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Alon Feuerwerker: As melancias e o caminhão
A sabedoria política diz que o eleitor sai de casa no dia da eleição não principalmente para eleger alguém, mas para derrotar. Se não dá para generalizar de modo absoluto, a coisa tem algum fundamento. Colhe o sucesso na urna quem, além de despertar o amor nos seus, sabe alimentar o ódio ao adversário. Daí que os apelos por uma política sem ódio acabem caindo no vazio, explícita ou implicitamente. Coisa de gente ingênua, ou esperta demais.
De vez em quando aparece um candidato “paz e amor”, como Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 ou Barack Obama em 2008. Cuidado, porém: mesmo o postulante que não odeia explicitamente precisa que alguém, ou muitos, odeie por ele. Lula colheu o fruto eleitoral de anos de ataques do PT ao tucanismo de Fernando Henrique Cardoso. E a eleição de Obama foi sem dúvida uma revanche contra o odiado governo de George W. Bush e suas guerras.
Sem esquecer o ódio dos negros contra a discriminação. E sem falar na raiva do povão por causa da crise econômico-financeira desencadeada com a quebra do Lehman Brothers.
A política dita "civilizada" não elimina o ódio de raízes ancestrais, e costumeiramente de características tribais. Apenas dá um jeito de as disputas serem resolvidas sem (muito) sangue. Aí diz-se que “as instituições estão funcionando”. Atenção: essa funcionalidade institucional não supõe necessariamente justiça, no mais das vezes apenas permite que a injustiça prevaleça de modo a não inviabilizar as coisas continuarem rodando na normalidade.
Do que depende esse “funcionando”? Alguns nutrem a crença no sistema ideal, que vacinaria as sociedades contra o vírus da solução violenta dos conflitos. Certas vezes é chamado de estado de direito. Trata-se de um fetiche. Esse “estado” nada mais é que relações sociais, portanto entre pessoas, relações impressas num papel. Ou num PDF. Mais provável é a taxa de “civilização” resultar do grau de equillíbrio entre forças propensas à destruição mútua.
Aqui você poderá dizer que o bom estado de direito tem a qualidade de forçar esse equilíbrio. E você terá alguma razão.
Desde o surgimento das armas nucleares fala-se em “equilíbrio do terror”. O custo de romper o equilíbrio não compensa, pois muito provavelmente a ruptura levaria à destruição mútua. Parece ter sido o caso do impeachment de Dilma Rousseff. Para o PSDB e o PMDB (hoje MDB), o custo de remover o PT do poder foi alto demais, sabe-se agora. Acontece. Errar é humano. Mas, sempre lembrando o Conselheiro Acácio, é inevitável as consequências virem depois.
São inteligentes as vozes a pedir frieza diante da natural radicalização política. Talvez não pareça, mas agem cautelosamente o governo, quando aceita que tem de negociar com o Congresso, e a oposição, quando recusa embarcar numa nova empreitada de impeachment. A situação hoje é de equilíbrio. O presidente preside, a oposição se opõe, a imprensa reclama. E as melancias vão se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada.
E quando a poeira baixa está todo mundo aí. No jogo. Melhor deixar correr assim.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
O Estado de S. Paulo: ‘O Brasil está à deriva, não vejo nenhuma estratégia’, diz Eduardo Giannetti
Para Eduardo Giannetti, presidente “encarna o corporativismo”, e governo precisa deixar claro conteúdo e cronograma de reformas
Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo
Ainda é cedo para dizer que o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019 - que surpreendeu não tanto pelo crescimento fraco, de 1,1%, mas por sua composição, com baixo nível de investimento - vai se repetir em 2020, segundo o economista Eduardo Giannetti. A ausência de um plano econômico claro, com propostas e cronogramas definidos publicamente, no entanto, pode fazer com que isso volte acontecer, o que, por sua vez, frustraria a população.
“Aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vem se manifestando na sociedade. O desapontamento com o (presidente Jair) Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda”, diz o economista.
Para ele, o País está “à deriva” - “não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido” -, e uma possível perda de poder da ala liberal dentro do governo, além do coronavírus, acentuam a imprevisibilidade.
A seguir, trechos da entrevista.
• No fim do ano passado, o sr. falou que acreditava que 2020 não repetiria a decepção com o PIB registrada em 2018 e 2019. Ainda acha isso?
Em função de fatores externos e domésticos, estou menos convencido agora de que a recuperação cíclica é irreversível. Mas acho que é cedo para dizer que vamos repetir o que aconteceu nos últimos três anos.
• Mas as revisões para baixo já começaram.
Já, mas acho que é cedo para determinar, diante de tantas incertezas, inclusive externas, qual vai ser o desempenho em 2020. O mundo está mais imprevisível. Nos últimos 12 meses, tivemos ameaça de guerra comercial, de guerra entre EUA e Irã e agora o coronavírus. Cada um desses eventos gera incerteza. Seria improvável um mundo em que eventos de baixa probabilidade nunca acontecessem. Eles acontecem. O que mudou é que antes eles eram locais e agora são globais. Isso torna o mundo mais imprevisível.
Três fatores aumentam a imprevisibilidade mundial. Primeiro, a maior interdependência. Quando teve a Sars, em 2003, a China era muito menor do que é hoje. Uma queda da produção da China hoje faz cair o preço das commodities e afeta os emergentes. A interdependência de comércio, finanças, pessoas e informação aumenta a imprevisibilidade.
A segunda coisa é a tecnologia. Ninguém sabe qual será a estrutura econômica futura e se ela sancionará os atuais modelos de negócio que são vitoriosos. A indústria digital é um serial killer, mata um setor econômico de cada vez. Isso gera enorme insegurança nos tomadores de decisão e muita imprevisibilidade microeconômica. A terceira coisa é a polarização política. Estamos nas mãos de governos que agem de acordo com uma lógica que não era a estabelecida no sistema democrático de poucos anos atrás. Isso é uma novidade que aumenta a imprevisibilidade no processo decisório. Então, é bom a gente se preparar porque o mundo ficou mais imprevisível. Talvez esse seja o novo normal. O aumento da imprevisibilidade torna mais difícil o processo decisório e afeta investimentos.
A tendência, então, é uma queda geral de investimentos?
As pessoas vão ter de aceitar correr mais riscos. Não vão poder se ausentar completamente. Ao mesmo tempo, as taxas de juros estão baixas, o que leva os detentores de ativos a buscar alternativas para investir. São forças em direções contrárias.
E como o sr. vê a questão de previsibilidade doméstica?
