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El País: Covid-19 e o desmatamento amazônico

Desmatadores ilegais não estão em isolamento como recomendam os governos, e tendem a aproveitar o eclipse institucional provocado pela pandemia para agir

Esta preocupação espera-se que seja também a do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, à frente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, que em meio à pandemia manteve na semana passada uma reunião com seus integrantes do Governo ―ainda que longe dos olhos da sociedade, incluindo da imprensa.

Sob a ameaça virótica, aqueles agentes públicos que prestam um inestimado serviço de manter, lá na ponta, o cumprimento das leis ambientais estarão ausentes ou com suas ações de fiscalização e controle limitadas. Certamente, o isolamento é a principal arma que temos contra o vírus neste momento e protegê-los é fundamental.

Os desmatadores ilegais, contudo, não estão em isolamento como recomendam os governos, e tendem a aproveitar o eclipse institucional provocado pela Covid-19 para agir. Nos próximos meses, ainda sob o turbilhão imposto pela pandemia e com a chegada da seca em grande parte da região amazônica, podemos presenciar um forte aumento do desmatamento.

Os primeiros sinais que vêm do campo são preocupantes. As taxas de desmatamento no início de 2020, antes de surgir o alarme em torno da Covid-19, já indicavam uma atividade expressiva das motosserras. Segundo o DETER, sistema de alerta de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em janeiro deste ano houve um aumento de 52% na área sob alertas de desmatamento em relação ao mesmo mês do ano anterior; em fevereiro, foi 25% superior ao mesmo mês de 2019. A crise dos incêndios de 2019, com repercussão mundial, estava ligada ao aumento do desmatamento e ainda está clara na memória.

Como prevenção mínima, é preciso que o poder público mantenha os meios de monitoramento remoto na região, apoiando o trabalho de agências como o INPE, o ICMBio, o IBAMA e a Polícia Federal, tomando todos os cuidados necessários para assegurar a segurança de seus funcionários. Recursos do congelado Fundo Amazônia devem ser urgentemente destravados pelo Governo para o combate ao desmatamento. Toda atenção deve ser dada aos povos indígenas da região, guardiões da floresta, que estão desprotegidos. Em Brasília, o Congresso Nacional não deve colocar em votação temas que exigem um amplo debate com a sociedade e que estimulariam o desmatamento no país em meio a esta catástrofe, como a Medida Provisória 910, que literalmente legaliza a grilagem, e o projeto de lei que altera o processo de licenciamento ambiental.

O fim do desmatamento amazônico é crucial para que não tenhamos de enfrentar outras crises no futuro próximo, em especial em um momento de economia fragilizada pelos efeitos prolongados da pandemia. A Amazônia, entre diversas riquezas biológicas, é fundamental para a produção de chuva que irriga o agronegócio, que por sua vez é responsável por parte considerável do PIB brasileiro. As duras lições que estamos tirando da Covid-19 nos mostram que ações integradas de prevenção funcionam. No caso da Amazônia, lavar as mãos para a ação de grileiros neste momento é contabilizar novos prejuízos socioambientais e econômicos num futuro próximo.

André Guimarães, agrônomo, é diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Claudia Azevedo-Ramos, bióloga, é professora titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. Paulo Moutinho, biólogo, é cientista sênior do IPAM.


Igor Gielow: Bolsonaro ponderado pode ter chegado tarde à crise

Tutela militar sobre o pronunciamento do presidente é evidente até na escolha de frase de efeito

Nem parecia Jair Bolsonaro. O presidente que surgiu no pronunciamento em rede nacional na noite desta terça (31) adotou um tom mais tranquilo, ponderado e sem grandes malabarismos retóricos.

Parece tudo sob medida para servir de vacina contra os murmúrios de crime de responsabilidade em torno de sua condução na crise do novo coronavírus, mas talvez o presidente tenha demorado demais.

Seja como for, depois de falar em "gripezinha" e de supor que seu "histórico de atleta" o tornaria quase imune aos efeitos da Covid-19, como disse no apoplético pronunciamento da terça-feira passada (24), Bolsonaro agora sacou o "maior desafio da nossa geração" para definir a pandemia instalada entre nós.

O termo não saiu do nada. Ele foi tirado da fala do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que em mensagem gravada na semana passada falou em "maior missão de nossa geração", e trai a origem da inspiração do novo posicionamento do presidente.

Se os militares, sejam da ativa ou da ala abrigada no Palácio do Planalto e em outros prédios da Esplanada dos Ministérios, concordam de forma geral que há riscos de instabilidade social associados à crise econômica que quase certamente se agravará com a Covid-19, ninguém estava satisfeito com a posição de Bolsonaro até aqui.

A gota d´água foi a visita do presidente a comerciantes em área popular do Distrito Federal no domingo (29), um dia depois de ouvir do ministro da Saúde, o engolidor de sapos Luiz Henrique Mandetta, que o isolamento parcial defendido por Bolsonaro "por princípio" não era exequível, nem recomendável.

Naquele ponto, o presidente redobrava a aposta na irresponsabilidade sanitária que vinha marcando sua atuação desde o início da emergência do novo coronavírus no Brasil.

O mal-estar estava colocado e piorou quando ficou claro que os dois pilares do governo, Paulo Guedes (Economia) e Sergio Moro (Justiça), alinharam-se a Mandetta no questionamentos acerca da condução da crise pelo presidente.

Restou a Bolsonaro recuar para sair das cordas. A crítica ao isolamento social por meio de quarentenas foi mantida, mas com um verniz de preocupação com o indivíduo afetado. Se tivesse adotado tal posição e não buscado a polarização extrema, talvez o presidente não estivesse tão acuado agora.

Duas mentiras foram programadas para o discurso, para não perder o costume. Tentar associar a fala do diretor da Organização Mundial da Saúde a uma suposta crítica ao isolamento foi mantido, mas de forma bem menos assertiva depois que a organização negou isso —em resposta a um "test-drive" que o presidente havia feito sobre o tema pela manhã.

Já o congelamento do preço de medicamentos, algo que já é anunciado para abril em qualquer farmácia online de São Paulo, não foi combinado com a indústria. Dada a gravidade da crise da pandemia do Sars-CoV-2, que já matou 201 brasileiros até a tarde desta terça (31), esse é um ponto que não deverá ensejar muito debate.

O pronunciamento até pediu uma "união nacional" entre Poderes, governadores e setores da sociedade. Um avanço, dada a crispação do embate de Bolsonaro com governadores ou o insuflamento feito pelo presidente de atos pedindo para fechar o Congresso, o Supremo e outras delicadezas.

Naturalmente ninguém vai acreditar até que a realidade se interponha, mas parece um avanço. A estabilidade emocional do presidente vem sendo objeto de preocupação de auxiliares, conforme a Folha mostrou, e o pronunciamento em modo ansiolítico deixou aliviados alguns observadores do quadro.

A influência da ala militar do governo e também da ativa das Forças também ficou evidente na quantidade de referências a ações sob o comando do Ministério da Defesa. Guedes e suas medidas pontuais foram citados, mas sem tanta pompa.

Isso tudo indica uma nova etapa do manejo da crise? Talvez, mas, como dito, pode ser tarde. Bolsonaro já perdeu o Congresso e o Supremo, que nunca teve de verdade.

Já a aparente tutela operada pelos militares sobre o presidente, algo que já aconteceu antes e foi refutado depois, é algo muito frágil dado o arcabouço familiar da corte bolsonarista e o temperamento instável do ocupante do Planalto.

A responsabilidade imposta a todos os agentes pela Covid-19 poderá lhe dar tempo, mas as semanas de "gripezinhas" e de barata-voa no governo não deverão ser facilmente substituídas pelo "todo indivíduo importa" e o chamamento a "ações coordenadas".

As panelas em fúria em antigos redutos bolsonaristas de capitais são um eloquente sinal dessa dificuldade.


Folha de S. Paulo: Moro se opõe a Bolsonaro e forma bloco de apoio a Mandetta com Guedes

Isolamento político do chefe da República também aumenta diante do aval das cúpulas do Legislativo e do Judiciário ao ministro da Saúde

Os ministros Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia) uniram-se nos bastidores no apoio ao colega Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e na defesa da manutenção das medidas de distanciamento social e isolamento da população no combate à pandemia do coronavírus.

O trio formou uma espécie de bloco antagônico, com o apoio de setores militares, criando um movimento oposto ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro, contrário ao confinamento das pessoas, incluindo o fechamento do comércio.

Com isso, o isolamento político do chefe da República aumenta diante do apoio que Mandetta já tem da cúpula do Legislativo e do Judiciário —nesta segunda-feira (30), o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Dias Toffoli, destacou a necessidade do isolamento social.

Nos últimos dias, Moro deixou claro a pessoas próximas e a colegas de Esplanada a sua insatisfação com as recentes atitudes do presidente, como um passeio a pontos de comércio de Brasília no domingo (29).

Segundo aliados, Moro se disse “indignado” com a decisão de Bolsonaro de romper o acordo feito, no sábado (28), com ele e com outros membros do primeiro escalão do governo no sentido de buscar um discurso afinado sobre a pandemia.

O ministro ficou incomodado, por exemplo, por não ter sido chamado para participar de um encontro, também no sábado, com o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes e outros ministros do governo para discutir a judicialização das ações federais.

A posição do ex-juiz da Lava Jato sobre a pandemia se tornou pública por meio de suas redes sociais. Ele disse estar em “auto isolamento” no último fim de semana.

A avaliação feita por Moro a aliados é a de que o presidente está descontrolado, deixando aflorar sentimentos de raiva de supostos inimigos.

Moro não reza a cartilha do presidente sobre a pandemia. Ele tem defendido, além do isolamento, saídas técnicas para enfrentá-la. Exatamente o contrário das falas de seu chefe. Em uma reunião, por exemplo, o ministro disse que a Presidência não pode ser tratada como um “patrimônio pessoal”.

Em entrevista recente à FolhaMoro se irritou ao ser questionado sobre o comportamento de Bolsonaro.
A aliados o ministro disse que não colocaria o cargo à disposição do presidente e que não era o momento de abandonar o barco, apesar da pressão que tem sofrido de pessoas próximas para sair.

Além de Moro, Guedes, considerado fiador econômico do governo, manifestou seu apoio às ações de Mandetta em conversas reservadas com políticos no fim de semana.

Publicamente, disse em duas ocasiões que não vê motivos para que o país coloque fim ao isolamento, sempre sinalizando em aceno ao titular da Saúde.

Em conversas com prefeitos e investidores, o chefe da economia disse que, como pessoa, preferiria ficar em casa. A declaração dele enfraquece a tese defendida por Bolsonaro de que é necessário retomar o funcionamento do país para que a crise econômica não se torne mais aguda.

Em outra ponta, militares —parte importante de sustentação do governo— afirmaram que estão de acordo com as medidas adotadas pelo Ministério da Saúde e que estão à disposição para colocar em prática qualquer orientação de nível nacional.

A cúpula das Forças Armadas também concorda com a preocupação de Moro de que, num segundo momento, as questões de segurança poderão se agravar.

Em entrevista à Folha no domingo (29), o vice-presidente, general Hamilton Mourão, um dos interlocutores da ala militar, declarou que o coronavírus é sério e apontou falhas na coordenação de combate à doença.

O apoio desses personagens a Mandetta deixou o Palácio do Planalto em alerta.

Bolsonaro reagiu indo visitar o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e ex-assessor do seu governo. O presidente esteve na residência do militar pela manhã. No encontro, pediu o apoio dele ao discurso contra a quarentena total.

Logo depois, o ex-comandante, ainda a voz mais respeitada das Forças Armadas, postou em sua conta de Twitter uma mensagem condenando “ações extremadas que podem acarretar consequências imprevisíveis” e em apoio ao presidente da República.

Diante desse movimento de sua equipe, Bolsonaro tem se apoiado nos filhos, na ala mais ideológica e no diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antônio Barra Torres, além do ex-ministro Osmar Terra, que é médico e foi demitido do Ministério da Cidadania em fevereiro deste ano.

Torres, aliás, é considerado o preferido de Bolsonaro em uma eventual queda de Mandetta, que tem tido também o respaldo da cúpula do Congresso e de seu partido, o DEM.

Como a Folha mostrou, a guinada dada por Bolsonaro diante da pandemia do coronavírus foi gerada pelo receio de perder setores essenciais à sua eleição —além de estar preocupado com a militância bolsonarista, essencialmente nas redes sociais.

O presidente fez sinais a empresários e setores conservadores e precisava reacender o apoio da bancada lavajatista que tem Moro como seu principal guia.

Pressionado, o titular da Saúde deixou claro ao presidente, em reunião no sábado, que não vai se demitir nem mudar de posição.

Ele foi aconselhado por aliados a se manter firme por ter se tornado “indemissível” num momento de pandemia. Se partir de Bolsonaro uma decisão de retirá-lo de sua equipe, caberá ao presidente assumir o ônus.

“Enquanto eu estiver nominado, vou trabalhar com ciência, técnica e planejamento”, disse Mandetta em entrevista nesta segunda-feira.

Uma intervenção de Bolsonaro, no entanto, já busca tirar a visibilidade do ministro da Saúde, como ocorreu na apresentação do cenário diário da pandemia —transferida agora para o Planalto e com a participação de outros titulares de pastas do governo, e não só de Mandetta.

No campo político, o ministro da Saúde conta com o apoio dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (AP), ambos do DEM. É endossado ainda pelos principais governadores e prefeitos, a quem fez questão de acenar em entrevista coletiva nesta segunda-feira.

Bolsonaro também está em rota de colisão com os gestores de municípios e estados e despertou novamente a ira dos governadores ao dizer no domingo que “estava com vontade” de editar um decreto para normalização do comércio em todo país.

As divergências levaram ainda a um desentendimento de Mandetta com o comando da Anvisa. De acordo com pessoas próximas a Mandetta, ele e Barra mal se falam.

O diretor-presidente da Anvisa tem acatado a todos os pedidos de Bolsonaro —como a insistência na divulgação de possível cura da Covid-19 por medicações como a cloroquina, para a qual ainda não há comprovação científica.

As reações se deram ainda no Legislativo e no Judiciário.

Nesta segunda, líderes do governo no Congresso assinaram um manifesto em que pedem que os brasileiros sigam as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e fiquem em casa, em postura que se choca com a defesa de Bolsonaro.

documento é assinado pelos senadores Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo no Congresso, e Fernando Bezerra (MDB-PE), líder do governo no Senado, que foi quem sugeriu o documento.

Também respaldam o posicionamento líderes de partidos como MDB, Rede, PT, Podemos, Cidadania, DEM, PDT, PSB, PSD e PROS.

O texto afirma que a pandemia provocada pelo coronavírus impõe desafios e que a experiência de países em estágios mais avançados de disseminação da doença demonstra que, “diante da inexistência de vacina ou de tratamento médico plenamente comprovado, a medida mais eficaz de minimização dos efeitos da pandemia é o isolamento social”.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, disse que fatos levam à conclusão de que medidas de restrição social são importantes para combater a pandemia do novo coronavírus.

“Tudo o que tem ocorrido no mundo leva a crer nessa necessidade do isolamento, realmente, que é para puxar a diminuição de uma curva [de contaminação] e poder ter um atendimento de saúde para a população em geral. É um momento de solidariedade entre todos os cidadãos do nosso país e em todo o mundo”, afirmou.

MINISTROS E PODERES ISOLAM BOLSONARO

Mandetta
Alçado a protagonista da crise, o ministro reafirmou nesta segunda (30) sua defesa do isolamento social como estratégia para reduzir o contágio do novo coronavírus. Em um contraponto ao que prega Bolsonaro, Mandetta disse que "a pasta da Saúde continua técnica, continua científica"

Moro
Alvo de um processo de fritura por Bolsonaro no passado, o ex-juiz da Lava Jato se somou ao grupo que defende a permanência de Mandetta no cargo. Preocupado com o eventual impacto futuro de uma crise social na segurança pública, ele também defende um diálogo com os governadores

Guedes
Em reunião com prefeitos no domingo (29), o ministro foi na contramão do presidente: "Eu como economista gostaria que nós pudéssemos manter a produção e voltar mais rápido. Eu como cidadão, seguindo o conhecimento do pessoal da saúde, ao contrário, quero ficar em casa e manter o isolamento"

Toffoli
A principal figura do Judiciário brasileiro afirmou nesta segunda (30) que "tudo o que tem ocorrido no mundo leva a crer dessa necessidade do isolamento, realmente, que é para puxar a diminuição de uma curva [de contaminação]"

Líderes no Congresso
Os senadores Fernando Bezerra (MDB-PE, foto) e Eduardo Gomes (MDB-TO) assinaram manifesto divulgado nesta segunda em que pedem que a população fique em casa e siga as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde)

Talita Fernandes, Natália Cancian e Gustavo Uribe


Bernardo Mello Franco: O Capitão Corona contra o ministro equilibrista

No meio da pandemia, o presidente resolveu torpedear o ministro da Saúde. A razão é simples: Mandetta ganhou luz própria e se recusa a endossar seu discurso populista

Jair Bolsonaro é um chefe inseguro. Perde o controle quando um subordinado não se dobra totalmente à sua vontade. O capitão já fritou e demitiu diversos auxiliares que ousaram contrariá-lo. Agora sua mira está apontada para o ministro da Saúde, Henrique Mandetta.

No meio da pandemia, o presidente resolveu torpedear o principal responsável pelo combate ao vírus. A cruzada tem dois motivos: o ministro ganhou luz própria e se recusa a endossar seu discurso populista contra as medidas de isolamento social.

No domingo, Bolsonaro partiu para a provocação explícita. Numa afronta a Mandetta, deixou o palácio para fazer corpo a corpo nas cidades-satélites. Cumprimentou eleitores, estimulou aglomerações e conclamou o povo a abandonar a quarentena. Tudo na contramão do que o ministro prega diariamente na TV.

Mandetta está longe de ser um ícone da coerência. Político profissional, já modulou o discurso para amaciar o chefe e fazer aliados. No sábado, tentou agradar Bolsonaro com um ataque gratuito à imprensa. Apesar das oscilações, mantém-se firme na defesa da quarentena.

Ontem Brasília amanheceu na expectativa de que ele pediria o boné ou seria posto para fora. Os militares temeram pela estabilidade do governo. A essa altura, a saída abrupta do ministro da Saúde poderia deixar o mandato presidencial por um fio.

Seguiu-se uma operação pouco sutil para abafar a crise. Uma entrevista marcada para o Ministério da Saúde foi transferida para o Planalto, onde Mandetta foi acomodado entre um general de paletó e um brigadeiro de farda. Só faltou colarem um esparadrapo em sua boca para impedi-lo de criticar o chefe.

Num dos momentos mais constrangedores, o general Braga Netto disse que a demissão de Mandetta “está fora de cogitação... no momento”. Na política, esse tipo de frase indica que o auxiliar está prestes a cair, devolveu o ministro, sem alterar a voz.

Mandetta evitou confrontar Bolsonaro, mas reafirmou a defesa do isolamento social e avisou que só sai se for demitido. Pelo visto, o duelo entre o Capitão Corona e o ministro equilibrista ainda está longe de acabar.


José Casado: ‘Vão morrer, ué, lamento’

Governadores têm aprovação até 30 pontos acima do presidente

A sociedade se move. De Manaus a Porto Alegre, incontáveis voluntários, líderes religiosos, comunitários e empresariais multiplicam a coleta de alimentos e de kits de higiene para áreas onde o poder público não alcança, porque delas sempre se manteve distante — salvo nas ações de repressão policial.

São 74 milhões (37%) de brasileiros sem saneamento, parte abrigada em imóveis com mais de três por quarto, e a maioria agrupada em famílias cuja renda oscila no salário mínimo. Estão mais expostos ao vírus.

“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento” — disse Jair Bolsonaro, semana passada, com a naturalidade de quem lava as mãos e o distanciamento, talvez consciente, de possíveis cenas de comboios de caixões, com vítimas da “gripezinha”. A lógica de Bolsonaro é a da campanha pela reeleição mesmo num cenário devastado pelo medo coletivo: “Nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”

A maioria reage, mostram pesquisas recebidas no Planalto. Indicam um presidente em derretimento na própria base. O Datafolha (20/3) confirma: entre aqueles que assumem ter votado em Bolsonaro, 15% declararam-se arrependidos.

Não é irreversível, mas é a fotografia eleitoral mais recente. Isso equivale à perda potencial de 8 milhões de votos sobre os 57 milhões de 2018. A corrosão é visível nos estados, onde governadores têm aprovação até 30 pontos acima do presidente.

Na raiz está a imprevidência. Um mês atrás (20/2), Bolsonaro insuflava protestos contra o Congresso e o Supremo, atacava governadores ameaçados por motins de PMs e calculava eventuais prejuízos à reeleição com avanço do PIB a 2% no ano.

Enquanto isso, na Alemanha, a conservadora Angela Merkel organizava um plano emergencial de saúde pública, aumentava gastos e garantias às dívidas. Na época, o Brasil tinha 14 casos suspeitos, nenhum confirmado. Hoje, as projeções para o PIB são de -1,7% (Citi), - 2,8% (Safra) e - 3,4% (Goldman Sachs). Bolsonaro persevera na campanha. Agora caça culpados pelos próprios erros.


Merval Pereira: Bolsonarices

A cada bolsonarice que faz, mais eleitores se descolam de seu compromisso eleitoral, como demonstram os panelaços

A tentativa de tirar o protagonismo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta no combate ao Covid-19 não passa de mais uma bolsonarice, entre muitas que o presidente comete cotidianamente com palavras, gestos e hábitos.

Bolsonarice ainda não existe na língua portuguesa oficial, mas caminha para tornar-se um neologismo similar a tolice, burrice, asnice, todos derivados de substantivos com o sufixo “ice”, que tem em certos casos, como nesses, uma carga pejorativa indelével.

É uma característica da língua portuguesa a criação de palavras como essa, que primeiro dominam o português falado informalmente e acabam, pela frequência do uso, se imiscuindo na língua oficial, sendo reconhecidas pelos dicionários. Talvez, portanto, estejamos vendo o surgimento de uma nova palavra, pela necessidade de classificar as atitudes de um presidente da República colocado no Palácio do Planalto por circunstâncias políticas, como um jabuti em cima de uma árvore.

Boa parte das mãos que o colocaram lá, no caso do nosso jabuti, já não o aparam. A ideia propagada de que representa mais de 57 milhões de eleitores que votaram nele é uma falácia, pois como dizia Tancredo Neves, voto você não tem, você teve.

A cada bolsonarice que faz, mais eleitores se descolam de seu compromisso eleitoral, como demonstram os panelaços diários. Uma característica de sua personalidade é a paranóia, e Mandetta caiu na sua malha fina.

Todo ministro que se destaca popularmente, e pode ter objetivos políticos, Bolsonaro trata de cortar-lhe as asas. Mandetta já foi deputado federal, tem ligações políticas importantes, e a aparição diária para dar informações sobre a atividade do ministério da Saúde no combate ao Covid-19 tornou-o figura popular e simpática.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, continua na mira de Bolsonaro pelo mesmo motivo. Ontem, vazaram comentários do presidente de que estava se considerando desamparado juridicamente por Moro. Sintomaticamente, quem foi falar sobre os aspectos jurídicos do combate ao Covid-19 foi o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), André Luis Mendonça, “tremendamente evangélico” e também candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF).

Também ontem, o Palácio do Planalto estabeleceu nova sistemática para as coletivas sobre a pandemia, reduzindo o ministro da Saúde a mais um dos muitos ministros que estão cuidando do assunto, a partir da coordenação do chefe do Gabinete Civil, General Braga Neto.

O ministro Mandetta, o último a falar, não deixou dúvidas sobre a manutenção da política de controle sanitário adotada desde o início da crise. O afastamento social continua sendo o comportamento recomendado por critérios técnicos, até que se tenha informações necessárias para organizar uma distensão gradual, até que a vida volte ao normal.

O mês de abril já está reservado, na visão técnica, para a quarentena de todos que não exerçam funções essenciais. Com habilidade, Mandetta passou as orientações sem aparentar que estava desautorizando a atitude do presidente ao visitar o comércio de algumas cidades satélites de Brasília. Mas ficou claro que o presidente exorbita, até quando defende o confinamento vertical de idosos e doentes.

O auge da demonstração de força do Planalto foi acabar com a entrevista, através da locutora oficial, no exato momento em que o ministro Mandetta teria que responder a uma pergunta direta sobre o que achou do passeio de Bolsonaro.

O adendo de que o ministro da Saúde continuaria na sala para fazer uma apresentação técnica sobre o panorama do Covid-19, mas não responderia a perguntas, foi a cereja do bolo.

Recado
O ministro Paulo Guedes manda um recado informando que, ao contrário do que escrevi, o presidente Bolsonaro o consultou sobre o Aumento do valor de R$ 600 do voucher para os informais, cabendo ao líder do governo na Câmara Vitor Hugo , após confirmação com ele, anunciar a decisão do Presidente.


El País: Bolsonaro lidera negacionismo do coronavírus e incentiva ‘fake news’

Na TV, presidente questiona estatísticas das mortes e segue defendendo fim de ações de isolamento social. Twitter, Facebook e Instagram apagam postagens

Felipe Betim, El País

“O movimento negacionista do coronavírus agora tem um líder”. Foi com essa manchete que a revista norte-americana The Atlantic descreveu os discursos diários que o presidente Jair Bolsonaro promove contra as medidas de distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde para conter a pandemia do coronavírus. No início da crise, o ultradireitista parecia seguir os passos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também minimizava os efeitos da Covid-19. Mas até mesmo Trump, vendo que seu país se transformara em epicentro mundial do novo vírus, mudou de atitude: negociou com o Congresso um pacote de dois trilhões de dólares (cerca de 10 trilhões de reais) para resgatar a economia, adotou um tom de conciliação com governadores, estendeu até 30 de abril as restrições à circulação e, no último fim de semana, chegou a dizer que poderia instituir o chamado lockdown nos Estados de Nova York, New Jersey e Connecticut. Em suma, o republicano deixou de lado a retórica de que a atividade econômica não pode e passou a salientar que, neste momento, a saúde dos estadounidenses deve ser a prioridade.

Bolsonaro, por ora, ignora a guinada daquele que lhe serve como modelo político e vem insistindo que as pessoas devem sair às ruas e trabalhar normalmente. “É um nível de irresponsabilidade que nunca vi num líder democraticamente eleito. Bolsonaro faz Trump parecer Churchill”, ironizou Ian Bremmer, presidente da consultoria de risco Eurasia Group, no Twitter. Agindo de maneira errática logo após atender as demandas de governadores, o mandatário brasileiro determinou em pronunciamento em cadeia nacional na passada terça-feira que “algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”. Também aproveitou a ocasião para forjar inimigos e se referir ao coronavírus como uma mera “gripezinha”.

Isolado politicamente, Bolsonaro dobrou a aposta na radicalização de sua base e estimulou as carretas de empresários em várias cidades pedindo pela reativação das atividades desde a sexta-feira. Além disso, mais uma vez driblou todas as orientações de médicos e especialistas e passeou no domingo por mercados e centrais de vendedores ambulantes na periferia de Brasília. Durante o chamado “coronatour”, o presidente cumprimentou cidadãos de Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho, além de reforçar sua tese de que é importante fortalecer a economia. Alguns analistas acreditam que Bolsonaro não quer ser visto como responsável pela recessão na economia, diante de mortes inevitáveis, segundo sua visão. Por outro lado, se governadores e prefeitos têm sucesso em suas medidas e consigam conter o coronavírus, ele ainda poderia argumentar que estava certo ao dizer que não havia demasiados riscos para a saúde da população.

O presidente e seu entorno mais radical —sobretudo seus filhos— também vêm divulgando e incentivando medidas contra o isolamento ou fazendo ênfase sobre possíveis curas para o coronavírus. No domingo, o Twitter decidiu pela primeira vez barrar conteúdo compartilhado pelo ultradireitista e pagou dois vídeos que havia postado contra o isolamento social. Nesta segunda foi a vez do Facebook e do Instagram decidirem fazer o mesmo por considerar que conteúdo promovia a desinformação. O vídeo mostrava o presidente conversando com um ambulante: “Eles querem trabalhar. é o que eu tenho falado desde o começo”, dizia. “Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo o que é lugar”, continuava. Em nota ao portal BBC News Brasil, justificou a remoção dizendo que "viola nossos padrões da comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”.

Nesta segunda, em entrevista ao canal de televisão aberto Rede TV, Bolsonaro voltou a questionar os números de mortes provocadas pela Covid-19. “Parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número”, disse o presidente, ecoando uma notícia falsa, espalhada em grupos de WhatsApp e nas redes, de que um porteiro ou borracheiro teria tido sua morte erroneamente incluída nas estatísticas de coronavírus (veja aqui os números em tempo real).

O que Bolsonaro faz é utilizar “uma comunicação meticulosamente arquitetada para ironizar e atacar inimigos ideológicos e políticos, da imprensa ao médico Drauzio Varella, passando por governadores e prefeitos adversários", opina o cientista político Vinícius do Valle. “Bolsonaro quer, na verdade, o caos”, conclui Valle.

O motivo de querer o caos se deve à própria natureza do bolsonarismo, que precisa do conflito para se manter e se expandir, segundo Valle e outros estudiosos, como o historiador argentino Federico Finchelstein. “Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências”, disse Finchelstein ao EL PAÍS na semana passada. Para Valle, Bolsonaro poderia encontrar na convulsão social a justificativa que precisa para tentar concentrar ainda mais poder em suas mãos, seja a partir de operações de Garantia da Lei e da Ordem ou da decretação de um Estado de Sítio.

Possível demissão de Mandetta

Um dos fatores que podem detonar esse caos à curto prazo é a possível troca de comando no Ministério da Saúde. No sábado, o ministro Luiz Henrique Mandetta e toda a sua equipe colocaram os cargos à disposição de Bolsonaro. Segundo apurou o EL PAÍS, os ministros e generais do Exército Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil) tiveram de intervir e convencer Bolsonaro de que, sem Mandetta, a impressão que passaria para a opinião pública seria de ingovernabilidade em meio à crise ―está previsto que o pico de contágios aconteça em meados de abril.

Uma fonte do Palácio do Planalto relatou que o presidente foi relutante, porque se se sentiu “enquadrado” pelos militares. Mas, num primeiro momento, concordou em manter Mandetta no cargo —algo que foi reforçado nesta segunda-feira por Braga Netto durante a coletiva de imprensa com Mandetta e outros ministros.

Mandetta está decidido a não se demitir. Disse a aliados que só sai do ministério se for exonerado pelo presidente. Ao longo da última semana ele foi orientado a falar menos e deixar que o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo dos Reis, e o titular da Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, apareçam mais. Mas não acatou os conselhos. No sábado, foi protagonista de uma coletiva de imprensa na qual recomendou o isolamento social e contrariou as teses do presidente. Nesta segunda-feira também não deu um passo atrás.

Nos bastidores são ventilados três possíveis nomes para o Ministério da Saúde: o médico e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que já foi demitido pelo presidente do Ministério da Cidadania por não apresentar resultados; o contra-almirante da Marinha, Antônio Barra Torres, médico que preside a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e acompanhou Bolsonaro na manifestação do dia 15 de março; e, correndo por fora, o filantropo e gestor do Hospital do Amor (o antigo Hospital do Câncer de Barretos), Henrique Prata. Ele chegou a ser cogitado para assumir a pasta já no primeiro ano da gestão de ultradireita, mas o apoio político de Mandetta e sua capacidade de unir parte da direita entorno de Bolsonaro prevaleceu.


Míriam Leitão: Fim de um mito da ditadura

Dois estudiosos derrubam o mito do milagre econômico da ditadura: foi estagnação ou recessão para 70% dos trabalhadores

Um estudo inédito desmonta o maior argumento econômico da ditadura de 1964: o de que houve um milagre. Não houve. Dois grandes estudiosos mostram que 82% do crescimento da renda dos salários, nos primeiros anos do chamado “milagre”, foi apropriado pelos 10% mais ricos. O estudo chega no momento exato dos arremedos autoritários do presidente Bolsonaro exibidos no meio de uma pandemia. Ele se comporta como se tivesse poderes ilimitados. Na democracia não tem, felizmente. É bom que se desmonte mais um mito da ditadura: o de que ela foi boa na economia durante os anos em que houve crescimento do PIB.

Crescimento para quem? Foi isso que se perguntaram os economistas Marcelo Medeiros, professor visitante da Princeton University, e Rogério Barbosa, pós-doutorando da Universidade de São Paulo. A nota técnica a que esta coluna teve acesso com exclusividade desmonta todo o mérito econômico da ditadura. “Nossa principal conclusão até o momento é de que o crescimento de 1960 a 1970 foi altamente pró-ricos, com grandes parcelas da população tendo perdas ou permanecendo praticamente estagnadas.”

Os militares insistiram ontem em reescrever a história. A ordem do dia elogia a ditadura militar e repete o delirante argumento de que os militares defendiam a democracia quando a golpearam. É cansativo, 56 anos depois, ver as Forças Armadas se prestando a esse papel.

No domingo, depois do temerário passeio de Bolsonaro para mostrar que não seguia orientações das autoridades sanitárias do planeta, ele chegou ao Palácio e disse: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, de baixar um decreto amanhã...” O decreto seria para determinar a volta de todo mundo ao trabalho contra as ordens dos governadores.

Perguntei ao ministro do STF Luiz Roberto Barroso se Bolsonaro poderia baixar esse decreto. O ministro disse que “formalmente ele pode”, mas que talvez o texto não prevaleça:

– A resposta à sua pergunta é: o presidente pode. O decreto vai subsistir? Vai depender do que o Supremo decidir.

Isso porque a Constituição diz que quem planeja as ações numa calamidade é o governo federal, mas em outro ponto diz que a saúde é um direito. Em outro artigo diz que em saúde pública o poder é compartilhado entre União, estados e municípios.

– As circunstâncias atuais do poder executivo federal reavivaram dois princípios constitucionais que estavam esmaecidos: a federação e a separação dos poderes, e deu protagonismo ao poder legislativo – disse o ministro.

Essa é a beleza da democracia. Ela, contudo, é minada diariamente pelo presidente da República, quando manda que se comemore essa data funesta ou quando faz ameaças implícitas. Por isso é sempre bom derrubar os mitos criados pelas mentiras sempre repetidas.

Cruzando mais dados do que os estudos anteriores, Medeiros e Barbosa chegaram às seguintes conclusões até o momento: “1- O crescimento foi altamente concentrado. Cerca de 82% de todo o crescimento foi apropriado por apenas 10% dos trabalhadores. 2- O crescimento econômico entre 1960 e 1970 foi pró-ricos. A economia os favoreceu desproporcionalmente e deixou os pobres para trás. 3- Houve grande aumento da desigualdade de renda”. Esse último ponto já havia sido registrado em pesquisas anteriores.

Na verdade, segundo o estudo, houve “recessão” para pelo menos um terço dos trabalhadores e houve estagnação para 40% outros. “Somados, 70% dos trabalhadores não tiveram qualquer ganho.”

Por esse motivo, dizem os professores, “não é correto chamar o período de ‘fase do milagre econômico da ditadura’. Uma expressão que descreva melhor o período seria ‘fase do crescimento pró-ricos da ditadura”. Os professores aprofundarão as análises dos períodos posteriores antes de concluir o estudo.

Nos dias dolorosos que vivemos, a população tenta se proteger de um inimigo mortal e perigoso, enquanto o presidente, um admirador da ditadura, ensaia baixar decretos para tirar poderes de governadores e diz sem qualquer simpatia à vida humana e em péssimo português: “Vocês acham que morrerão gente com o passar do tempo? Morrerão”. Para mostrar que fala sério, o governo fez ontem um teatro para mostrar que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fica no cargo, mas tutelado.


O Estado de S. Paulo: ‘Coronavírus isolou líderes populistas’, diz Steven Levitsky

Para Steven Levitsky, cientista político americano e coautor de 'Como as Democracias Morrrem', ignorar especialistas fez líderes como Trump e Bolsonaro reagirem tarde à pandemia

José Eduardo Barella / ESPECIAL PARA O ESTADO, O Estado de S.Paulo

Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.

A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky.

Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.

Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo.

No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento?
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.

Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento.

Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.

A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump.

Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.

Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?

Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.

É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?

Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará.

Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder.

Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento?
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.

Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada.

Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero.


Folha de S. Paulo: Em entrevista, Mourão aponta falta de coordenação em ações finais contra coronavírus

Para vice-presidente, autoridades do país devem deixar individualismo de lado e buscar consenso na pandemia

Leandro Colon e Gustavo Uribe, Folha de S. Paulo

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, 66, diz que é hora de as autoridades deixarem o individualismo de lado no combate ao coronavírus no Brasil e defende um consenso frente à pandemia.

"O fulano está pensando só nisso porque é de direita e o outro só aquilo porque é de esquerda. Não, nós temos de buscar um meio-termo e a igualdade", disse.

"Acho que está havendo uma falta de coordenação das ações no final", declarou sobre a crise entre os governadores e o presidente Jair Bolsonaro.

O general recebeu a Folha em seu gabinete no Palácio do Planalto na sexta-feira (27). Segundo ele, é preciso encontrar um modelo de isolamento que não seja "oito ou oitenta".

Questionado sobre a decisão de Bolsonaro de não mostrar o exame negativo para o vírus, respondeu: "Acho que tem de confiar na palavra do presidente. Seria o pior dos mundos o presidente chegar e declarar que testou e deu negativo e depois aparecer que deu positivo".

O coronavírus é uma doença séria ou uma gripezinha?
Ele [o vírus] é sério. O presidente, quando fala de gripezinha, é o linguajar dele. Busca passar certo grau de confiança para a população. Aí a turma fica com raiva e quer pular na jugular dele.

O senhor falou que o presidente foi mal interpretado no pronunciamento de terça (24). Ele não é irresponsável em falar em gripezinha, resfriadinho, pedir todos na rua, atacar a mídia?
Sobre a questão da briga do presidente com a mídia e da mídia com o presidente, já houve um momento em que deixou de haver a crítica, sinceramente. Às vezes, vejo jornalistas renomados falando, principalmente na televisão, com raiva. Pelo amor de Deus, não vamos ter raiva.

Como o senhor avalia o papel da mídia na cobertura da pandemia?
A mídia está fazendo o papel dela e está informando.

Por que o senhor diz que o presidente foi mal interpretado?
Porque ele quis explicar as consequências de um "lockdown" drástico e o que ia acontecer na economia. Então apresentou aquela preocupação.

​ O presidente não deveria ser mais cuidadoso em suas falas?
O presidente tem o jeito dele. Sou vice-presidente do Jair Bolsonaro. Ando na ala dele. Não estou aqui para dizer: "Presidente, muda seu jeito de ser". Não adianta. Ele tem 65 anos.

Bolsonaro foi questionado sobre a avaliação feita pelo senhor do pronunciamento e respondeu que o presidente é ele. O senhor se incomodou?
Em absoluto, ele é o presidente. Falo isso para ele sempre.

O pronunciamento foi discutido com os filhos do presidente. Não incomoda à ala militar a participação deles em reuniões no Planalto sobre a crise? O Carlos é vereador, não tem nenhuma atribuição federal.
É uma família unida, que atravessou problemas ao longo de sua evolução do núcleo familiar e o presidente tem muita confiança nas opiniões deles.

Mas o Carlos sentou à mesa de reunião...
Sentou, mas não abriu a boca. Ele sabe também que não vai abrir a boca porque não tem nenhum papel no governo.

Como tem se protegido contra a doença? Chegou a realizar o teste?
Não fiz o teste porque não tenho sintoma. Estou cumprindo o protocolo do Ministério da Saúde: se tem algum sintoma, faz o teste. Não vou gastar teste comigo se não tenho sintoma.

O presidente não deveria, como fizeram outras autoridades, mostrar o teste dele que diz ter dado negativo, já que é informação de interesse nacional?
Acho que tem de confiar na palavra do presidente. Porque aí seria uma coisa muito, vamos dizer assim, acho que seria o pior dos mundos o presidente chegar e declarar que testou e deu negativo e depois de alguma maneira aparecer o teste dizendo que deu positivo. Isso aí, para mim, seria o pior dos mundos.

Parto do princípio, e isso é uma coisa que é muito cara para nós que viemos do meio militar, a questão que sua palavra tem fé de ofício. A gente só trabalha no meio militar assim. Se eu falei A, é porque é A. A partir do momento em que vou estabelecer uma desconfiança com o subordinado ou com um superior, morre o relacionamento. Acho que, se o presidente disse que deu negativo, OK. Deu negativo.

O senhor mostraria se estivesse no lugar dele?
Acho que é inócuo. A minha palavra vale.

A crise criou um tensionamento maior na relação entre Executivo e Legislativo, pedidos de impeachment. O governo passa pelo seu pior momento?
O relacionamento sempre se pautou de forma distinta de governos anteriores. O governo nunca construiu base. Então tem havido essa rusga e fricção. Aí é óbvio que, agora, nessa questão do coronavírus, todo mundo quer ter seu protagonismo e apresentar-se como "bom, eu fui o cara que contribuí para a solução". Aí, tem de deixar um pouco o individualismo de lado e buscar mais uma vez construir o consenso.

O governo lançou uma campanha publicitária "O Brasil não pode parar". O senhor concorda?
Concordo que o Brasil não pode parar. Talvez agora chegue o momento de, em uma conversa entre a área técnica da medicina e a econômica, buscar posição onde determinadas atividades possam de forma progressiva retomar. Temos um temor de que muita gente desempregada e subempregada de uma hora para a outra fique sem recurso.

Não chegamos ainda ao pico da doença. Neste momento o que é mais importante: proteger a população ou não prejudicar a atividade econômica?
A questão está mal colocada porque está muito no oito ou oitenta. Não é oito ou oitenta. Uma coisa é certa: temos de proteger a população. Em nenhum momento o governo deixou de destacar isso. Mas é óbvio que as características do Brasil são diferentes das de outros países. E isso não pode ser discutido com paixão política. Esse é o problema. O fulano está pensando só nisso porque é de direita e o outro só aquilo porque é de esquerda. Nós temos de buscar um meio-termo e a igualdade.

A paixão política está nos dois lados, não? Como o senhor viu na discussão do presidente com o governador João Doria (São Paulo). Essa paixão também não tem que ser reduzida pelo próprio presidente?
O presidente é atacado duramente. É um conjunto do sistema político dentro do país onde todo mundo coloca que ele está totalmente errado e é um tosco. Não é isso. Ele tem a visão dele e se expressa, vamos colocar assim, de forma clara.

Por que o senhor balançou a cabeça em sinal negativo durante o bate-boca entre Bolsonaro e Doria?
Eu considerei que era totalmente inoportuna aquela discussão. Considerei inoportuno o governador se aproveitar ali para fazer crítica ao presidente. Critica abertamente pela imprensa, mas naquele momento, frente a frente, ele sabia que haveria uma reação. É óbvio que o presidente reage da maneira que ele sabe fazer.

Esse clima de beligerância está prejudicando o enfrentamento da doença?
Acho que está havendo uma falta de coordenação das ações no final. Vamos lembrar que somos uma federação. Aquilo que é do município é do município. Se extrapola o município, aí é do estado. Se extrapola do estado, é da União. Nossos governadores têm de entender os limites e buscar uma coordenação com o governo federal.

Pela sua experiência na área militar, qual é a melhor forma de combater a pandemia?
São três coisas. Primeiro, tem de ter planejamento centralizado e determinar objetivos. E, a partir daí, na execução, ter clareza para todo mundo entender o que está sendo feito. Um trabalho de coordenação é paciente. Numa estrutura militar, dou ordem e a turma obedece. Em uma estrutura política, isso não funciona desse jeito. A coordenação é muito mais no sistema do consenso, na busca do entendimento e na busca dos melhores propósitos.

Após recomendação do Ministério da Saúde, as pessoas se fecharam em casa. O presidente depois adotou o discurso defendendo apenas o isolamento do grupo de risco. O senhor é a favor disso?
A questão do isolamento vertical tem uma lógica no momento em que se busca que as atividades econômicas voltem a funcionar. É óbvio que não é simples em um país das dimensões do Brasil, cinco países em um. Volta e meia vejo a turma comparar com a Holanda. Se somar Alagoas e Sergipe, dá uma Holanda. São países pequenos, com populações distintas.

O presidente defende a abertura das escolas. As crianças vão para as escolas, voltam para casa, circulam na rua. Não é arriscado neste momento abri-las?
Em áreas pobres, as crianças que vão à escola estão concentradas em casa e não têm acesso à alimentação que tinham na escola.

Não se corre o risco de errar como na Itália, de fazer uma abertura e depois se arrepender?
A Itália é diferente. A epidemia começou no norte do país. Ali, eles tinham uma ligação direta com a China. Comparar com a Itália é meio complicado.

O Governo de São Paulo afirmou que o confinamento tem segurado a curva de contágio. Não é uma contradição com o discurso de Bolsonaro?
Passaram os 15 dias de confinamento, vamos reavaliar. Acho que é isso que tem de ser feito. Onde está concentrada a epidemia? Os outros que não estão tendo problema vamos deixar circular. Agora, pega cidades de 80 mil ou 100 mil habitantes. Basta impedir aglomeração. Não vai ter festa e baile.

Mas pequenas cidades têm muitas igrejas. O presidente liberou cultos. Não vai na contramão do desestímulo à aglomeração?
Vai da sensibilidade de cada pessoa. Está liberada a igreja, mas preciso ir?

Os especialistas veem o isolamento social como principal medida. Não é ruim para a imagem do Brasil ir na contramão?
A gente não sabe ainda como o vírus vai se comportar em um clima quente como o do Brasil. O ministério disse que vamos conviver com três epidemias. Todo ano temos o problema da gripe, que mata velhinhos direto, e o da dengue. E ainda tem o coronavírus por fora. Quais mortes serão atribuídas ao coronavírus? Caso da senhora que faleceu em Goiás, era cardiopata, diabética, tinha insuficiência respiratória aguda, tinha tido dengue e ela morreu de coronavírus?

Sim, o coronavírus potencializa.
A pessoa que tem problema cardíaco tem problema respiratório, e o coronavírus é síndrome respiratória grave e ataca o pulmão de forma diferente da gripe.

A sensação é de que o governo está tentando transferir responsabilidade aos governadores e à mídia pela falta de eficiência na economia.
O governo já colocou o pacote de R$ 147 bilhões. Tem esse de mais R$ 88 bilhões para estados e municípios. Está votado os famosos R$ 600 para os autônomos.

Estamos chegando no dia 31 de março, data importante para as Forças Armadas. O senhor mesmo se envolveu em polêmicas sobre isso. Que mensagem deveria ser passada na data do golpe de 1964 em meio a essa crise?
É um fato histórico, que pertence à história do Brasil e lá vai ficar. Não pode ser apagado com borracha. Então, eu acho que isso aí fica na história. E, em tempos de coronavírus, passará em branco.

A crise pode afetar a questão amazônica?
Lógico, cadê o recurso? Está todo voltado para o coronavírus. Temos de nos preparar, porque vai terminar o coronavírus. Aí, quando acordar, está lá o problema na Amazônia.

HAMILTON MOURÃO, 66
General quatro estrelas da reserva, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras. Cumpriu missão de paz em Angola, atuou como adido militar na Embaixada do Brasil na Venezuela e foi comandante militar do Sul. Em 2018, filiou-se ao PRTB e ingressou na carreira política.


Alon Feuerwerker: O tranco vem aí. E ninguém poderá alegar surpresa

A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (@FGVDAPP) detectou uma novidade esta semana nas redes sociais: certa agregação de perfis que ela considera de esquerda e de centro. Vamos então aceitar para efeitos didáticos a classificação, pois aponta um movimento de razoável importância no público.

As ações do presidente da República para reagrupar e anabolizar a base mais próxima dele na guerra de opiniões da Covid-19 tiveram um custo: juntaram contra ele, pelo menos nas redes sociais, quem não se juntava há tempos para nada. Não existe mesmo almoço grátis, apesar de esse rearranjo na internet não ter até o momento maior implicação política.

O custo em imagem ainda precisa ser medido nas pesquisas, mas os dados digitais fazem deduzir que a base bolsonarista fiel continua preservada na essência. E duas coisas jogam a favor do presidente na correlação de forças: não há condições objetivas para protestos de rua em massa e tampouco o Congresso Nacional parece propenso a enveredar por um confronto aberto contra o Planalto.

Tirando os pontos fora da curva, por exemplo a suspensão dos contratos de trabalho sem contrapartida, a disposição no Legislativo é aprovar as medidas governamentais de combate às crises sanitária e econômica, aqui especialmente as de caráter anticíclico. Até porque de repente todos viraram keynesianos: economistas, empresários e jornalistas especializados.

E um Congresso que só pode reunir por teleconferência não chega a ser propriamente ameaça. Nesta condição, é pouco provável deputados e senadores colocarem para rodar qualquer coisa afastada do consenso. E se há um consenso nas duas Casas é não bater de frente com Jair Bolsonaro. Em vez de esticar a corda, dar corda para o presidente.

Nas últimas horas a sensação é de um movimento centrípeto governamental. Os ministros da Saúde e da Fazenda falaram à vontade no sábado para garantir que planos para a defesa contra o coronavírus estão aí e irão funcionar. Mostraram estar confiantes nas cadeiras. É pouco provável terem feito a aparição pública sem combinar com o chefe.

Mas nada servirá de escudo se duas coisas não funcionarem bem: se o dinheiro para empresas e trabalhadores não chegar na ponta e se o sistema de saúde não aguentar o tranco que vem aí nas próximas semanas. Os ministros responsáveis pelas duas áreas pareceram neste sábado confiantes de que os dois desafios serão equacionados.

Ninguém se engane. Ainda não saímos da etapa dos bate-bocas. Que têm hora para dividir o palco com os fatos duros. O tsunami vem aí. E o governo será julgado pelos resultados. Inclusive porque teve tempo de se preparar. O lockdown em Wuhan tem mais de dois meses, e a agudização na crise na Europa já vem há várias semanas. Ninguém poderá alegar surpresa.

Deu tempo suficiente para aprender com os erros dos outros. Vamos aguardar, e rezar, para termos aprendido.

*

Depois desta epidemia vai ficar muito difícil a vida de quem deseja enfraquecer o Sistema Único de Saúde. Se ele funcionar como prometem, e nada indica que não vá (tem um pouco de torcida nisso), estará aberta a estrada para atacar de vez o problema do subfinanciamento.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Folha de S. Paulo: Governo tem que cobrir salários e devolver FGTS, diz Persio Arida

Diante da perspectiva de queda sem precedentes do PIB, economista propõe achatamento da curva de juros, defende que governo complemente salários e sugere mudança institucional para permitir que BC possa comprar títulos do Tesouro em mercado. Neste momento só lunático veria risco inflacionário, afirma 

A história vai mostrar que a ideia de que o coronavírus é uma gripezinha causou uma tragédia humana e social. Tivemos sorte porque o vírus demorou para chegar aqui, mas a desperdiçamos com a inépcia governamental.

Se o governo tivesse levado a sério a epidemia, poderia ter testado desde o começo do ano todos os viajantes que entraram no Brasil, como a China testa até hoje todos os que chegam do exterior. Poderia ter se preparado aumentando o número de leitos, estocando equipamentos médicos e de proteção para os profissionais da saúde. Poderia ter providenciado um grande estoque de kits de testagem do coronavírus.

Se o Brasil tivesse um sistema de saúde com grande capacidade ociosa, teríamos a opção de um tratamento social verticalizado, isolando os mais fragilizados e fazendo uma grande campanha de prevenção para o restante da população que iria trabalhar normalmente, mas não é esse o nosso caso.

O fato é que nenhuma sociedade tolera continuar a vida econômica como se nada estivesse acontecendo enquanto pessoas morrem na fila de espera do pronto-socorro ou do hospital porque não há vagas para internação. Nas nossas circunstâncias, as medidas de distanciamento social ou quarentena estão corretas —o resto é terraplanismo, oportunismo político ou lobby de empresários insatisfeitos.

Do ponto de vista econômico, há dois desafios. O primeiro é como responder à recessão. O segundo é como sair da quarentena sem causar repiques ou novos surtos de contaminação do coronavírus.

Começo pela recessão. As estimativas do PIB de 2020 variam muito, até porque dependem da duração da quarentena, da amplitude da rede de sustentação social que vier a ser implementada e também do que acontecerá no resto do mundo. Porém, a julgar pelo que acontece à nossa volta, teremos uma queda sem precedentes em nossa história.

A resposta do governo tem sido tímida, desorganizada e a reboque dos fatos. A garantia de que não faltará dinheiro para a saúde foi importante, mas muitas medidas anunciadas com pompa e circunstância não saíram do papel. E muito mais deve ser feito, tanto para pessoas físicas quanto para empresas, para reduzir ao mínimo o impacto da crise.

Várias propostas já foram escritas pelos economistas para assegurar uma rede de proteção social efetiva —e muitas delas já deveriam ter sido postas em prática. São medidas de caráter temporário e com foco nos mais necessitados. Segue uma lista, com alguns acréscimos meus:

1. O Tesouro deve pagar parte substancial dos salários dos trabalhadores. No Reino Unido, o governo paga 80% dos salários até determinado limite para evitar demissões.

2. Usando dados do Cadastro Único, Bolsa família, BPC e CPFs nas companhias telefônicas é possível ter um cadastro-base para um programa de transferência direta aos autônomos e desempregados, uma renda mínima para aqueles que comprovadamente não tem nenhuma outra fonte de renda.

3. Ampliar o alcance do seguro-desemprego e devolver aos trabalhadores parte expressiva ou até mesmo 100% do saldo de suas contas junto ao FGTS. Isso poderia ser viabilizado através de um empréstimo do Banco Central para a Caixa, tendo como lastro os créditos hoje financiados pelo FGTS.

4. Empréstimos a pessoas físicas com base no histórico do Imposto de Renda.

5. Diferir por lei parte do pagamento de prestações da casa própria, independentemente do banco que financiou a aquisição do imóvel.

Do ponto de vista das empresas, devemos postergar o pagamento de impostos e dívidas tributárias para preservar o caixa. O Tesouro deveria conceder empréstimos para pequenas e médias empresas, além de programas de apoio específicos a setores particularmente atingidos.

Obviamente tudo isso vai impactar a dívida pública. Uma coisa, no entanto, é uma dívida que cresce por irresponsabilidade populista dos governantes ou por força dos interesses privados incrustados no Orçamento; outra é um aumento excepcional de dívida diante de circunstâncias excepcionais.

O Banco Central tem respondido bem e agressivamente ao desafio de manter a liquidez do sistema financeiro. Faz sentido agora reduzir as taxas de juros, de curto e longo prazo. O preço dos empréstimos de liquidez importa mais que nunca em uma recessão. O Tesouro precisa encurtar o perfil da dívida pública, e o quadro institucional deve ser alterado para permitir ao Banco Central comprar títulos do Tesouro em mercado.

É importante diferenciar o que não deve ser feito do que pode ser feito dependendo da evolução da crise. Aumentar investimentos públicos ou comprar ações para fazer a Bolsa subir são exemplos de mau uso dos recursos públicos. Comprar debêntures e cotas de fundos de crédito, como faz o Banco Central Europeu, ou o Tesouro conceder empréstimos sem exigência de colateral são passos que podem vir a fazer sentido.

Deveríamos nos preocupar com a solvência do governo quando a dívida pública chegar a 85% ou 90% do PIB? E se o governo não conseguir mais vender papéis de dívida e tiver que pagar os credores em moeda?

Há uma enorme confusão nessa matéria. Bancos centrais imprimem papel moeda, mas no mundo digital em que vivemos os pagamentos feitos em papel-moeda são irrelevantes. O grosso das transações é feito por meio de cartões de crédito e débito, transferências bancárias ou aplicativos de pagamento digital. Exceto pelo papel-moeda, a “moeda” que o Banco Central cria é um depósito remunerado na conta de alguma instituição financeira.

A dívida pública, qualquer que seja seu tamanho, sempre pode ser paga. No limite, o Banco Central pode creditar os valores devidos na conta dos detentores dos papéis da dívida.

Disso não decorre que seu tamanho não faça diferença. Um estoque muito grande de dívida pública pode gerar pressões inflacionárias, mas só um lunático acharia que corremos um risco inflacionário nas circunstâncias atuais.

Além das medidas para minorar o efeito da recessão, temos que pensar na saída da quarentena. Todos sabemos que quarentenas por períodos longos de tempo são insustentáveis. O problema é que, por despreparo do governo, estamos às cegas.

É fácil pensar o ideal. Testagem em massa para poder diferenciar áreas onde o problema foi equacionado de outras onde o vírus ainda está se disseminando. Testar os que estão com febre, testar os que foram a hospitais, mas não precisaram ser internados, testar aleatória e maciçamente para detectar os assintomáticos.

Uma boa base de dados de contaminação pelo vírus, revisada diariamente, combinada com uma análise dos padrões de conectividade e da disponibilidade de leitos nos permitiria saber, com razoável segurança, quais cidades ou regiões poderiam reativar as atividades econômicas suspensas na quarentena.

Conhecemos a disponibilidade de leitos, e há estudos sobre conectividade disponíveis. Podemos mobilizar programadores que utilizem algoritmos de inteligência artificial para lidar com grande quantidade de dados.

O drama está na testagem em massa. O governo não se preocupou em ter a quantidade de kits necessários. Sem dados de testes abrangentes, a reativação da economia, muito provavelmente, levará a repiques do coronavirus.

Uma vacina vai demorar a surgir, mas a invenção de um teste rápido e barato do coronavirus ou uma combinação eficaz de remédios poderiam nos ajudar muito no curto prazo. São, no entanto, esperanças no momento. A triste realidade atual é que teremos de conviver com o vírus por mais tempo do que se imagina.

Em um discurso de estadista, o presidente francês, Emmanuel Macron, comparou a epidemia do coronavirus a uma guerra. Ganhar uma guerra, como bem sabem os generais, depende em boa medida do preparo prévio na logística, nos armamentos, nos planos de contingência e nos cenários de risco. Por incúria ou ignorância, entramos em uma guerra sem preparo algum.

*Persio Arida, economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso

**Este artigo foi escrito a partir de perguntas elaboradas pelos jornalistas Vinicius Torres Freire e Marcos Augusto Gonçalves.