governo bolsonaro

William Waack: Sopa para o azar

Bolsonaro escorregou feio na falsa disputa entre saúde da economia e saúde das pessoas

No Brasil, a ideia de morrer pela coletividade é um conceito distante. A complacência com a morte e a violência é o que expressa melhor um traço da nossa sociedade – basta observar como nós, brasileiros, conseguimos conviver com taxas horrendas de criminalidade há tanto tempo. Enquanto nos orgulhamos e exaltamos a nossa cordialidade, bom humor e alegria de viver.

Com decisiva ajuda do presidente Jair Bolsonaro, mas não só dele, o debate sobre a crise do coronavírus e suas consequências aqui descambou para um ácido maniqueísmo entre saúde das pessoas versus saúde da economia. Debate que, no fundo, mal encobre uma falsa dicotomia. Não dá para separar uma coisa da outra.

No extremo lógico do argumento abraçado por Bolsonaro vamos chegar a uma questão ética que ele provavelmente nem percebe, e que está contida na expressão “darwinismo social”. Simplificando bastante, significa tolerar que os mais frágeis sucumbam, pois assim determinam as “leis” da evolução social – além da noção (pouco difundida na nossa sociedade) do “bem comum”.

Bolsonaro e a defesa que faz da “saúde da economia” (simploriamente, ele deixou-se identificar com um lado na falsa dicotomia) espelham o fato de a sociedade brasileira tolerar a convivência com brutalidade (e desigualdade e miséria), mas, como cálculo político, traduz um perigoso erro de leitura da realidade. Pois, em política, mesmo com nossas notórias hipocrisias, ninguém conseguirá sobreviver associado à noção de que os mais frágeis precisam perecer pelo bem comum da economia.

Bolsonaro não é um jogador de xadrez e, por isso, é difícil assumir que seus atos sejam uma sequência de lances. Ele é um ser político intuitivo que reage a estímulos dados por um grupo restrito de “conselheiros” obcecados por posturas ideológicas que pouco passam de fantasias perigosas, à paranoia das “conspirações” e ao cálculo prático de quais vantagens políticas se oferecem no prazo mais imediato. Além de copiar o deus Trump, que viu os índices de popularidade subirem quando começou a falar que as pessoas querem voltar a trabalhar.

No caso da crise do coronavírus, ele a enxerga como uma ameaça pessoal trazida pela deterioração provável (só se discute o tamanho) da economia e, consequentemente, dos seus índices de aprovação e chances eleitorais. Ocorre que, nessa competição para superar adversários eleitorais reais ou imaginários – governadores de Estado –, ele abriu uma fissura institucional de consequências políticas difíceis de serem antecipadas (só se discute o tamanho).

É o fato de que passaram a existir várias autoridades no enfrentamento da crise, em vários níveis da Federação. Sem que exista – além da formalização de comitês vários – uma liderança central que seria essencial para enfrentar o que vem por aí, em qualquer sentido. Ao contrário do que parece supor Bolsonaro, o público dificilmente fará uma distinção entre quem disse o quê neste momento sobre como combater a crise.

“Quem tinha razão” vai importar muito pouco lá na frente, pois o País – parte-me o coração ter de dizer isso – já entrou na dupla catástrofe de saúde pública e de economia devastada. A questão da liderança surge mais uma vez como um peso negativo no enfrentamento de nossos problemas – faltaram lideranças consequentes em todos os graves episódios e, sobretudo, lideranças com visões além dos seus interesses políticos mais próximos.

Terminei o texto da semana passada afirmando que o coronavírus era uma ameaça grave para Jair Bolsonaro. Entendido, como ele foi, como uma liderança surgida numa onda disruptiva, a onda de 2018. Não calculava, porém, que a crise pudesse diminuí-lo com tanta rapidez. É o que acontece, como se diz em gíria, quando alguém se empenha em dar tanta sopa para o azar.


El País: Em cadeia de TV, Bolsonaro minimiza coronavírus para insuflar base radical

Presidente faz se lança contra a ciência e o próprio Ministério da Saúde ao criticar fechamento de escolas e desencorajar quarentena. Presidente do Senado diz que nação espera “seriedade” de seu líder

Felipe Betim, do El País

Jair Bolsonaro apelou à mentira e à tergiversação em um novo pronunciamento, em cadeia obrigatória de rádio e TV, sobre a pandemia do coronavírus. Com um discurso feito sob medida para mobilizar seus seguidores mais radicais, o mandatário voltou a minimizar nesta terça-feira os riscos da doença, que já matou mais de 17.000 pessoas pelo mundo e 46 no Brasil, a se lançar contra a mídia, prefeitos e governadores. E contra as próprias evidências científicas.

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós, e brevemente passará”, garantiu o mandatário de extrema direita, contra todas as previsões dos especialistas e do Ministério da Saúde que comanda. Depois, afirmou que “a vida deve continuar”, que “os empregos devem ser mantidos”, assim como os sustentos das famílias. “Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”, insistiu ele, indo em direção contrária ao que dizem as recomendações da Organização Mundial da Saúde e a todas as medidas de emergência adotadas em outros países. Com a ênfase na economia, Bolsonaro emula seu aliado Donald Trump, que propõe também afrouxar as restrições nos EUA ―e, mesmo assim, só depois da Páscoa.

A primeira reação ao pronunciamento foi do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM)―que foi contagiado pela Covid-19. Em nota, ele afirmou que o país espera uma liderança “séria, responsável e comprometida com a saúde e a vida da população”. Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), se limitou a dizer no Twitter que “o pronunciamento do presidente foi equivocado ao atacar a imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública”. Também afirmou que “o momento exige que o governo federal reconheça o esforço de todos ―governadores, prefeitos e profissionais de saúde― e adote medidas objetivas de apoio emergencial para conter o vírus e aos empresários e empregados prejudicados pelo isolamento social”.

Alguns governadores também se posicionaram pelo Twitter, como o petista Rui Costa, que comanda o Estado da Bahia: “Não é gripezinha. Vou continuar trabalhando em defesa da vida. Olhar nos olhos das pessoas e dizer: estamos numa guerra. ACORDA. Temos que vencê-la. Chega de discurso vazio e delírios”. No Twitter, as hashtag #ForaBolsonaro e #BolsonaroGenocida apareciam na noite desta terça como os dois assuntos mais comentados da rede social em todo o mundo.

Rodrigo Maia

@RodrigoMaia

Desde o início desta crise venho pedindo sensatez, equilíbrio e união. O pronunciamento do presidente foi equivocado ao atacar a imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública.

24,4 mil pessoas estão falando sobre isso

Bolsonaro insistiu na estratégia de forjar inimigos e oscilar de maneira errática, confundindo interlocutores. Na mesma semana em que diz ter mantido reuniões produtivas com governadores, aos quais passou a atender parte das demandas por liberação de recursos e suspensão de pagamentos de dívida, ele voltou ao ataque. O presidente voltou a insistir que o vírus ameaça principalmente aqueles com mais de 60 anos e outros problemas de saúde ―apesar de que há casos graves entre os mais jovens e saudáveis, além do poder de contagiar a população rapidamente e colapsar os sistemas de saúde. “Então, por que fechar escolas?", questionou, para em seguida tentar mais uma vez espantar os rumores de que foi infectado.

Ele também aproveitou a ocasião para fazer uma provocação ao médico Drauzio Varella. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria, ou seria quando muito acometido por uma gripezinha. Ou um resfriadinho, como diz aquele famoso médico.” Perfis no Twitter e no WhatsApp ligados ao bolsonarismo usaram a estratégia de distribuir um vídeo de Varella —de janeiro― para afirmar que o médico desencoraja as precauções.

O Brasil registrou até o momento 2.201 casos e 46 mortes pelo coronavírus, alguns deles com menos de 40 anos. Como só os pacientes com sintomas graves vem passando pelo teste, o próprio Ministério da Saúde afirmou nesta terça que para cada 100 pacientes infectados, apenas 14 são identificados. Além disso, os médicos afirmam que medidas que promovam o distanciamento social é a solução mais eficaz a curto prazo para conter a velocidade de contágio da pandemia para não colapsar os sistemas de saúde. A limitação da circulação de pessoas vem sendo adotada não apenas pela China, mas também pela Itália, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, Argentina e mais recentemente até na Índia, entre outros países. Bolsonaro, contudo, diz confiar em um possível tratamento com a hidroxicloroquina que cientistas dos Estados Unidos e do hospital Albert Einstein vêm promovendo. Os estudos não são conclusivos, mas a mera possibilidade desatou uma busca desenfreada pelo medicamento —usado no tratamento da artrite, lúpus eritematoso, doenças fotossensíveis e malária. A própria ANVISA desencoraja seu uso para combater o coronavírus. “A automedicação pode representar um grave risco à sua saúde”, alertou a agência do Governo Federal em nota.

Informações sobre o coronavírus:

Clique para seguir a cobertura em tempo real, minuto a minuto, da crise da Covid-19;

O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;

O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

Guia para viver com uma pessoa infectada pelo coronavírus;


Igor Gielow: Fala de Bolsonaro sobre crise é monumento ao radicalismo irracional

Presidente mistura agressão política e medicina de WhatsApp em hora de crise aguda

Uma característica acompanha Jair Bolsonaro desde que ele era visto como um delírio de meia dúzia de apoiadores, antes da campanha eleitoral de 2018: a mentalidade de cerco, de bunker.