Aí o governo Bolsonaro deixa muito a desejar, porque não está nem um pouco empenhado em dar sequência ao movimento reformista.
• O presidente ou o governo como um todo?
É o governo como um todo. O Brasil está à deriva em termos de governo. Não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido.
Não há um plano liberal sendo implementado?
Não vejo estratégia, comprometimento ou clareza. É espantoso que a equipe econômica não tenha, até agora, dito o que deseja de reforma tributária. Eles sabem da importância desse assunto para a vida empresarial e não se manifestam. A única coisa que aparece desse governo é corporativismo. É, por exemplo, liberar terra indígena para mineração. O presidente confunde defender os grupos de interesse que interessam a ele politicamente com o governo do Brasil. Ele defende os militares na reforma da Previdência, se omite na greve das polícias militares, defende os canais de televisão dos grupos de mídia que o apoiam liberando sorteios, quer abrir terras indígenas para garimpo para defender grupos até paralegais que atuam em mineração ilegal na região amazônica.
O corporativismo era tido como uma das grandes característica do governo PT...
Ninguém encarna mais o corporativismo pequeno do que o nosso presidente. Ele não vê problema em usar o poder para favorecer aqueles que os apoiam.
O sr. já disse várias vezes que vê risco à democracia no Brasil sob Bolsonaro. Como o sr. avalia o fato de o presidente ter compartilhado um vídeo convocando para protesto contra o Congresso?
Concretamente, a linha não foi atravessada. Mas fica cada vez mais claro que o sentimento é de atropelar instituições. Temo que, num momento de crise, esse sentimento se transforme em ação. O risco é alto e tenho certeza de que a insegurança política gerada pelos pronunciamentos do Bolsonaro em nada contribui para a economia brasileira. Houve um rumor, pouco tempo atrás, de que o Paulo Guedes poderia sair do governo. E se o Bolsonaro resolve dar um cavalo de pau na economia e chamar um militar? Aliás, isso é curioso. Há três grupos no governo: o militar geopolítico, o liberal econômico e o familiar astrológico. Essa correlação de forças tem mudado e o familiar astrológico se enfraqueceu, enquanto o militar avançou e aparentemente está de olho na economia.
O sr. dizia que o familiar o preocupava. Como vê essa mudança?
A força que me parecia menos ameaçadora era a econômica. O enfraquecimento dela é mais um elemento de incerteza.
Voltando ao PIB, o resultado de 2019 e a possível debilidade que deve haver neste ano ameaçam a agenda reformista?
Pouca reforma foi feita até agora, mas uma conquista é que o Brasil saiu da UTI fiscal. Isso começou no governo Temer e teve continuidade neste início do governo Bolsonaro.
Mas isso é algo que a população não sente. As pessoas percebem o desemprego.
Está faltando essa agenda de reforma administrativa, tributária, de marco regulatório adequado para investimento em infraestrutura e de um governo que tranquilize, em vez de hostilizar. Um governo que mostre seriedade e compromisso em criar um ambiente estável para que as pessoas possam se sentir confiantes em relação ao futuro. O governo Bolsonaro não contribui em nada para isso. Essa maluquice que fez, se recusando a comentar os números do PIB, é um desastre para a credibilidade. Mas as reformas não foram feitas ainda. Se forem feitas e não derem resultado, aí tem duas possibilidades: elas podem ser necessárias, mas não suficientes, ou se mostrarem contraproducentes. Mas, se acontecer uma boa reforma tributária, isso só pode contribuir para o melhor desempenho da economia brasileira. Não tem como piorar.
O que mais precisa ser feito?
Reforma administrativa. A questão do pacto federativo é importante. Temos de descentralizar as decisões em relação ao uso de recursos públicos no Brasil. Essa é uma boa agenda que a equipe econômica do governo Bolsonaro tem, mas não está acontecendo. O governo tem de apresentar propostas, apresentar um cronograma de encaminhamento da reforma administrativa, definir uma agenda exequível de iniciativas. Isso não está acontecendo. E a impressão que dá é que eles (ala liberal do governo) estão se enfraquecendo dentro daquele arranjo tripartite de forças do governo.
Sem propostas e cronograma, além dessa ala perdendo força, o que podemos esperar para os próximos três anos?
Vamos continuar nessa frustração e aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vêm se manifestando na sociedade. Tivemos junho de 2013, a quase vitória da Marina (Silva) na eleição de 2014 foi um sentimento anti-establishment violento, o impeachment da Dilma também foi uma onda anti-establishment, a greve dos caminhoneiros e a própria eleição do Bolsonaro. Bolsonaro capturou na eleição esse sentimento anti-político. O desapontamento com o Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda. As pessoas vão começar a ficar muito inquietas, insatisfeitas e aí um acontecimentozinho pode deflagrar, com as novas tecnologias, uma nova onda (de protestos).
Como o sr. vê a ameaça do coronavírus?
Tem dois cenários. Um de que é um fenômeno de grande impacto, mas de curto prazo, que, no segundo semestre, haverá uma volta à normalidade e até um movimento de recuperação do que se perdeu no primeiro semestre. A mais pessimista é de que é um choque de oferta, como foi o do petróleo nas décadas de 70 e 80, que tem implicações duradouras e que vai gerar problemas de demanda também. O choque de oferta interrompe cadeias produtivas, leva à queda de suprimentos, a fechamento de fábricas, ao aumento do desemprego, á perda de renda. E aí você tem uma recessão. O fato de o BC americano ter se precipitado e usado boa parte da sua munição tão rápido mostra que ele está assustado e que pode ter usado rápido e cedo demais a pouca munição que tem para baixar juros.
Em qual desses cenários o sr. apostaria?
Esses cenários dependem de coisas difíceis de se modelar, quanto mais de ter um resultado para o qual se possa atribuir probabilidade. Qualquer resposta muito confiante em relação a isso mostra ignorância.
Míriam Leitão: A resposta contra a crise e o vírus
Governo não dará estímulo fiscal. Estagnação do PIB e risco externo serão enfrentados com reformas, que estão paradas no próprio governo
O presidente Jair Bolsonaro mudou vários pontos da reforma administrativa, mas tem adiado insistentemente o seu envio ao Congresso. Ela e a proposta de reforma tributária estão paradas no governo. O problema é que diante do baixo crescimento do ano passado e dos riscos de desaceleração forte da economia internacional, por causa do coronavírus, a agenda de reformas é a resposta que a equipe econômica gostaria de dar para manter um clima positivo na economia do país.
