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Vera Magalhães: Rua total flex
O episódio do acordo depois desfeito e refeito em torno das emendas deveria ensinar o governo que ele precisa acertar sua negociação política, que ainda não disse a que veio
Afinal, para que são as manifestações convocadas para o dia 15? Elas começaram a ser gestadas como resposta ao chamamento do general Augusto Heleno, que chamou os congressistas de “chantagistas” por terem se assenhorado da destinação de cerca de R$ 30 bilhões do Orçamento.
Nunca um número de veto presidencial ficou tão famoso. Pessoas que nunca leram um projeto de lei passaram a fazer tuítes pela manutenção do veto 52.
Agora: se o governo tinha a força da rua e do argumento, por que negociou o envio de um Projeto de Lei (PL) do Congresso Nacional renegociando a divisão de parte dos R$ 30 bilhões com o mesmo Legislativo que antes era chantagista?
Jair Bolsonaro, com seu desapego aos fatos, foi logo para o Twitter posar de vencedor e durão. “Não houve qualquer negociação em cima dos 30 bilhões. A proposta orçamentária original do governo foi 100% mantida.” Como ele explica o PLN então?
Agora que o acordo foi feito, setores do governo tentam manter as ruas mobilizadas. Depois de o próprio presidente mandar por WhatsApp vídeos convocando para os atos, foi a vez do ministro Paulo Guedes (Economia) usar encontro com movimentos como Nas Ruas e Vem pra Rua para pedir que as manifestações se transformem em atos pró-reformas.
Ele mostrou aos organizadores dos atos um cronograma de reformas e disse que tem só 15 semanas para “mudar o Brasil”, numa referência ao semestre legislativo que se encerra em julho.
Acontece que o cronograma é irrealista – algumas reformas que constam ali, como a administrativa, nem foram mandadas para o Congresso ainda.
Numa só semana de julho o ministro estima votar a PEC 188 (do pacto federativo) em segundo turno no plenário da Câmara, a reforma tributária em segundo turno no plenário do Senado, a reforma administrativa no plenário do Senado e o projeto de lei 6407 (que muda o marco para o gás natural) no plenário do Senado. Não vai rolar.
Guedes chegou a se emocionar ao relatar dificuldades para os integrantes dos movimentos. A eles, a estimativa de “15 semanas” soou como um ultimato. Aliados do ministro garantem que não há prazo para que a agenda da Economia seja implementada, e que o “posto Ipiranga” continua plenamente abastecido.
Diante de uma ferida ainda não cicatrizada entre governo e Congresso, e com a evidência de que Bolsonaro cantou de galo para seu público, mas fechou um acordo com os políticos que chama de “velhos”, será um risco convocar as ruas, mesmo que com pauta “a favor”.
Isso porque o chamado sempre será entendido como licença para malhar o pixuleco do Rodrigo Maia (DEM-RJ), e não para pedir em uma só voz por reformas que ninguém sabe do que tratam ou que o governo nem conseguiu endereçar ainda.
O episódio todo do acordo depois desfeito e refeito em torno das emendas deveria ensinar o governo que ele precisa acertar sua negociação política, que ainda não disse a que veio. Não será possível apagar incêndios um atrás do outro, e o passivo acumulado em episódios como esses é absolutamente desnecessário.
Mais: apelo a instrumentos permanentes de democracia direta num governo que é usina de crises e com a economia se recuperando devagar pode ser um tiro no pé. Afinal, até ontem os mesmos generais que hoje conclamam as pessoas a saírem de casa viam o risco de golpe caso elas ousassem ocupar as praças para contestar o governo, como ocorria no Chile. O que poderia ensejar até medidas de exceção como um novo AI-5.
É preciso deixar de lado as convocações e governar. Se a agenda são as reformas, que Guedes cobre o presidente que envie a administrativa e que diga qual tributária vai defender. As ruas não só não têm nada com isso como só vão atrapalhar o necessário entendimento.
Agência Pública: A mineração em terra indígena com nome, sobrenome e CNPJ
Levantamento exclusivo revela explosão de processos desde 2019 e lista os beneficiários com mais pedidos minerários: políticos, cooperativas de garimpo e até um artista plástico paulista
ANNA BEATRIZ ANJOS, BRUNO FONSECA, CIRO BARROS, JOSÉ CÍCERO DA SILVA, RAFAEL OLIVEIRA E THIAGO DOMENICI (AGÊNCIA PÚBLICA)
A intenção de Jair Bolsonaro de abrir as Terras Indígenas brasileiras para a exploração do subsolo e recursos hídricos não é novidade. Desde que assumiu a Presidência, o mandatário deixou claro, em diferentes momentos, seu desejo nesse sentido.
Uma das justificativas apresentadas é de que as terras indígenas devem ser aproveitadas economicamente. Mas, além de contrariar a Constituição de 1988, como afirmou em entrevista à Agência Pública o subprocurador-geral da República, Antônio Carlos Bigonha, o conteúdo do PL 191/2020 também tem sido questionado por entidades indígenas, organizações socioambientais e pesquisas de opinião —Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, garantiu no último dia 18 que não vai pautar o projeto na Câmara.
Mas, afinal, quem são os potenciais beneficiados com a mineração em terras indígenas?
Levantamento inédito realizado pela Pública com base em dados da Funai e da Agência Nacional de Mineração (ANM) não só traz nome, sobrenome e CNPJ de pessoas físicas e jurídicas com mais pedidos minerários em Terras Indígenas (TIs) como revela um aumento de processos de pesquisa mineral nessas áreas em 2019, revertendo uma tendência de queda dos últimos anos.
AGÊNCIA PÚBLICA
Os dados indicam que os processos de exploração minerária em TIs da Amazônia cresceram 91% desde o início do governo Bolsonaro. Esta foi a primeira vez, desde 2013, que os requerimentos registraram aumento —antes, eles vinham caindo ano após ano.
Entre os potenciais beneficiários da medida do Executivo, estão grandes figuras políticas do Amazonas, cooperativas de garimpo com sócios envolvidos em denúncias por crimes ambientais, uma gigante da mineração mundial e até mesmo um artista plástico paulista.
Os dados listados pela Pública apresentam dois cenários —requerimentos incidentes em TIs feitos no período 2011-2020 e os registrados durante o governo Bolsonaro (2019-2020).
É no Pará onde está a maioria dos processos minerários em terras indígenas que avançaram no primeiro ano de Bolsonaro. A Terra Indígena Kayapó é a que mais enfrenta processos sobre suas terras no período. Em seguida, está a terra Sawré Muybu, dos Munduruku, também no Pará.
A Sawré é justamente o território indígena mais afetado por processos minerários na década: mais de 14% de todos os requerimentos que passaram por áreas indígenas na Amazônia afetam a terra. Foram 97 processos visando sobretudo a jazidas de ouro, cobre e diamante, e, em menor quantidade, de cassiterita e extração de cascalho.
Após o Pará, são os Estados de Mato Grosso e Roraima que mais concentram processos em terras indígenas durante o primeiro ano de Governo Bolsonaro.
Evolução de processos de pesquisa e mineração na Amazônia
A ANM registrou processos minerários —e chegou a conceder títulos de mineração— até mesmo em TIs homologadas, isto é, que já passaram por todas as etapas de regularização junto ao governo federal, incluindo a sanção presidencial. Um dos territórios potencialmente afetados pelos títulos minerários é o do povo Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, cujo processo de homologação foi concluído em 2006. No território vivem nove povos, incluindo indígenas isolados.
Em 2013, por exemplo, a Cooperativa Mineradora dos Garimpeiros de Ariquemes (Coomiga) obteve um título de lavra garimpeira de ouro que incide em parte do território indígena dos Uru-Eu-Wau-Wau. A cooperativa é a terceira maior produtora de estanho do país, segundo o Anuário Mineral de 2018 da ANM. Já em 2016, foi a Cooperativa Estanífera de Rondônia que conseguiu um título para lavrar cassiterita em uma área que inclui trechos da terra dos Uru-Eu-Wau-Wau. A cassiterita é o principal minério de estanho utilizado para produzir ligas metálicas —e fica em Rondônia, no município de Ariquemes, o maior garimpo de cassiterita a céu aberto do mundo.