O agora presidente sempre pautou seu processo decisório, caótico, pela necessidade de criar uma rede de proteção baseada na existência do proverbial inimigo aos portões. Ora era o "sistema", ora era a mídia, ora eram os outros Poderes.

Uma vez chefe do Executivo, provou-se por diversas vezes incapaz de assumir responsabilidades em momentos de crise, transferindo-as para esse Grande Outro hostil. Cambaleou até aqui, ainda mantendo respeitável apoio de um terço do eleitorado.

O pronunciamento da noite desta terça (24), no qual apareceu quase sorridente ao anunciar um futuro radiante de vitória da "nação brasileira" sobre versão local da pandemia do novo coronavírus, coroa esse movimento com uma dose extra de radicalismo quase insana —como se isso fosse possível. É um monumento ao pior que o bolsonarismo representa.

Após passar uma semana acuado pela reação à sua irresponsabilidade sanitária do dia 15, quando desceu para a galera que alegremente pedia o fechamento do Congresso e do Supremo do outro lado da praça dos Três Poderes, Bolsonaro parecia estar se controlando.

Por influência da ala militar do governo, pela enésima vez chamada a tentar colocar ordem no playground do Planalto, o presidente reduziu o grau de ataques a governadores e evitou a puerilidade ao tratar do coronavírus, que já matou 46 cidadãos governados por ele e vai matar muitos outros.

Uma coisa é discutir a racionalidade e o tempo certo de aplicação de medidas restritivas, como está sendo feito de forma escalonada em São Paulo, motor da economia nacional. É preocupação lícita. Outra coisa é brincar com o tema e falar estultices científicas acerca do efeito do vírus sobre crianças.

Ora, os pequenos podem se contaminar. Elas apenas morrem bem menos e, óbvio, são vetores do patógeno. O presidente usou rede nacional para emular um raciocínio primo daquele segundo o qual "tudo bem, só os muito velhos morrerão".

Bolsonaro teve a pachorra de aplicar uma lição de medicina de WhatsApp, ao dizer que se, se teve contato com o vírus, nada lhe ocorreu devido ao seu "histórico de atleta". Se desenvolvesse a Covid-19, seria novamente "uma gripezinha, um resfriadozinho".

É inacreditável que, neste momento, o presidente use o púlpito eletrônico que lhe é facultado para renovar os ataques à imprensa, aos governadores, e aos ditos alarmistas. Refazer a narrativa, dizendo que estava preocupado desde o começo, mas "sem histeria", vá lá, é do jogo. Não sei se engana mais alguém.

O som ensurdecedor de panelas e buzinas Brasil afora se fez presente novamente, especialmente em nichos bolsonaristas clássicos, mostrando que a infiltração na imagem presidencial sugerida por pesquisa do Datafolha tem uma avenida a percorrer.

O mundo parece hoje estar se dividindo entre duas classes de pessoas que ocupam lugares que já foram de líderes.

De um lado, os apocalípticos, amparados no fato de que as quarentenas são a única forma conhecida de reduzir a expansão do contágio —embora não haja certeza do que acontecerá uma vez que elas são levantadas; saberemos em breve em Wuhan.

Do outro, os integrados, para ficar na figura do ensaísta Umberto Eco. Esses são liderados por Donald Trump, que quer ver seus EUA "back to business" na Páscoa, Bolsonaro e o pânico de que uma recessão destrua seus planos de reeleição, e mesmo esquerdistas como o mexicano López Obrador e seu apego a abraços. Populismo não tem coloração ideológica.

No meio, como em todo o debate acerca da polarização mundo afora, a população e alguns governantes que ainda buscam agir racionalmente enquanto a ciência tenta entender melhor a natureza desse novo inimigo.

Por tantas incertezas, não é impossível que o vírus entre mais ou menos rapidamente no rol de riscos aos quais aceitamos nos submeter todo dia em que saímos de casa. Se isso for rápido, excelente, ainda que o preço a pagar seja ver Bolsonaro esbravejar com olhar maníaco uma vitória que nunca lhe pertenceu.

Se não for, a conta do impacto da epidemia lhe será debitada por uma população crescentemente insatisfeita. Na realidade, ela parece que já o está sendo de qualquer forma. A aposta de Bolsonaro é saltar no escuro, novamente, apoiado no irracionalismo político e pessoal.

*Igor Gielow é repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.


RPD || Entrevista Especial: 'Não vejo riscos para a democracia no Brasil', avalia Denise Frossard

Ex-juíza e ex-deputada federal avalia que, apesar da relação conflituoso entre o Excutivo, o Judicário e o Legislativo atualmente, o Brasil ainda vive uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável, mas que não oferece riscos à democracia

Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida

"Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil", relembra a ex-juíza e ex-deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard, sobre ampla investigação contra o crime organizado no Brasil, da qual fez parte e que a tornou conhecida nacionalmente, em 1993. Entrevistada especial desta 17a edição da Revista Política Democrática Online, Frossard aposentou-se do Judiciário em 1998 e, em 2002, foi eleita deputada federal com a maior votação para o cargo nas eleições pelo Rio de Janeiro.

Denise Frossard destaca que, né poca em que atuou contra o crime organizado,  O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. "Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes."

"Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos", completa Frossard.

Sobre o momento atual que o país atravessa, com o governo de Jair Bolsonaro e os atritos entre o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, Frossard diz que não vê risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. "Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia,  não há qualquer transação - é ela ou ela", destaca.

Na entrevista especial que concedeu à Revista Política Democrática Online, Denise Frossard também destaca o papel das instituições no Brasil. "Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato", alerta.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Revista Política Democrática (RPD): Tendo sido a precursora na difícil e corajosa tarefa de conduzir ampla investigação do crime organizado no Brasil, a senhora avalia que valeu a pena?
Denise Frossard: Antes de dizer se valeu a pena ou não, é importante destacar que vivemos hoje, no Brasil uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável. Agora, você me pergunta se valeu a pena. Vejamos.

Há mais de 25 anos, veio às minhas mãos um processo que de forma inédita implicava o reconhecimento ou não da existência de uma organização criminosa no Brasil do tipo mafioso, que se constituiu, enfim, para cometer crimes – não um crime específico, mas que se constitui para ser uma empresa cuja “mercadoria” era - e é - o crime. Era uma situação sem precedentes no Brasil. Embora eu fosse muito jovem à época, não hesitei em enfrentar o desafio. Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil.

Aquilo foi um marco. A partir daquele momento, ficou muito claro para a sociedade que aquele grupo condenado, conhecido como “a cúpula do jogo dos bichos” (mas o processo não dizia com a atividade contravencional do “Jogo dos Bichos”) que até então eram pessoas muito bem aceitas na sociedade, recebidas e até homenageadas por políticos, dos quais recebiam as maiores comendas oficiais, frequentadores de todos os Palácios da República. De fato eram - como são - criminosos, cercados de assassinos a soldo, ligados a vários homicídios, tráfico de drogas, armas etc... A partir daquele momento, isto ficou tão claro que quem quisesse frequentar aquele grupo em seus camarotes momescos ou tribunas VIPs de jogos de futebol que o fizesse, mas não mais poderiam alegar que não soubessem de quem se tratava. Entretanto, embora a linha divisória tenha sido perfeitamente traçada, isto não tirou da cúpula o poder, que permanece, se solidifica e se moderniza, até hoje, sem, contudo, perder seu gosto pelos “acertos de contas” violentos. Os policiais, então usados por eles pelo suborno, conforme consta da Sentença, hoje são os milicianos... apenas uma mudança na nomenclatura...

Então, valeu a pena? Certa vez um brilhante advogado criminalista do Rio, Dr Virgilio Donnici, me disse : “Excelência, esse negócio de crime organizado foi a Senhora  quem inventou aqui”. Foi mais ou menos isso, mas a invenção foi do Ministério Público, sob a batuta do então Procurador Geral da Justiça, Dr Antônio Carlos Biscaia. A partir da condenação da cúpula pelo vetusto então Art. 388 do Código Penal - Formação de quadrilha ou bando -, já que até então não havia previsão legal para condená-los por lavagem de dinheiro dentre outros crimes, senti-me como devem ter-se sentido os Juízes que condenaram Al Capone: sem instrumentos legais e cercados de policiais corruptos. Então, abriu-se ampla discussão por todo o país, envolvendo não só operadores do direito, advogados, magistrados, Ministério Público, intelectuais que entenderam o risco de os Estados serem capturados pelas organizações criminosas - e já tínhamos um esboço disto na vizinha Colômbia e, mais distante, na Itália. Houve uma discussão profícua sobre como reformar nosso ordenamento jurídico. Esse debate permitiu-nos avançar, pouco a pouco, na organização de nosso ordenamento jurídico que nos habilitasse a enfrentar o crime organizado.

O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes. Deixamos de ser aquela ilha onde, conforme eu disse em Davos no World Economic Forum de 1996, sob a presidência da Procuradora Helvética Carla Dal Ponte, no Brasil, a única penalidade para a lavagem de dinheiro seria a excomunhão, já que o Papa havia condenado essa atividade!

Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos. Custou-me muito? Talvez a própria vida... não se pode esquecer que sofri três tentativas de assassinato (ao que eu saiba) e que a conta com o crime organizado não se fecha nunca...

RPD: Justifica-se, então, sua ideia de que as boas leis sempre se originam dos maus hábitos?
DF: Sempre, por paradoxal que possa parecer. Mas não bastam as boas leis, como as que temos hoje. É preciso avançar nos ajustes para que as leis sejam mais explícitas, mais específicas. E estamos num ótimo momento para atuar neste sentido, situando-nos em meio à reconstrução do sistema político e do sistema tributário, depois de já termos iniciado o processo de reforma da previdência.

Hoje vivemos um momento de certa balbúrdia, um desacerto entre os três Poderes. Parece um casal a três... Há dúvidas sobre os limites da competência de cada um. Na raiz do embate, está o uso do dinheiro público. Quer dizer, a quem cabe decidir o destino do dinheiro do povo? Ao Presidente da República? Ao Poder Legislativo? Ou a última palavra - acertando ou errando - será do Supremo Tribunal Federal? A solução desse impasse seria fácil com a submissão de todos perante a lei. Mas o que fazer se a lei é subjetiva demais e abre espaços para todo tipo de interpretação? Esse é o problema.

Caímos, então, num dos problemas maiores da relação entre os três Poderes no Brasil, e até entre o Estado e os cidadãos. Daí o Judiciário ser chamado para interpretar a lei com larga liberdade, o que leva muita gente a supor tratar-se de invasão do Judiciário na competência do Legislativo, mas não é. É decorrência da falta de explicitação e especificação de nossas leis.

Nos Estados Unidos, por exemplo, quando um promotor faz uma denúncia, ele menciona a lei tal, o precedente qual, o fulano ou cicrano envolvido, tudo seco e objetivo, porque o ordenamento jurídico do país é explícito e específico. Já, no Brasil, não é raro uma denúncia citar Machado de Assis e outras fontes literárias. Nada contra Machado, mas qual é a denúncia? Qual a acusação?

De sua parte, o juiz usa uma linguagem que ninguém entende. Basta ir a um julgamento e perguntar-se: “Mas o que é isto, o que estão dizendo?”. E aqui eu faço um mea culpa. Eu só caí nessa realidade quando vi nos olhos dos meus acusados que eles só me entendiam quando, depois de ler e fundamentar uma sentença altamente elaborada, com fortes imagens literárias, quase uma “ sentença em compotas” (risos), que eles só entendiam e se tranquilizavam quando eu entrava na dosimetria da pena, na quantificação da penalidade, enfim, nos números!

A modernização da legislação brasileira, portanto, se impõe, e passa, a meu ver, pela tarefa de tornar as leis mais explícitas e mais específicas, isto a despeito dos enormes avanços que já tivemos nestes últimos 25 anos.

RPD: As manifestações a que a senhora se referiu não poderiam ser interpretadas como uma espécie de apropriação de bandeiras que são republicanas, de luta contra a corrupção, para uma finalidade que é um pouco, digamos assim, alheia a isso? Afinal de contas, parte-se de uma bandeira justa e louvável, para chegar à conclusão de atacar dois Poderes da República. Qual seria, então, a fronteira entre a luta pelas instituições, que são republicanas e para que elas se mantenham republicanas, e uma possível afronta à democracia.
DF: Volto à minha visão de que nós estamos em uma adolescência política, não só jurídica, e também histórica, e por isso mesmo instável. Quer dizer, essa convocação do dia 15 seria perfeitamente aceitável se fosse para protestar contra posturas destes ou daqueles nossos representantes, mas, se for para propor extinção de qualquer dos poderes da República ou propor a volta de ditaduras, é um gravíssimo atentado contra a ordem pública, podendo até ser passível de criminalização de quem fomenta tais comportamentos.

As ruas e praças são os espaços para protestarmos por melhores condições de vida e de sensibilizarmos os Poderes Constituídos de acordo com nossas propostas – nem sempre justas, nem sempre as melhores e desde que não sejam criminosas. Somos regidos pela Constituição Federal, que os dá liberdade para isto. Mas somos uma Democracia Representativa. De 4 em 4 anos, podemos trocar aqueles que sentimos que não nos representam, e é isto que vem sendo feito por nós desde o fim do movimento que se diz revolucionário. Só se aprende a andar, andando e, milagre, se anda! E isso é muito comum quando se tem essa adolescência política que nós vivemos.

Mas eu não vejo risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia,  não há qualquer transação - é ela ou ela. Acabo de chegar ao Brasil, vindo da Tunísia, e encontro essa convocação do Executivo de uma passeata para protestar  contra alegada ingerência do Legislativo e do Judiciário. Mas eu nunca vi isto! Um Presidente tem na mão caneta e pulso e carrega consigo os votos que obteve nas urnas,  que o legitimam. Deve dialogar com o Legislativo acerca de como governar, nos limites de cada um. É uma coisa de maluco um Executivo no exercício do poder convocar passeatas! Muitas vezes as pessoas perdem a razão pela forma como se manifestam. Isto até existiu num passado sofridamente recente, aqui mesmo, na América do Sul. Mas, alô, o Muro de Berlim já caiu há algumas décadas!

RPD: Sua expressão “adolescência jurídica, adolescência política” faz lembrar Ralf Dahrendorf, quando, em uma suposta carta a um cidadão do leste europeu, recém-egresso do totalitarismo, disse que “a democracia é uma forma de governo, não é um banho turco das vontades populares”, com o que indicava que se tem de seguir regras, respeitar princípios (cf. Reflections on Revolution in Europe, p. 12/13). E, a esse respeito, nada mais relevante do que a Constituição do país. A referida manifestação, ao questionar dois Poderes da República, não estaria sendo antidemocrática?
DF: Claro que se a manifestação é para pregar extinção de Poderes da República, como eu disse, não só é antidemocrática, mas também pode, em tese, configurar eventual conduta criminal. Perfeita a referência à Constituição. É ela que rege nosso Estado. A Constituição de 1988 é uma bela peça, que, no entanto, constitucionalizou tudo – até o exercício da locação foi constitucionalizada, de modo que permite ao Supremo se manifestar até mesmo sobre contratos de aluguel. Mas é a lei que nos rege. Podemos alterá-la, emendá-la (e já o fizemos inúmeras vezes), mas certas cláusulas não podem ser alteradas, são as chamadas Cláusulas Pétreas. É compreensível e aceitável a pressão sobre o Congresso, a partir das ruas. Mas não se pode perder de vista que nossa Democracia é Representativa. Mais atenção e cuidado na escolha de quem irá nos representar. Ao menos por 4 anos.

RPD: A gente viu nos últimos anos que a luta contra o crime organizado, depois do marco inicial ao qual a senhora se referiu, fez avanços expressivos. Mas, para quem está de fora, o ritmo desse combate parece ter esmorecido, de uns tempos para cá. Quais seriam os principais entraves existentes a essa campanha? E o que nós, cidadãos, e os nossos representantes deveríamos fazer para removê-los?
DF: Nesses 20 anos, em que nós saímos pelo Brasil falando que tínhamos de ter um parque legislativo que permitisse ao juiz atuar contra o crime organizado, ele foi concedido pelo Congresso Nacional. Mas, quando isto passou a atingir integrantes do próprio Congresso, do próprio Poder legislativo – e, por que não dizer, também do próprio Judiciário –, houve e há reação que entendo natural, esperada, de reação das corporações com muitos de seus membros envolvidos e que se julgavam ao abrigo de serem alcançados pela Lei. Foi isto exatamente o que ocorreu na Itália. E, como é ele, o Legislativo, que legisla, ele reage colocando freios, para evitar o atingimento. Mas, dentro dele mesmo, vem a reação contrária e aí está a força da Democracia, nós vamos colocando lá dentro aqueles que melhor irão entender nossa vontade. Essa é a luta que nós, cidadãos, vamos ter de travar sempre. E não pensem que vai ser fácil. Tudo em muito dependerá de quem nós colocarmos no Congresso, não é verdade?

Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato. Estes instrumentos nós temos, mas volto a dizer, é preciso que sejam mais claros, mais específicos, mais explícitos. E o principal: o combate à impunidade. Enfim, precisamos passar à maturidade política, jurídica e histórica, mas parodiando Shakespeare, é preciso cuidado, pois deve ser triste envelhecer antes de se tornar sábio. Avante!

 


RPD || Erdna Odama: Que mundo teremos depois do Covid-19?

Contaminação pelo coronavírus se generalizou, desestruturando a política, a economia, as relações sociais e a cultura dos países afetados. A grande questão é o que acontecerá quando o mundo voltar à normalidade

Não pretendo – nem teria estofo crítico-acadêmico para tanto – explicar, dimensionar e arriscar uma previsão da extensão da crise em que o novo coronavírus nos chafurdou. No espaço de poucos meses, uma onda de infecção vitimou homens e mulheres de todas faixas etárias, mas particularmente os idosos, não tardando a gerar óbitos em escala alarmante. Da China para o mundo, a contaminação se generalizou, desestruturando a política, a economia, as relações sociais e a cultura dos países afetados.

A hesitação dos primeiros momentos rápido cedeu o passo a medidas extremas, que, mesmo assim, não conseguiram impedir outras determinações ainda mais drásticas. Sem vacinas conhecidas para proteger as populações, para não mencionar informações confiáveis sobre as características da doença mortífera, optou-se pelo isolamento – das pessoas de seus locais de trabalho; de suas áreas de lazer, praias incluídas; de visitas ao shopping e a lojas em geral; de projetos de viagem, dentro e, sobretudo for, do país; até mesmo da caminhada vagabunda pelas ruas das cidades. As cenas apavorantes de centros urbanos livres das habituais multidões viralizaram e aproximaram a ciência ficção da vida dos cidadãos.

O fenômeno distinguiu-se de tantos outros do pós-guerra, quando, após o choque inicial da calamidade (os sacos plásticos no Vietnã, a crise em Biafra, o surto do ébola, a disseminação da Aids, os ataques aéreos “cirúrgicos” no Iraque, o fratricídio na ex-Iugoslávia, o tsunami no Sudeste asiático etc.), as pessoas apenas mudavam o canal da televisão e retomavam sua zona de conforto. O pavor agora é quando – e não mais se - a ameaça vier a bater em nossas portas, pondo em risco nossa vida, a de nossos familiares, amigos e conterrâneos; quando os remédios – de momento paliativos – e os alimentos e produtos de higiene sumirem das prateleiras; quando o tão temido caos tomar conta da vida em sociedade.

Por sorte, não cabem argumentações simplistas, alimentadas por ódios de origem religiosa, étnica, ideológica, de gênero ou coisa parecida, que possam explicar ou imputar culpas pela infecção. O coronavírus:

- não é obra de laboratório; podendo-se, assim, excluir a ação do homem ou de governos;

- atinge todas as classes sociais, sem distinção;

- não é de direita nem de esquerda e, tampouco, de extremistas de um lado e de outro; e

- não mira grupo étnico algum, menos ainda militâncias de direitos humanos, feministas, LGBTQ+, ecologistas, seitas islâmicas, terraplanistas e similares.

A grande questão é o que acontecerá quando – e já não mais se – o mundo voltar à dita normalidade. Claro, não seremos os mesmos, a começar pela confiança arranhada em nossos governantes, que, como regra, demoraram a tomar as medidas responsáveis e ainda batem cabeça sobre como preparar-se para os desafios de recuperar a economia, a política e a cultura, gravemente conturbadas pela pandemia. Uma primeira possível mudança pode dizer respeito às relações entre o Estado e os cidadãos. O monopólio da racionalidade esfumou-se. As ações individuais e espontâneas de pessoas anteciparam-se em grande medida às dos governos, em que a solidariedade humana se sobrepôs aos ditames da ordem pública. Esse povo guerreiro, que não hesitou em arriscar a vida para ajudar o próximo, deverá resistir a retornar ao mero papel de coadjuvante na condução da ordem pública, a cargo exclusivo dos gabinetes do poder.

Essa atitude se estenderá, decerto, às relações entre os países. O globalismo espera-se possa enterrar de vez a oposição à integração entre os países. Não só o surto epidemiológico desconheceu fronteiras, mas também as providências adotadas em país, revelando-se bem-sucedidas, foram rápida e acertadamente copiadas pelos demais, em benefício de milhões de vidas. Não será isso suficiente para desarmar o conflito entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global? Tanto mais porque, no dia seguinte à sanha assassina desse novo vírus, todos terão de trabalhar juntos para, entre outros, reestruturar seus sistemas de saúde, evitar a falência de grandes e, sobretudo, pequenos empresários – estes responsáveis por grande parte do PIB dos países centrais –, reabilitar o funcionamento das companhias de transporte aéreo, compartir pesquisas científicas e oferecer ajuda (médica, alimentar e financeira) aos países mais debilitados.

O historiador da moda, o israelense Yuval Noah Harari, acaba de publicar artigo no Financial Times, em que, além de cobrar muitas das ações mencionadas no parágrafo anterior, destaca a necessidade de se reexaminarem medidas que foram ditadas pela emergência médica. A esse respeito, o exemplo a ser citado para reforçar o argumento é o uso de remédios contra a malária que se revelaram efetivos no combate ao novo coronavírus. De início, a cobertura jornalística informou que o continente africano era  o que menos infecções revelara, possivelmente como resultado dos medicamentos antimalária que amplos segmentos da população costumavam tomar. Notícia mais recente, no entanto, dá conta de são passam de 900 os infectados na região. Além disso, sem orientação médica, os tais remédios podem levar o paciente à morte. É verdade que em momentos de crise, quando a inação pode matar mais do que medidas arriscadas, viva a solução médica africana. Em seu momento, porém, este seria outro motivo de urgência na tarefa de descobrir remédio efetivo, sem os referidos efeitos paralelos letais.

Harari concentra-se em alertar para o reexame de tecnologias que foram aperfeiçoadas durante a crise e resultaram muito úteis, mas que poderão representar preocupante invasão das liberdades individuais. Trata-se das câmaras de rua que monitoraram, com êxito, a movimentação dos que desrespeitavam as determinações das autoridades públicas de isolamento. Segundo Harari, nem a KGB nem as grandes multinacionais de bens de consumo ousaram dispor de equipamentos tão eficientes de vigilância, só que, superada a crise, poderão prestar-se para determinar o comportamento e as preferências da população monitorada. Não há dúvida de que foram avanços emergenciais, mas quem já ouviu falar de boas soluções sendo abandonadas, tão se desmobilizem as justificativas de exceção? É sem dúvida um sistema aterrorizante de vigilância, uma nova versão mais moderna e assustadora do Big Brother.

Não são poucos, portanto, os desafios, mesmo depois que essa praga deixar de ceifar vidas. A grande questão que se impõe é: o que queremos ser, ilhas preocupadas com nossa sobrevivência exclusiva, ou seres humanos que aprendemos a lição de que, na prática da solidariedade, do compartilhamento, da generosidade, estaremos construindo um mundo melhor?

 


RPD || Alberto Aggio: Um ano que se anuncia difícil

Cenário do pibinho de 1,1% da “nova política econômica” de Paulo Guedes, aliado ao corona vírus, projeta graves problemas para a economia brasileira, comprometendo a lenta recuperação do emprego, fator politicamente sensível para qualquer governo

2020 começa mal para os brasileiros, e, pelo andar da carruagem, seguiremos assim o ano todo. Após a divulgação do raquítico PIB de 2019 (1,1%), as expectativas de crescimento se esvaneceram. O conjunto da economia naufraga, o dólar dispara, os investidores somem, e a perturbadora crise do petróleo dá as caras. Já não há mais “herança maldita” a ser condenada: o desastre dos anos Dilma ficou para trás; o breve período Temer, de frágil recuperação, agora se perde inapelavelmente. Bastou pouco mais de um ano para os brasileiros conhecerem os resultados da “nova política econômica” de Paulo Guedes, cujos números atestam prepotência e fracasso.

Esse cenário preocupante se agrava ainda mais com a chegada ao país do novo corona vírus, cujo foco original afetou drasticamente a produção da “oficina do mundo”, nosso principal parceiro comercial. As estatísticas relativas ao último trimestre são dramáticas para um país acostumado a índices invejáveis. Podem-se projetar, portanto, graves problemas para a economia brasileira, comprometendo a lenta recuperação do emprego, fator politicamente sensível para qualquer governo, especialmente em um ano eleitoral.

Imaginar que o governo de turno poderia nos salvar seria um exercício de autoengano, levando-se em conta o personagem que os brasileiros escolheram para dirigir a Nação. Não bastasse o show de horrores patrocinado durante 2019, Jair Bolsonaro parece esmerar-se em fazer com que as projeções para o ano em curso se afigurem cada vez mais temerárias.

O lamentável affaire dos vídeos convocando as manifestações contra o Congresso e o STF em 15 de março – que, por fim, resultaram pífias –, evidenciou um presidente mitômano que extrapola o decoro do mandato. Sua insistência na convocatória, como vais-e-vens retóricos, e, por fim, sua participação nas manifestações, contrariando as orientações sanitárias do próprio governo, expressam apenas a reiteração de sua já conhecida visão conspiratória contra as instituições da Carta Constitucional de 1988. Em seu conjunto, o episódio ascendeu todas as luzes em defesa da democracia, elevando a sensação de ameaça.

O nível de contraposição entre Executivo e Legislativo que Bolsonaro impõe é bastante nocivo ao país. E isso só ocorre pela recusa do presidente em compor uma base de apoio no Congresso Nacional para, dentre outros assuntos legislativos, negociar politicamente o orçamento da República e sua implementação. O presidente parece imaginar que a vitória eleitoral de 2018 lhe garante discricionariedade absoluta na aplicação dos recursos públicos sem o contrapeso do Congresso, eleito de forma tão legitima quanto ele. Como observou o editorial de O Estado de S. Paulo (08/03), “quando um governante se limita a enviar projetos ao Congresso, sem se dar ao trabalho de explicá-los nem de defendê-los, menospreza o Parlamento”. E mais, caso o Congresso os rejeite, estará, de acordo com Bolsonaro, “se opondo não ao governo, mas ao próprio país – o que é um absurdo”. Os riscos presentes nessa estratégia costumam ser devastadores, com aumento progressivo de tensões que podem levar a relação entre Executivo e Parlamento ao colapso, iniciando um processo de ruptura institucional tendente à supressão da representação e consequentemente da democracia.

Bolsonaro mira em 2022 visando atingir o ponto ótimo para esse empreendimento. Dizer que as oposições devem construir uma coalizão político-eleitoral contra isso é tão óbvio quanto raso ou até ingênuo. Unir as forças democráticas deve significar, antes de tudo, ultrapassar a chantagem bolsonarista que tem a cartada do retorno do PT, como ameaça de última instância. É um argumento poderoso, uma vez que a sociedade, com razão, não esquece nem a corrupção sistêmica nem a débâcle econômica petista. Por isso, demandar autocrítica do PT não é um capricho ou uma ausência de lógica formal, como pensam alguns intelectuais, fazendo coro com Lula. Ao contrário, é algo necessário, uma vez que está na base das razões que possibilitaram a vitória eleitoral de Bolsonaro.

Ao contrário de Bolsonaro, o horizonte da oposição começa hoje e deve se colocar contra esse governo de facção que aí está. A demanda por reformas que tornem o Estado mais eficiente e justo, assim como a defesa das instituições democráticas, não são dele; são da sociedade. É isso que o Congresso representa, e a isso que vem tentando responder, a despeito de Bolsonaro.

2020 é um ano que se anuncia difícil, mas é um ano de eleições. Responder plebiscitariamente ao bolsonarismo nas urnas deve ser um ato de legítima defesa do povo e da Nação brasileira.


RPD || Martin Cezar Feijó: Era uma vez no Planalto - Regina Duarte na Secretaria Nacional da Cultura

"Namoradinha do Brasil", Regina Duarte é a quarta pessoa a comandar a Secretária de Cultura em 14 meses de governo Bolsonaro e diz que vai buscar o diálogo e a pacificação com o setor cultural 

Era uma vez no Planalto. A namoradinha do Brasil resolveu se casar. Pensava ser a Bela que transformaria a Fera através do Amor e da Pacificação, mas descobriu, logo depois do casamento, que havia se casado com Gastón, o bonitão que se transforma em um implacável vilão; o que havia prometido “carta branca”, mas que preferia mesmo eram “porteiras fechadas”. O Mito mostrava a face bruta da realidade e o afeto parecia se encerrar, deixando a então princesa deprimida.

Tudo parecia um conto de fadas, mas se anunciava uma história de terror de uma das mais importantes atrizes da teledramaturgia brasileira: Regina Duarte. E é da realidade que se trata aqui, dos caminhos e descaminhos da política cultural do governo eleito em 2018. Nem é para menos: um governo eleito com um discurso baseado na guerra ideológica e cultural não poderia ser diferente.  E, mais ainda, se utilizando de redes sociais inundadas de fake news.

A própria demissão de um secretário da Cultura com mania de Goebbels é a demonstração da complexidade que envolve uma política cultural em um regime democrático, por mais ameaçado que esteja.

Vejamos o que disse um figurão da República: “Nenhum governo democrático impõe cultura. Só o Estado totalitário. No Brasil, durante o Estado Novo, houve tentativas nesse sentido, mas a própria força de nossa cultura repeliu esse projeto. Lembremo-nos do papel de Gilberto Freyre, nosso intelectual de maior prestígio internacional, na resistência à ditadura de Getúlio. Um governo democrático promove, não impõe cultura”. E não é qualquer funcionário não, até porque não pode ser demitido, mas sim o vice-presidente eleito, General Hamilton Mourão, em entrevista à Revista Istoé (nº 2612, 5/2/2020, p.22).

A repercussão, nacional e internacional, da demissão do obscuro funcionário da Cultura obrigou o governo de Jair Messias Bolsonaro a procurar alternativa mais palatável para ocupar a função de quem iria desempenhar a parte mais visível – e por que não dizer a mais sensível –, da política cultural de sua gestão.

Regina Duarte
O nome da atriz Regina Duarte, conhecida como a “namoradinha do Brasil” desde 1971, quando interpretou na Rede Globo de Televisão Minha Doce Namorada, com pouco mais de vinte anos. Mas a carreira da atriz começou bem antes, aos 18 anos, na TV Excelsior, em 1965, na trama escrita por Ivani Ribeiro A Deusa Vencida, como demonstra Patrícia Kogut em seu livro 101 atrações que sintonizaram o Brasil (Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2017).

A partir daí, uma carreira de sucessos, em várias telenovelas, não só no Brasil, mas no mundo, na América Latina, sendo admirada até em Cuba, onde foi recebida com honras por Fidel Castro. Uma carreira artística de sucessos, da televisão ao teatro. E admiração do público. Teve participações políticas decisivas – e corajosas –, na campanha pelas Diretas Já. Também protagonizou, ao lado de Lima Duarte e José Wilker, a mais importante telenovela da Globo no fim da ditadura militar, Roque Santeiro, de Dias Gomes, em 1985, na qual interpretou a viúva Porcina, a que foi sem nunca ter sido. Era a história de um herói tido como morto que havia se tornado um mito na cidade.

A origem desta narrativa era uma peça de teatro proibida pela ditadura logo após o golpe de 1964: Berço de Herói, do próprio Dias Gomes. Sobre um mito construído por interesses políticos, depois, claro, desmascarado. Um texto premonitório do genial Dias Gomes, perseguido em toda sua trajetória, como demonstra Laura Mattos em seu brilhante estudo de jornalismo investigativo: Herói mutilado – Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura (São Paulo, Companhia das Letras, 2019).

Em seu discurso de posse, no dia 4 de março de 2020, Regina Duarte exaltou a cultura diversificada, com exemplos, talvez para agradar o chefe, até pueris em suas metáforas de “puns de palhaços”, mas com uma clara demonstração de que defende uma cultura plural e livre. Até relativista, do ponto de vista antropológico. Por isso, vem sofrendo ataques do que chamou de “facção de terrorismo digital”, associada ao guru Olavo de Carvalho, que mora nos EUA, onde também forma fiéis seguidores, mas que está sendo acusado pela própria filha, Heloísa de Carvalho, em livro recém-publicado (Meu pai, o guru do presidente. Curitiba, Kotter Editorial, 2020).

É neste quadro tenebroso, de inseguranças e temores, de promessas de censuras e vetos, que a atriz Regina Duarte, de uma carreira artística plena de sucessos, na televisão e teatro, renova seu compromisso de uma vida com a arte e a cultura, da qual ninguém pode duvidar. Apesar das opções ideológicas, que nunca escondeu, resolveu se meter em uma história de um “casamento” que só o futuro vai esclarecer, não só para si própria, mas também, principalmente, para um público que se mobiliza para ver a mocinha vencer uma realidade bem mais complexa.

“Há algo mais entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”, como dizia o bardo inglês. Das telas ficcionais, da namoradinha do Brasil à viúva que foi sem nunca ter sido, ao enfrentamento da realidade da política em um quadro de definições rígidas; mas aparentemente disposta a enfrentar milícias digitais; apesar de tantas expectativas negativas – e preconceituosas (neste caso, não exclusivamente por parte da direita mais extrema) –, restando aos que defendem a democracia como valor universal torcer para que o final desta novela seja feliz. E a diversidade da cultura seja preservada mais uma vez, mesmo nas mais obscuras condições.

 


RPD || Luiz Paulo Vellozo Lucas: Segura na mão de Deus e vai 

Otimismo com o desempenho da economia despenca e governo Bolsonaro patina sem recuperar a confiança no Estado e em políticas públicas eficientes que possam atrair o investimento privado

Na segunda feira, dia 9 de março, pela manhã, depois de a bolsa já ter sido paralisada pela queda vertiginosa dos preços das ações, recebi um meme pelo WhatsApp, assim: “Aqui é o consultor financeiro VIP da sua corretora. Segue um áudio com minhas orientações para este momento de dificuldades do mercado.” Fui ouvir o áudio e era o hino religioso: segura na mão de Deus e vai, muito cantado nos enterros.

O Ibovespa caiu de seu pico histórico de 119 mil pontos, em 23 de janeiro, para 66 mil, no dia 18 de março, sinalizando desvalorização de 44%, equivalente a R$1,7 trilhão nos ativos listados em mercado aberto (Valor de 19/03).

Num mundo em que existe liquidez mais de dez vezes maior que ativos reais medidos pela métrica do PIB e o valor destes flutua de acordo com a confiança da população, o pânico da bolsa e a alta do dólar são apenas a ponta do iceberg. A crise deflagrada pela pandemia do corona vírus está apenas começando e pode evoluir na direção de um colapso das instituições internacionais de tal proporção que exija novo Bretton Woods.

Não é certo que a ação coordenada dos principais Bancos Centrais do mundo, liderados pelo Fed, possa conter o pânico dos mercados, como ocorreu com a crise de 2008, detonada pelo mercado imobiliário subprime americano. Até porque Trump é um líder que surfa, se elege e governa na onda de desconfiança nas instituições causada pela interferência das fake news na política e na economia, que também atingiu o Brasil na eleição de Bolsonaro.

Todos achávamos que viria uma recuperação cíclica até porque a agenda das reformas liberais possui apoio e uma torcida ativa bem mais ampla que os fanáticos seguidores do presidente. Em meados do ano passado, algumas vozes já se ouviam alertando para a crença excessiva no ímpeto dinâmico do setor privado, que haveria de investir pesado, confiante na solvência fiscal do pais, empurrado por juros baixos e o compromisso fiscalista do governo e da equipe econômica de Paulo Guedes.

André Lara Resende, sempre advertindo para os erros e os perigos da miopia fiscalista, convergência teórica e política que prevaleceu com força depois do impeachment de Dilma, lançou livro novo consolidando suas ideias em uma proposta de política econômica alternativa àquela atualmente conduzida por Paulo Guedes, impossível de ser confundida com a nova matriz petista ou com qualquer versão de revival nacional desenvolvimentista.

O ponto central de Lara Resende é que, sem recuperar a confiança no Estado e em políticas públicas eficientes, o investimento privado não vai deslanchar. Pior, quanto mais cortes de gastos cegos e austeridade fiscal linear numa conjuntura de estagnação, o próprio equilíbrio fiscal passa a ser ameaçado. “Se o Estado é caro, corrupto e incompetente, a solução não é asfixiá-lo”, diz André.

A crise do orçamento impositivo mostra como o debate sobre a reforma do Estado está interditado. A disputa política se resume a uma briga de rua pela captura de espaços de poder na máquina pública, cargos e controle de órgãos e, principalmente, pelo dinheiro do orçamento. A agenda das reformas, sempre apresentada setorialmente em “caixinhas”, fica como uma fraca luz no fim do túnel selvagem da operação no dia a dia da economia e da política, sem projeto nacional.

Rodrigo Maia esteve na França e falou sobre os 36 mil municípios que existem naquele país do tamanho da Bahia, que tem 470. O orçamento de investimento na França é feito por grupos de cidades, communautés des communes, e é pactuado entre deputados e senadores nacionais com os prefeitos e lideranças locais, coordenado por um representante do Poder Executivo nacional. Bem que podíamos nos inspirar e fazer o orçamento de investimento pelas 600 microrregiões do IBGE, com participação dos deputados e senadores e dos governos subnacionais. A disputa pelos R$ 30 bilhões poderia ser feita com critérios de racionalidade qualificando a pactuação política e a priorização do gasto público.

Como se sabe, o “toma-lá-dá-cá” da governabilidade brasileira continua a pleno vapor na clandestinidade, longe dos olhos do grande público. Como o inesperado sempre acontece para piorar as coisas, a pandemia do corona vírus derrubou os mercados e a economia mundial, e a vida primitiva em uma economia estagnada, sem perspectivas reformistas de verdade e sem projeto nacional, vai sendo tocada “costeando o alambrado” da crise institucional. A partir de março de 2020, essa conjuntura se desenrola em meio a uma crise mundial sem precedentes.

Delfim Netto dizia que inflação aleija, mas o que mata é crise de balanço de pagamentos. No Brasil de hoje, sem inflação, a estagnação é a doença que aleija, mas não mata. Em 2019, tivemos uma piora acentuada nas contas externas que continham erros de cálculo, mas não vejo em 2020 possibilidade mais acentuada de retorno da agenda de crise externa. Não vamos nos curar, mas também acho que não vamos morrer.

Como não jogo na loteria, minhas esperanças estão, em primeiro lugar, na vitória de Joe Biden nas eleições norte-americanas. A derrota de Trump pode ser um primeiro indicador de que a opinião pública voltou a valorizar a racionalidade, o bom senso e o equilíbrio. Aposto, também no enfraquecimento gradual da miopia fiscalista e anacrônica de Paulo Guedes até 2022. Se Rodrigo Maia aproveitar a eleição municipal para reestruturar a agenda de reformas “fora das caixinhas” pela ótica das cidades, prometo ficar mais otimista.

 

 


El País: “Bolsonaro acredita no ‘líder acima de tudo’, inclusive da saúde da população em tempos de pandemia”, diz Finchelstein

Federico Finchelstein, historiador argentino, diz que mentiras do presidente aplicam método fascista: “O que diz acaba se tornando um artigo de fé e não algo que tenha a ver com a realidade”

O historiador argentino Federico Finchelstein é um dos principais especialistas em fascismo e populismo, autor de livros como Do Fascismo ao Populismo na História e As Origens Ideológicas da Guerra Suja ―sobre a ditadura militar argentina, sem versão em português―, além de obras sobre o holocausto e a Alemanha nazista. Para 2020 prepara Uma Breve História das Mentiras Fascistas, no qual dedica uma parte ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, visto por Finchelstein como uma das lideranças populistas mais próximas ao fascismo. Ele chegou a escrever na revista Foreign Policy durante as eleições de 2018 que o bolsonarismo se inspirou no manual nazista de propaganda lançado por Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler entre 1933 e 1945.

Em entrevista ao EL PAÍS por telefone, o professor da New School for Social Research afirma que “existe um claro golpismo” nas manifestações a favor do Governo do domingo passado (15), por causa das mensagens contra os demais poderes. Também afirma que as mentiras ditas por Bolsonaro e outros líderes ultranacionalistas e da extrema direita, como Donald Trump (Estados Unidos) ou Matteo Salvini (Itália), os aproximam mais do fascismo do que do populismo. “Esses líderes acreditam em suas próprias mentiras, em suas próprias fantasias, até que a realidade se impõe sobre elas”, explica.

Pergunta. No domingo passado, manifestantes gritavam palavras de ordem a favor do Governo Bolsonaro e contra o Congresso e o STF. Muitos inclusive pediam uma intervenção militar e um novo AI-5. O presidente chegou a romper sua recomendação de isolamento por causa do coronavírus para cumprimentar manifestantes. Como enxerga tudo isso?

Resposta. Existe um claro golpismo apoiado por um líder post fascista e que gostaria de ser um ditador fascista. Por um lado, os bolsonaristas têm o direito de se organizar e de participar de todas as reuniões que queiram. Mas uma manifestação contra o Congresso e a independência dos poderes está mais próxima dos atos fascistas ou das manifestações pró-Pinochet que de uma manifestação democrática. Está nas mãos da cidadania, da oposição, da imprensa e dos poderes independentes defender a democracia brasileira.

P. Há provas de que os atos foram impulsionados pelo próprio Governo Bolsonaro, inclusive através de canais oficiais. Com a pandemia do coronavírus, o presidente chegou a fazer pronunciamento em cadeia nacional desencorajando o que chamou de manifestações “espontâneas”. Em outros países governados pela extrema direita já aconteceu algo parecido?

R. Acontece o mesmo tipo de situação em diferentes governos, que se apoiam em diferentes atos massivos. Donald Trump costuma fazer atos não nas ruas, mas em estádios. A pergunta é: por que essa mentira de que são espontâneas, de que não são organizadas? Ou inclusive por que fazem durante a crise do coronavírus? Me parece um exemplo claro da demagogia Bolsonaro, de suas ideias políticas com raízes fascistas acima de tudo. É, principalmente, o líder acima de tudo, inclusive da saúde e do bem-estar da população em tempos de pandemia.

P. Como avalia o Governo Bolsonaro até aqui?

R. Do ponto de vista democracia a avaliação não poderia ser mais negativa. Bolsonaro, dentro do que é a história do populismo, é um dos populistas mais extremistas que existe. E o mais próximo ao fascismo. É uma pessoa que vem degradando a democracia de várias formas, demonizando a oposição, a imprensa... Mas a questão vai além de adjetivos. Existe uma ideologia por trás de sua vulgaridade que, em um ponto, vai se distanciando do populismo e se aproximando do fascismo.

P. Qual é a diferença entre os dois conceitos?

R. O populismo é uma forma autoritária de democracia e o fascismo praticamente destrói a democracia por dentro para criar uma ditadura. Não podemos dizer que, neste momento, existe um governo fascista no Brasil porque, sobretudo graças à sociedade civil e à imprensa, Bolsonaro não conseguiu destruir a democracia como ele gostaria e como já expressou em distintos momentos. Mas a história de Bolsonaro é a história de um governante que tenta destruir essa sociedade civil e democrática. Depende dos brasileiros que não consiga.

P. Mas quais são os parâmetros para dizer que Bolsonaro (e também líderes como Donald Trump e Matteo Salvini) estão mais próximos do fascismo que do populismo?

R. O fascismo tem três elementos. O primeiro, e principal, é a xenofobia e o racismo direcionados a distintas minorias. Não necessariamente é um elemento central da maior parte dos populistas. Pensemos nos casos do Brasil, que viu um populismo de viés corporativo de Getúlio Vargas o de viés neoliberal como o de Fernando Collor de Mello. A xenofobia não era elemento central desses governos.

O segundo elemento é a violência política, central para o fascismo. E neste caso existe uma dúvida: lembremos que pessoas próximas de Mussolini assassinaram alguns líderes da oposição; no Brasil, temos visto certa proximidade da família Bolsonaro com milicianos [que controlam territórios no Rio de Janeiro e influenciam na política local] e os supostos assassinos da vereadora Marielle Franco.

E, finalmente, o terceiro elemento principal é a ditadura. E o mero fato de que estejamos conversando mostra que este elemento ainda não chegou no Brasil, já que não existe liberdade de imprensa na ditadura. Nesse sentido, o que temos por ora é uma proximidade bastante preocupante do populismo de Bolsonaro ao fascismo. Ele fala como um fascista, mas governa como um fascista? Acredito que a resposta tem a ver não apenas com o que ele quer fazer, mas sim com os limites que os brasileiros colocam.

P. Mas os populistas não abraçam alguns desses elementos?

R. Entre os populistas não existe o uso da violência política nem a discriminação, a xenofobia e o racismo. E, diferentemente do fascismo, os populistas de esquerda e de direita tem uma concepção de povo muito diferente. Para o fascismo, o povo está baseado em qualidades étnicas e religiosas. Para o populismo, o povo são aqueles que votam no líder. É uma ideia autoritária, uns são o povo e outros são os antipovo. Mas, ainda que seja autoritária, é uma definição baseada nas ideias, e não necessariamente em conceitos étnicos e religiosos. E isso vai de Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón a Collor de Mello, Berlusconi ou Chávez. O que vemos em líderes como Trump, Bolsonaro, Modi [primeiro-ministro da Índia] ou Salvini é que o povo passa a ser entendido de outra forma. Se Bolsonaro define os brasileiros como cristãos, o que acontece com aqueles que não acreditam em Deus?

P. Você chegou a escrever durante a campanha que de 2018 que Bolsonaro estava mais próximo de Goebbels que do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi.

R. Existe um quarto elemento do fascismo que é a mentira. E acredito que Bolsonaro, Trump ou Salvini mentem como fascistas, e não como populistas. Historicamente, os populistas não se atrevem a deixar de lado as evidências mais óbvias. Nesses casos, a mentira é mais demagógica, cínica. É propaganda, eles não acreditam em suas mentiras.

Mas quando digo que mentem como fascistas, é porque esses líderes acreditam em suas próprias mentiras —até que a realidade se impõe sobre elas. Pensemos nessa convocação de protestos no contexto do coronavírus. Trump vinha negando a importância do tema, enquanto que Bolsonaro chegou a dizer que era uma fantasia. Chega ao ponto de que o círculo se completa, por assim dizer, quando um de seus próprios secretários [Fabio Wajngarten, titular da Secretaria de Comunicação] dá positivo no texto.

P. Os ataques à imprensa se explicam por causa dessas mentiras que acreditam?

R. Sim, porque a imprensa independente o que faz é apresentar dados empíricos para contrastar as versões oficiais de propaganda. Por isso ela é um eixo central da democracia e também por isso ela um problema para esse tipo de líder e suas mentiras.

P. No momento em que o dólar disparava, as Bolsas registravam enormes perdas e a crise do coronavírus se agravava, Bolsonaro disse, sem apresentar provas, que as eleições presidenciais foram fraudadas e que ele ganhou no primeiro turno. Trata-se apenas de uma cortina de fumaça para desviar o foco da imprensa, como se costuma dizer, ou existo algo além disso?

R. No sentido mais concreto e no sentido mais histórico trata-se de uma estratégia típica do fascismo para substituir a realidade com propaganda, isto é, com as mentiras mais evidentes. Isso tem a ver com a política da fé, então o que diz Bolsonaro acaba se tornando um artigo de fé e não tanto algo que tenha a ver com a realidade. Outra questão sobre Bolsonaro é que ele tende a se basear muito no que Trump faz. Ele diz coisas que Trump já disse em algum momento, como a referência sobre as supostas fraudes em sua própria vitória. Trump dizia que ganhou no voto popular, o que não aconteceu. E vemos a mesma estratégia com o coronavírus. Parece haver um delay: Trump dizia que era uma fantasia, e Bolsonaro segue repetindo isso —enquanto Trump parece se afastar um pouco dessa ideia. A mesma coisa acontece com a imprensa, tratada por Trump como inimiga do povo. O problema é que a imprensa independente precisa reportar com evidência, e esse mero ato implica um desafio a essas políticas de propaganda de governos extremistas. O mero ato de perguntar ou de pedir evidências significa um desafio a essas tendências autoritárias. Quando diz que uma pandemia é uma fantasia, não existe algo intermediário. Para os jornalistas não pode haver duas versões da realidade. Não existe dois lados, existe um personagem mentindo baseado na fantasia e no mito, e por outro lado está a realidade. E por isso a imprensa é tratada como inimiga... Num regime fascista não existe imprensa independente, apenas fantasia e propaganda.

P. Quais são as outras características do manual de propaganda de Goebbels que o bolsonarismo copia?

R. A principal é que mente e acredita em suas mentiras e fantasias, mas outro tema central tem a ver com a projeção. No geral, o que ele costuma dizer é a realidade de seu próprio ser, do próprio Bolsonaro. Todos sabemos que o coronavírus não é uma fantasia. E todos sabemos que, ao contrário do que disse Trump, o coronavírus não é um problema estrangeiro. É um problema também dos Estados Unidos, e tanto é assim que um Secretário da Comunicação foi contagiado dentro do país. Mas a culpa sempre é dos outros, mesmo quando tem a ver com suas próprias responsabilidades. São eles que mentem, não planejam e não pensam na saúde da população.

P. E as pessoas, incluindo seus próprios eleitores, pagam um preço, não? A fila do Bolsa Família aumenta, as pessoas não conseguem suas aposentadorias... Essas mentiras são viáveis a longo prazo?

R. Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências.

P. Essas mentiras também servem para manter a base eleitoral mobilizada enquanto são feitas reformas ultraliberais impopulares?

R. Não sei se estou de acordo. São fanáticos porque acreditam nisso. Os nazistas não fizeram um uso cínico da propaganda, eles acreditavam nessa propaganda. Na cabeça deles não existe distinção entre repressão, discriminação e ajuste neoliberal. A ideologia não tem um lugar secundário, mas sim central. Acreditam em suas próprias mentiras e representam um perigo para a democracia.

P. Há quem diga que o candidato democrata Bernie Sanders é o Bolsonaro da esquerda norte-americana, ou que o PT e o ex-presidente Lula representem o extremo oposto. Está correto?

R. Não estou de acordo. E o que seria o extremo oposto ao fascismo? O antifascismo [risos]? O populista é aquele que atribui a si mesmo a voz do povo e personifica o povo. É o líder que se vê como um enviado de Deus para falar em nome do povo e decidir em nome do povo. Foi o caso de Hugo Chávez e de Cristina Kirchner, mas isso é menos claro no caso de Lula e, definitivamente, não me parece que seja o caso de Sanders. Lideranças fortes são típicas da história da democracia, mas não necessariamente tem a ver com populismo. Também não se pode igualar políticas populares com populismo. E, mais uma vez, com Sanders e Lula não existe o uso da violência política nem a discriminação, a xenofobia e o racismo, e isso não é menos importante.


Alon Feuerwerker: A tempestade quase perfeita

A equação política e econômica do governo Jair Bolsonaro estava bem desenhada no plano inicial. O Congresso aprovaria as reformas liberais, no ritmo que fosse. A economia reagiria, mesmo num passo não espetacular. O ministro da Justiça colocaria seu capital popular a serviço do projeto bolsonarista. O presidente nesse meio tempo alimentaria politicamente sua base dia após dia rumo a 2022. E a esquerda continuaria ilhada, pelo menos no curto e médio prazos.

E a coisa vinha vindo.

Mesmo os percalços -todo governo tem- pareciam insuficientes para um desarranjo. O PIB de 2019 decepcionou? Nada que não pudesse ser deixado para trás com uma dose de esperança no futuro e advertências sobre o risco de repetir fracassos recentes. O presidente romper com seu próprio partido e ficar sem nenhum para chamar de seu era pouco, perto da simpatia de um Legislativo amplamente liberal-conservador pelo programa econômico.

Aí veio a pandemia do coronavírus. O imprevisível é mesmo muito difícil de prever.

Em janeiro/fevereiro já era possível antever a onda da crise sanitária. Foi avisado, mas talvez não sensibilizou. E transbordou em março. E somou-se à pendenga do Executivo com o Legislativo por causa do orçamento impositivo. E juntou-se à guerra do governo contra a imprensa. É notável, aliás, como o governo consegue brigar com dois atores, Congresso e imprensa, amplamente dispostos a apoiar as principais agendas do Planalto na política econômica.

Aí o presidente da República decidiu dar mais importância à ameaça de recessão que às preocupações do cidadão e da cidadã com a própria saúde.

Na crise de 2008/2009 Luiz Inácio Lula da Silva disse que ela chegaria aqui como uma marolinha. Não foi bem assim. O crescimento em 2009 foi menos zero vírgula qualquer coisa. Mas 2010 foi robusto e Lula conseguiu eleger a sucessora. Naquela crise o tema era economia. Lula podia pedir ao eleitor um tempo. Aguentem aí que vai melhorar. E tinha capital político para tanto. A conta veio depois, deu em junho de 2013, mas isso já é outra história.

Agora o assunto é a saúde. Não adianta dizer “outras doenças matam mais que o coronavírus”, a notícia do momento é a Covid-19. E as pessoas estão muito preocupadas com a ameaça à própria vida e à dos entes queridos. E só se fala nisso. E a aparente falta de cuidado do governo em sintonizar-se com a preocupação do distinto público potencializou as fragilidades que vinham latentes e juntou-se tudo numa tempestade quase perfeita.

Só não é a tempestade perfeita contra o governo Bolsonaro porque não há desejo relevante no mundo político de trocar o capitão pelo general que é seu vice. Nas várias franjas da política, prefere-se enfrentar um Bolsonaro manco em 2022 que entronizar agora Hamilton Mourão e dar a ele o passaporte para um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, de viés racional e equilibrado. Mas tudo tem um limite, e na tempestade alguém tem de assumir o leme do barco.

Não existe espaço vazio na política. E isso não chega a ser uma novidade.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Luiz Carlos Azedo: A bolha e o dragão

“Não temos nada a ganhar brigando com os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, mesmo que o aliado principal de Bolsonaro seja o presidente Trump”

Em dias normais, o presidente da República vive numa “jaula de cristal”, no sentido conceitual estudado nas escolas de administração pública: o líder isolado, prisioneiro da corte “que controla os acessos à sua importante personalidade”; sem vida privada, sempre na vitrine da opinião pública. Quando sai dessa jaula, porém, embarca no mundo virtual dos seus partidários nas redes sociais, nas quais seu recente protagonismo, por causa do coronavírus, vem sendo mais negativo do que positivo, segundo análises de especialistas.

Bolsonaro passará o domingão nessa bolha. Seu único compromisso na agenda oficial divulgada ontem é uma reunião de 30 minutos com o ministro da Economia, Paulo Guedes, às 14h de segunda-feira. Sua agenda sinaliza isolamento e reforça interrogações em relação ao seu estado de saúde. Já são 22 integrantes da comitiva que o acompanhou aos Estados Unidos com coronavírus, entre eles o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o conselheiro que mais frequentava seu gabinete.

Na sexta-feira, foram registrados mais quatro casos de coronavírus no Palácio do Planalto: o major Mauro César Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente; o coronel Gustavo Suarez da Silva, diretor adjunto do Departamento de Segurança do GSI; o assessor especial da Presidência Filipe Martins e o embaixador Carlos França, chefe do cerimonial da Presidência, contraíram a doença. Todos estiveram com Bolsonaro em vários momentos, durante a viagem e depois.

Os exames da primeira-dama Michelle Bolsonaro, do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e dos ministros Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Ernesto Araújo (Relações Internacionais) deram negativo. Mesmo assim, o clima é de muita apreensão entre os que ficaram expostos. Ninguém sabe quantas pessoas foram contaminadas. Estatisticamente, 22 casos podem infectar até 2.800 pessoas durante o período de incubação, se não forem logo isolados. É assim que o crescimento exponencial da “gripezinha” funciona. O próprio presidente da República, na sexta-feira, admitiu que precisa fazer um novo exame.

Voltemos à bolha. Quando se afasta da rotina administrativa, como no ano-novo e no carnaval passado, interagindo apenas com a família, Bolsonaro lacra nas redes sociais. Longe dos generais de quatro estrelas quem hoje formam seu estado-maior, sua convivência é mais intensa com os filhos, que comandam a tropa de choque do clã nas chamadas novas mídias. É aí que os confrontos com desafetos políticos e as narrativas conspiratórias ganham força, algumas com consequências desastrosas.

O caso chinês
A crise diplomática com o governo chinês, provocada por comentários do deputado federal Eduardo Bolsonaro (São Paulo) sobre a China, aos quais o embaixador Yang Wanming respondeu duramente, é resultado de uma das teorias conspiratórias. A tese de que a China disseminou a epidemia para dominar a economia mundial está de vento em popa nas redes sociais bolsonaristas. Não temos nada a ganhar brigando com os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, mesmo que o aliado principal de Bolsonaro seja o presidente Donald Trump, com quem se alinha automaticamente.

A disputa comercial entre os Estados Unidos e a China é o tipo de situação na qual a diplomacia brasileira nadaria de braçadas ao defender nossos próprios interesses. Entretanto, estamos sendo arrastados para o alinhamento com os Estados Unidos no seu contencioso comercial, num momento em que nós e o mundo precisamos dos chineses para conter a epidemia de coronavírus e enfrentar a recessão econômica. Na sua xenofobia, Trump chama a epidemia de “vírus chinês”. E tem interesses objetivos aqui no Brasil nesse confronto com a China.

O leilão das redes 5G está previsto pela Anatel para o segundo semestre de 2020. Empresas como Nokia e Huawei estão muito interessadas em liderar o movimento do 5G no Brasil, uma vez que já atuam no cenário brasileiro e até possuem fábricas no estado de São Paulo. A chinesa Huawei anunciou o plano de investir US$ 800 milhões (mais de R$ 3 bilhões, em conversão direta) para construir mais uma fábrica de smartphones em São Paulo nos próximos três anos. A sueca Ericsson planeja dedicar R$ 1 bilhão para aumentar a fábrica em São José dos Campos (SP). Estes investimentos resultariam em uma linha de montagem totalmente voltada aos produtos com tecnologia 5G.

O governo americano acusa a fabricante chinesa de atuar por meio dos dispositivos para fazer espionagem, o que a China nega veementemente, e pressiona países aliados a não adquirir tecnologia fabricada pela empresa sediada em Shenzhen. Aqui, a Huawei alega que não participa de leilões, apenas fornecerá equipamentos para as operadoras, o que já acontece atualmente.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/__trashed/


José Roberto Mendonça de Barros: Parada súbita

Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global

Em 42 anos de MB Associados, nunca vi uma semana assim, com tantas mudanças profundas no cenário. É preciso ter humildade, porque não sabemos bem o que se passa. Mas é um ponto de inflexão para pessoas, empresas e países.

A combinação de um novo vírus e de conflitos geopolíticos (como a guerra comercial entre as duas grandes potências e a atual o petróleo) produziu uma parada súbita na China, depois na Europa, nos EUA e, agora, no Brasil.

Essas paradas súbitas são um terror, inclusive para economistas, pois produzem rupturas na oferta e nos fluxos financeiros, tanto maiores quanto maiores forem a alavancagem e o endividamento dos agentes, como nas empresas americanas de hoje, e quanto menores forem a saúde financeira e a renda de pessoas e pequenos negócios, como é o caso do Brasil.

O caso americano é o que melhor ilustra o que é essa parada, porque até muito recentemente sua economia vinha muito bem. Entretanto, a dívida corporativa nunca foi tão elevada, 47% do PIB, resultado de mais de uma década de crescimento e de juros muito baixos. Com a chegada do vírus, o mercado de crédito travou, apesar dos intensos esforços do FED, os “spreads” explodiram.

Muitas empresas mais frágeis financeiramente já estão tendo suas notas rebaixadas e poderão quebrar, pois a iliquidez rapidamente se transforma em insolvência.

Em outros casos, os efeitos ruins vieram da crise em grandes áreas de serviços, como turismo, hospitalidade, cruzeiros, artigos de luxo e outros. Cadeias longas estão sendo afetadas. O caso mais visível é o da Boeing, que já vinha sofrendo com a parada na produção do 737 MAX e que solicitou US$ 60 bilhões como assistência do governo para lidar com a crise. Mesmo que tudo dê certo, a dívida corporativa subirá para US$ 100 bilhões, num momento no qual poucas companhias comprarão aviões novos.

Além disso, a política no mundo inteiro passou a ser a do isolamento social. Nestas circunstâncias, a frenética baixa de juros tem efeito negligível.

Em uma situação dessas, a urgência exige ações rápidas, mas a política monetária fica menos eficiente e a política fiscal passa a exigir ferramentas, nem sempre disponíveis, como gastos focados ou suporte à liquidez em determinadas áreas.

Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global (definida como crescimento inferior a 1%), apesar dos grandes esforços das autoridades, sanitárias e econômicas, para deter a pandemia e impulsionar a economia.

Embora as projeções feitas hoje tenham uma acurácia limitada, os novos números de um banco internacional de primeira linha são impactantes.

No início do ano, projetava-se um crescimento do PIB global de 3,2% e agora, apenas 0,9%. Nos EUA, a projeção de 1,8% foi substituída por uma de 0,6%. Na China, o crescimento foi de 4%, em vez dos antigos 6%. Finalmente, na área do Euro, projeta-se agora um tombo de 5%, em vez de um crescimento de 0,9%.

No Brasil, a equipe econômica foi claramente pega no contrapé e tardou a responder. Entretanto, o ponto positivo foi entender que se trata de uma situação de emergência, que precisa ser enfrentada, antes de tudo, com mais gastos na saúde e na assistência aos segmentos mais frágeis da população, que inclui os trabalhadores informais, além da população em situação de pobreza.

Do lado das empresas, os pequenos negócios serão os mais afetados, até como consequência da política de isolamento social e terão de ter alguma atenção. Mas também serão necessárias políticas que preservem as empresas e a produção.

Infelizmente, por mais que essas medidas sejam bem sucedidas, uma recessão é inevitável: esperamos uma queda do PIB nos dois primeiros trimestres, com alguma recuperação mais próxima do final do ano. No melhor cenário, o crescimento do PIB ficará próximo de zero. É um duro revés para um país que luta há anos para voltar a crescer.

O programa de reformas deverá parar, mesmo porque, até recentemente, o Planalto continuava a antagonizar o Congresso. O ajuste fiscal e o investimento em infraestrutura deverão ficar para o próximo ano. Apenas medidas infraconstitucionais (ligadas a saneamento, energia e PPPs) poderão ser aprovadas.

Finalmente, se ao cabo de dois anos, o crescimento médio for de apenas 0,5% ao ano, dá para pensar em reeleição? Tudo indica que não, até porque muita gente está cansada da irrelevante pauta ideológica que prende a atenção de boa parte do Executivo.

* Economista e sócio da MB Associados.