cidadãos que, por motivos variados, aplaudiam sua incontinência verbal e agressões calculadas.
Arrastou três filhos para a política e há indícios de que a família não só se envolveu com a pior criminalidade, que é a dos milicianos, como também de que explorou esquemas típicos do baixo clero parlamentar, como "rachadinhas" e funcionários-fantasmas. Não é, portanto, por fibra moral que Bolsonaro não apareceu nos grandes escândalos de corrupção. Falta de oportunidade/inventividade parecem explicações mais plausíveis.
Uma conjuntura política excepcionalíssima impulsionada por um atentado permitiu que uma figura assim medíocre chegasse à Presidência, onde não decepcionou. Praticamente todas as suas manifestações revelam que ele não está à altura do cargo. Sua falta de decoro já não se consubstancializa só no nível escatológico, quando ataca desafetos, mas também no institucional, quando incita seus simpatizantes contra outros Poderes.
Vladimir Safatle: Para a esquerda, morrer é só o começo
Em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la
"Há duas semanas escrevi neste jornal um artigo sobre o colapso da esquerda nacional (“Como a esquerda brasileira morreu”) que foi objeto de vários comentários e críticas. Um dia após a publicação do artigo, o mesmo EL PAÍS publicou uma pesquisa que mostrava como, caso a eleição fosse hoje, Bolsonaro venceria em todos os cenários. Creio que tal coincidência seja uma boa resposta para quem procura desprezar a gravidade da situação.
De toda forma, gostaria inicialmente de agradecer grande parte das críticas que recebi. Mesmo sendo as vezes duras, muitas levantaram questões absolutamente relevantes que me levaram a considerar pontos que não havia relevado. Há outra parte de críticas que se compraz em abusar de certos estereótipos que apenas mostram mais sobre o espírito de quem fala do que sobre o objeto analisado. Não há como responder a este grupo. Gostaria pois de levar em conta algumas das críticas relevantes a fim de dar sequência a um debate que creio ser necessário prosseguir.
Primeiro, alguns creem ser sintoma de melancolia e “desabafo” falar em morte da esquerda nacional. Até mesmo ironias a respeito do fato de eu ter anteriormente insistido no esgotamento de outros processos históricos, como a Nova República e os acordos imanentes à democracia liberal foram levantados como marcas de uma fixação necrofílica. Bem, não é de hoje que se insiste haver em certos setores desse país uma espécie de déficit de negatividade, ou seja, certa dificuldade estrutural de assumir a necessidade de afirmar esgotamentos, recusas e términos (se alguém ainda está disposto a afirmar que a Nova República vive, por exemplo, eu realmente gostaria de saber onde os argumentos foram encontrados).
Lembraria que clinicamente “melancolia” é exatamente a incapacidade de se liberar da fixação a objetos perdidos, não a decisão de se recusar a carregar o que está morto. Por mais que alguns se comprazem com as máscaras da euforia, há mais melancolia neste entusiasmo do que poderia aparentar. É, na verdade, sintoma de melancolia não encarar as derrotas quando elas ocorrem, não querer ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão. Contra essa leitura, há de se lembrar que, em uma vida, morre-se várias vezes. Um dos piores erros é acreditar que só se morre no fim. Morre-se várias vezes e esta é, muitas vezes, a condição de realmente continuar e se transformar.
Nesse sentido, afirmar que a esquerda nacional morreu não é expressão alguma de prazer infantil de contenda. Antes, é fruto da compreensão de que a sobrevivência da esquerda nacional depende do reconhecimento de sua morte. Dizer claramente “nós morremos” é a primeira condição para nos livrarmos do que nos matou. Quem se recusa a pensar dialeticamente nessas circunstâncias desconhece a dinâmica de processos históricos. E nossa morte não foi apenas um acidente externo, ela tem causas internas. O jogo do “estamos sendo atacados por fascistas, agora não é hora de assumir nossa auto-crítica” é suicida, é o verdadeiro suicídio. Se o fascismo nacional voltou, se ele teve força para voltar, foi porque ele foi o primeiro a sentir o cheiro de nossa morte. De toda forma, em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la.
Diria ainda que há um fenômeno brasileiro aqui. Não creio ser correto colocar a conta do colapso da esquerda nacional na conquista do imaginário social pela indústria cultural, pela sociedade de consumo e suas formas de regressão. Esse diagnóstico já existia desde os anos cinquenta pelas mãos dos frankfurtianos e muita coisa ocorreu depois. Por outro lado, sendo esse fenômeno algo mundial, seria difícil explicar por que a esquerda reabre caminhos promissores no Chile, mostra-se viva no Líbano e, pasmem, começa a levantar a cabeça nos EUA.
Mas poderíamos nos perguntar se estamos realmente diante de uma morte, ao invés de uma simples derrota. Gostaria de insistir que o que ocorre agora não é simplesmente uma derrota. É o esgotamento de um ciclo hegemônico que se confunde com a história da esquerda nacional. A esquerda já conheceu várias derrotas, mas nunca conheceu um esgotamento semelhante a este. Nossas derrotas eleitorais, ou mesmo nossa derrota histórica diante do golpe de 64, não implicaram na incapacidade de projetar alternativas globais no futuro. A esquerda nacional conseguiu preservar durante décadas essa força de projeção, levando setores expressivos da sociedade a sonharem com um futuro radicalmente distinto do presente. Quando, ao contrário, nosso horizonte de expectativas foi submetido a uma retração cada vez maior (tema tratado inicialmente por Paulo Arantes), ficou claro que estávamos a entrar em algo de outra natureza. O nome desta “outra natureza” chama-se, infelizmente, “morte”.
Neste sentido, não é correto falar de precipitação, como se afinal estivéssemos jogando a toalha depois de apenas um ano de Governo Bolsonaro. Primeiro, não se trata de jogar toalha alguma, mas de saber qual o trabalho crítico necessário para não nos satisfazermos com ações desprovidas de força efetiva. Segundo, não se trata de algo ligado ao Governo Bolsonaro, mas à incapacidade da esquerda nacional reagir com uma mobilização compacta de ações, práticas de governo e conceitos que apontem efetivamente para uma sociedade globalmente distinta dessa que vemos no presente. Qual é a política econômica alternativa da esquerda nacional? Qual seu horizonte de reconstituição institucional? Nada disso é claro e nós nos recusamos a aprofundar tais debates.
É sabido que muitos se insurgem contra o uso de palavras no singular. Esses insistem que sempre houve “esquerdas”, que não faz sentido algum em falar do destino de alguma entidade quase dotada de unidade metafísica como a “esquerda”. No entanto, há um precisão necessária aqui. Ninguém negaria que a história da esquerda nacional é múltipla e internamente conflituosa. Mas isto não significa a inexistência de um modelo hegemônico que não apenas incarna-se periodicamente em múltiplos atores distintos, mas que organiza todos os outros a partir da relação a si, produzindo dois movimentos possíveis: a aproximação articulada que reforça o campo hegemônico (como um planeta que atrai corpos menores) ou o distanciamento que equivale a assunção de uma posição radicalmente minoritária. A história da esquerda brasileira realmente se confunde com os modelos de governabilidade e mobilização próprios ao populismo de esquerda. Este populismo não conseguirá mais ser reeditado porque agora temos um fascismo popular produzido pela duplicação do tipo de liderança que o lulismo representou. A tentativa de reeditar seus modelos heteróclitos de aliança não é astúcia de governabilidade. É só a expressão de que o que faremos é o que já fizemos, que nosso futuro é igual nosso passado. É possível desconfiar desse diagnóstico vendo nele apenas a milésima reedição do mantra uspiano contra o populismo. Algo que expressaria o verdadeiro DNA anti-varguista do setor paulista da intelectualidade nacional, setor no fundo impulsionado pela nostalgia da perda da hegemonia paulista na política brasileira. No entanto, seria intelectualmente mais honesto compreender esta longa luta contra o populismo como o sintoma da
consciência do sistema de paralisia que aprisiona as forças transformadoras deste país há décadas, como o sintoma do movimento de repetição histórica que nos subsume (mesmo que seja verdade que há impactos regionais distintos da mesma política, como mostra Patricia Valim, e isto precisa ser melhor pensado). Um sintoma que ganhou realidade mundial a partir do momento que várias forças de transformação no mundo assumiram para si estratégias populistas de esquerda. Eu mesmo acreditei, no passado, que elas poderiam ser localmente úteis em casos como na Grécia (Syriza) e Espanha (Podemos). Há de se reconhecer atualmente que os resultados foram decepcionantes. Ninguém precisa de uma versão hypster do PSOE ou de uma esquerda que finge fazer consultas populares para depois esquecê-las.
Isto não significa dizer que não há lutas, que as lutas atuais não são decisivas e importantes. Todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação. Conseguimos colocar um milhão de pessoas nas ruas em defesa da educação pública, mas não há sequência. Não há dia seguinte, não há acúmulo de lutas e, com isto, capacidade de bloquear as políticas destrutivas do governo. Um milhão de pessoas na rua transforma-se em uma resistência pontual. Seria o caso de se perguntar a razão para tanto.
Isso nada tem a ver com alguma contraposição entre luta de classe e lutas por reconhecimento (que alguns infelizmente insistem em chamar de “lutas identitárias”). É verdade que há os que, de forma equivocada, insistem na pretensa morte da “velha” esquerda ligada à centralidade do trabalho e da luta global contra o capitalismo. Mas temo que, em um momento histórico no qual assistimos a intensificação dos regimes de trabalho e o achatamento geral dos salários, falar que o trabalho perdeu sua centralidade e relevância só pode ser fruto de um delírio acadêmico que alguns compram como a última moda.
Se há algo que as manifestações vitoriosas no Chile mostram bem é que lutas de reconhecimento como as lutas feministas, indigenistas, anti-racistas são um desdobramento necessário e decisivo da luta de classe. Elas são figuras da luta de classe. Não há contraposição alguma aqui, a não ser no sonho macabro de alguns liberais (assumidos ou não) que querem retirar dessas lutas sua potência efetiva de transformação global. Concretamente, isto significa, por exemplo, que a derrota na luta contra a reforma da previdência é, imediatamente, uma derrota da luta anti-racista. Pois são os negros e negras um dos setores mais espoliados e precários do mundo do trabalho. São elas e eles que sentirão de maneira mais forte as consequências dessas políticas de concentração e destruição dos direitos trabalhistas. As derrotas na flexibilização dos direitos trabalhistas são derrotas da luta feminista, pois as mulheres serão as primeiras a sentir de forma violenta o significado de tal “flexibilização”. O que o Chile nos mostrou é que, por exemplo, a luta feminista demonstra sua força máxima quando ela expõe sua dimensão de luta de classe contra o modelo econômico que nos destrói.
Ou seja, o fato de que a multiplicidade das lutas no Brasil não consigam convergir em um campo comum de combate às forças que espoliam os 99% é um signo fundamental da atrofia que ocorre quando um modelo hegemônico morre. Pois isto ocorre devido ao fato da esquerda brasileira ter usado, até agora, as lutas de reconhecimento de forma compensatória. Como ela não tem nenhum horizonte concreto de transformação econômica, como ela teme dizer em alto e bom som que é anti-capitalista, como ela é a última a realmente defender a necessidade de refundação da institucionalidade política nacional, como ela não consegue criar estruturas e organizações que sejam radicalmente democráticas, como ela não consegue mais criar solidariedade genérica com aqueles que “não são como nós”, a esquerda nacional se viu obrigada a expor de forma isolada o único setor no qual ela tem capacidade de transformação, a saber, este ligado às dinâmicas sociais de reconhecimento. Assim, ela acabou por limitar a força efetiva dessas lutas.
Isso não significa estar fixado em um paradigma de ação revolucionária que seria, ao mesmo tempo, inefetivo e perigoso. De toda forma, é realmente engraçado como vivemos em uma era de sinais trocados. A extrema-direita no mundo inteiro não teme em dizer que estão a lutar por uma “revolução” que possa dar ao povo a voz que eles nunca tiveram. E, com esta revolução conservadora, eles ganham eleições que constroem adesão popular real. Só certos setores hegemônicos da esquerda acredita que isto é uma conversa de centro acadêmico ou que a verdadeira revolução é esta de novas subjetividades que estaria pretensamente a ocorrer enquanto a espoliação é cada vez mais brutal e o horizonte anti-capitalista encontra-se, em larga medida, recalcado e vergonhosamente intocado.
Por fim, seria o caso de levar em conta as acusações de que intervenções públicas desta natureza são contra producentes porque não indicam caminhos concretos a serem seguidos, por se contentarem com chamados abstratos a “rupturas”. É difícil ouvir tais colocações sem lembrar de dois fenômenos. Primeiro, essa luta contra as “ideias abstratas” era, na verdade, um tema conservador. Lembrem, por exemplo, de Edmund Burke a discursar contra as “ideias abstratas” de igualdade vindas da cabeça de filósofos ociosos que acabaram por criar caos revolucionário no mundo do final do século XVIII e começo do XIX. Ou seja, a história demonstra, e isto os conservadores sabem muito bem, que “abstrações” tem muito mais força do que alguns estão dispostos a acreditar. Seria melhor que os setores progressistas da sociedade brasileira parassem de mimetizar o anti-intelectualismo dos conservadores.
Segundo, peço licença para lembrar do que aconteceu um dia com Sigmund Freud. Diante de uma paciente histérica, que passou a história com o nome de Dora, Freud não teve ideia melhor do que dizer a ela o que ela realmente desejava, esperando que isso a levasse a suspender sua forma de destruir seu próprio desejo. O resultado não poderia ser outro que um fracasso. Dora não precisava de alguém para dizer o que fazer ou para enunciar seu próprio desejo. Ela precisava de alguém que pudesse ajudá-la a produzir um processo que lhe permitisse alcançar por si mesma a enunciação de seu desejo. Ao falar em seu nome, Freud destruiu toda possibilidade de experiência para Dora. Lembro disso apenas para insistir que não há sentido algum em enunciar “propostas” em artigos de jornal. Não é de propostas que necessitamos, mas de processo. Ou seja, de um processo aberto que permita a implicação popular na constituição coletiva de um campo de ações concretas de governo. É ele que nos falta. Nos falta suas estruturas, seu tempo, suas transversalidades.
A cada dia que passa, fica mais claro que o Brasil é um laboratório mundial para um modelo de articulação entre neoliberalismo e fascismo. O termo “fascismo” não é, aqui, uma concessão retórica. Ele é o nome de um processo em curso que paulatinamente ganha forma. Um processo dessa natureza só pode ser parado de duas formas: através de uma catástrofe (como uma guerra) ou através da consolidação de uma real força de contraposição radical. Uma força que possa contrapor à revolução conservadora uma revolução real. Mas, para tanto, essa força precisa atuar na duas frentes que sustentam o modelo, ou seja, ela precisa desmontar o necroestado que agora não tem medo de dizer seu nome nem de esconder suas técnicas reais. Necroestado que vulnerabiliza os mais vulneráveis, que elimina os que nunca foram realmente reconhecidos pela sociedade brasileira como sujeitos. Mas ela precisa também destruir o modelo econômico que o financia e necessita dele para amedrontar a sociedade enquanto garante ao sistema financeiro nacional lucros nunca dantes vistos na história deste país. Os mesmos grupos, bancos e empresas que atualmente aplaudem a política econômica em curso fingindo não ver a violência e a destruição próprias a esse Governo são aquelas que há quarenta anos atrás forneceram dinheiro para a ditadura montar aparatos de crimes contra a humanidade, tortura, desaparecimento e estupro. Ou seja, não é exato dizer que eles são indiferentes à violência estatal. Na verdade, eles sabem muito bem que necessitam de tal violência para conseguir os lucros que hoje recebem. Sem ela, a sociedade se voltará contra os interesses de sua elite rentista e seus operadores.
Mas essa força que usa a organização compacta e a imaginação política convergente para traçar um horizonte de desejos e lutas para fora do capitalismo, digamos claramente, ainda não existe. Ela só existirá se aceitarmos fazer o luto de nós mesmos, o luto do que fomos até agora.
Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP
Fernando Abrucio: Destruição escolhida por Bolsonaro remete à maneira de agir das traças
O caminho escolhida por Bolsonaro e seus seguidores está mais para a maneira de agir das traças
O bolsonarimo é uma ideologia baseada no combate constante às instituições políticas e políticas públicas construídas pela democracia brasileira desde 1988. O então candidato Bolsonaro e sua entourage não enganaram ninguém: xingaram na campanha a grande mídia, a “velha política”, o modelo “paternalista” de programas sociais e até mesmo propuseram uma “invasão do STF” para controlá-lo. O maior temor de todos os democratas era que esse ideário produzisse uma quebra democrática, seja no sentido clássico, com o apoio dos militares, seja reduzindo o poder das instituições ou alterando drasticamente suas regras, como nos casos recentes da Hungria e da Venezuela.
O caminho escolhido pelos bolsonaristas, aparentemente, é outro. Trata-se fundamentalmente de destruir, mais do que construir. E tal destruição está mais para a maneira de agir das traças, que comem as roupas de forma paulatina e desorganizada, por vezes traçando cotidianamente pequenas partes que ninguém percebe, por vezes puxando inesperadamente fios grandes que geram uma enorme comoção política. Não é o método de uma retroescavadeira, para lembrar o objeto do momento. É algo muito mais caótico, que traz perigos para a democracia porque corrói seu suporte, mas não diz que vai substituir o regime político, dando a impressão de que estamos em tempos de normalidade democrática.
O que explica a adoção desse método das traças vai além da adoção de valores autoritários, ou pelo menos da ausência de crenças democráticas dentro do atual grupo dominante. Essa estratégia foi escolhida porque falta a Bolsonaro um modelo de como governar o Brasil, diferentemente, por exemplo, de Putin na Rússia, cujo projeto autoritário é construído com a frieza racional do jogo de xadrez. Por vezes, o presidente até sonha com o retorno a algo mais parecido com a ditadura militar, mas, mesmo assim, ele e seus apoiadores não saberiam como reproduzir essa (terrível) experiência histórica no momento atual brasileiro e mundial.
Assim, mesmo que defenda um ideário conservador do ponto de vista cultural e proponha ambiguamente e sem muita convicção uma visão ultraliberal para a economia, o bolsonarismo não tem clareza de como isso se materializaria em termos de políticas públicas e, principalmente, de organização institucional. As evidências desse fenômeno de ausência de um projeto estruturado de governo estão no grande número de mudanças em cargos estratégicos do governo federal, nos recorrentes zigue-zagues das propostas de políticas públicas, no recorde presidencial de derrotas legislativas e na enorme concentração de poder na figura pessoal (mais do que institucional) de Bolsonaro, que só confia de fato em seus filhos e faz questão de mostrar que nenhum de seus auxiliares mais próximos está seguro em sua posição. Em poucas palavras, o presidente quer que todos o obedeçam como em uma seita, mas não sabe como organizar sua “igreja” para chegar aos fins desejados.
Essa aparente fragilidade no campo estratégico, no entanto, não reduz a força e os riscos presentes no bolsonarismo. O ponto central aqui é que embora não tenha um projeto de governo, Bolsonaro tem um projeto de poder, estruturado principalmente na destruição das instituições e políticas públicas construídas desde 1988 e na construção de “inimigos” que estariam por trás delas. No fundo, há nessa lógica uma proposta eleitoral clara: se todos os outros só erram e atrapalham o “povo”, só sobra a escolher a continuidade do atual presidente, que esconde seu desgoverno por meio da batalha contínua para destruir e desmoralizar os demais.
O jogo bolsonarista de destruição paulatina da institucionalidade e das práticas democráticas passa por cinco fronts. O primeiro é o da relação com o Congresso Nacional. É preciso mostrar que ele não é legítimo e, de tempos em tempos, criar um episódio para colocar a sociedade contra os congressistas. Como a parte majoritária do Legislativo tem aceitado aprovar medidas que evitam a ingovernabilidade do país - bem diferente do que ocorreu no segundo governo Dilma, quando Eduardo Cunha comandava o processo legislativo -, Bolsonaro tem podido, por ora, ser um revolucionário incendiário sem sofrer impeachment. É provável que após as eleições municipais esse equilíbrio político não seja mais possível.
O segundo front dessa estratégia destrutiva reside na relação com o Supremo Tribunal Federal. Novamente, após períodos de calmaria, bolsonaristas precisam inventar algum fato para desmoralizar o STF. Neste caso, a ação tem ocorrido mais nas redes sociais, porém, isso não é menos perigoso institucionalmente, porque é um processo subterrâneo e molecular de deslegitimação paulatina de vários dos ministros. A ideia de que novos indicados deveriam ser “terrivelmente” vinculados aos valores cristãos é uma forma de dizer que o atual quadro do STF não segue os padrões morais da sociedade brasileira. Há aqui o risco enorme de alimentar a ação voluntarista de algum ativista mais radical contra membros da Corte.
O método das traças foi muito usado nas últimas semanas num terceiro front, o federativo. Bolsonaro entrou neste embate com a Federação por três razões, embora continue citando falsamente o mantra “Mais Brasil, menos Brasília”. O primeiro é que é possível dividir as culpas pelos fracassos e incompetências do governo federal com os Estados e munícipios. Se a gasolina aumenta, óbvio que a culpa é dos Estados, gritaria um daqueles seguidores que ficam esperando o presidente dizer qual é a ordem do dia. Se a educação não melhora, claro que a culpa é dos municípios, e se propõe então a criação de um novo modelo de alfabetização que foi feito escondido do grande público, mas que se sabe que não será executado porque os responsáveis por sua implementação - os prefeitos, basicamente - foram completamente ignorados durante o processo. E se há problemas de segurança pública, os culpados são os governadores, mesmo quando a culpa disso esteja no fato de que o bolsonarismo esteja incitando a rebelião das Polícias Militares, com táticas que, aliás, lembram a ação das milícias.
A luta contra os governadores tem uma segunda razão de ser, de acordo com o projeto de poder bolsonarista. Ao longo da história brasileira, os Estados sempre tiveram um papel importante como contrapeso democrático frente ao governo federal. No momento, os chefes dos Executivos estaduais são capazes de apresentar discordâncias e críticas ao presidente Bolsonaro com maior legitimidade e influência do que os líderes partidários, pois representam um amplo espectro ideológico, inclusive com membros da oposição mais à esquerda.
A Federação é uma pedra no sapato de Bolsonaro, por fim, porque alguns governadores podem ser candidatos a presidente ou importantes lideranças no processo de sucessão presidencial. Dificilmente haverá harmonia entre o governo federal e os governos estaduais de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, porque seus governantes estão no caminho do projeto de reeleição bolsonarista. Claro que isso atrapalhará o país e os cidadãos desses Estados, bem como terá efeitos negativos sobre a própria gestão presidencial, uma vez que quando as políticas fracassam ao longo do território nacional, o presidente também é responsabilizado.
Mas o que importa se o governo não funciona quando está em jogo um projeto de poder maior?
Entre os cinco fronts, aquele mais visado pelo bolsonarismo, e o que dá mais prazer ao líder e liderados desse movimento, é aquele contra o PT e o lulismo. O antipetismo foi o grande eleitor em 2018 e Bolsonaro planeja que isso continue em 2022, sendo ele o portador da salvação contra essa “praga”. Para manter essa narrativa, vale até dizer, mentirosamente, que os petistas estariam mais interessados em proteger os milicianos do que a família Bolsonaro, como o séquito bolsonarista tem espalhado pelas redes sociais.
Interessante notar que manter a polarização com o PT é a melhor forma de o bolsonarismo evitar que outras forças políticas surjam contra o atual projeto de poder. Na verdade, Bolsonaro, e agora Moro, insistem na briga contra Lula porque querem mostrar que só eles podem ganhar essa batalha. Só que, tal como as traças, essa estratégia comeria não só os fios petistas, mas também outras partes do sistema que poderiam surgir como alternativa. Dessa maneira, os bolsonaristas pretendem reduzir o tamanho da pluralidade política brasileira e enfraquecer a institucionalidade democrática.
A logica da destruição bolsonarista tem seu capítulo mais triste na tentativa de desmoralizar parcelas da sociedade que se colocam contrárias às ações governamentais. Aqui, ONGs e imprensa são os principais inimigos. Para o bolsonarismo, deslegitimizar atores sociais relevantes é uma parte essencial de seu projeto de desinstitucionalizaçao do país. Mesmo que alguns cientistas políticos só olhem para a estrutura formal do Estado e digam que está tudo normal, o fato é que a democracia se enfraquece muito, e pode até morrer comida pela traças, quando a sociedade não é livre para cobrar as instituições. Eis aqui o maior perigo da estratégia de poder do presidente Bolsonaro.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
O Estado de S. Paulo: Congresso e Supremo reagem a Bolsonaro
Políticos e juristas condenam compartilhamento de vídeos que convocam para atos anti-Congresso; decano do STF diz que conduta revela a ‘face sombria’ do presidente
Amanda Pupo, Felipe Frazão, Luiz Vassallo, Paulo Roberto Netto, Pedro Prata, Pepita Ortega, Rafael Moraes Moura e Vera Magalhães, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - Um dia após o presidente Jair Bolsonaro compartilhar dois vídeos de convocação de protestos contra o Congresso, autoridades, políticos e juristas reagiram, citando até a possibilidade de que o presidente tenha cometido crime de responsabilidade. Bolsonaro afirmou que se tratou de “troca de mensagens de cunho pessoal”. Uma das reações mais contundentes veio do ministro do STF Celso de Mello, que considerou “gravíssima” a conduta de Bolsonaro.
Um dia após o presidente Jair Bolsonaro compartilhar dois vídeos de convocação para protestos anti-Congresso, autoridades, políticos e juristas reagiram, citando até a possibilidade de que ele tenha cometido crime de responsabilidade. O governo tentou minimizar a crise. Bolsonaro afirmou que se tratou de “troca de mensagens de cunho pessoal”. Militares que atuam no Planalto alegaram que o presidente não fez críticas diretas aos parlamentares nem foi o responsável pela confecção do vídeo.
O envio das mensagens por Bolsonaro foi revelado anteontem pelo site BR Político. Uma das respostas mais contundentes veio do Judiciário. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, afirmou que considera “gravíssima” a conduta de Bolsonaro e que o envio do vídeo revela a “face sombria de um presidente que desconhece o valor da ordem constitucional”. Para o ministro, Bolsonaro demonstra visão “indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”.
“O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República”, afirmou o decano. A Lei 1.079/50 prevê, como um dos crimes de responsabilidade do presidente, atentar contra “o livre exercício” dos outros Poderes, o que pode levar a um pedido de impeachment.
Setores da sociedade também relacionaram o ato de Bolsonaro a uma possível conduta criminosa. O secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), d. Joel Portella, disse que a Igreja Católica poderá questionar judicialmente a responsabilidade de Bolsonaro. A atuação do presidente no episódio “ultrapassa os limites da legalidade”, na avaliação da presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Rita Cortez.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que “criar tensão institucional não ajuda o País a evoluir”. “Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”, declarou.
Anteontem, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff já haviam repudiado o envio dos vídeos.
O presidente respondeu pelas redes sociais. Em um post no Twitter, Bolsonaro declarou que troca “mensagens de cunho pessoal” com amigos pelo WhatsApp, sem negar que tenha enviado a filmagem. “Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”, disse. Segundo o Estado apurou, ele ficou irritado com o ex-deputado Alberto Fraga e com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que falaram sobre o vídeo com a imprensa.
Harmonia. Presidente do Supremo, o ministro Dias Toffoli defendeu uma “convivência harmônica entre todos”. Sem mencionar o vídeo, ele afirmou que o Brasil “não pode conviver com um clima de disputa permanente” e não existe “democracia sem um Parlamento atuante, um Judiciário independente e um Executivo já legitimado pelo voto”. O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, afirmou que as instituições devem ser “honradas por aqueles aos quais incumbe guardá-las”.
A convocação para os atos ganhou força na semana passada, após o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, dizer que Bolsonaro não deve ceder a “chantagens” do Congresso.
Um grupo de WhatsApp criado em 2018 e batizado de “Mkt Bolsonaro” está sendo usado para debater o assunto. Em uma das conversas, o investidor Otavio Fakhoury anunciou que pretende “ajudar a pagar o máximo de caminhões que puder” para os atos. “Convocarei todos que eu conhecer.” Procurado, ele disse que as manifestações são a favor do governo, não contra o Congresso.
Eugênio Bucci: Se não nomear as atitudes do presidente, a imprensa vai desinformar o público
Convocação indevida de ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional
Está no Gênesis: a incumbência de dar nome aos seres vivos foi transmitida ao homem por ninguém menos que Deus. De lá para cá, a briga não parou mais. Definir como se deve chamar cada uma das coisas deste mundo virou uma disputa interminável. Cientistas concorrem para saber qual deles vai designar a nova estrela ou o novo vírus. Locutores esportivos competem para dar o melhor apelido ao jogador de futebol que brilha na temporada. Marqueteiros duelam nas licitações para ganhar o direito de “criar” as marcas publicitárias dos programas de governo (no nosso tempo, toda política pública tem nome de sabonete, ou quase isso).
No meio dos turbilhões vernaculares para batizar isso e aquilo, o repórter é apenas um a mais – mas esse um a mais não pode faltar. Não se espera dele que saia por aí inventando os substantivos da língua corrente, mas o repórter – como, de resto, toda a imprensa – tem o dever de chamar cada coisa e cada personagem pelo nome devido. Se não fizer isso, vai desinformar a sociedade. Se quiser mesmo noticiar os acontecimentos com clareza e com objetividade, o jornalismo precisa saber nomeá-los.
Um exemplo? Está na mão. O que aconteceria se, em lugar da palavra “motim”, os jornais, as rádios, as emissoras de TV e os sites noticiosos na internet resolvessem usar a palavra “greve” para se referir ao assalto contra a ordem pública que vem sendo perpetrado por policiais cearenses? Aquilo não é uma “greve”. É um motim. Se os jornais começassem a chamar aquele levante armado de “greve” – palavra que aparece na legislação democrática como um direito do trabalhador – desorientariam os leitores, ouvintes e telespectadores. Estes não entenderiam nada de nada e poderiam até achar que os criminosos amotinados, com o rosto coberto por balaclavas, atirando em pessoas desarmadas, não passam de assalariados explorados exercendo seu direito de não trabalhar. Em resumo, se chamasse de “greve” o motim do Ceará, a imprensa prestaria um desserviço à sociedade e faria propaganda, ainda que involuntária, a favor dos amotinados.
Simples, não? Na verdade, não é tão simples assim. Quando se trata de cobrir os atos do atual presidente da República, a tarefa de dar nome às coisas se complica um pouco. Nesse ponto, temos tido dificuldades. Há dois dias o chefe de governo distribuiu pessoalmente, por meio de seu telefone celular, convocações para um ato público que pretende ameaçar os representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário.
A intimidação virulenta já começou. Está na rua. Num vídeo divulgado pelos organizadores do ato, uma música dos Titãs, O Pulso, serve de plataforma para a agressão das autoridades. Aproveitando-se da letra, que arrola um inventário copioso de doenças, o vídeo exibe uma sucessão de fotografias de deputados, senadores, governadores e ministros do Supremo, associando cada rosto a uma enfermidade. Em termos rudimentares e imorais, a peça “xinga” as autoridades de “doentes”. Em seguida, enuncia a mensagem de que para resolver os problemas do Brasil é preciso extirpar do País todos os focos de “moléstias”. Não há dúvida: o ato convocado pelo presidente da República é, sob todos os ângulos, uma investida odiosa e golpista contra as instituições democráticas e as pessoas que legitimamente as representam. A intenção dos organizadores é desacreditar o Estado e pavimentar o caminho espúrio para que o presidente avance na direção de uma ditadura.
O uso da canção dos Titãs foi indevido. Dois dos três autores da música, Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, repudiaram publicamente o uso que a extrema direita fez dela (o terceiro autor, Marcelo Fromer, está morto). O uso de símbolos militares também é indevido. Há oficiais protestando contra a pregação de que as Forças Armadas devem tomar o poder dos políticos. Tudo aí é indevido.
A convocação – indevida – desse ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional. É claro que todo mundo tem o direito de ir às ruas para gritar o que quiser. As pessoas têm o direito até de pedir por uma ditadura militar. Birutice faz parte. Agora, quanto ao presidente da República, que jurou solenemente respeitar, manter e cumprir a Constituição, esse aí não tem o direito de se engajar a plenos pulmões no fanatismo golpista. A lei obriga-o a defender a ordem constitucional. Se não observar a obrigação que lhe cabe, o mandatário ficará exposto a um processo que lhe pode custar o cargo.
O curioso é que o presidente, pronunciando seus impropérios inconstitucionais, vai se fingindo de “normal”. Força os limites, dia após dia. Quebra o decoro, faz apologia de torturadores, chama o povo para atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e age como um chefe de motim. Ele se situa fora do campo democrático, atenta contra os símbolos mais caros da democracia – isso é um fato – e setores da imprensa ainda parecem acreditar que tudo está “normal”.
As redações precisam refletir. Dar o nome justo a cada coisa – e a cada agente público – vai se tornando urgente e indispensável.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Mariliz Pereira Jorge: E a oposição?
O que ela tem feito fora do seu mundinho de apoiadores apaixonados?
Não custa perguntar, e a oposição? Ela segue forte nas redes sociais, denuncia os mandos e desmandos do desgoverno Bolsonaro, critica ações e a falta delas. É repúdio daqui, ação dali, reunião de emergência acolá. Um sucesso danado entre os seguidores. Mas o que tem feito a oposição fora do seu mundinho maravilhoso de apoiadores apaixonados? Nada.
E quando faz, faz isto aqui. Nesta quarta (26), o PT convocou protestos "pela democracia e pelos direitos do povo", para os dias 8, 14 e 18 de março. Já no começo, a nota diz que o novo ataque de Bolsonaro às instituições é mais uma etapa da escalada que passou pelo golpe do impeachment e pela prisão de Lula. Com esse discurso quem vai às ruas, além de petistas?
Essa oposição não entendeu que enquanto faz festinha em suas bolhas, o sectarismo bolsonarista planeja, articula, nada de braçada no populismo que a massa de ensandecidos defende e alardeia. Bolsonaro se alimenta da bajulação nas redes sociais, mas é do tipo que se impressiona com o clamor das ruas. E são seus apoiadores os únicos que têm se organizado e feito barulho.
Não está na hora de quem defende democracia e instituições gritar mais alto? Para isso, a oposição deveria eleger essas como pautas únicas se quiser mesmo mobilizar uma multidão que dê a resposta que Bolsonaro, e seu flerte indecente com um autogolpe, precisa receber.
Com raras exceções, não há quase ninguém acenando em direção ao outro. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), tem sido voz solitária a defender a construção de uma frente ampla "para vencer o obscurantismo", em entrevistas e conversas com FHC, Lula e Luciano Huck.
Na falta de um único nome com força para ser a figura central de oposição ao governo, é urgente que haja diálogo e união de todos, do centro-direita à esquerda. Antes que seja tarde, não custa perguntar, cadê a oposição? Tem alguém aí?
Vinicius Torres Freire: Mundo discute como evitar recessão, Brasil trata de baderna autoritária
Brasil promove gritaria autoritária e mal toma cuidados para evitar recaída ou prevenir contágio
É difícil chamar a atenção do respeitável público para a economia internacional quando o governo incita manifestações de rua contra o Congresso, para dizer o menos. No entanto, senhoras e senhores, a coisa está feia até onde a vista alcança, que não é muito longe, embora o desânimo já seja visível aqui dentro.
Pode ser pior. Esse tombaço da Bolsa é espuma se considerado o problema real no horizonte próximo: redução ainda maior de exportações industriais, baixa de preços de produtos que fazem o grosso da exportação brasileira, medo puro e simples do rolo que pode dar lá fora.
Quem olhar para os números do mercado financeiro americano vai perceber facilmente que, no mínimo, os donos do dinheiro de lá e do mundo esperam que o banco central dos EUA reduza as taxas de juros —no mercado, as taxas já mergulharam para mínimas históricas.
Essa baixa também é também mero sinal de medo genérico, da finança fugindo para seu refúgio habitual. Mas há expectativa razoável de desaceleração no ainda centro econômico do mundo.
Noutras partes importantes do planeta, a coisa vai de fraca a pior. No final do ano passado, a economia europeia cresceu no menor ritmo desde 2013, quando estava em recessão. Então veio a ameaça ou o medo do novo coronavírus.
O alarme é tão alto que o governo habitualmente muquirana e fundamentalista fiscal religioso da Alemanha pensa em gastar mais. Para tanto, vai precisar mudar a Constituição a fim de, pelo menos, suspender o teto de déficit primário, o que não vai ser fácil (um limite de déficit miserável, de 0,35% do PIB).
O plano do governo, que apareceu vagamente nos jornais europeus, é assumir dívida de cidades de modo a permitir que prefeitos gastem mais em rodovias, escolas e hospitais.
O fanatismo de certos políticos alemães contra o gasto público é forte, em particular no partido conservador da chanceler Angela Merkel, que governa em coalizão com os apenas um tico menos conservadores da social-democracia.
"Vão abrir as comportas da política fiscal." "Vamos nos tornar um país endividado." "Suspender o limite do endividamento quando dá vontade é como suspender direitos fundamentais." Pois é: é o que dizem parlamentares alemães.
A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, que não nasceu ontem, é pragmática, conhece os rolos da vida e, enfim, é francesa, diz o contrário.
“Medidas fiscais [gasto extra] a fim de dar apoio à economia são certamente muito bem-vindas, nas atuais circunstâncias”, disse aos jornais. Pois é: uma presidente de banco central dizendo o contrário de deputados.
Quais circunstâncias? Risco de recessão. Juros baixos. Na prática, o governo alemão pode pegar dinheiro emprestado de graça (a taxa anual de juros de empréstimos de dez anos é de MENOS 0,47%. Sim, negativa. Quem empresta ao governo recebe menos de volta). Não é apenas Lagarde que diz tal coisa.
O ex-economista-chefe do FMI (2008-2105) e reputadíssimo economista Olivier Blanchard, mas não apenas, tem praticamente feito campanha a favor de aumento de dívida e investimento públicos no caso de países com crédito, custo baixo de financiamento e com economia estagnada.
Em suma, o centro do mundo e o mundo rico estão discutindo como evitar um novo atoleiro global, que nem sabem se é certo. Por aqui, estamos fazendo concurso de mergulho na lama, um tumulto no lodo que pode enfraquecer uma economia que mal conseguia sair da cama.
Maria Hermínia Tavares: Pulsão autoritária
Bolsonaro aparenta acatar regras democráticas, mas estimula quem quer aboli-las
Visto da perspectiva da opinião pública, o país continua dividido em duas porções quase iguais: a dos que gostam do governo (34%) e a dos que o abominam (36%). Neste fevereiro, a pesquisa mensal XP mostra que o grupo simpático ao presidente tem tamanho e solidez razoáveis.
Nada afeta os apoiadores do ex-capitão. Nem os vagares da recuperação econômica, nem os desacertos na educação, nem as ameaças ao meio ambiente. Muito menos a sequência de agressões a jornalistas, autoridades públicas e forças de oposição que Bolsonaro dispara, ao falar de improviso, às portas do Palácio, para delícia de sua patuleia.
A esta altura, um presidente que jogasse o jogo democrático estaria buscando ampliar seu círculo de apoiadores, acenando para aqueles que declaradamente o reprovam. Ao contrário, quando fala e, sobretudo, quando cala, Bolsonaro se compraz em despejar gasolina na fogueira acesa pelos radicais que, em seu nome, soltam barbaridades nas redes sociais, sem serem desautorizados. Também em seu nome, os filhos tuiteiros papaguearam o apoio do clã ao motim dos PMs do Ceará e às milícias.
Em seu nome fala igualmente quem organiza —agora com seu apoio declarado— a manifestação contra o Congresso e o Supremo marcada para 15 de março. Para tanto, usam imagens dos ministros militares que ocupam o terceiro andar do Planalto, com exortações golpistas do tipo “Os generais aguardam as ordens do povo”, “Fora Maia e Alcolumbre”, ou reproduzindo o sonoro palavrão que o general Augusto Heleno dirigiu ao Legislativo.
Ainda em seu nome colhem-se assinaturas para o novo partido do bolsonarismo, cujo símbolo, gravado em placa dourada feita de cartuchos de bala, não deixa dúvidas sobre o tipo de disputa política preferido pelos seus filiados.
O jogo do presidente é inequivocamente dúplice: ele aparenta acatar as regras democráticas, mas estimula todos quantos gostariam de aboli-las, em nome seja lá do que for.
As lideranças do Congresso, a cúpula do Judiciário e os governadores vêm resistindo a cada provocação, dando testemunho da força das instituições democráticas. Da mesma forma, a imprensa tem reagido às ofensas aos seus profissionais e ameaças às respectivas empresas. Assim também a miríade de entidades que formam a sociedade civil organizada.
Pode-se apostar que a soma de todas essas forças será mais do que suficiente para neutralizar as pulsões autoritárias do bolsonarismo. O que não se pode, definitivamente, é negar que existam, que se aninham no cerne do poder e contam com o apoio de parcela ponderável da população.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.