Nos últimos dez anos, a ANM registrou 656 processos minerários que passaram por trechos de territórios indígenas. Além dos Munduruku, no Pará, os processos minerários nesta década se concentraram nas terras dos Kaxuyana e dos Kayapó, ambos no Pará, e dos Yanomami, em Roraima e no Amazonas.
Cooperativa tem 26 requerimentos em TIs e parte dos sócios foi denunciada pelo MPF
A Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coogam) ocupa o terceiro lugar no ranking de requisições de exploração mineral em terras indígenas no período analisado (2011-2020). Fundada nos anos 1990, ela reúne mais de uma centena de garimpeiros e atua nos estados de Rondônia, Amazonas e Pará, no garimpo feito por meio de balsas.
Foram encontrados 26 requerimentos de lavra garimpeira incidentes em nove terras indígenas na Amazônia Legal.
Para além das requisições formais feitas à ANM, alguns quadros ligados à organização enfrentam acusações na Justiça Federal de exploração mineral ilegal em terras indígenas. É o caso, por exemplo, do atual presidente da cooperativa, Cacildo Jacoby, denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por formação de quadrilha, usurpação dos bens da União e poluição e extração de bens minerais sem autorização do órgão competente.
A denúncia do MPF apoia-se na Operação Eldorado, deflagrada pela Polícia Federal (PF) em novembro de 2012. A operação visou, nos termos da própria PF, desarticular uma “organização criminosa dedicada à extração ilegal de ouro” nas terras indígenas Kayabi e Munduruku e de outros garimpos ilegais no leito do rio Teles Pires. Além de Jacoby, o fundador da Coogam, Geomário Leitão Sena, também é réu pelas mesmas acusações na ação penal que corre na Justiça Federal do Mato Grosso.
A investigação da PF constatou que o ouro extraído ilegalmente no leito do Teles Pires era entregue a empresas Distribuidoras de Títulos de Valores Mobiliários (DTVMs) e, após disfarçada a sua origem, era vendido como ativo financeiro a empresas em São Paulo. Só uma das DTVMs denunciadas pela PF movimentou cerca de R$ 150 milhões. Procurada, a Coogam não respondeu aos questionamentos da Pública enviados por email até publicação da reportagem.
Ex-governador e vice do estado do Amazonas possuem seis requerimentos em TIs
Duas figuras da política do Amazonas estão entre os sócios da terceira empresa que mais registrou requerimentos de exploração mineral em terras indígenas durante o primeiro ano do governo Bolsonaro.
A SMD Recursos Naturais Ltda., criada em 2012 e com sede em São Paulo, conta com o ex-governador do Estado Amazonino Armando Mendes e seu antigo vice e ex-secretário da Fazenda Samuel Assayag Hanan entre o quadro de sócios. Hanan possui um longo histórico ligado à mineração: entre outras passagens profissionais, já foi presidente da Paranapanema S.A., uma gigante da produção de cobre no país, atuou no setor de Minerocobre Metalúrgico da British Petroleum, foi diretor industrial e comercial da Companhia Estanífera do Brasil (Cesbra) e fez parte do Conselho Superior de Minas do Ministério de Minas e Energia.
Os requerimentos da SMD visam à pesquisa de estanho e incidem sobre as TIs Yanomami, em Roraima, e Waimiri-Atroari, entre este Estado e o Amazonas.
Como governador, Amazonino tomou decisões que favoreceram outros interessados na exploração mineral em terras indígenas. Em dezembro de 2017, o então governador renovou Licenças de Operação Ambiental (Loas) em poder da Coogam —outra pessoa jurídica que aparece no levantamento da Pública—, além de conceder outra licença de exploração de ouro para a organização. As Loas, expedidas pelo órgão ambiental do Amazonas, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), autorizaram a Coogam a explorar ouro em cerca de 87 mil hectares no leito do rio Madeira. Dias depois da concessão, o MPF ajuizou uma ação contra o Ipaam pedindo a suspensão de uma das licenças. Segundo a Procuradoria, a licença foi concedida “sem exigência prévia de estudos ambientais adequados e a despeito de a atividade atingir terras indígenas, unidades de conservação federais e de produzir impacto sobre curso d’água federal em mais de um Estado da Federação”.
As licenças foram concedidas antes da conclusão de um estudo do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Amazonas (Cemaam) sobre resíduos de mercúrio no rio Madeira. Elas foram suspensas liminarmente pela Justiça Federal dias depois da concessão. Quando as suspendeu, a juíza Maria Elisa Andrade apontou uma série de descumprimentos de condicionantes ambientais ligadas às licenças de operação. “O acervo documental dos autos demonstra o sistemático descumprimento de condicionantes de licenças ambientais, a provocar danos que colocam em risco a integridade do Rio Madeira, bem como riscos à saúde humana, à biodiversidade e à manutenção do ecossistema amazônico”, escreveu a magistrada em sua decisão. O caso segue em trâmite na Justiça Federal do Amazonas.
Cooperativa com interesse em TIs tem dois sócios denunciados por crimes ambientais
A Cooperativa de Trabalho de Mineradores e Garimpeiros do Marupá (Coopermigama), detentora de quatro requerimentos em TIs em 2019, é outra a ter sócios envolvidos em questões judiciais na área de Meio Ambiente.
Em 2015, Alex Renato Queiroz Carvalho, um dos 12 sócios da cooperativa, foi investigado pela Polícia Civil do Pará por envolvimento em fraudes na aquisição de créditos florestais junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do estado. No inquérito, Queiroz Carvalho é descrito como um dos “intermediários compradores de madeira, créditos e empresas”.
Segundo a investigação, a fraude ocorreu em fevereiro de 2015 e envolveu a Madeireira Sagrada Família, de Pacajá, no Pará —na época ela era de propriedade do então secretário de Desenvolvimento Econômico do município, João Paulo Chopek.
Queiroz Carvalho chegou a ser preso em julho de 2015 por estar supostamente envolvido em transferência irregular de madeira, na comercialização de empresas fantasmas, comercialização de créditos de produtos florestais, crimes ambientais e lavagem de capitais. Foi solto pela Justiça paraense no mesmo mês, mas ainda responde ao processo em liberdade. Procurado pela Pública, o advogado de Queiroz Carvalho respondeu que ele “atuava como comprador de uma empresa exportadora, tendo sido equivocadamente apontado como proprietário de uma empresa madeireira que teria recebido uma carga de madeira irregular, a qual o legítimo proprietário compareceu em juízo e assumiu a responsabilidade sobre o empreendimento”. A advogado afirmou ainda que o processo criminal se encontra em fase de diligências e que “a defesa tem plena convicção da futura absolvição” do acusado.
Outro sócio, Cleidson Cavalcante Hashiguchi, é réu em dois processos na Justiça Federal. No primeiro, foi autuado pelo ICMBio por praticar garimpo sem autorização no rio Jamanxim, em área no entorno da Flona Itaituba II, em Trairão, no Pará. Foi denunciado pelo MPF e condenado em primeira instância, na 1ª Vara de Itaituba, em junho de 2019, mas recorreu. O MPF apresentou contrarrazões ao recurso e o processo agora corre em segunda instância. Cleidson também foi denunciado junto com outras seis pessoas por atividade de extração ilegal de ouro na Estação Ecológica Juami-Japurá em Tefé, no Amazonas. Nem Cleidson, nem sua defesa se pronunciaram até a publicação.
Artista plástico lidera pedidos em 2019; a gigante Anglo também aparece com destaque
O campeão de requisições de exploração mineral em terras indígenas durante o governo Bolsonaro é o arquiteto e artista plástico Sami Hassan Akl. Ele fez sete pedidos para exploração mineral de diamante em TIs apenas em 2019. Ele é sócio da empresa Bogari & Akl Comércio Importação e Exportação Ltda., sediada em São Paulo, voltada ao mercado artístico. Procurado pela Pública, uma pessoa que se identificou como assistente de Sami Akl informou que ele estava em viagem ao exterior e por isso não pôde responder. Indicou o número de um geólogo que estaria auxiliando o artista plástico nos pedidos de mineração, mas não conseguimos contato com o profissional.
Outra a aparecer com destaque no levantamento de requerimentos de exploração mineral é a gigante da mineração mundial, a Anglo American, sediada em Londres. Uma de suas subsidiárias, a Anglo American Níquel do Brasil, a maior produtora de níquel do país, aparece com destaque nos dois recortes do levantamento. A empresa fez seis requerimentos de exploração em terras indígenas em 2019. Ao longo desta década, são 46 requerimentos incidentes em TIs.
O grupo Anglo também enfrenta ações na Justiça relacionadas a infrações ambientais no Brasil. O braço de minério de ferro da companhia é alvo de ação civil pública pelo Ministério Público de Minas Gerais devido ao rompimento de um mineroduto no município de Santo Antônio do Gama, em Minas Gerais. O MP estadual de Minas também cobra R$ 400 milhões na Justiça como reparação de danos morais e sociais coletivos às comunidades impactadas pelo Mineroduto Minas-Rio – um caso já abordado por nossa reportagem. Em âmbito federal, o MPF mineiro pede a suspensão das licenças de operação já concedidas à Anglo bem como do licenciamento ambiental do projeto Minas-Rio.
Procurada, a Anglo afirmou que “apresentou sua defesa nas ações judiciais e não comenta o seu conteúdo” e sobre os requerimentos disse que os fez “com base em dados geológicos disponíveis”, que “a autorização para realizar esses trabalhos de pesquisa mineral será concedida ou não pelas autoridades competentes” e que “somente executa trabalhos de pesquisa mineral em áreas devidamente autorizadas”. A empresa disse ainda, em nota, que “realizou uma revisão de seu portfólio e desistiu de todos os requerimentos em áreas de pesquisa em terras indígenas até 2015. Requerimentos de pesquisa vigentes que porventura margeiem terras indígenas podem apresentar blocos com interferências nesses territórios. Nesses casos, cabe à Agência Nacional de Mineração (ANM) demarcar corretamente os blocos fora das áreas ou reservas indígenas.”
Processos “Branca de Neve”
“Normalmente, quando algum processo minerário incide em terra indígena, ele tem tido sua tramitação sustada. É um fenômeno burocrático curioso: os requerimentos não são indeferidos, mas também não tramitam, ficam, como chamamos, de ‘processos Branca de Neve’, dormindo à espera do beijo do príncipe. A ANM (Agência Nacional de Mineração) mantém alguns títulos nessa situação, há casos de títulos concedidos antes da homologação de terras indígenas ou antes da Constituição de 1988. Há questionamentos em juízo sobre esses títulos”, explica o sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) Márcio Santilli.
De acordo com manifestação da ANM ao MPF do Pará, a agência considera que a falta de lei regulamentadora não impede que os processos minerários sejam sobrestados, ou seja, abertos e colocados em espera. Em agosto de 2019, a Justiça Federal do Amazonas decidiu que a ANM deveria limpar da sua base todos os requerimentos de pesquisa ou lavra que atingissem territórios indígenas no Estado.
“Não sabemos se a ANM irá estender essa limpeza a outros estados, mas é uma situação anômala existirem esses processos minerários. Já existe jurisprudência do STF que o direito dos indígenas independe da homologação da terra, ou seja, qualquer título incidente em terras indígenas, inclusive o minerário, deveria ser anulado. A ANM se finge de morta até para não ser processada pelos detentores desses títulos”, argumenta Santilli.
Procurada, a ANM e também a Funai não responderam aos questionamentos até a publicação.
Metodologia
Para chegar aos dados, a Pública utilizou a base de processos minerários da Agência Nacional de Mineração (ANM) e cruzou com o mapeamento de Terras Indígenas (TIs) da Funai, para identificar áreas de sobreposição dos processos com os territórios indígenas. Os processos minerários são registros na ANM que pessoas físicas e empresas precisam fazer antes de explorar qualquer mineral ou substância no subsolo brasileiro. Eles têm início com o pedido de autorização para se pesquisar a substância e seguem até à etapa final, quando pode ser concedida a licença para exploração ou garimpo. Todo processo demarca uma área de terra sobre a qual se pretende realizar as etapas para atividade mineradora.
O levantamento da Pública levou em consideração todos os processos incidentes em áreas indígenas em diversas fases do processo de demarcação. As terras indígenas podem ter sido homologadas sobre requerimentos minerários já existentes, mas estes não foram cancelados.
A reportagem, publicada originalmente pela Agência Pública, é parte do projeto Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.
El País: Rede de ‘fake news’ via WhatsApp é ativada para mobilizar base bolsonarista contra Congresso
Bolsonaro coloca Parlamento na mira do núcleo mais fiel de seguidores enquanto negocia com parlamentares manutenção de veto a Orçamento Impositivo. Entre as pautas, está a defesa de intervenção militar
Gil Alessi, do El País
Apoiadores do Governo Bolsonaro voltaram a usar a tática de disseminar notícias falsas e factoides para mobilizar o núcleo duro de seus seguidores contra um suposto inimigo. Com a ajuda dos grupos de Whatsapp, páginas em redes sociais e blogs de extrema direita elegeram o alvo da vez. Trata-se do Congresso Nacional, acusado por ministros de “chantagear” o presidente. Com o aval de Bolsonaro, que disseminou um vídeo sobre o tema, o Legislativo entrou na mira dos atos convocados para o dia 15 de março, cujas pautas incluem até o fechamento da Casas parlamentares via intervenção militar.
Oficialmente, nem movimentos nem parlamentares que apoiam a mobilização pró-Governo convocada falam em investida contra o Parlamento ou de intervenção militar. Mas vários materiais apócrifos em circulação vão neste sentido. “Nós temos que ir às ruas, mas pedindo intervenção militar já. Estamos cansados de ir às ruas só protestar, pois continua tudo na mesma. Esses bandidos esquerdistas só fazem rir do povo e continuam fazendo coisas ainda piores contra o Brasil.” “Os generais aguardam a ordem do povo”, diz um dos pôsters que usa imagens de generais da reserva que integram o Governo, como o vice Hamilton Mourão.
É difícil mensurar o alcance deste tipo de mensagem, uma vez que existem centenas de grupos de transmissão ligados ao bolsonorismo e boa parte deles replica conteúdo falso. Mas fica evidente que este movimento ganha força quando embalado pelo presidente e seu staff. Outro a aparecer nas mensagens que fazem alusão à ligação entre as Forças Armadas e o Governo é o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno. Heleno é uma peça-chave na mobilização. Ele foi gravado em conversa com colegas criticando o Congresso. “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”, disse. Exaltado, o militar também orientou o presidente a “convocar o povo às ruas”.
Dias depois foi a vez de Bolsonaro dar seu recado e confirmar o Congresso como principal alvo para seus seguidores. O presidente compartilhou dois vídeos para seus contatos de whatsapp convocando a população para um protesto contra o Legislativo no dia 15 de março, segundo reportou a colunista do jornal O Estado de S. Paulo Vera Magalhães —posteriormente, ela foi alvo de ataques por parte da chamada “milícia virtual” de Bolsonaro—. O conteúdo do vídeo enviado, uma clara afronta ao Legislativo, gerou críticas da oposição e até de ministros do Supremo Tribunal Federal. A oposição fez circular que já pensava na possibilidade de pedir a abertura de um impeachment contra o presidente.
O discurso contra o Congresso levantado pelo presidente não é novo: com uma articulação política deficiente na Câmara e no Senado, o Planalto e membros de seu primeiro escalão costumam insuflar a tese de que os parlamentares não deixam Bolsonaro governar. Seriam todos defensores do “toma-lá-dá-cá”, da “velha política”. Dessa vez, o pano de fundo da fala de Heleno e de Bolsonaro é o chamado “orçamento impositivo”, aprovado pelo Parlamento em novembro passado. Pela medida, os parlamentares decidiram transferir do Executivo para o Legislativo a gerência sobre 30,1 bilhões de reais do Orçamento da União.
Bolsonaro vetou a medida e tentava chegar a um acordo para que o Parlamento mantivesse a sua versão nesta terça —embora nas redes sociais, no entanto, tenha mantido o discurso de que não havia negociação alguma com o Legislativo. Ao longo do dia, um acerto chegou a ser anunciado entre parlamentares e o Governo para manter o veto do presidente. O texto seria votado na sessão conjunta do Congresso nesta própria terça, mas acabou não acontecendo. O motivo foi a insegurança da cúpula do Senado sobre a futura regulamentação do orçamento impositivo enviada pelo Planalto.
O que havia sido combinado com o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, era que três projetos de regulamentação do orçamento impositivo seriam enviados pela manhã, para serem votados no fim do dia. Os textos, contudo, só chegaram no fim da tarde e geraram mais dúvidas do que certezas. Dois técnicos da Câmara ouvidos pela reportagem disseram que não era possível saber quais eram as mudanças efetivas. Assim, o presidente do Senado e do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), decidiu suspender a sessão e adiar a conclusão da votação para esta quarta-feira.
Retórica dos grupos
Se na vida real de Brasília há negociação para valer entre Congresso e Planalto, nos grupos de WhatsApp o que vale é o discurso de Bolsonaro. Na semana passada, o presidente mentiu sobre o endosso feito aos protestos de 15 de março com a pauta anti-Congresso. Em sua transmissão ao vivo na quinta-feira nas redes sociais, o presidente afirmou que o vídeo que ele havia compartilhado era de 2015, e não 2020, e que se tratava de uma convocatória para ato contra a então presidenta Dilma Rousseff. “É um vídeo que eu peço o comparecimento do pessoal no dia 15 de março de 2015, que, por coincidência, foi num domingo”, afirmou. No entanto, o presidente desconsiderou que o vídeo tem imagens suas, então candidato à Presidência, levando uma facada em Juiz de Fora (MG), episódio ocorrido em setembro de 2018. Ato contínuo, a mensagem foi repercutida em um grupo bolsonarista: “Urgente! Não caiam na nova jogada suja da esquerda. Pegaram um vídeo antigo no YouTube do então deputado federal Bolsonaro, onde ele pede para que a população compareça as manifestações do dia 15 de março. Só que essas manifestações eram sobre o impeachment da Dilma”, diz uma mensagem.
A máquina de propaganda bolsonarista no WhatsApp também resgata textos antigos de origem apócrifa e os faz recircular como se fossem novos. Uma mensagem atribuída ao major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez, da Aeronáutica, que já havia sido compartilhada no início de 2019, voltou à tona neste ambiente virtual tóxico. “Ele [o major Sanchez] citou uma ‘sucuri de duas cabeças’, representada ‘pelo Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional’, que ‘tramam e apertam seu abraço letal’ em torno do presidente”, diz a mensagem. A reportagem não conseguiu entrar em contato com o major, que está na reserva, para confirmar a autoria do texto replicado. Cerca de 12% do eleitorado, segundo pesquisa Datafolha divulgada em janeiro, acredita que a ditadura é o melhor para o Brasil.
O clima de hostilidade com o Congresso atingiu um patamar tão alto que até uma viagem do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para a Espanha, na semana passada, ganhou contornos de conspiração contra Bolsonaro. Um suposto tuíte da Embaixada da Espanha no Brasil feito na quinta-feira anunciava as reuniões do deputado com autoridades locais, e colocava na lista de tópicos abordados: “democracia, parlamentarismo e futuro do Brasil”. A inclusão da palavra “parlamentarismo” bastou para que os sites de extrema direita alinhados ao presidente noticiassem que Maia estava “tramando um golpe” contra o Planalto. Procurada, a Embaixada não quis se pronunciar sobre a polêmica, mas tuitou que “a visita de Rodrigo Maia teve só caráter institucional. Antes e depois da posse, o Governo de Jair Bolsonaro sabe que conta com o respeito, amizade e cooperação plena desta Embaixada”.
Merval Pereira: Hidra de muitas cabeças
Câmara atua autonomamente, com uma maioria clara de centro direita que poderia ser aproveitada pelo governo
A formação, em poucos dias, de um superbloco parlamentar que reúne cerca de 70% da Câmara, com 351 deputados de 13 diferentes partidos - DEM, PL, PP, MDB, PSDB, PTB, PROS, PSC, PSD, Patriota, Republicanos, Solidariedade e Avante, - é prova de que, quando querem, os deputados se articulam entre si, mesmo sem o impulso dos líderes do governo.
Até o PSL, que já foi do presidente Bolsonaro, mas ainda é liderado por seu filho senador Flavio, entrou nesse balaio inicialmente. Alertado de que aderir ao blocão era a admitir que os vetos do presidente sobre o Orçamento seriam derrubados, Flavio deu uma marcha-ré tentando retirar assinaturas de seu próprio partido.
A criação do bloco pluripartidário, e se o Corintianos tivesse sido aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral também lá estaria, indica que a maioria da Câmara prepara-se para repartir o bolo, calculado em R$ 30 bilhões, que resultará da eventual derrubada do veto presidencial.
Mas significa, sobretudo, que a Câmara atua autonomamente neste momento, com uma maioria clara de centro-direita que poderia ser aproveitada pelo governo para estimular a aprovação das várias reformas que estão paradas por dubiedade do presidente Bolsonaro em relação a elas.
O fato é que essa maioria esmagadora resolveu se unir, num primeiro momento, para montar a Comissão Mista Orçamentária que vai tratar dessa verba bilionária que está prestes a cair no colo do Congresso. Paradoxalmente, esses movimentos a favor da derrubada dos vetos encontram resistência no Senado, onde crescem as críticas aos deputados.
Além dos partidos de esquerda, o Podemos e o Novo também estão contra as manobras para tirar do Executivo mais poderes para usar o Orçamento da União. São representantes do conservadorismo que não comungam com o governo Bolsonaro, mas também não estão dispostos a prejudicá-lo com o que consideram manobras políticas ilegítimas.
O Podemos, comandado pelo senador Álvaro Dias, tem como objeto de desejo a filiação do ministro da Justiça Sérgio Moro para concorrer à presidência da República, mas não quer criar atritos entre ele e Bolsonaro no momento.
O Novo tenta impor uma conduta ética às negociações políticas, e não vê senão interesses escusos nessa manobra do Centrão inflado por partidos que correm em faixa própria, como o DEM e o PSDB. Esses dois partidos, e mais o PSD que também está nesse blocão, pensam em formar outra aliança, essa com objetivo político mais amplo, o de lançar um candidato viável à presidência da República.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, considera que o Centrão é o garantidor do equilíbrio na Câmara, e mesmo que não esteja em seus planos aderir a esse grupo político, prestigia-os. Com a posição do presidente Bolsonaro de afastar-se o mais possível do relacionamento partidário para fortalecer a imagem de que é um antipolítico, a corrida presidencial vai sendo organizada em vários patamares.
Entre os partidos, em busca de um candidato de centro, seja à esquerda ou à direita, que possa enfrentar os extremos Bolsonaro e PT. Esse grupo tem no apresentador de televisão Luciano Huck, que se filiaria ao Cidadania de Roberto Freire, a melhor aposta, mas não descarta até mesmo apoiar Ciro Gomes.
Dificilmente o PSDB de Doria, ele mesmo candidato potencial à presidência, apoiaria Ciro, nem o Cidadania abriria mão de Huck, o que pode indicar uma divisão das forças centristas que repetiria 2018.
O presidente Bolsonaro pretende continuar indo às ruas, seja através das mídias sociais, seja em convocações como a que se planeja para o dia 15 de março. Aposta que seu futuro novo partido, o Aliança pelo Brasil, com sua popularidade em alta, receberá uma avalanche de apoios entre os parlamentares pelo Brasil.
Como temos o que os especialistas chamam de um “pluripartidarismo exacerbado” - são 35 partidos existentes, sendo que 27 atuando no Congresso -, nenhuma maioria governamental poderá ser formada sem que reflita esse exacerbamento, e para isso é preciso uma habilidade negociadora que falta ao governo, por incompetência ou desinteresse.
Eliane Cantanhêde: Sem bicho-papão
Não há clima, maiorias e lideranças para dar golpes nem articular impeachment
Deveria causar escândalo, mas conseguem no máximo gerar preguiça e cansaço a facilidade e a frequência com que as pessoas fazem duas perguntas perigosas, mas tratadas como corriqueiras, parte da paisagem: Vai ter golpe? Ou vai ter impeachment?
A cada ataque do presidente Jair Bolsonaro, do seu entorno e da sua tropa da internet ao Congresso, a governadores, à mídia, a jornalistas (geralmente mulheres...), a presidentes estrangeiros, a ambientalistas, a ONGs, a pesquisadores cresce a percepção de que há uma escalada autoritária, um teste de limites.
Se fosse apenas questão de estilo, já seria péssimo, mas todos esses ataques vêm num contexto em que Bolsonaro enaltece ditadores sanguinários, seu filho admite a volta do AI-5 (toc toc toc) e já disse, sem a menor cerimônia, que bastaria “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo.
Assim, quando Bolsonaro transforma o Planalto num QG, o general Augusto Heleno xinga os parlamentares e fala em “povo na rua” e o governo deixa de condenar com a devida veemência o motim de PMs no Ceará... a lista começa a ficar grande e preocupante.
Só faltava o presidente da República convocar pelo WhatsApp uma manifestação que tem entre os objetivos protestar contra o Congresso e o Supremo. Divulgados os vídeos pela colega Vera Magalhães, o que fez o presidente? Mentiu! Mentiu ao dizer que se tratava de peças de 2015. Com imagens da facada? Foi em 2018. Com o brasão da Presidência? A posse foi em 2019.
Esse roteiro sugere um teste, um avança e recua, de olho nas reações das Forças Armadas e das redes sociais. E é aí que surge um fato novo depois que o Planalto aumentou o tom contra o Congresso: a maioria militar silenciosa, particularmente do Exército, começou a demonstrar desconforto e a dizer algo assim: “Aí, não!”
Assim, mesmo que houvesse algum projeto ou sonho golpista, fica-se sabendo que não há, em absoluto, unanimidade na área militar. Se há algo próximo a unanimidade é em sentido contrário: ninguém quer ouvir falar em golpes. Marinha e Aeronáutica estavam e continuam mudas e o Exército começa a perceber que tem muito mais a perder do que a ganhar, inclusive historicamente, ao se confundir com arroubos autoritários tão fora de tempo e de propósito.
Mais do que isso, porém, nunca é demais repetir o que está registrado em várias oportunidades aqui neste mesmo espaço: o Brasil não é uma Venezuela. Tem instituições, mídia, opinião pública, enorme capacidade de reação, ou, antes, de dissuasão de projetos tresloucados. Há uma rede de resistência.
Quanto a impeachment, não custa lembrar que isso não é como aspirina, que se usa a qualquer hora, para qualquer eventualidade. O Brasil passou por dois afastamentos de presidentes no curto espaço de tempo desde a redemocratização e não se ouve absolutamente ninguém com um mínimo de liderança e de responsabilidade admitindo e muito menos discutindo essa hipótese.
Aliás, o presidente chamou atenção na live de quinta-feira também ao, do nada, em bom e alto som, anunciar: “Não vou renunciar ao meu mandato!”. Quem disse que iria? Ninguém. Trata-se de uma frase que oscila entre o político e o psicológico, expondo uma característica de Bolsonaro: a mania de perseguição. Ao ver inimigos por toda parte, ele se antecipa e parte para o ataque antes de saber se seria atacado.
E fica falando sozinho. Nem o seu maior adversário aventa a hipótese de renúncia, ou de impeachment, assim como boa parte dos seus apoiadores militares não quer nem ouvir falar em golpe. A saída é outra, é o presidente se comportar como... presidente. E focar no essencial, a economia, a estabilidade, o País.
Carlos Andreazza: Governo mentiroso
Presidente forja inimigos de fantasia. Manipula auxiliares
O governo Bolsonaro mente como método. É um governo mentiroso — de um presidente mentiroso. Que faz desse procedimento a principal engrenagem da fábrica de crises artificiais de que se alimenta o bolsonarismo, fenômeno reacionário que investe em falar para algo como 20% do eleitorado; base que — alargada pelo influente peso da caneta presidencial — garantiria a Jair Bolsonaro um lugar firme no segundo turno de 2022. Esse é o cálculo.
A comunicação direcionada a um grupo da sociedade, mas como se tal fosse o povo brasileiro ele mesmo, fundamenta-se na própria fé totalitária que o bolsonarismo prega: a do poder popular, soberano, que se confunde com o líder populista até não ser mais possível distinguir um de outro — o que validaria o aterramento da democracia representativa. É o projeto.
Bolsonaro mente. Forja inimigos de fantasia. Manipula auxiliares. Com frequência, anui que um grupo de colaboradores negocie e, acordo fechado, deixa um outro bloco de subordinados bombardear o pacto e desautorizar o próprio governo. Assim, consegue ser ao mesmo tempo situação e oposição — com o que escolhe as adversidades com as quais lidará, dirige o debate público e tira do primeiro plano tanto a incapacidade (ou desinteresse) em fazer avançar as reformas quanto as dúvidas sobre a morte do miliciano Adriano da Nóbrega e o exame acerca da relação de agentes do bolsonarismo com o motim havido no Ceará.
Vejamos o caso do Orçamento impositivo —o novo combustível para a indústria de conflitos destinados a enfraquecer o Parlamento. No curso de 2019, a matéria teve adesão quase absoluta dos bolsonaristas; isto a ponto de merecer — ainda em março — palavras de exaltação de Eduardo Bolsonaro. Era, segundo o deputado, vitória do Legislativo e da independência entre poderes. Tratava-se, então, das emendas de bancada — rubrica que transferia parte do orçamento às mãos do Congresso. O governo avalizara.
Nada mudaria em dezembro, quando da votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, ocasião em que se aprovou o hoje controverso controle parlamentar sobre a execução das emendas de relator — os R$ 30 bilhões cujo domínio está em xeque. De minha parte, penso ser mesmo — esse ponto específico — avanço excessivo, gerador de desequilíbrio, do Parlamento sobre o Orçamento.
Mas o que posso fazer senão falar?
A hoje indignada bancada bolsonarista, no entanto, votou, caladinha, a favor da lei — com parcas exceções, entre as quais não Eduardo Bolsonaro. Ele, líder do PSL, poderia ter proposto um destaque e enfrentado a porção ora nociva — de súbito tornada mecanismo para chantagem contra o governo — da LDO; mas não o fez. E não o fez, só pode ser isto, por incompetência — por não saber o que se votava.
Fato consumado, lei aprovada, Executivo estrangulado, veto do presidente anunciado, o governo correu, por meio da dupla general Ramos e Paulo Guedes, para montar um plano B, um acordo que minimizasse os prejuízos e partilhasse aquele montante entre Congresso e ministérios — acordo que elementos do mesmo governo não hesitariam em dinamitar.
O governo funciona assim: na planície, sem publicidade, costura e negocia, lançando mão do que se poderia, segundo critérios bolsonaristas, chamar de toma lá dá cá; no Planalto, contando com a multiplicação desinformante de seus milicianos digitais, nega o que pactuou, trai a palavra empenhada, joga pra galera e ataca aquele com quem (legitimamente) se acertara. No caso, o Parlamento. Tem sido assim desde o começo.
É o que permite ao governo — o que mais liberou emendas parlamentares em primeiro ano de gestão da história — propagandear-se como vítima da conspiração de um Congresso chantagista. Para essa distorção dos fatos servem figuras como general Heleno, aquele que disparou o gatilho da nova rodada de intimidação do Legislativo; aquele, chefe do GSI, que teve — sem querer — declarações de afronta ao Congresso captadas por uma transmissão ao vivo gerada pelo próprio governo. Ok. Acredito.
Ato contínuo, decerto sem qualquer coordenação, lá estavam os movimentos de rua bolsonaristas convocando para protesto contra o Parlamento. Não demorou até que montagens com fotos de generais — vendendo a ideia de intervenção militar — circulassem como peças de divulgação das manifestações. E não tardaria para que o presidente compartilhasse vídeos chamando para os atos — seguramente (né?) sem qualquer intenção de que sua mensagem fosse vazada à imprensa. Foi.
Teve início, então, um novo ciclo de imposturas sobrepostas, de ataque a jornalistas — e de exposição da misoginia que caracteriza o bolsonarismo. Sob o estado de guerra em que se move um Bolsonaro em campanha permanente, tudo vale. É o que explica — mesmo com seus embustes descortinados pela exibição da verdade — haver dobrado a aposta na mentira. Ele sabe o que quer — nada a ver com as reformas estruturais de que o país precisa — e para quem fala.
Andrea Jubé: O gol de Tarcísio no jogo das emendas
Ministério executou 97% das emendas no ano passado
O embate entre parlamentares e Executivo pela liberação de emendas tornou-se um clássico da política nacional, tão tradicional quanto um Fla x Flu ou um Corinthians e Palmeiras, que vem sendo reeditado há pelo menos 13 anos, quando uma resolução do Congresso regulamentou a matéria.
Desta vez, entretanto, num cenário de polarização política que não dá sinais de retração, em meio à convocação de protestos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, endossada pelo presidente Jair Bolsonaro, a análise do veto presidencial a uma fatia vultosa das emendas impositivas promete lances dramáticos.
Confiante de que o Senado atuará para preservar a medida, Bolsonaro até ontem tinha suspendido o acordo costurado pelo ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Entretanto, a eventual vitória do Planalto nesta rodada será como marcar um gol contra, porque corre o risco de provocar um maior esgarçamento das relações entre os dois Poderes, atrasando mais as reformas econômicas.
Até aqui, surpreende que as jogadas que fizeram a rede balançar para o governo tenham vindo de um jogador a quem no campo da política caberia disputar a bola na retranca.
A bola rola em campo pelo destino dos R$ 30,8 bilhões, relativos às emendas setoriais das comissões permanentes (R$ 800 milhões) e àquelas definidas pelo relator da lei orçamentária, no valor de R$ 30,1 bilhões. Ainda estão assegurados aos deputados e senadores mais R$ 15,3 bilhões - R$ 9,4 bilhões em emendas individuais e R$ 5,9 bilhões das bancadas estaduais.
No meio do campeonato, quem combinou com os russos e articulou uma fatia dos recursos para a sua pasta, sem se indispor com nenhum dos lados, foi o ministro Tarcísio de Freitas, considerado um “quadro técnico”.
Do quinhão dos R$ 15,3 bilhões, ele já assegurou pelo menos R$ 2,3 bilhões ao Ministério de Infraestrutura neste ano - verba 32% superior ao destinado pelos parlamentares à infraestrutura no ano passado, quando a pasta executou 97% das emendas - uma proeza.
Tarcísio pilota uma pasta prestigiada, que ganhou credibilidade após exibir resultados concretos, como o recorde de leilões no ano passado. Um desempenho, contudo, que não a livrou do déficit orçamentário que assombra a Esplanada.
Foi para driblar esse revés que Tarcísio saiu em campo para captar recursos das emendas junto aos parlamentares. O alvo foram os recursos das bancadas estaduais.
Já no ano passado, Tarcísio buscou uma maior interação com os parlamentares. A ideia era mostrar que era possível otimizar os recursos, mesmo escassos. Um exemplo citado pela assessoria do ministro foi a solução dada para a reivindicação da bancada de Goiás que reclamava da deterioração da malha rodoviária federal.
O ministério não tinha recursos para a recuperação das rodovias, mas a equipe do ministro identificou um desequilíbrio na alocação de recursos. Havia R$ 40 milhões para uma obra no interior, que não tinha sequer projeto. O destino desse dinheiro seria o contingenciamento.
Ao demonstrar com números e cronograma que esses recursos seriam perdidos, o ministro conseguiu o aval da bancada para remanejá-los para a manutenção das rodovias. A principal interlocutora era um quadro da oposição: a deputada Flávia Morais (GO), do PDT, coordenadora da bancada goiana.
A articulação é considerada singular porque os parlamentares resistem a destinar recursos para a reparação de rodovias porque o retorno político é quase nulo. A visibilidade e o apelo eleitoral do anúncio da duplicação de uma rodovia ou da ampliação de um aeroporto são muito maiores.
O mantra de Tarcísio junto aos parlamentares é para que tentem ao máximo otimizar os recursos das emendas, aplicando-as em obras que já têm projeto pronto, aprovado e com cronograma de execução.
Ao longo do ano, Tarcísio promoveu cafés da manhã com as bancadas estaduais no ministério. Para facilitar as discussões, a pasta organizou cartilhas com um cardápio das obras aptas a receberem emendas e com a maior garantia de execução.
Um líder de bancada afirma que Tarcísio é tão articulado que parlamentares deixam seu gabinete de sorriso largo mesmo depois de ouvir um “não”. O ministro seria tão objetivo e direto ao explicar a inviabilidade de um projeto, com argumentos tão cristalinos, que o deputado ou senador sairia satisfeito apenas com a certeza de não estar sendo ludibriado.
Anunciado como ministro de perfil técnico e disciplina militar (com diplomas da Academia Militar das Agulhas Negras e do Instituto Militar de Engenharia), a desenvoltura política de Tarcísio era inesperada.
Um contrassenso, na verdade, porque o ministro é um quadro forjado na política: egresso da carreira consultor legislativo da Câmara, onde conviveu de perto com os parlamentares, ele depois serviu a dois governos antes de ascender a ministro. Foi diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) no governo Dilma Rousseff e coordenador do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) na gestão Michel Temer.
Determinado a alçar o Brasil ao patamar de logística competitiva, o ministro pretende contratar R$ 230 bilhões em investimentos a partir das concessões até o fim de 2022. Há 44 leilões previstos para este ano, 22 de aeroportos.
Estamos no começo de março, e um primeiro leilão foi realizado há 12 dias - a concessão de trecho da BR-101, ligando Florianópolis ao sul de Santa Catarina, gerando investimentos de R$ 7 bilhões.
Em março, está prevista a renovação da malha ferroviária paulista com uma cerimônia em São José dos Campos. O ministro quer dobrar a matriz de ferrovias para que em 2025, 30% das cargas sejam transportadas por trens.
A pasta de Tarcísio parece se desenvolver em campo livre das caneladas dos aliados ou dos adversários. Mas nem a infraestrutura, tão estratégica para o país, estará imune ao porvir. A disposição dos congressistas nos bastidores é para um jogo de faltas e cartões vermelhos se o Planalto não transigir.
Raul Jungmann: Motins de policiais são alerta para o país
Esses são momentos de extraordinária e dramática tensão e risco para sociedade, governo, militares, policiais e democracia
O motim da polícia no Ceará, finalmente encerrado e com um trágico saldo de 241 civis mortos durante sua vigência, nos impõe algumas reflexões.
Quando fui ministro da Defesa tive que lidar com 11 operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em sua maioria decorrentes de greves de Polícias Militares estaduais.
Na mais crítica das operações, em 2017, no Espírito Santo, ao desembarcar em Vitória encontrei uma cidade deserta e uma população indefesa e encarcerada em suas casas. Mulheres dos policiais realizavam piquetes nas portas dos quarteis e, segundo os amotinados, os impediam de sair de lá.
Com o motim, os homicídios deram um salto de 134%, chegando a 225 mortes em 20 dias. Lojas foram saqueadas, arrastões se sucediam, escolas e comercio não funcionavam, idem serviços públicos, o Judiciário e o Ministério Público. O quadro era de colapso do Estado e pavor da população. Já tínhamos visto algo semelhante em outros estados, porém não com a criticidade do ES.
Com a chegada das Forças Armadas, o restauro da segurança e a queda vertical dos crimes e roubos, o Espírito Santo e Vitória foram voltando à normalidade. Em contrapartida, os amotinados perderam a sua capacidade de pressão e de pôr a sociedade e o governo de joelhos.
Recordo que, em um momento crítico, policiais foram retidos nos quartéis, sob a mira de armas, por querer voltar ao trabalho. Nesse momento, chegou-se a cogitar do emprego de blindados e de forças especiais para libertar os reféns, o que implicaria em alto risco de confronto de parte a parte.
Em outro momento, em Pernambuco, colocamos 200 soldados e fuzileiros como última linha de defesa para proteger o Palácio do Governo, o governador e sua equipe.
Cabe ressaltar que, nos episódios, os governadores Paulo Hartung (ES) e Paulo Câmara (PE) portaram-se com serenidade e firmeza.
Greves e motins policiais são momentos de extraordinária e dramática tensão e risco para sociedade, governo, militares, policiais e democracia. A corporação armada é a parte da nação a quem o Estado atribuiu a função de proteger os direitos e liberdades individuais, o Estado democrático de Direito, a lei e a vida.
Por isso, por deter a força e ser a última ratio do Estado, o constituinte originário lhe atribuiu status diferenciado dos demais servidores e lhe negou o direito a greve, pois esta levaria à coerção dos que deveriam ser protegidos, à desordem, à insegurança e à ameaça à ordem democrática.
Ao se amotinarem, as polícias são desconstituídas da autoridade pública que lhes foi outorgada pelo Estado e se tornam transgressoras da lei. A moeda de troca das suas reivindicações passa a ser a vida daqueles que, sem proteção, tornam-se vítimas do crime organizado, da violência e da barbárie.
A Carta de 1988 tem entre seus princípios a dignidade humana e toma o direito à greve como um direito fundamental de todo trabalhador.
Porém nenhum direito é absoluto, logo, no caso, é impossível sobrepor o direito de greve ao da segurança da vida, bem maior tutelado pela lei. Tampouco sobrepor à democracia e ao Estado, que é o que se deduz da análise conjunta dos artigos 142 e 37 da Constituição Federal.
Sem dúvida, todos os policiais são merecedores do respeito e da estima da sociedade, pelo muito que fazem, em condições precárias, turnos exaustivos de trabalho, remunerações aquém de suas necessidades e regimentos disciplinares medievais e punitivos.
Daí a importância da Lei Orgânica das Polícias em gestação para mitigar o desconforto das polícias. Para que estas pudessem peticionar pelos seus direitos, em decisão de 2017, o STF determinou que o poder público, em atenção ao art. 165 do Código de Processo Civil, mantivesse negociações do interesse das corporações com os respectivos governos, mediadas pelos Tribunais de Justiça dos estados.
Nenhuma das GLOs que coordenei se encerrou antes que se houvesse recuperado o controle da segurança e da ordem pública. Caso contrário, seria retomada a chantagem sobre a sociedade, em termos de vidas em risco, e sobre o governo, sem falar do colapso dos serviços públicos e do funcionamento dos Poderes.
A suspensão de uma GLO antes do fim de um motim ou a concessão de anistia aos amotinados a posteriori não podem ser aceitas. Sob pena de provocar um efeito cascata, ao empoderar movimentos similares em outros estados, criando um gravíssimo clima de insegurança, já agora de âmbito nacional.
O que poderia levar a que, demandadas por um dos Poderes da República, conforme reza o art. 142 da Constituição, nossas Forças Armadas se vejam diante do risco de um confronto de consequências imprevisíveis. O que cumpre ser evitado a todo custo.
*Raul Jungmann, ex-ministro da Reforma Agrária (governo FHC), Defesa e Segurança Pública (governo Temer)
Gustavo Loyola: De qual reforma falamos?
São evidentes os ganhos que podem ser colhidos com a adoção de um IVA nacional, com a tributação no destino
O Congresso Nacional acaba de constituir uma Comissão Mista para tratar da reforma tributária. Se praticamente unânime é a opinião de que o sistema tributário necessita urgentemente ser reformado, há, entretanto, grande divergência sobre qual deve ser o teor das mudanças, tendo em vista os múltiplos interesses particulares em jogo.
Esse problema ocorre no Brasil de maneira mais aguda, em razão da coexistência de um sem número de regimes especiais de tributação que favorecem determinadas categorias de contribuintes, sacrificando a coerência e a consistência do Sistema Tributário Nacional. Em vista disso, dependendo da dinâmica da tramitação do tema no Legislativo, pode-se criar um clima de incerteza entre os agentes econômicos, prejudicando a recuperação do investimento privado esperada para 2020.
Com relação aos objetivos prioritários da reforma tributária, há distintas percepções em jogo, não necessariamente conciliáveis entre si. Há aqueles que buscam com a reforma aumentar a progressividade da taxação, como meio de reduzir as desigualdades de renda no país. Para outros, a reforma teria como alvo principal a simplificação do sistema tributário, reduzindo os custos de compliance e aumentando a segurança jurídica para os contribuintes. Por outro lado, a eliminação ou redução da interferência da taxação sobre a alocação eficiente de recursos na economia é a prioridade para os que têm como objetivo o aumento do potencial de crescimento econômico. Há ainda aqueles que prioritariamente enxergam na reforma uma oportunidade para repensar a Federação, alterando a distribuição da receita e da administração tributárias entre a União, os Estados e os municípios.
O fato é que nenhum grupo de contribuintes quer o aumento da sua carga tributária, do mesmo modo que nenhum dos entes da Federação quer sair da reforma com uma arrecadação menor do que têm hoje. Nessas condições, a única maneira de viabilizar um consenso mínimo para a aprovação de um projeto de reforma parece repousar no convencimento dos diversos grupos de interesse e dos entes arrecadadores de que com a mesma seria possível impactar positivamente o crescimento econômico, afetando favoravelmente as receitas futuras, sem necessariamente implicar um aumento da carga tributária como proporção do PIB. Isso sugere que a questão da melhora do ambiente de negócios deveria ter centralidade no debate sobre as mudanças tributárias, precedendo quaisquer outras considerações.
Nesse contexto, levando em conta a teoria e a prática internacional, quanto mais próximo do conceito de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) nacional chegar a pretendida reforma tributária, maiores resultados devem ser esperados em termos de aumento do potencial de crescimento econômico ao longo do tempo. São evidentes os ganhos que podem ser colhidos com a adoção de um IVA nacional, com a tributação no destino. Haveria uma simplificação enorme do emaranhado normativo hoje vigente, com fortalecimento da segurança jurídica, além da obtenção de maior neutralidade do sistema tributário nas decisões dos agentes econômicos, notadamente nos investimentos.
Ademais, as exportações deixariam de ser taxadas, elevando a competitividade da produção nacional. Vale dizer ainda que a adoção de um IVA alinharia o Brasil aos melhores padrões de tributação sobre o consumo existentes no mundo.
Dentre os projetos que se encontram hoje sob exame do Congresso Nacional, a meu ver, o que melhor atende a esse objetivo é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, cujo autor é o deputado Baleia Rossi. O projeto, baseado em estudo do economista Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal, tem como principal ponto a unificação de tributos federais (PIS, Cofins e IPI), estaduais (ICMS) e municipais (ISS), mediante a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tributo que seguiria o modelo do IVA, aplicado em muitos países.
O projeto do IBS é particularmente engenhoso, pois prevê uma transição gradual de dez anos para o novo regime e a gestão conjunta do tributo pela União, Estados e municípios. Com isso, se amortece bastante os impactos da transição e se reduz as incertezas para os agentes econômicos, aumentando a viabilidade política de sua aprovação pelo Congresso. Evidentemente, não se pode minimizar a complexidade do período de transição, mas trata-se de um investimento relativamente pequeno diante dos ganhos que podem ser colhidos com a adoção plena de um IVA.
As críticas ao projeto do IBS surgidas até aqui não o desmerecem como sendo a melhor opção para a reforma. Por exemplo, a crítica de que o novo tributo elevaria proporcionalmente as receitas dos Estados mais ricos em desfavor dos mais pobres poderia ser eliminada pela introdução de algum critério redistributivo de parte das receitas para beneficiar as regiões mais pobres do país.
De todo modo, a âncora da reforma tributária deve repousar sobre uma perspectiva de ganhos longo prazo, em que é possível a todos os agentes econômicos se beneficiarem dela. No curto prazo, porém, é inevitável haver perdedores e ganhadores, o que sugere que mecanismos devem ser adotados com o intuito de mitigar os efeitos redistributivos mais imediatos.
Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, é ex-presidente do BC e Sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
Celso Rocha de Barros: O golpismo tem que custar caro
Bolsonaro convocou um golpe de Estado; não aconteceu nada com ele
O presidente da República convocou seus seguidores para uma manifestação contra os outros dois Poderes da República. Em um dos cartazes do evento, fotos dos generais do governo aparecem sobre a legenda “os militares estão esperando o chamado do povo”. Outro cartaz mostra o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sendo cozinhado como um porco. Há mais de um cartaz pedindo um novo AI-5.
O deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL), do Rio de Janeiro, disse que era melhor o Congresso obedecer aos militares (“os homens dos botões dourados”), ou eles eliminariam os comunistas utilizando métodos “menos ortodoxos do que o politicamente correto”.
Todo o núcleo bolsonarista no Parlamento trabalha pela passeata, assim como ministros do governo e a secretária da Cultura, Regina Duarte. Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) disse que, se jogarem uma bomba no Congresso, ninguém sentirá falta.
Imaginem um cartaz que dissesse “Congresso, STF, cobrem impostos dos ricos ou nossos generais vermelhos, inspirados no glorioso Marechal Zhukov, os esmagarão como esmagaram os nazistas que hoje adubam Stalingrado”. Sobre o texto, as fotos de Heleno, Villas Bôas e Mourão photoshoppados com uniformes soviéticos, talvez com um Lamarca promovido a general ali no meio para dar aquela provocada.
As Forças Armadas ficariam em silêncio se um governo de esquerda usasse essa imagem para convocar uma manifestação contra o Congresso e o STF? Suspeito que não.
Mas os extremistas no governo são de direita. Por isso, nos contentamos em dizer que a democracia venceu toda vez que ainda não tiver sido essa semana que teve golpe de estado.
É bom lembrar, o golpe não está sendo chamado para resolver qualquer impasse institucional, muito pelo contrário. Como já disse aqui, só o Congresso trabalha pela aprovação das reformas de Guedes. Trabalha enquanto os bolsonaristas se empolgam com motim de PM.
Houve reação. As principais lideranças políticas de esquerda e da direita não-fascista protestaram, toda a mídia protestou. Meu xará no STF disse o que tinha que ser dito, e as associações dos procuradores da República e dos procuradores do Trabalho soltaram uma nota importante.
Mas que preço concreto Jair Bolsonaro pagou por ter cometido esse atentado contra a democracia? Nenhum. Nada. Zero.
Não foi aberto processo de impeachment, ninguém foi cassado, ninguém foi preso. Nenhum ministro golpista caiu. Rodrigo Maia reiterou seu compromisso com a aprovação das reformas. Se se elas gerarem bons resultados econômicos, Bolsonaro vai dizer que o Congresso só trabalhou sob ameaça de golpe.
As Forças Armadas não vieram a público deixar claro que se opõem ao golpe e que, aliás, se Bolsonaro tentá-lo, quem cai é ele.
As instituições brasileiras parecem querer ensinar democracia para Bolsonaro pelo método Paulo Freire, fixando alguns limites e tentando conduzi-lo à consciência democrática por sua própria reflexão.
Tenho a impressão de que, no caso dos bolsonaristas, o próprio Freire diria que tem que apertar os moleques ou eles vão se encher de crack e tacar fogo na escola.
Se o golpismo não começar a custar caro, ele vai até o fim.
*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Sergio Fausto: Mito e política – precisamos de uma alternativa
País começa a se cansar de um clima que azeda relações pessoais e tira a alegria de (con)viver
A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).
Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.
Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.
Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.
O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.
Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.
Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.
Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.
Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.
* Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
Vinicius Torres Freire: Salário não cresce faz um ano e ainda pode pegar coronavírus
Rendimento médio do trabalho está na mesma desde o início de 2019, diz IBGE
O comentarismo econômico não gosta de falar de salários. Preocupa-se com o assunto quando os trabalhadores passam a custar cada vez mais caro em tempos de inflação, por exemplo. Faz sentido, mas a preocupação é enviesada, diga-se, com eufemismo irônico. Quando o salário fica na lona, o pessoal faz cara de paisagem ou até festinha.
Quase não se ouviu por aí que o salário médio no Brasil não cresceu nada, de um ano para cá, mostram os dados de janeiro do IBGE: zero. ZERO.
A estagnação do salário médio tem acontecido com frequência desde que a economia pegou outra gripe, no primeiro trimestre do ano passado. Tem sido tão frequente quanto ouvir empresário, executivo, “analista” ou um bajulador qualquer deste governo dizendo que “é melhor emprego precário do que emprego nenhum” e variantes.
Sim, há “boas notícias”, assim como é boa notícia ficar vivo e inteiro depois de um atropelamento ou de uma outra zika.
A população ocupada (com algum emprego) cresce sem parar desde julho de 2017, é fato. Assim, a massa (soma) de todos os rendimentos também cresce, embora em ritmo lento, em tendência de baixa desde 2018.
Pela primeira vez desde 2014, a carteira assinada lidera a criação de postos de trabalho, embora a participação do trabalho formal no total de empregos ainda esteja abaixo do que era em 2015. A conta de formalização inclui assalariados com carteira e servidores públicos, além de trabalhadores por conta própria e empregadores que tenham CNPJ.
Mas o salário, ó. O salário anual médio vem crescendo cada vez menos desde março de 2019, tendendo a zero.
Rendimentos que crescem de pouco a nada em empregos mais precários não tendem a animar muito o consumo, do que depende essa tentativa de recuperação que dá chabu desde 2017. No mais, a economia apenas não rasteja no chão por causa do aumento do crédito.
Não é só a renda do trabalho que rateia. O benefício médio do INSS (aposentadorias, acidentes, assistenciais etc.) está na mesma desde 2017. Não é uma sugestão de que os benefícios previdenciários devam ser reajustados, mas uma observação de que o povo não tem muito mais o que gastar. A massa dos benefícios do INSS é relevante: equivale a um quarto da massa de salários.
Enfim, essa era a situação do mercado de trabalho antes da gripe, por assim dizer, antes da epidemia do novo coronavírus e do novo acesso de bolsonarite, que causa desarranjo ou nó nas tripas da política.
A Covid-19 vai talhar o crescimento do mundo ao menos no primeiro trimestre, com algum impacto sobre o Brasil, ainda difícil dizer o tamanho. Há bancão prevendo o equivalente a recessão na economia mundial neste primeiro semestre.
O Congresso coloca compressas frias no surto de bolsonarite, até porque a liderança do parlamentarismo branco também tem o que perder com um mergulho na crise político-econômica. Apesar da profunda irritação de Rodrigo Maia, tenta-se fazer um arranjo “segurem seus radicais que seguramos os nossos”, como se dizia na ditadura.
Jair Bolsonaro deve ir à mesa de negociação, tangido pelo seu entorno militar menos imoderado. Quem sabe esse arranjo até desanime a manifestação da extrema direita, que quer a cabeça de Maia, pelo menos, ou trancar o Congresso.
O recente e longo surto de bolsonarite deste verão, afora tantas inoperâncias do governo, já deixou sequelas, porém, pioradas pelo coronavírus. Os salários mal vão conseguir sair da cama depois da gripe.