Na semana que vem, a projeção de crescimento oficial será revista de 2,4% para 2%. As previsões de várias instituições do mercado financeiro são de crescimento menor e há várias delas refazendo os cálculos para baixo. A explicação dada dentro do Ministério da Economia é que apesar de ter sido apenas 1,1% de alta do PIB, no último trimestre o país cresceu 1,7% em comparação ao mesmo trimestre do ano anterior. E que a composição do PIB mudou, há muito mais presença do PIB privado que do governo.
O governo não pensa em adotar qualquer estímulo fiscal, ao contrário de alguns países que estão anunciando expansão de gastos. A avaliação feita no governo é que a economia brasileira tem uma “dinâmica própria” e, portanto, será menos atingida. E que é possível estimular o crescimento através das reformas. A crise internacional decorrente do coronavírus já atingiu o país, na verdade. Estão em queda todas as projeções de alta do PIB e já houve um forte impacto no câmbio. Para se ter uma ideia, a cotação de R$ 4,65 de ontem representa uma alta de 16% desde 30 de dezembro, quando estava em R$ 4,00.
Se a resposta que será dada pelo país à crise é a aceleração das reformas, é preciso que elas andem. Para isso, precisam ser enviadas. A proposta de reforma administrativa já foi alterada, mas ainda permanece no gabinete do presidente. Um dos pontos principais seria a desindexação dos salários do funcionalismo. O presidente Bolsonaro vetou esse dispositivo sob o argumento de que a reforma da Previdência já havia feito várias alterações de regras para os servidores e que, por enquanto, não haveria qualquer mudança nesse sentido. Do ponto de vista econômico isso era fundamental, na visão dos formuladores. O argumento levado ao presidente foi que a inflação está caindo, portanto, esse seria o melhor momento para dar mais um passo no processo de desindexação. Não o convenceram. “Mais pra frente”, ele disse. Outro ponto que o presidente tirou da reforma foi a proibição de que servidores, de atividades típicas de Estado, tenham filiação partidária. A reforma também não atingirá os atuais funcionários. Portanto, o ganho fiscal num primeiro momento será pequeno, mas a tese é a de que se criará um funcionalismo público “britânico” no futuro. De qualquer maneira, até agora o presidente mantém esse projeto em sua mesa. A expectativa é a de que ele envie na próxima semana. “Estamos trabalhando para isso”, afirma um economista do governo.
A reforma tributária foi formulada em etapas, como já disse aqui. E a primeira fase a ser enviada é a de união do PIS-Cofins, que deve ir para o Congresso em uma ou duas semanas. O problema é como esse pedaço de reforma se encaixará na proposta que está tramitando. Na avaliação que se faz no governo, a emenda 45, que tramita na Câmara, inspirada em ideias do economista Bernard Appy, aumentaria muito a taxação sobre o comércio.
A avaliação de empresários e consultores é a de que os efeitos da reforma tributária devem demorar a chegar na atividade real. Antes, o que se espera é um período de paralisia e até de aumento de custos, porque dois modelos tributários estarão vigorando paralelamente: o atual e o novo, que precisa ser entendido e regulamentado.
São muitos os conflitos de interesse e eles podem ocorrer dentro de um mesmo setor. A Abinee, por exemplo, explica que o segmento elétrico é intensivo em mão de obra. Por isso, pode ser mais propenso a aceitar um imposto de transações financeiras, desde que a folha de pagamento seja desonerada. Já as empresas do ramo eletrônico pensam o contrário, pois são mais dependentes de investimentos e se preocupam mais com os custos de capital.
Para que dê certo o plano de responder à crise dando mais ritmo às reformas será preciso duas preliminares: que os projetos sejam enviados e que exista mais diálogo com o Congresso.
Rogério Furquim Werneck: Mudar o Brasil em 15 semanas
Não existe uma base parlamentar governista que possa dar celeridade à aprovação dos projetos
Aleluia! O governo afinal se deu conta de quão pouco tempo lhe resta para aprovar o complexo programa de reformas que pretende extrair do Congresso, neste problemático ano de eleições municipais. No início desta semana, ao tentar atrair o apoio de movimentos de rua à aprovação das reformas pendentes, numa reunião em Brasília, o ministro Paulo Guedes soou o alarme com certa grandiloquência: “Temos só 15 semanas para mudar o Brasil”.
É o que falta para o recesso parlamentar de julho. O governo bem sabe que, quando retomarem os trabalhos em agosto, deputados e senadores já estarão com a cabeça virada, mobilizados com as campanhas eleitorais que terão de enfrentar nos municípios.
Mesmo que as relações do governo com o Congresso fossem impecavelmente harmônicas e o governo contasse com o apoio irrestrito de ampla base parlamentar, o cronograma apresentado pelo ministro, para tramitação em 15 semanas dos muitos projetos contemplados, já pareceria pouco factível. Menos factível ainda parece quando se leva em conta a tumultuada relação que o Planalto continua a manter com o Congresso e, pior, a completa inexistência de base parlamentar governista que possa dar celeridade à aprovação dos projetos.
Mais curto ainda se afigura o prazo de 15 semanas, quando se tem em mente que alguns dos principais projetos que o governo pretende ver aprovados —como a reforma administrativa e a reforma tributária — nem mesmo foram submetidos ao Congresso.
O caso da reforma tributária é emblemático. É bem sabido que, nessa questão, o governo manteve-se, desde o início, na contramão do Congresso, onde já tramitavam, na Câmara e no Senado, projetos ambiciosos de racionalização da tributação do valor adicionado no país. Era na desoneração da folha de pagamentos que Paulo Guedes queria centrar o esforço de reforma. Convicto de que isso teria enorme impacto sobre o emprego, o ministro preconizava a recriação de um tributo sobre pagamentos, similar à extinta CPMF, que pudesse gerar receita suficiente para que encargos patronais sobre a folha deixassem de ser cobrados.
Durante boa parte de 2019, enquanto a equipe econômica e o Congresso se empenhavam pela aprovação da reforma da Previdência, persistiu essa completa incongruência entre os reordenamentos do sistema tributário contemplados pelo governo e pelo Congresso.
No início de setembro do ano passado, contudo, a irredutível resistência do presidente Bolsonaro à recriação de qualquer tributo similar à CPMF acabou redundando na demissão de Marcos Cintra da Secretaria da Receita Federal. Enterrado o projeto que Paulo Guedes tinha em mente, o Ministério da Economia passou a se mostrar mais propenso a se integrar ao esforço de reforma tributária que vinha sendo desenvolvido no Congresso. Era o que parecia.
Já em outubro, a mídia cobrava do governo a explicitação da nova proposta de reforma que submeteria ao Congresso. A ideia, de início, era que o governo apresentaria um projeto detalhado de racionalização do PIS/Cofins. Não antes, esclareceu depois o Ministério da Economia, de o Congresso conseguir conciliar as Propostas de Emenda Constitucional relativas à reforma tributária que vinham tramitando na Câmara e no Senado. A última promessa, agora, é a de que o governo submeteria ao Congresso, “até abril”, uma proposta integrada ao esforço de racionalização da tributação do valor adicionado que já vem tendo lugar no Legislativo.
Notícias recentes, contudo, dão conta de que não será tão simples. Lobistas de segmentos importantes do setor de serviços, inconformados com a redistribuição de carga tributária que tal racionalização acarretaria, vêm tentando, de forma bastante ostensiva, desestabilizar o avanço desse esforço de reforma e ressuscitar a ideia de desoneração da folha de pagamentos com a recriação de um tributo análogo à CPMF.
Estará tudo isso contemplado no cronograma com que o governo alega trabalhar, a 15 semanas do recesso de meio de ano do Congresso?
Bernardo Mello Franco: Os limites da tesoura
Após o terceiro pibinho seguido, Rodrigo Maia defendeu a retomada do investimento público. O deputado disse o óbvio, mas o tema andava banido do debate econômico
“A gente não consegue organizar um país apenas fazendo as reformas e cortando, cortando, cortando”. A frase caberia na boca de economistas ligados à esquerda. Mas foi dita por Rodrigo Maia, um político afinado com o mercado financeiro.
Na quarta-feira, o presidente da Câmara apontou os limites da tesoura. Depois de o IBGE confirmar o mau desempenho da economia no ano passado, Maia disse que “o setor privado sozinho não vai resolver os problemas”.
“A grande mensagem do PIB é que a participação do Estado também será sempre importante para que o Brasil possa crescer”, afirmou. O deputado disse uma obviedade, mas defender o investimento público parece ter virado uma heresia desde a posse de Michel Temer.
Em 2016, os economistas ultraliberais prometiam uma nova era de prosperidade. A recessão ficou para trás, mas a fada da confiança não apareceu. O terceiro pibinho consecutivo mostra que a receita da austeridade fracassou em tirar o país do atoleiro.
Nos últimos três anos, o Congresso retalhou direitos trabalhistas, aprovou o teto de gastos e cortou as aposentadorias de quem não usa farda. Os resultados na economia real foram pífios, mas os fundamentalistas de mercado se recusam a fazer uma autocrítica.
O ministro Paulo Guedes gosta de atribuir os problemas à classe política ou aos servidores públicos, que já chamou de “parasitas”. Em outra fala memorável, ele reclamou que os pobres brasileiros “consomem tudo”, em vez de deixar o dinheiro no banco.
Ontem o doutor buscou novos bodes expiatórios. Em visita à Fiesp, ele disse que a tragédia de Brumadinho e a crise argentina prejudicaram o PIB de 2019. Há sete meses, o mesmo Guedes perguntou: “Desde quando o Brasil precisou da Argentina para crescer?”. Em breve, a desculpa será o coronavírus.
À medida que a epidemia avança, os países buscam formas de amenizar seus impactos na economia. A Itália acaba de anunciar um pacote de € 7,5 bilhões em estímulos. Por aqui, a doença continua a ser vista como um problema restrito ao Ministério da Saúde.
Merval Pereira: Sem compostura (2*)
Brincar com crescimento pífio do PIB é brincar com desemprego, é menosprezar consequências no cotidiano do cidadão
Vivendo na bolha virtual das redes sociais, o presidente Bolsonaro espanta-se quando os jornais independentes estampam nas manchetes sua falta de compostura. Diz que jornalista é raça em extinção, mas se incomoda quando identificam nele a contrafação do palhaço contratado.
Numa metalinguagem involuntária, um palhaço orientava o outro sobre que perguntas fazer para os jornalistas, enquanto bananas eram distribuídas. O que em Chacrinha era pura arte brasileira, em Bolsonaro e Carioca é a explicitação de uma visão de mundo apequenada pela atuação permanente no lado escuro da sociedade.
Beppe Grillo, o cômico italiano, youtuber e blogueiro, que criou um partido político de extrema-direita com influência importante na política italiana, é o que há de mais próximo de Bolsonaro na política internacional. Não por ser de extrema-direita, mas por ser palhaço.
Apalhaçado também é Trump, assim como foram Hitler e Mussolini, em comum todos de extrema-direita chegados ao poder em momentos críticos da vida de seus países e do mundo.
Como não podia deixar de ser, Bolsonaro enfrentou reações negativas sobre sua postura em relação ao resultado do PIB. "PIB? O que é PIB? Pergunta para eles (jornalistas) o que é PIB", disse Bolsonaro ao humorista Márvio Lúcio, conhecido como Carioca, caracterizado como o presidente, que chegou ao Palácio da Alvorada num carro oficial da Presidência, ao lado do chefe da Secom, Fabio Wajngarten.
Brincar com o crescimento pífio do PIB brasileiro é brincar com a taxa de desemprego, é menosprezar as conseqüências no cotidiano do cidadão de baixa renda ou sem renda. Bolsonaro, de tão tosco, deixa pistas sobre suas impropriedades, e até mesmo suas ilegalidades, pelo caminho.
Ao levar a tiracolo um palhaço empregado da rede de televisão Record, depois de elogiar a chegada da franquia CNN Brasil, deixa claro o que considera imprensa que merece respeito. Millor Fernandes já dizia que jornalismo tem que ser de oposição, ou então é secos e molhados.
Pois humor a favor não é humor, é propaganda. Uma velha lição jornalística foi dada por William Randolph Hearst, magnata da imprensa inspirador do Cidadão Kane de Orson Welles: “Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado. O resto é propaganda”.
Bolsonaro confirma candidamente que não gosta de críticas, repetindo um dos nossos ditadores militares, Costa e Silva, que retrucou a explicação de que as críticas jornalísticas eram “construtivas” também com sinceridade: “Prefiro elogios construtivos”.
O ex-presidente Lula também tinha dificuldade em separar o joio do trigo, e não gostava muito dessa definição de notícia. A ex-presidente Dilma também tinha sua contrafação, o comediante que fazia a Dilma Bolada e recebia, segundo diversas delações, pagamento mensal em “dinheiro não contabilizado” para tornar a presidente em figura simpática popularmente, missão de resto impossível.
Nunca houve, no entanto, presidente algum que tenha levado a cabo com tanto entusiasmo a degradação da função presidencial, querendo adaptar os usos e os costumes republicanos ao seu modo de vida à margem das instituições, utilizando-se delas para tentar destruí-las.
Mau soldado, segundo o ex-presidente Ernesto Geisel, foi acusado de planejar atos terroristas à guisa de reivindicação salarial nos quartéis. Mau político, anda às voltas com denúncias de divisões salariais ilegais em seus escritórios e no de seus filhos, a chamada “rachadinha”. Em 27 anos como deputado federal, só aprovou dois projetos na Câmara.
Presidente eleito por uma maioria de mais de 57 milhões de votos, hoje representa um núcleo extremista da sociedade que incentiva a ir às ruas contra as mesmas instituições que jurou proteger. Não tem noção do que seja decoro, na vida privada e na pública, nem respeita a “liturgia do cargo”.
*Em 21/12/2019 foi publicada uma coluna com o mesmo título
Eliane Cantanhêde: Que surpresa?
É normal crescer 1%? Não. Não é normal, mas não é surpresa e faz todo o sentido
O ministro Paulo Guedes manifestou “surpresa com a surpresa” diante do pibinho de 1,1% de 2019, que conseguiu a proeza de ser menor que o 1,3% de 2017 e 2018, apesar de pesos e condições políticas bem diferentes: o presidente Michel Temer assumiu após um impeachment, Jair Bolsonaro chegou com a força do voto.
Na verdade, porém, não houve “surpresa” com o pibinho, mas, sim, desânimo, decepção e preocupação com o futuro. Se no primeiro ano de um governo cheio de gás foi assim, como será o segundo? Em 2019, houve Brumadinho, os embates EUA-China, se quiserem dá para incluir a crise suína na China. Em 2020, há coronavírus, Bolsas derretendo, dólar disparando e previsão de desaquecimento global, que já antecedia tudo isso. E não é só. Há muito mais para atrapalhar.
Na barafunda, uma constatação incomoda: a agenda do governo parece ter se esgotado em 2019, com a reforma da Previdência e o programa de privatizações e concessões deixado praticamente de bandeja por Temer. Logo, não dá para pular de otimismo para este ano. Nem para os próximos.
Como o que está ruim sempre pode piorar, há um mesmo fator político em 2019 e 2020 segurando investimentos, confiança e a própria recuperação do Brasil: o presidente Jair Bolsonaro, que insiste em viver em guerra e ultrapassa limites mínimos de civilidade e de respeito ao cargo.
Como investir num país onde o presidente, para fugir de falar do PIB, traz em carro oficial um comediante para jogar bananas em repórteres? Eles estão ali para ouvi-lo (ao presidente, não ao comediante) e informar a população. E, não satisfeito com cenas grotescas, o presidente também age colocando em risco o aquecimento da economia, logo, a retomada dos tão desesperadamente necessários empregos.
Além da “surpresa com a surpresa”, Guedes declarou que a economia está “claramente acelerando” e acenou com crescimento de 2% neste ano... “se as reformas forem aprovadas”. É aí que mora o perigo, porque não adianta botar a culpa nos deputados e senadores, no coronavírus, em Marte ou na “herança maldita”, como fazia Lula em relação a Fernando Henrique. A responsabilidade maior pelas reformas é do Executivo e não dá para fugir disso. Ele tem de apresentar suas propostas e tem de negociá-las com o Congresso, como em toda democracia.
Há dois consensos, dentro e fora do governo. Um é que a reforma da Previdência foi um ótimo passo, mas só um primeiro passo. Outro é que o Congresso tem uma disposição muito positiva para aprovar as reformas seguintes, mas há uma questão de timing: o ano é eleitoral e, portanto, deputados e senadores têm interesses diretos nas campanhas, aliás, legitimamente.
Se Guedes condiciona crescimento a reformas e o Congresso está disposto a aprová-las, o que está atravancando o processo? A área econômica, o Planalto, ou o próprio presidente? A reforma tributária do governo, ninguém sabe, ninguém viu. A reforma administrativa foi fechada pela equipe de Guedes há meses e o Planalto diz que Bolsonaro já assinou, mas é um fantasma. Foi adiada uma, duas, três, sei lá quantas vezes, atravessou o carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, a semana seguinte e... ainda não se materializou!
Para piorar, as reformas só saem com acordo entre Executivo e Legislativo (ou “entendimento”, para não contrariar o presidente e os bolsonaristas), mas Bolsonaro, os filhos e seu entorno não param de atacar os “chantagistas” do Congresso e torcem pelos protestos que terão Rodrigo Maia na mira das pedradas.
Para o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, “não é normal um país como o Brasil crescer 1% ao ano”. De fato. Nada é surpresa, nada é normal, mas tudo faz sentido.
Vinicius Torres Freire: Carnaval no governo, cinzas na economia
Autoridades econômicas colaboram para aumentar o paniquito no mercado
Era um daqueles dias de pânico nos mercados financeiros, quando muita gente não sabe bem o que está fazendo nem para onde o vento sopra. O ministro da Economia deu mais uns tiros nesse desconcerto.
Para quê? O tempo está fechando. Já há paniquito entre os negociantes de dinheiro grosso, "o mercado", mas também questões reais na praça, além dos lobbies de costume.
Nesta quinta-feira (5), o pessoal da finança pediu ao Banco Central que atenue a corrida do dólar. Foi também dia de pregar que o BC não reduza a taxa básica de juros daqui a duas semanas.
O mercado já jogou a "sua" taxa básica de curto prazo no chão, mas argumenta que nova queda da Selic vai colaborar para alta adicional do dólar e alimentar riscos de inflação, com o que os juros de prazo mais longo já sobem. Na terça-feira (3), o Banco Central sugeriu que tal coisa não tende a acontecer.
Caso fosse duradoura e relevante, essa alta das taxas de juros de prazos mais longos encareceria o financiamento dos negócios, de fato. Mas a alta dos juros mais longos nem durou nada, nem foi relevante e nem alguém tem ideia segura do destino do dólar e de seus efeitos na inflação. Até mesmo o impacto da crise que veio da China no PIB brasileiro é incerto.
O tiroteio de frases de Paulo Guedes pode dar em nada, assim como a desordem desta quinta-feira na praça financeira --por vezes isso simplesmente passa. No entanto, como o governo de Jair Bolsonaro é dado ao disparate atroz contínuo, o ambiente anda estressado e a desconfiança aumenta.
Por exemplo, há cada vez mais fofoca sobre a permanência de Guedes no governo, o que não está em questão, mas é um exemplo dos efeitos nocivos do rumorejo constante, desde janeiro em nível de gritaria graças às crises de Bolsonaro.
No dia depois do pibinho, Guedes:
1) disse que, se "fizer muita besteira", "se o presidente pedir para sair, se todo o mundo pedir para sair", o dólar pode ir a R$ 5;
2) observou que as notícias da relação conturbada de Bolsonaro com o Congresso e o risco de atraso nas reformas contribuem para alta do dólar (não deu para entender se o ministro atribuiu a responsabilidade ao tumulto ou ao fato de o tumulto ser noticiado);
3) fez observações azedas sobre uma declaração de seu secretário do Tesouro ("se o Mansueto [Almeida] estava esperando que fosse crescer 3%, ele deve estar frustrado");
4) disse que sua previsão de crescimento da economia é diferente da estimativa da Secretaria de Política Econômica.
"Se todo o mundo pedir para sair"? Do que se trata?
Guedes disse ainda que, como o Brasil é uma economia fechada, a crise mundial não terá efeitos tão grandes ("quando ventou a favor [no mundo], não pegou, quando ventar contra, também não pega tanto"). Hum.
Não tem sido esse o caso do último quarto de século, por exemplo, quando a economia brasileira passou a sentir especialmente as variações da economia chinesa e seus impactos nos termos de troca (a relação entre os preços das exportações e das importações brasileiras). Uma queda relativa do preço dos bens que exportamos, dominados por commodities, tende a reduzir o crescimento brasileiro. Não é destino, mas é provável.
Em si mesmas, em um ambiente e país mais normais, uma afirmação dessas de Guedes não faz lá diferença. Soltar todas elas em apenas um dia, dia de paniquito, em país ainda mais conturbado pela sensação crescente de desgoverno, confirma essa impressão de que a coisa está desgovernada.
Fernando Gabeira: O psicodrama na divisão do bolo
A discussão sobre o Orçamento acabou revelando mais uma vez os limites do populismo
Não creio que seja demagógico dizer que o momento no Brasil deveria reunir os Poderes para um debate sobre a economia de recursos. Mas a crise surgida nos últimos dias gira em torno de R$ 30 bilhões. O Congresso garantiu para si este naco do Orçamento. O governo vetou. Possivelmente vão rachar esse bolo.
Houve muita hesitação, mas desfecho previsível. Começou com a frase do general Heleno, concluída com um sonoro “f...-se!”. Durante a semana sites nas redes sociais anunciavam a manifestação do “f...-se” para 15 março. Essa batalha pode não acontecer, como a de Itararé. Estão marcadas manifestações da oposição e do governo para dias 14 e 15. Elas podem até ser grandes, mas o sentido original, a disputa pelo dinheiro do Orçamento, é um pouco confuso neste momento histórico.
O Orçamento mesmo está se distanciando da realidade. Primeiro, porque surgem gastos imprevisíveis, como os do combate ao coronavírus, e os militares, com o motim de policiais no Ceará. No caso do coronavírus, não se trata apenas do que se vai gastar, estimado em R$ 350 milhões, suficiente se a situação permanecer num estágio relativamente favorável: não há evidência de transmissão do vírus no território nacional.
O problema econômico do coronavírus é o que se deixa de ganhar. As dificuldades vividas pela China, a semiparalisação na Itália são só alguns indícios de que o crescimento global será reduzido pela disseminação do vírus. Aliás, de passagem, é bom lembrar que o Brasil é um país singular: marca grandes demonstrações de massa num período de coronavírus. Nesta mesma época, a Suíça está proibindo reunião de mais de mil pessoas e a própria Olimpíada de Tóquio pode ser adiada.
No universo paralelo da política, um momento necessário de solidariedade diante do inimigo comum, o vírus, é suplantado pela discussão sobre dinheiro, importante para os deputados que dependem das eleições de 2020. Muitos dependem de vereadores e prefeitos para se reeleger.
A frase do general Heleno foi um rompante. O palavrão, no sentido que usou, significa romper os laços, dinamitar as pontes. O governo teria de sair de seu isolamento encarnando o espírito de Chávez. Mas ele foi até o fim, até o controle do Congresso. Isso no Brasil é difícil. Bolsonaro tem uma frágil base de apoio no Congresso. É duro de cintura.
Dificilmente manifestações populares vão mudar radicalmente a correlação de forças. Ao dar as costas para a política, acabou sendo, de certa forma, engolido por ela. Assim, o que pode acontecer é continuar perdendo e achar uma forma de cantar vitória para seus seguidores.
Entre os muitos caminhos que levam o populismo à tentação autoritária está o próprio processo eleitoral. Líderes carismáticos são eleitos por sua personalidade e arrastam uma bancada heterogênea e incapaz. A história da base de apoio parlamentar de Bolsonaro é constrangedora. Não há um conjunto de ideias coerente. Quando surgem os conflitos, eles se personalizam e descambam rapidamente para a baixaria. Não dá para dobrar o Congresso apenas com manifestações. Mesmo porque os deputados também foram eleitos e se sentem legítimos.
Quando alguém repete o termo do general Heleno no cotidiano, de modo geral temos a tendência a dizer: “Calma, pense bem”. No caso do governo, não tem saída senão continuar negociando. A única atenuante possível é transformar as concessões em aparente vitória.
Além disso, existem alguns temas convergentes entre governo e maioria no Congresso, como foi a reforma da Previdência. Mesmo aí foi necessário fazer concessões às demandas parlamentares. É muito possível, no futuro, que o próprio Congresso evolua e novos presidentes levem consigo bancadas mais sólidas e capazes. Mas o único caminho é o processo eleitoral, o amadurecimento democrático.
Bolsonaro passou 28 anos na Câmara, mas quase não participou de negociações políticas, era um cavaleiro solitário. Inegável que existem muitas coisas repulsivas ou simplesmente condenáveis em acordos políticos. Mas é inegável, também, que a atividade parlamentar ensina muito, descobrem-se alguns atalhos, conquistam-se vitórias parciais.
Agora, ele tem o poder, mas não sabe como se relacionar com o universo que habitou por quase três décadas, como explorar algumas de suas qualidades, atenuar os grandes defeitos. Bolsonaro não apenas abriu esse flanco. Ele não foi capaz de trazer uma equipe da sociedade e teve de recorrer a um número excessivo de militares.
Não dá para ligar o “f...-se”. É preciso aprender alguns passos no caminho ou, então, arriscar-se a ver o termo voltando-se contra ele mesmo.
No front da saúde o governo sai-se bem, mas o coronavírus não se restringe a um campo. Tem repercussão na economia, aciona o aparato científico do País e pode até estimular grandes programas sanitários que não estão diretamente ligados a ele, como o saneamento básico. A única referência que o vi fazendo sobre tema foi a expressão “este vírus aí”. Este país aí, o Brasil num mundo complicado, está precisando cada vez mais de elos e pontes e cada vez menos da tática do general Heleno.
Discussões sobre orçamento costumam ser monótonas, mas esta, com todo o psicodrama, acabou revelando mais uma vez os limites do populismo.
Coronavírus: Como epidemia pode afetar crescimento econômico da China e do Brasil?
Em artigo produzido para Política Democrática Online, economista José Luis Oreiro cita que economia do Brasil pode ter crescimento inferior a 1,5% em 2020
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A epidemia do coronavírus pode contribuir na projeção da redução do crescimento da China para 4% em 2020 e queda de 33% no ritmo de crescimento na comparação com 2019, segundo analistas. A avaliação é reforçada pelo professor associado do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) e doutor em economia José Luis Oreiro. Em artigo que produziu para a 16ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), ele analisa como o aumento de casos de infecção pelo coronavírus também pode impactar, negativamente, a economia do Brasil. A íntegra do artigo e outros conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.
» Acesse aqui a 16ª edição da revista Política Democrática Online
“Nesse contexto, é possível que a economia brasileira apresente crescimento inferior a 1,5% em 2020, completando assim quatro anos de crescimento medíocre após o fim da grande recessão”, afirma o economista. A produção da indústria brasileira recuou 1,1% em 2019 na comparação com 2018, segundo informações divulgados no mês passado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ele tem um site próprio e já publicou mais de 80 artigos em revistas científicas no Brasil e no exterior.
De acordo com o economista, o recuo da produção industrial interrompe o movimento de tímida recuperação da produção industrial ocorrido em 2017 e 2018. “Os dados de recuo da produção industrial jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020”, afirma Oreiro. Ele acrescenta que não há como escapar da conclusão de que a grande recessão de 2014 a 2016 produziu redução da tendência de crescimento da economia brasileira.
Dados divulgados pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), conforme ressalta o economista, mostram que a formação bruta de capital fixo recuou 2,7% no quarto trimestre, na comparação com o período imediatamente anterior. “Diante dos dados recentemente divulgados, os analistas do mercado financeiro já começaram a reduzir suas previsões de crescimento para 2020, as quais já se encontram bem abaixo de 2,5%, com algumas até mesmo abaixo de 2%”, afirma o professor da UnB.
A questão relevante, de acordo com o professor da UnB, é saber qual o motivo. “Na minha visão, a redução do potencial de crescimento de longo prazo é um fenômeno que vem ocorrendo desde meados da década passada, em função da desindustrialização crescente da economia brasileira; fenômeno esse que foi tardiamente percebido pelas administrações petistas e enfrentado de forma tíbia e inconsistente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.
Oreiro foi professor do departamento de economia da Universidade Federal do Paraná de 2003 a 2008, onde exerceu o cargo de Diretor do Centro de Pesquisas Econômicas (CEPEC), de vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (2004-2008) e de coordenador do Boletim Economia & Tecnologia (2005-2007), do qual foi o fundador.
Além de escrever para a revista Política Democrática Online, o economista já publicou artigos em outras veículos de grande relevância, como Journal of Post Keynesian Economics, Cambridge Journal of Economics, International Review of Applied Economics, Investigacion Economica, Revista de la Cepal, Economia (Anpec), Revista de Economia Política, Economia e Sociedade e Estudos Econômicos.
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Ascânio Seleme: A quem o Congresso assusta
Brasil superaria muito mais rapidamente suas crises sob regime parlamentarista
Um grande número de brasileiros odeia o Congresso Nacional ou dele tem pavor. Estas pessoas enxergam no Parlamento um poço por onde escorrem todas as economias nacionais ou boa parte delas. Olham para deputados e senadores e só conseguem ver larápios, usurpadores das riquezas nacionais. Dizem sem se constranger que são eles que destroem o Brasil impedindo que gente digna e honesta, como Jair Bolsonaro, trabalhe. As convocações para o ato do dia 15 de março carregam esse vício de nascença, já que todos os problemas do Brasil têm origem no Congresso. Por esta ótica, enfrentar, atacar, desonrar o Congresso significa dar uma chance ao Brasil.
Vejo exatamente o contrário. Pelo ritmo alucinado com que se escala a intolerância política no Brasil, onde até a primeira-dama do país é vilipendiada pelo radicalismo, o Parlamento pode ser a única saída. Já testamos uma vez a alternativa parlamentarista. Funcionou provisoriamente para que João Goulart pudesse assumir o cargo aberto pela renúncia de Jânio Quadros. Como os militares não aceitavam Jango, achou-se a opção parlamentar.
Fabricada às pressas para resolver um impasse, não durou. Como também não durou o governo de Jango, derrubado pelo golpe de 1964, menos de dois anos depois.
O parlamentarismo é discutido nas redes sociais como uma armação que está sendo tramada no Congresso para tirar poder de Bolsonaro. Um golpe contra o presidente eleito democraticamente, denunciam. Bobagem. O tema não está na pauta da Câmara ou do Senado. Depois, para se fazer uma mudança de sistema de governo é obrigatório que todo o país participe do debate. Além disso, para aprovar uma emenda constitucional nesse sentido seriam necessários dois terços dos votos do Congresso, impossível de se alcançar nas circunstâncias atuais.
Claro que o modo beligerante de governar de Bolsonaro, o tumultuador da República, acaba gerando especulações. Certamente o Brasil superaria muito mais rapidamente suas crises sob um regime parlamentarista. E sem os traumas que geram no país, como o que resultou do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Se fosse primeira-ministra, Dilma deixaria o palácio mais cedo, e o país seguiria tranquilamente sua rotina com novo governo formado pelo Parlamento. Poderia ser até com o PT.
Se Bolsonaro fosse primeiro-ministro, com certeza não causaria esses tormentos quase diários que angustiam até mesmo os seus mais fiéis seguidores. Seria mais cauteloso. Ou cairia antes de completar a obra para a qual foi eleito. Nenhum problema em mudar de governo. Nos regimes parlamentaristas muitas vezes se muda a administração sem que se altere a orientação política ou mesmo o partido ou a coalizão que a sustenta. Mudanças passam a ser naturais e viram regra para se manter a estabilidade do país e a própria governabilidade.
Outra vantagem do parlamentarismo é que o servidor público passa a ser mais exigido, porque permanece na função enquanto as lideranças se alternam no governo. As políticas em andamento e a memória dessas políticas não mudam ou desaparecem a cada quatro ou oito anos. Isso dá sentido de seguimento e continuidade a diretrizes que são nacionais, suprapartidárias e não pertencem a um setor ou outro do espectro político. E é bom também porque governar fica mais fácil e barato.
Alguém pode dizer que com este Congresso que está aí não dá para contar. Meia verdade. Primeiro, porque há excelentes deputados e senadores trabalhando seriamente pelo Brasil. Depois, não tenham dúvida, a qualidade da representação parlamentar brasileira melhoraria muito. Os eleitores saberiam que o seu voto teria novo significado. Os parlamentares eleitos seriam os responsáveis pela formação do governo.
Pena que a discussão sobre a mudança de sistema só prospere em tempos de crise, quando um presidente vai mal. Ocorreu na gestão de Michel Temer, depois do escândalo da JBS. E pode vir à tona agora, com temem os bolsonaristas, em contraponto ao permanente embate do chefe do Executivo contra o Congresso, o Judiciário, a imprensa e quem quer que se mova em direção contrária à sua.
Ribamar Oliveira: Regulamentação chegou muito tarde
Agilidade do governo teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano envolvendo o Orçamento impositivo
Por mais incrível que possa parecer, somente nesta semana o governo tomou a iniciativa de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), válida para 2020, estabelecendo normas para aplicação, com segurança jurídica, do chamado Orçamento impositivo. Ou seja, os pneus estão sendo trocados com o carro em movimento.
Na exposição de motivos que acompanha o projeto de lei, o ministro da Economia, Paulo Guedes, comete uma impropriedade. Ele diz ao presidente Jair Bolsonaro que a regulamentação está sendo feita agora porque, quando as emendas constitucionais 100 e 102, que instituíram o Orçamento impositivo, foram promulgadas, o projeto da LDO válido para 2020 já tinha sido aprovado pelo plenário da Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO).
Na verdade, a emenda constitucional 100 foi promulgada no dia 26 de junho de 2019, quando o relator do projeto da LDO, deputado Cacá Leão (PP-BA), nem sequer tinha apresentado o seu relatório, o que só foi feito no dia 7 de julho do ano passado. Foi a EC 100 que determinou ser dever da administração “executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.
Na época, a EC 100 causou grande preocupação dentro da área técnica do governo, pois não estava explícito no texto constitucional que as programações orçamentárias poderiam ser contingenciadas para o cumprimento das metas fiscais ou do teto de gastos. Nem mesmo que elas não poderiam ser executadas em caso de impedimento de ordem técnica.
Em negociação direta com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a área econômica do governo acertou um texto a ser incluído em outra proposta de emenda constitucional para deixar todas essas questões explícitas.
A EC 102, aprovada no dia 26 de setembro de 2019, simplesmente determinou que a execução orçamentária se subordina ao cumprimento de dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas. Ela explicitou também que a obrigatoriedade da execução não impede o cancelamento necessário à abertura de créditos adicionais e não se aplica nos casos de impedimentos de ordem técnica devidamente justificados.
O Orçamento impositivo foi instituído, portanto, pela EC 100, de junho. O projeto da LDO foi aprovado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso no dia 8 de agosto de 2019. Havia portanto, tempo suficiente para que o governo pedisse ao relator que paralisasse a tramitação do projeto, enquanto a EC 102 não fosse aprovada. Mesmo porque o Congresso Nacional só aprovou a LDO válida para 2020 no dia 9 de outubro do ano passado.
Seria possível, portanto, fazer as alterações no projeto da LDO, estabelecendo normas para a aplicação do Orçamento impositivo, com segurança jurídica. O que teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano, quando as dúvidas sobre a aplicação da EC 100 dificultaram enormemente a execução orçamentária.
Em meio a todas as incertezas sobre a execução do Orçamento impositivo, o veto do presidente Bolsonaro ao artigo 64 da LDO adicionou um elemento politicamente explosivo. O presidente considerou contrário ao interesse público que os parlamentares indicassem os beneficiários de suas emendas e a prioridade de execução.
Em reação, os senadores e deputados aprovaram a Lei 13.957, explicitando a obrigatoriedade de execução das emendas do relator-geral do Orçamento e das comissões do Senado e da Câmara e reinstituindo os mesmos critérios de indicação e de prioridade que tinham sido vetados anteriormente. O presidente vetou novamente.
Quando o Orçamento para 2020 foi aprovado, descobriu-se que o relator-geral tinha feito emendas no valor de R$ 30 bilhões. Nunca antes um relator-geral tinha feito emendas nesse montante. Elas eram diferentes, pois ele cortou algumas programações propostas pelo governo e, ao mesmo tempo, as incluiu no Orçamento como emendas suas, com acréscimo de valor. Na área técnica do Executivo, esse procedimento é chamado de “emenda cachorro”, pois lembra um cachorro mordendo o próprio rabo.
Com esse mecanismo, o relator retirou do governo a gestão sobre uma montanha de investimentos e passou a ser a pessoa a indicar o nome dos beneficiários dos recursos e a prioridade de execução. Uma das emendas do relator-geral, por exemplo, destinou R$ 351,7 milhões para a ação de policiamento, fiscalização, combate à criminalidade e corrupção. Parece não haver dúvidas de que cabe ao ministro da Justiça e da Segurança Pública definir os beneficiários dessa ação e a prioridade de execução, e não ao relator-geral do Orçamento.
Finalmente, a proposta de regulamentação das ECs 100 e 102 chegou nesta semana ao Congresso. Junto com ela, um projeto que acaba com a possibilidade de o relator-geral apresentar a chamada “emenda cachorro”. Se o projeto for aprovado, ele só poderá indicar os beneficiários dos acréscimos que ele fez nas programações originais do Executivo.
Os projetos foram encaminhados após um acordo, feito pelo governo com as lideranças políticas, para a manutenção do veto do presidente ao artigo 64 da LDO. Ontem, o veto de Bolsonaro foi mantido e os parlamentares poderiam votar, à noite, as propostas de mudanças na LDO.
No caso da regulamentação do Orçamento impositivo, propriamente dito, o projeto define que o contingenciamento das emendas parlamentares será feito na mesma proporção aplicável às demais despesas do Executivo, que os restos a pagar de exercícios anteriores estarão dentro do limite financeiro anual de cada órgão e que o Executivo poderá remanejar os recursos de despesas que não estão sendo executadas para pagar outras.
Assinatura
A exposição de motivos de um dos dois projetos que alteram a LDO, justamente aquele que trata das emendas do relator-geral, não é assinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos.