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Bruno Boghossian: Ações de Moro em defesa de Bolsonaro cumprem função política
Declarações e inquéritos pedidos por ministro são tentativas de constranger críticos
Em seus primeiros dias no cargo, Sergio Moro disse que não cabia ao ministro da Justiça agir como advogado de integrantes do governo. A ideia era fustigar seus antecessores e, principalmente, fugir de perguntas incômodas sobre os gabinetes da família presidencial ou sobre o laranjal da sigla de Jair Bolsonaro.
O ex-juiz se livrou de alguns desses abacaxis, mas começou a se sentir mais confortável no papel de defensor do chefe. A mudança de comportamento coincidiu com o aumento das tensões entre Moro e Bolsonaro. Aos poucos, o ministro multiplicou declarações públicas para afastar suspeitas contra o presidente e propôs investigações para protegê-lo.
Em outubro do ano passado, Moro mudou de ideia sobre o silêncio prometido no início do governo e defendeu o presidente quando a Folha publicou planilhas que sugeriam que parte do dinheiro de candidaturas laranjas do PSL havia beneficiado a campanha de Bolsonaro.
No mesmo mês, o ministro pediu que a Polícia Federal investigasse o porteiro que disse, num depoimento desmentido meses depois, que um dos suspeitos de assassinar Marielle Franco havia ido à casa de Bolsonaro. A investigação era da Polícia Civil do Rio, mas o ex-juiz alegou que havia ofensa à honra do presidente.
Essa ferramenta começou a ser usada com mais frequência. O Código Penal diz, aliás, que cabe mesmo ao ministro da Justiça requerer ações em casos do tipo. Moro exerce essa competência com distinção —e função predominantemente política.
O ministro já pediu uma investigação contra Lula pelo discurso em que o petista ligou Bolsonaro a milícias. Depois, sua pasta solicitou inquérito sobre um festival punk cujo cartaz exibia o presidente esfaqueado na cabeça. O Facada Fest tem esse nome desde 2017 (antes, portanto, do atentado na campanha eleitoral).
A ilustração pode ser considerada ofensiva, ainda que não carregue uma ameaça objetiva. Os dois casos, no entanto, são interpretados facilmente como tentativas de constranger críticos e rivais de Bolsonaro.
Janio de Freitas: O mau cheiro do golpismo
O chamado ao povo contra o Congresso e o Supremo tem o odor palaciano
Ao instalar o estado típico de pré-golpe, Jair Bolsonaro viu sair de cena o caso do miliciano Adriano da Nóbrega. Uma vitória. Parcial, mas vitória. A possível investigação e a apreensão dos 13 celulares do fugitivo levaram Bolsonaro a mostrar-se, mais do que apreensivo, temeroso mesmo. O miliciano, é claro, não foi por ele defendido e homenageado na Câmara senão por conveniências especiais para fazê-lo.
Pelo visto, também a polícia e o Ministério Público sentiram-se aliviados com o sumiço do caso.
Execuções para silenciar sempre têm tratamento recalcitrante nas áreas investigativa e judiciária. São perigosas ou vantajosas.
Outros silêncios, nem sugiro onde, têm lá suas explicações, nem sugiro quais. Coisas que ficam muito bem no recente patamar a que o desastre nacional nos leva.
O estado típico de golpismo não é a certeza de golpe. É a situação em que um segmento político ou militar —e em geral ambos— força circunstâncias contrárias à integridade institucional, cujo eventual abalo deixa, aí sim, o caminho aberto para a tentativa de um golpe. A reação a movimentos nesse sentido ainda é insuficiente e tímida, em comparação com a persistência de Bolsonaro e dos seus próximos na transgressão dos respectivos limites legais, de decoro e já constitucionais.
A ocorrência, nos últimos dias, não de atos isolados por parte de Bolsonaro e Augusto Heleno, entre outros, mas de uma conjugação intencional e prévia, é uma hipótese indescartável. Se o general não previu o vazamento de suas palavras contra o Congresso, nem por isso é menos certo que transmitia aos ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos a posição de romper as negociações com os parlamentares sobre o Orçamento, elevando a crise. Para a qual dava em seguida a solução, em palavra estúpida com o significado de dane-se, ferre-se, arrebente-se o Congresso.
Ao próprio Bolsonaro, em reunião palaciana a pretexto do problema criado com parlamentares, o mesmo general propõe "chamar o povo para as ruas". A sugestão não é refutada por nenhum palaciano, civil ou militar. E é em obediência a ela, com citação explícita ao mesmo general, que surge o chamado para uma passeata, em 15 de março, de apoio a Bolsonaro e contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não é crível que a manifestação e a convocação tivessem geração espontânea, tanto mais que difundidas na internet por um direitista radical ligado a Bolsonaro.
O mais novo problema criado por Augusto Heleno exigia de Bolsonaro cuidado e silêncio sobre a provocação convocada. Fez o oposto. Não por desatenção. Estava com os filhos políticos, e mais um, em reunião permanente no Carnaval. A atestar que o chamado contra o Congresso e o Supremo é para valer, passava a ser o próprio Bolsonaro a passá-lo aos habituados a espalhá-lo país afora.
Vinda a repercussão, Bolsonaro faz o que sabe: ataca a imprensa, acusando-a de difundir como atual uma mensagem sua de 2015. Mas o vídeo inclui citação à facada que levou em 2018. Faz assim como a afirmação de que Flávio Bolsonaro condecorou um Adriano da Nóbrega isento de qualquer condenação —mas Flávio precisou ir ao presídio para entregar-lhe a medalha. Desmentidos de Bolsonaro não são verdades, são palhaçadas morais.
Quem quiser que duvide, mas o chamado ao povo contra o Congresso e o Supremo tem o odor palaciano. Foi talvez precipitado pelos riscos implícitos no assassinato emudecedor do miliciano e também ex-capitão Adriano da Nóbrega. Se não houve precipitação intencional, o efeito colateral prestou o mesmo serviço. Sem diminuir o efeito principal, de evidenciar o avanço para a situação típica do golpismo —e a reação tímida ou intimidada das instituições que podem e devem reagir mais do que à altura.
Bolívar Lamounier: Aprendendo com o mundo animal
Os ouvidos brasilienses são como os da naja, ou da mamba-negra: incuravelmente surdos
Aproveitei os feriados para estudar atentamente as serpentes peçonhentas. Estou convencido de que esse é um bom caminho para entendermos melhor o Brasil – não só as elites, mas grande parte da sociedade.
Em pelo menos três atributos, estou seguro de que as referidas serpentes se parecem muito conosco. O primeiro é que, como nós, elas se acham o máximo. Acreditam ter sido criadas por Deus e bonitas por natureza. E algumas são de fato maravilhosas, como as corais (a falsa e a verdadeira), com o lindo tom de vermelho de que se revestem. Devo também admitir que em certos aspectos elas têm razão. Imaginem um animal que não tem asas nem pernas e consegue percorrer grandes distâncias, só deslizando, com grande elegância.
O segundo ponto não é tão favorável a elas. Todas as serpentes venenosas se julgam poderosas, imbatíveis, inexoráveis. Aptas a estraçalhar qualquer adversário. Pensam que, sentindo fome, basta sair para um rápido passeio e... crau! Algum gaiato será servido no jantar.
Mas nesse aspecto elas se enganam redondamente. Mesmo as piores, as mais fortes, as capazes de inocular um terrível veneno em suas presas, trucidando-as, também podem ser abatidas por estas, e mesmo, vejam bem, por pequenos animais. Um engano comum e fatal é o que costuma ocorrer quando uma mamba-negra enfrenta um mangusto (moongoose em inglês, mangoustin em francês). A mamba-negra é uma das mais letais que se conhecem. Com cerca de dois metros de comprimento, é uma máquina de matar. Já o mangusto é um bichinho simpático, parecido com um cachorro de tamanho médio, com cerca de 50 a 70 centímetros de comprimento. Tem uma cauda volumosa e um focinho comprido. O que melhor o distingue, vejam só, são seus hábitos culinários. Não dispensa um pequeno roedor, mas gosta mesmo é de cobras peçonhentas – como a mamba-negra. Quando os dois se encontram, ela logo levanta a cabeça, colocando-se em posição de bote. E ele, vocês acham que conserva uns cinco metros de distância? Qual nada! Aproxima-se até meio metro e começa a provocá-la. Dá voltas em torno dela, como se estivesse dançando, vai numa direção e volta na outra, tratando de desorientá-la. Na verdade, ele está é procurando um flanco, um momento em que lhe possa desfechar uma mordida pela nuca. A certa altura, irritada e já quase exasperada, ela perde a paciência e desfere seguidos botes contra ele, errando todos. Os reflexos e a velocidade do rapaz são incríveis. Quando a mamba-negra começa a se cansar, o flanco finalmente aparece e ele a liquida com uma só mordida.
Igualmente instrutivos são os gatos selvagens, que também habitam as áreas quentes da África e da Ásia. São comuns nos desertos da Namíbia, por exemplo. Menores que os mangustos, eles são de certa forma até mais audaciosos, pois se aproximam realmente das cobras e ficam praticamente parados. O que os distingue é, como direi, um DNA de boxeador. Com as patas dianteiras, eles desferem um belo soco de cima para baixo nas serpentes e, quando elas começam a se recuperar, desferem outro com a outra pata. Depois de 10 ou 15 pancadas como essas, eles cravam os dentes na cabeça delas, certificando-se de que elas já partiram desta para melhor. Aí eles pegam o celular e ligam para a patroa, pedindo-lhe para caprichar porque o jantar vai ser supimpa.
Pois, então, aqui chegamos ao terceiro ponto, talvez o mais importante para compreendermos nossa política e nos compreendermos como sociedade. Pouca gente sabe disso, mas todas as cobras são surdas. Enxergam mal e não ouvem bulhufas. Mas como, indagará meu leitor, e a poderosa naja indiana, que dança ao som da flauta tocada pelo encantador de serpentes. Dança nada. Do som da flauta ela não faz a menor ideia. O que ela faz é acompanhar os movimentos corporais do encantador, sempre em posição de bote.
O Brasil também – talvez não todo ele, mas a maioria das elites e das camadas médias – é absolutamente surdo. Aos congressistas e aos juízes do STF, por exemplo, você pode dizer quantas vezes quiser que o Brasil precisa urgentemente de reformas muito mais drásticas do que essas que temos discutido, que acreditar em recuperação econômica se não conseguimos um crescimento do PIB de sequer 3% ao ano é pura ilusão... Os ouvidos brasilienses são como os da naja indiana, ou da mamba-negra, ou da cascavel. Iguais, incuravelmente surdos. Tente dizer-lhes que, crescendo 3% ao ano, levaremos algo como 30 anos para dobrar nossa pífia renda anual por habitante. Ou que não estamos investindo nem o mínimo necessário para manter a infraestrutura. Que não iremos a lugar algum sem uma reforma política séria e um ministro alfabetizado na Educação. E que os megaproblemas de nossa sociedade (violência, corrupção...) continuarão a se agravar enquanto não dermos uma guaribada em nosso aparelho auditivo...
Nessa hipótese, daqui a 15 ou 20 anos estaremos desprotegidos e o jeito será importar mangustos e gatos selvagens em grande quantidade.
* Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Vera Magalhães: Qual é a sua laia?
Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos
"Vera Magalhães, eu não sou da sua laia." Esta foi, provavelmente, a única verdade proferida pelo presidente Jair Bolsonaro em sua última live, na quinta-feira, em que dedicou longos minutos a me atacar pessoalmente e a mentir de forma nonsense a respeito da informação que divulguei dois dias antes de que ele compartilhou dois vídeos, durante o carnaval, convocando para as manifestações do dia 15 de março a favor de seu governo e contra o Congresso.
A refutação passo a passo do besteirol de Bolsonaro a respeito dos vídeos eu já fiz no BR Político, neste jornal e nas redes sociais, e outros veículos jornalísticos a divulgaram com destaque, o que mostra a força da imprensa diante das tentativas de enfraquecê-la. Então, esta coluna não é sobre isso.
Mas a palavra “laia”, proferida com o costumeiro ódio pelo capitão, ressoa na minha cabeça desde então. Pela definição do dicionário, laia significa “categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo”.
A conotação que Bolsonaro quis dar ao dirigi-la a mim foi pejorativa. Mas ela me atingiu nos brios, me remeteu a origem, a princípios.
Afinal, qual é a minha laia? A minha é a laia dos jornalistas, a que pertenço há 27 anos e contando. É uma laia que apanha de todo lado, mas não verga. É uma laia que busca, sim, o furo, já que a notícia e a informação são a fonte que vai adubar o solo da história e fornecer a matéria-prima para que a sociedade mude, evolua.
E você, leitor, qual a sua laia? Nesses dias de debate ainda mais acalorado que me vi impelida a travar na ágora moderna das redes sociais, houve muita solidariedade e empatia, mas também veio à tona, como um refluxo, a crítica segundo a qual eu, outros jornalistas e a imprensa seríamos “culpados” por termos “normalizado” Bolsonaro e feito “falso paralelismo” entre ele e o PT, e, por isso, “mereceríamos” os ataques que sofremos.
O papel da imprensa é expor os fatos a respeito de qualquer governo, de qualquer partido. Os arroubos autoritários de Bolsonaro nunca foram ignorados nem “normalizados” (urge achar palavra melhor) pela imprensa. Não houve paralelismo entre esse e os demais inúmeros problemas de Bolsonaro e os reais e diversos problemas do PT.
Os vícios do PT no poder foram dilapidar a economia, pilhar os cofres públicos, aparelhar todos os espaços com amigos, traçar um projeto de poder e colocar em ação uma máquina para perpetuar esse projeto por meio da corrupção.
Os desvarios de Bolsonaro não apagam nada disso. E lembrar esses fatos não é passar pano ou fazer falso paralelismo, mas entender parte do fenômeno histórico que nos trouxe até aqui.
A imprensa teve erros? Teve, sempre tem. Ter subestimado a força de Bolsonaro, não ter percebido que ele estava inserido no movimento global de fortalecimento da far-right reacionária e falsamente conservadora e não ter mapeado suas conexões no empresariado, no meio evangélico e no submundo das redes sociais, vitais para sua consolidação.
Mas não houve “normalização”. Isso é viagem de ácido de uma esquerda que está presa num discurso antigo. O lado “anormal” de Bolsonaro foi justamente o mais destacado em debates, entrevistas e perfis, e as pessoas votaram nele POR ISSO, e não APESAR DISSO.
“Ah, então por que vocês se espantam com os absurdos de agora, se era uma escolha muito difícil?”, manda o arrogante ironicão no Twitter. Não é espanto: é cobrar de quem ocupa a Presidência que se institucionalize, sob pena de ser enquadrado pelo sistema de freios e contrapesos da Constituição.
É preciso que este seja o foco do debate público, sob pena de que ele fique, de fato, preso à armadilha em que os guetos querem confiná-lo.
Míriam Leitão: Nélida e o risco de o país se perder
Nélida Piñon termina novo livro, protesta contra a censura e diz que o espírito e a unidade do país podem se perder
A escritora Nélida Piñon teme que o Brasil perca a sua essência nos conflitos que vive atualmente e manda um recado ao poder: “É preciso que Brasília entenda, o Estado brasileiro, a Presidência entendam que o Brasil já avançou muito na sua história para retroceder.” A reação vem contra o ambiente de censura que reaparece e que ela conhece bem. Diz que é uma “audácia” censurar Machado de Assis. “É tentar arrancar o Brasil do seu próprio mapa.”
Certa vez, Nélida foi a Brasília levar pessoalmente o recado contra a censura. Foi em 25 de janeiro de 1977 e o destinatário era o então ministro da Justiça Armando Falcão. Foi o “manifesto dos mil”, com 1.047 assinaturas, escrito por várias mãos, inclusive as dela, depois de um encontro de escritores no ano anterior. O movimento foi articulado para ser um ato forte contra o que estava impedindo a publicação de inúmeros livros.
— Nasceu em Porto Alegre. Estávamos todos lá, inclusive Clarice (Lispector). E já voltamos decididos. Em São Paulo, alguns jovens escreveram o primeiro esboço em tom muito insurgente. Mas a grande organização foi no Rio, na casa de Cícero Sandroni, posteriormente na casa de José Louzeiro e Ednalda Tavares. Foi uma aventura libertária extraordinária, parecia que estávamos na Revolução Francesa — conta a escritora.
Hoje é preciso lembrar as velhas histórias da resistência, porque o país entrou num espantoso descaminho. A entrevista que fiz com ela, na Academia Brasileira de Letras, teve por testemunha o busto de Machado de Assis. Um dos seus livros mais geniais, o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, estava na lista de Rondônia para ser retirado das escolas. O assunto passou, mas ficou como um exemplo do absurdo a que se pode chegar quando o ambiente de censura se instala.
Naquele começo de 1977, o ministro não os recebeu, mas sim o secretário-geral. E estavam na comitiva, além de Nélida, Lygia Fagundes Telles, o historiador Hélio Silva e Jefferson de Andrade. De lembrança do dia ficou uma foto apenas e alguns bilhetes que os autores escreveram. Em gesto que parece hoje totalmente estranho, Nélida levou na sua bolsa martelo e tachinhas. Caso o governo não recebesse o documento, ela tentaria pregar na porta. Como Robin Hood. Perguntei a Nélida o que tudo isso ensina para o momento atual:
— Que você não pode perder o espírito de alerta. O Estado não é amigo incondicional da criação literária, do pensamento. Há sempre uma incompatibilidade muito grande entre quem pensa, quem fabrica e o Estado, que tem seus interesses e pode sacrificar quem seja em nome desses interesses. O que temos que fazer agora é fomentar essa defesa e fortificar nosso espírito.
Para a escritora, a cultura é parte da civilização:
— O país se ampara, se sustenta, não é na cultura só, é na civilização. A cultura é o cimento da civilização. E no Brasil isso vem se esgarçando, inclusive no que é essencial, vem quebrando uma coisa que eu acho que é um casulo no qual está o espírito brasileiro, o mistério de uma nação. É dentro desse casulo que estão os elementos imateriais, transcendentes, que garantem a unidade nacional. Sem isso corremos o risco de um rompimento. Mais do que o rompimento geográfico, mas de nação, de espírito.
O momento em que até Machado de Assis foi censurado foi para ela, uma apaixonada pelo autor, “um choque”:
— Machado congrega o que o Brasil tem de melhor e mais difícil. Era negro mulato, autodidata, gaguejava. Ele nunca foi à Europa. A viagem que fez foi a Friburgo, a 120 quilômetros. Quando contei isso para Susan Sontag ela ficou deslumbrada. É o homem mais universal do Brasil. Moderno, com texto ambíguo. O Brasil inteiro está lá. É o primeiro grande escritor das Américas a tratar o mundo urbano. Então esses homens de repente contestam a grandeza dele e decidem censurá-lo. Acho que eles deveriam pedir perdão à Nação brasileira.
Nélida diz que há outras formas de proibição aparecendo:
— Em nome inclusive de uma moral duvidosa. Que nem é contemporânea. Mas não quero discutir a questão moral, quero falar da questão cívica. Daqueles valores que fazem parte da democracia.
Combatente ainda aos 82 anos, Nélida acaba de concluir seu novo romance. Ela me contou o título, que mostra o valor da busca do conhecimento: “Um dia chegarei a Sagres”.
Bernardo Mello Franco: Época de retrocesso
O comportamento de Bolsonaro fez aumentar a ousadia dos invasores de terras indígenas. “É uma época de retrocessos”, afirma o ex-ministro Carlos Ayres Britto
A retórica de Jair Bolsonaro e a omissão de Sergio Moro fizeram aumentar a ousadia dos invasores de terras indígenas. Na sexta-feira, um deputado serrou a corrente que protegia o território dos kinja em Roraima. No norte do estado, garimpeiros voltaram a levar máquinas pesadas para a reserva Raposa Serra do Sol.
Os criminosos têm atuado à luz do dia, sem medo de represálias da Funai ou da Polícia Federal. Em alguns casos, a crença na impunidade é tamanha que eles se sentem livres para filmar e divulgar as ações ilegais.
Foi o que fez o deputado estadual Jeferson Alves. Na sexta, ele convocou fotógrafos e cinegrafistas para registrar sua performance na BR-174. Diante das câmeras, ligou uma motosserra e destruiu o bloqueio que protegia a terra indígena Waimiri Atroari.
Há cerca de 40 anos, a rodovia é parcialmente fechada à noite para reduzir riscos de atropelamento. O trânsito permanece livre para ônibus, ambulâncias e caminhões com carga perecível. Mesmo assim, fazendeiros e empresários insistem em derrubar o bloqueio.
“Presidente Bolsonaro, é por Roraima, é pelo Brasil, não a favor dessas ONGs”, bradou Alves, exibindo a corrente rompida como um troféu. Na internet, o deputado se apresenta como um político “temente a Deus e aos princípios bíblicos”. Em dezembro, ele debochou da Justiça Eleitoral ao promover um show com sorteio de panelas, geladeiras e carro zero.
O clima de vale-tudo se estende a Raposa Serra do Sol, cuja demarcação foi combatida por Bolsonaro e pelo general Augusto Heleno. Depois de mais de uma década, a reserva voltou a ser invadida para a instalação de um garimpo ilegal de larga escala. Ouvido pela “Folha de S.Paulo”, o macuxi Edinho Batista de Souza vinculou o crime ao projeto do governo que libera a mineração em terras indígenas. No início de fevereiro, o senador bolsonarista Chico Rodrigues visitou a região para apoiar os infratores.
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal confirmou a demarcação contínua de Raposa. Relator daquele processo, o ex-ministro Carlos Ayres Britto diz que o governo federal não pode continuar de braços cruzados diante das invasões. “A Constituição está sendo desrespeitada de forma petulante e inadmissível. A União tem o dever de sair em defesa das populações indígenas”, afirma.
Para o jurista, as ações do governo estão “em rota de colisão” com os direitos dos índios. “O presidente não tem demonstrado conhecimento de causa. É uma época de retrocessos”, lamenta.
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O medo da derrota nas urnas produziu uma mutação em Marcelo Crivella. Ex-aliado do PT, o prefeito do Rio virou bolsonarista desde criancinha. A sete meses das eleições, ele tem rastejado pelo apoio do presidente. Na sexta-feira, o bispo apelou aos céus para bajular o capitão. Em vídeo divulgado nas redes, pediu que “Deus dê forças ao nosso presidente” no embate com o Legislativo e o Judiciário. Ministro da Pesca no governo Dilma Rousseff, Crivella reclamou da imprensa e tratou os ataques ao Congresso como “questões menores”. Sem corar, aproveitou para elogiar a “personalidade irradiante” de Bolsonaro.
Merval Pereira: Falta de confiança
Não há no Congresso confiança em que um acordo com o Planalto será cumprido, a começar por este da LDO
O vídeo que está sendo distribuído por parlamentares de uma entrevista do ainda deputado Jair Bolsonaro a Mariana Godoi mostra o candidato elogiando o orçamento impositivo, que àquela altura abrangia as emendas individuais dos parlamentares. Antes disso, o orçamento era apenas “autorizativo”, isto é, o Executivo podia cumprir só o que considerasse importante, submetendo o Legislativo aos humores do Palácio do Planalto.
Na entrevista, Bolsonaro elogiou o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, hoje na cadeia, por ter aprovado o orçamento impositivo, e disse que com essa medida, o Executivo deixaria de chantagear o Legislativo. Negou com veemência que ela tornasse o Executivo refém do Congresso.
Interesante é que as duas palavras, “chantagem” e “refém” foram ditas de maneira diversa à que o General Augusto Heleno usou para criticar o Congresso. Para ele, na conversa reservada que foi captada por um vazamento do áudio, o Congresso é quem chantageia o Palácio do Planalto, tornando o presidente da República refém. É a típica situação em que a posição de quem elogiou no passado muda de acordo com o cargo que exerce no presente.
Já com Bolsonaro no poder, o Congresso ampliou o alcance do orçamento impositivo às emendas das bancadas, aumentando a proporção das que têm que ser executadas obrigatoriamente durante o ano legislativo.
No ano passado, o Congresso deu um passo mais largo, incluindo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que as emendas de comissão e as do seu relator também seriam impositivas. É deste avanço parlamentar nas verbas públicas que estamos tratando.
O sonho do governo, acalentado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, seria que, ao contrário, o Congresso autorizasse que as verbas chamadas “carimbadas”, isto é, as que são destinadas à áreas específicas como saúde e educação, entre outras, fossem liberadas, para que o Executivo tivesse mais margem de manobra para distribuir o dinheiro do Orçamento de acordo com as necessidades daquele momento.
Guedes alega ainda que o próprio Congresso poderia ter maior liberdade de alocar verbas públicas nos setores que considerasse prioritários. Faz todo sentido, e aí entra a complicação de um governo que não tem articulação política, e aproveita todas as situações para criticar os parlamentares, gerados pela velha política, segundo Bolsonaro.
Uma das queixas mais freqüentes é a de que o presidente nunca leva para inauguração de obras deputados da região, a não ser os seus mais íntimos, como o deputado Hélio Lopes, o “Hélio Bolsonaro”, que já foi apresentado ao presidente dos Estados Unidos por Bolsonaro como “o meu Obama!”, referindo-se à cor de pele do amigo. Ainda segundo Bolsonaro, que o considera “um irmão”, Hélio Negão, como também é conhecido, demorou um pouco a nascer e ficou “tostadinho”.
Não há confiança no Congresso em que um acordo com o Planalto será cumprido, a começar por este da LDO. Nenhum Congresso do mundo aprova um orçamento sem acordo dos partidos, especialmente os do governo. Se a ampliação das emendas impositivas foi aprovada, ou a liderança do governo foi inepta ou relapsa, ou aprovou a mudança. Talvez tenha sido essa a principal razão para a saída do deputado Onix Lorenzoni da coordenação política.
Um líder partidário, ainda mais do governo, tem condições de obstruir a votação na Comissão de Finanças para impedir que alguma coisa seja aprovada sem o assentimento do Palácio do Planalto. Quando o governo deu-se conta do que acontecera, o ministro Luis Eduardo Ramos, que é quem cuida agora da relação com os congressistas, armou um acordo para que metade da verba de R$ 30 bilhões que passaria a ser também impositiva fosse repassada pelo Congresso aos ministérios, numa negociação para a aplicação em programas que correspondessem ao interesse tanto do governo quanto dos parlamentares.
A fala do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sugerindo que o presidente convocasse manifestações para acabar com a “chantagem” do Congresso, e a posterior divulgação de vídeo com esse fim pelo próprio presidente Bolsonaro, levou ao impasse atual, reforçando a falta de confiança na sua relação com os parlamentares.
Fernando Henrique Cardoso: Hora de convergir
Precisamos de grandeza para superar desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco
Nem parece semana de carnaval. Em lugar da modorra habitual no circuito político, muita agitação. O círculo próximo ao presidente não deu folga. Nem ele. Foi um chacoalhar o tempo todo. Agora, depois da quarta-feira de cinzas, é melhor acalmar e refletir.
Falar de impeachment (mesmo que haja nos meios jurídicos e nos tribunais superiores quem tenha considerado a hipótese cabível) seria, no mínimo, arriscado. O país viu dois presidentes diretamente eleitos serem atingidos por este mecanismo constitucional. Não é simples, ele desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.
Pelo contrário, precisamos, como nação, de mais tranquilidade: temos pela frente dois enormes desafios. Um generalizado e de consequências ainda imprevisíveis, mas todas negativas, que é a ameaça de uma pandemia, o coronavírus. Outra, sentida por todos e mais diretamente pelos mais pobres, o arrastado crescimento da economia. O desemprego passou a ser considerado como “em diminuição” quando, na verdade, ainda há cerca de 12 milhões de desempregados, fora os desalentados que nem empregos buscam mais, e sem contar a baixa qualidade de muitos dos “empregos” disponíveis. O tempo de desemprego tem aumentado. Significa dizer que parte dos que perderam o emprego terá dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, quando o investimento voltar e novas tecnologias forem incorporadas ao processo produtivo.
Um país que está inseguro — insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia — e que tem desemprego tão alto e resistente à queda precisa urgentemente de sensatez e de coordenação. Elas são necessárias para reduzir a insegurança e criar clima favorável ao investimento, sem o qual o crescimento da economia seguirá anêmico.
Nesta hora, faz falta a liderança: o presidente e seu círculo têm sido desastrados no falar, quando não no agir. Acirram, em vez de desanuviar, as ondas que nascem no meio político. Não raro, são eles próprios a produzir turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática.
Felizmente, os chefes dos outros poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha à fogueira. De quem tem responsabilidade com o país se espera, no mínimo, que não compartilhe da loucura, não cale diante das tropelias, ainda que retóricas, e que não apenas tenha juízo para não acelerar ainda mais o descalabro como também aja, com prudência, mas com clareza de propósito, para colocar freios à marcha da insensatez.
Sei que é difícil, dificílimo, pedir bom senso em momentos de polarização. Mas é o de que o povo e o país precisam. Assisti muitas vezes no decurso dos acontecimentos, no Brasil e em outros países, governos de competência restrita apelar para o que lhes resta, em geral para os militares. Estes, por formação e, no momento atual, cada vez mais por convicção, sabem que a ordem não consensual e imposta por coação vale menos, para os objetivos nacionais, do que a ordem que deriva do livre consentimento das pessoas. Sabem que a ordem autocrática é pior do que a ordem democrática em que o poder está submetido a limites e controles institucionais e à soberania popular. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, para eles, a ordem é um valor a ser preservado.
Não é para “dar um golpe” que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade. O risco para a democracia e para as próprias FFAA como instituição permanente do Estado é de que se borre a fronteira entre os quartéis e a política.
Como se desdobrará a situação atual? Depende de como se comportarem líderes (não só políticos, mas da sociedade toda). É hora de convergir e assegurar o que mais necessitamos: coesão em torno de princípios e objetivos de proteção da democracia contra tentações populistas de índole autoritária. Sem sufocar as divergências naturais nas democracias, é urgente restabelecer o entendimento de que adversário político não é inimigo, de que política não é guerra, de que opositores eventuais do governo não são inimigos da pátria. É preciso ativar os anticorpos democráticos para neutralizar os impulsos de estigmatizar os políticos, como se difunde em parte das mídias sociais.
Precisamos de grandeza para superar nossos desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição. Termino citando de memória palavras de Ulysses Guimarães: divergir da Constituição, alterá-la por meio de emenda, sim; desrespeitá-la jamais.
*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República
El País: Governo encurta prazo para aprovar agrotóxicos e provoca desconfiança até no setor agrícola
Especialistas e defensores do uso de químicos na agricultura criticam medida do Ministério da Agricultura, que aprovará qualquer registro que não seja analisado no prazo de 60 dias
O Ministério da Agricultura publicou na quinta-feira uma portaria que determina a autorização automática de agrotóxicos pela Secretaria da Defesa Agropecuária caso o produto não seja avaliado pelo órgão no período de 60 dias. A análise feita pela secretaria é a última etapa do processo de aprovação dos agrotóxicos, que também precisam passar pelo crivo do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde. Atualmente, o prazo do órgão é de 120 dias. A medida, que passará a valer a partir do dia primeiro de abril, agiliza o processo de registros de defensores agrícolas, mas preocupa especialistas e até integrantes do próprio setor dedicado aos agrotóxicos.
Para um agrotóxico ser autorizado no Brasil, ele precisa receber um parecer favorável ambiental do Ministério do Meio Ambiente, através do Ibama, um toxicológico do Ministério da Saúde, feito através da Anvisa, e por fim uma aprovação agronômica da Secretaria da Defesa Agropecuária, uma vez que é o Ministério da Agricultura o responsável por expedir o registro do produto. Segundo o ministério, é essa última etapa que passará a ter o prazo limite de 60 dias, o que significa que a portaria não altera os prazos de Anvisa e Ibama, mas para especialistas da área, isso não está claro na medida aprovada. “Se o prazo é somente para a última etapa, após a manifestação de todos os órgãos, é o suficiente, já que expedir o registro é apenas uma questão burocrática que leva menos de 60 dias. Mas isso não ficou claro”, explica José Otávio Mentel, professor da Escola Superior de Agricultura da USP e presidente do Conselho Científico Agrosustentável.
A preocupação com o prazo se dá por conta da complexidade das análises feitas por Anvisa e Ibama. Os processos tocados pelos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, que acontecem simultaneamente, são mais demorados que a etapa final, que cabe ao Ministério da Agricultura. “Os analistas desses órgãos avaliam um conjunto muito grande de dados, com milhares de páginas para cada produto. O processo é inevitavelmente moroso pela quantidade de informação”, diz o toxicologista Claud Goellner. “É um trabalho de grande responsabilidade feito por pessoas que têm muito conhecimento”, completa ele. Se o prazo limite afetar as análises dos órgãos ambiental e toxicológico, a medida preocupa os especialistas. “A Anvisa definiu um prazo de quatro anos por produto a ser analisado, a secretaria colocou 60 dias e o Ibama não fixou nada. Não há harmonia entre os órgãos”, pontua Mentel, que defende uma regulamentação melhor do processo. “É preocupante que o agrotóxico seja aprovado se estourar os 60 dias mesmo sem um parecer dos órgãos que fazem o registro, porque eles precisam ser ouvidos. E não está claro em lugar nenhum quanto tempo Anvisa e Ibama precisam para que o estudo seja bem feito”.
A portaria tem como objetivo agilizar o processo de aprovação dos defensores agrícolas e atualizar o número de agrotóxicos permitidos no Brasil, mas preocupa até o diretor executivo da AENDA, a Associação Brasileira dos Defensores Genéricos, Túlio de Oliveira. “A maioria do setor de agroquímicos não quer [a nova regra] porque é um prazo muito curto para qualquer análise de agrotóxicos”, diz o diretor, que julga a decisão ruim para a imagem do setor uma vez que possibilita a entrada de “empresas aproveitadoras de qualidade discutível”. “Tem mais de 1.000 produtos há anos na fila para serem regularizados aqui. Se eu sou um diretor de uma empresa dessas, entro amanhã com um recurso para expedir o meu registro. Isso vai causar um tumulto”, se preocupa Oliveira. “A empresa poderá comercializar um produto enquanto a análise sobre o registro ainda está em andamento. Eu defendo os direitos dos genéricos agrícolas, mas isso vai trazer muitas críticas ao setor”, opina ele. “Acelerar o processo ajuda a agricultura, mas o rigor precisa ser mantido”, complementa Mentel.
Caso o prazo limite seja aplicado apenas à última etapa —onde o Ministério da Agricultura emite o registro aos agrotóxicos— conforme o Governo garantiu, os representantes da área de agrotóxico aceitam a medida. “Nesse caso, precisa ser mais enfatizado que os 60 dias começam a partir do momento que o ministério tem todos os pareceres favoráveis determinados pela legislação. Apesar de temerário, seria viável com a estrutura certa, ainda que o ideal seja uns 90 dias”, opina Claud Goellner. Mentel concorda ao presumir que o papel final do órgão seria apenas emitir o registro de acordo com as avaliações feitas por Anvisa e Ibama, sem necessidade de repetir as análises anteriores, o que seria cabível dentro do novo prazo limite.
Porém, ainda assim, a medida causa preocupação de ambientalistas diante de uma possível aprovação do que chamam de “PL do Veneno”. O Projeto de Lei 6299/2002, aprovado em 2018 em uma comissão especial na Câmara, pretende transferir o poder de aprovação dos agrotóxicos ao Ministério da Agricultura, tornando Anvisa e Meio Ambiente apenas órgãos consultivos. Por agora, ele está parado no Congresso.
Alon Feuerwerker: Como Bolsonaro navegará com algum vento contra? E a explicação da qual o governo pode correr, mas não conseguirá escapar
Um governo entra em zona de risco quando emerge certa coalizão político-social capaz de substituí-lo, e um sinal é aliados naturais, programáticos, demonstrarem mais propensão a sair que a entrar. Governos sabem que estão com o poder preservado quando, ao contrário, tirando o alarido, não se nota qualquer alternativa, e em vez de apelos pela derrubada do governante prevalecem os lamentos por seu comportamento.
A coalizão social que elegeu Jair Bolsonaro está essencialmente mantida, como mostram todas as pesquisas. Também a união programática entre a direita raiz e o chamado centro. O pensamento-padrão: “É ruim que as turbulências políticas possam atrapalhar o andamento das reformas.” Qual é a disputa, então? Como previsto lá atrás, o Bonaparte eleito precisaria travar uma guerra prolongada para retomar, na Brasília pós-Lava Jato, pelo menos parcialmente o Poder Moderador, institucionalizado desde D. Pedro 1º e enfraquecido entre 2015 e 2018.
O esvaziamento recente do Executivo acabou por dar asas a polos que costumavam se dobrar ao mando do Palácio. O Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União e, em boa medida, o Ministério Público. E um polo informal, a imprensa. Agora é a hora da marcha-a-ré, de fazer o caminho de volta da dispersão política. O presidente vem tendo algum sucesso, restando casos particulares. Um é o controle do Orçamento.
O debate orçamentário estimula delírios, como o de que estaria em curso a manobra pelo parlamentarismo dito “branco”. Trata-se de bobagem fantasmagórica, ainda que dita em tom solene por especialistas e combatida ferozmente pelo bolsonarismo das redes sociais. Ninguém está propondo retirar do Executivo suas atribuições, há apenas a disputa por um mísero naco da igualmente mísera verba federal destinada a investimentos.
Os deputados, principalmente, não querem depender do humor do Executivo para ter ou não recursos colocados nas suas bases eleitorais. E o governo teme um Legislativo, como se diz, empoderado pela autonomia orçamentária.
Se der a lógica, governo e Congresso vão acabar chegando a algum acordo. Será inteligente da parte dos deputados e senadores um acerto tático com o Executivo, deixando a este o ônus de explicar como vai fazer para alavancar a economia em tempos de coronavírus e ameaças de recessão global. Pois desta explicação o governo pode até correr, mas terá muita dificuldade para escapar, ainda mais se o Legislativo continuar entregando as pedidas reformas. E vai.
E um detalhe: como dito semana passada, o apelo presidencial à rua abre a janela para a oposição sair da natural hibernação pós-derrota. Mas ela continua com aquele probleminha. Os liberais revoltados com o fato de Bolsonaro não lhes dar a mínima pelota (prepararam o bolo do impeachment mas ao final não comeram) continuam preferindo o atual presidente à possibilidade de devolver o poder à esquerda, ou entregar a uma autonomeada centro-esquerda. Resistem até a atender a algumas demandas dessa turma, o que aí sim permitiria formar um bloco político-social alternativo.
Enquanto estiver desse jeito, Jair Bolsonaro não tem problema relevante com que se preocupar. Mas, atenção: ele que sempre navegou com vento a favor, pelo menos desde 2013, agora precisará demonstrar habilidade com vento contra. Uma hora o pão precisa aparecer. Governos têm de mostrar resultados, e os últimos números já não vinham sendo tão animadores, mesmo antes da onda de pessimismo econômico desencadeada pelo coronavírus.
A vida de presidentes com base congressual gelatinosa depende perigosamente da popularidade. Nunca é demais lembrar.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Julianna Sofia: Sob escombros
Em crise com Legislativo e com reformas travadas, Bolsonaro pede pressa para carteira de motorista de 10 anos
Desdobramentos da crise fabricada pelo Palácio do Planalto na briga com o Congresso por R$ 30 bilhões do Orçamento impositivo são esperados para os próximos dias com a volta da cúpula legislativa do feriadão de Carnaval. Há dúvidas se resta algo sob os escombros do acordo costurado entre as partes, depois de ter sido dinamitado pela fala vazada do general Augusto Heleno (GSI) sobre o que chamou de chantagem parlamentar.
O pacto previa uma saída salomônica na divisão do dinheiro, permitindo que o Executivo retomasse o manejo de R$ 11 bilhões. Trata-se de ínfima parte do bolo orçamentário —que hoje tem 97% dos recursos carimbados como obrigatórios—, numa disputa reveladora da progressiva hipertrofia do Legislativo frente a um Executivo que perde poder.
Diante da inépcia governista para a negociação política, o presidente Jair Bolsonaro apostou (mais uma vez) no conflito entre os Poderes ao compartilhar vídeos estimulando um protesto contra o Congresso. Em um cenário normal, os panos quentes adotados pelo Planalto após a reação negativa em cadeia --com fagulhas de impedimento--, além da resposta comedida do presidente Rodrigo Maia (Câmara) e da inação do colega Davi Alcolumbre (Senado), sugeririam a reconstrução dos pilares de um acordo.
Mas normalidade tornou-se palavra em desuso em Brasília. A instabilidade política derivada das polêmicas estéreis do bolsonarismo enfileira crise atrás de crise, numa confluência de más notícias: PMs amotinados, pânico mundial pelo surto de coronavírus, registro do primeiro caso no Brasil e PIB em desaceleração, o que deve reduzir as receitas federais e ocasionar bloqueio orçamentário maior que o esperado.
Para a equipe econômica, a fricção entre os Poderes pode prejudicar o ritmo de avanço da agenda reformista no Congresso. Para Bolsonaro, mais importa que parlamentares se debrucem com presteza sobre sua proposta que amplia o prazo de validade da carteira de motorista.
Bolívar Lamounier: No limiar de um terceiro erro
Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser
Qualquer que seja nossa avaliação sobre o momento atual, parece-me fora de dúvida de que estamos no limiar de importantes transformações em nossa identidade nacional — ou seja, na maneira pela qual nos vemos como povo.
Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossa identidade nacional já passou por duas fases — duas versões, duas ilusões — e dois erros colossais, que nos deixaram no limiar de um possível terceiro grande erro. A primeira versão foi a ideia do “brasileiro pacífico”, da conciliação entre as elites políticas, da “cordialidade” entre as pessoas comuns e da inexistência de racismo. No essencial, essa “narrativa” tinha um claro sentido de bajulação ao ditador Getúlio Vargas, exaltado como fundador da nacionalidade, culminando numa concepção do poder central como um Estado poderoso, bondoso e paternalista.
Era um apelo à convergência num país fadado a se transformar profundamente assim que a democracia fosse restabelecida,os conflitos políticos se acirrassem, e sofrêssemos os impactos externos da guerra fria. Uma sociedade concebida pela maioria como quase estática, invulnerável a abalos de monta e avessa a movimentos de mobilização política contrários ao governo.
Precocemente envelhecida, a cultura da cordialidade cedeu lugar ao chamado nacional-desenvolvimentismo, um projeto lastreado materialmente na industrialização substitutiva de importações e ideologicamente no nacionalismo. Essa nova fórmula também fez certo sentido enquanto o modelo de crescimento induzido pelo Estado permaneceu crível. O golpe de misericórdia que a inviabilizou em definitivo foi a tentativa do governo Geisel de acelerar a industrialização com base num enorme endividamento externo, opção liquidada entre 1973 e 1979 pelos choques do petróleo e a abrupta elevação das taxas de juros às quais a dívida fora indexada.
A nação “cordial” e o “nacional-desenvolvimentismo” tinham dois pontos importantes em comum. Primeiro, imaginavam ser possível o desenvolvimento de uma nação que em nenhum momento pôs em prática um projeto vigoroso de educação básica e de capacitação técnica da mão de obra. Segundo, aferraram-se a um doentio anti-liberalismo, à ideia do Estado empreendedor, a uma hostilidade ao mercado e, não menos importante, ao autarcismo, quero dizer, à opção por uma economia fechada.
Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser.