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Arnaldo Jardim: Gravidade da crise exige medidas urgentes

A crise mundial iniciada com a propagação do COVID-19 tem múltiplos aspectos a serem considerados. O mais importante, naturalmente, é a dimensão humana de todo sofrimento que a doença está levando a milhões de pessoas ao redor do mundo. O impacto na saúde pública é gigantesco e extrapola propriamente aos efeitos da doença. Mas não é só na saúde que os efeitos são sentidos.

A pandemia do coronavírus trará consequências imprevisíveis para a economia. Ao redor do mundo, a cada dia que passa, as previsões sobre o crescimento econômico esboçam um quadro desolador. A economia chinesa, que tem sido a locomotiva da economia mundial, deverá sofrer, no mínimo, uma retração de dois pontos percentuais no crescimento de seu PIB. Na Europa a queda deverá ser mais intensa. Na Itália, por exemplo, a economia parou. Nos Estados Unidos, o JPMorgan Chase and Co. estimou que a economia americana poderá encolher impressionantes 14% no segundo quadrimestre de 2020. Seria o pior resultado do pós-segunda Guerra Mundial.

Como cada país sofrerá as consequências dessa crise econômica depende, em muito, da reação das diversas autoridades. E é isso o que nos preocupa no caso brasileiro. O governo federal demorou em dimensionar o impacto da crise na economia. Um exemplo disso foi o encontro que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, teve na semana passada com os principais líderes do legislativo. Na ocasião, o timoneiro de nossa economia foi incapaz de propor alguma medida e repetiu o inadequado discurso sobre a necessidade de aprovação das reformas, demonstrando a incapacidade de perceber a velocidade com que a crise se aproximava de nosso país e o resultado que uma eventual aprovação de reformas traria a curto prazo. Reformas, aliás, que sequer foram enviados ao Legislativo.

Apesar da demora, os fatos se impuserem e o governo federal teve que agir. O conjunto de medidas adotadas esta semana para o enfrentamento da crise econômica está na direção correta, embora, a nosso ver, algumas delas enfrentarão desafios. Preocupa-nos, por exemplo, como se dará a distribuição dos recursos para os autônomos.  Ou como será a ampliação do programa Bolsa Família. A velocidade da execução dessas medidas determinará seu êxito ou fracasso.

As medidas tomadas até agora são tímidas e devem se encaradas como o início do processo de ação dos governos frente à realidade da crise que estamos enfrentando. Devemos reforçar as medidas anticíclicas, para que nossa economia dirima as consequências da retração da atividade econômica. Auxiliar o setor privado ofertando crédito subsidiado, especialmente para capital de giro de micro e pequenas empresas é essencial. Ampliar prazo para pagamento de tributos federais também é uma necessidade urgente. Assim como adotar medidas que flexibilizem temporariamente as regras do mercado de trabalho é fundamental para a garantia dos empregos.

Nós, do Poder Legislativo, não estamos nos furtando de participar do processo de enfrentamento da crise e de propor soluções. Aprovamos o Estado de Calamidade, que nos permitirá flexibilizar a meta do resultado primário e aprovamos a Medida Provisória do Contribuinte Legal que trará mais de R$ 20 bilhões para a União e possibilitará a repactuação de diversas dívidas para com o fisco.  Além disso estamos enviando uma série de sugestões ao Poder Executivo. A Deputada Carmen Zanotto, representante do Cidadania na Comissão destinada a acompanhar as ações preventivas contra o coronavírus, por exemplo, sugeriu ao Executivo que sejam facilitados os trâmites aduaneiros e sanitários para a importação de medicamentes e itens de saúde, e que sejam proibidas as exportações de produtos que possam ser utilizados direta ou indiretamente no enfrentamento da crise.

Outras medidas podem e devem ser tomadas para aliviar os cidadãos e as empresas. Do ponto de vista das tarifas públicas poderíamos isentar ou reduzir, temporariamente, as tarifas de energia, gás, e água. Tais medidas teriam um potencial enorme de reduzir a pressão sobre todos, especialmente os mais pobres.

No que se refere a legislação trabalhista, poderíamos pensar na redução na jornada de trabalho e na redução proporcional dos salários. Isso poderia contribuir sobremaneira para a manutenção dos empregos. A ampliação dos prazos para a realização de exames ocupacionais e a suspensão dos prazos de contestação e de recursos administrativos seriam outras iniciativas importantes.

A política monetária também pode exercer um papel importante. Para isso é possível reduzir com mais intensidade a Selic e diminuir os depósitos compulsórios. Tais medidas podem ampliariam a oferta de crédito e reduzir o spread bancário.

Os bancos públicos, como o BNDES, devem participar desse esforço de ampliar as linhas de crédito e facilitar as condições dos financiamentos entendo a seriedade do momento e o papel que lhes cabem no processo de desenvolvimento da economia brasileira..

Neste momento devemos ter em mente que só com uma ação coordenada e com a participação de toda a sociedade, conseguiremos atravessar esses momentos de enorme tormenta. Devemos ter um olhar mais acurado com os mais pobres porque eles sofrerão com mais intensidade a crise que se inicia. Esperamos que nossos governantes estejam à altura do tamanho da crise que se inicia e possam desempenhar com grandeza o papel que lhes foi delegado pelo povo brasileiro.

* Deputado Arnaldo Jardim é líder do Cidadania na Câmara dos Deputados


Julianna Sofia: Demora no auxílio emergencial de R$ 600 sangra Guedes

Ministro resistiu o quanto pôde a medidas de enfrentamento da Covid-19

A atonia da equipe econômica em destravar o auxílio emergencial de R$ 600 aos informais tornou-se objeto de reações vocalizadas por autoridades do Congresso, do STF e do TCU, por uma ala expressiva do mundo político e econômico e, nos bastidores, até por gente do governo.

Os dados do Datafolha desta sexta-feira (3) são reveladores de como também bateu na população a demora do Ministério da Economia em responder, entre outras situações, à deplorável condição que enfrentam 54 milhões de brasileiros —segundo cálculos oficiais. A avaliação da pasta na crise é reprovada por 20% dos ouvidos e considerada regular por 38%. Para 37%, a atuação é boa/ótima.

Paulo Guedes entrou em negação e resistiu o quanto pôde a medidas de enfrentamento do tsunami provocado pelo coronavírus. À Folha, em 15 de março, declarou que poucos dias antes fora surpreendido por um estudo do Banco Central indicando que a velocidade de contágio do vírus no Brasil seria maior do que a da Itália. Até então, não tinha um plano e previa que, se a pandemia fosse severa, ainda assim o PIB poderia crescer 1% no ano. Estamos oficialmente em 0,2% e ladeira abaixo.

Ontem, o ministro tentou de novo explicar a lentidão para liberar o benefício emergencial. Falou em blindagem jurídica e legislativa para a despesa, que será maior que todo o desembolso dos ministérios neste ano com gastos não obrigatórios. Escancarou divergências entre alas de sua equipe sobre a necessidade de mudança constitucional para garantir o pagamento. Destacou que o atraso de dias não é nada perante a logística gigantesca para levar o dinheiro às famílias.

No cipoal burocrático, falta ainda um decreto presidencial para operacionalizar o auxílio —fora alguma circular ou norma que alguém dirá ser preciso ter. As "manobras colossais", como Guedes chamou seu pacote econômico, nenhum país emergente executou "com tanta rapidez", segundo ele.

Não há do que se vangloriar.


Ascânio Seleme: Uma geração traumatizada

Minhas duas filhas mais novas nasceram em 1995 e 1998 e cresceram numa casa mais ou menos tranquila de classe média. Mas, desde que começaram a entender a vida, o mundo e o Brasil, se depararam com uma série de crises de diversas naturezas que deve moldar seus caráteres por toda a vida. Clara tinha três anos e Laura seis quando o maior atentado terrorista da História colocou no chão os dois prédios do World Trade Center, em Nova York, atingiu outros alvos nos Estados Unidos e mudou a História do planeta.

O que se seguiu foram anos de guerra transmitida ao vivo pela televisão. As meninas acompanharam, mesmo que a certa distância emocional, os bombardeios e invasão americana ao Afeganistão e ao Iraque. Mas logo começaram a ver as explosões e as fuzilarias que transformaram cidades em alvos de ataques sangrentos do terror. Abismadas como todo mundo, assistiram aos atentados em Londres e Paris e passaram a ter medo de viajar.

Ainda na primeira década dos anos 2000, um abalo sísmico na credibilidade da economia americana produziu a maior crise econômica global desde o “Crack da Bolsa” de 1929. Embora à época as duas não tenham entendido direito a extensão do terremoto, por serem muito jovens, com tempo e estudo passaram a internalizar também aquela mega crise e seus desdobramentos sobre todos os países e todos os setores da economia.

Enquanto o mundo se debatia com seus superproblemas, no Brasil as jovens viam se desenrolar sob os seus olhos um escândalo de corrupção que alcançava uma figura icônica da política nacional. O mensalão do primeiro governo Lula não permitiu que crescesse em muitos meninos daqueles dias a esperança numa alternativa de esquerda. Logo neles, que por natureza devem nascer contestadores. Porque, você sabe, as pessoas nascem revolucionárias e envelhecem conservadoras.

Logo em seguida, as duas garotas viram que o mensalão não foi apenas um desvio momentâneo. Desvendou-se então o maior escândalo de corrupção da História do país: o petrolão, que nasceu sob Lula e cresceu sob Dilma. Foi uma avalanche. O caso era tão sério que alcançou todas as esferas da política nacional. Foi para a cadeia todo tipo de gente. Um ex-presidente, governadores, prefeitos, senadores, deputados e empresários. Elas ouviram e gritaram “Fora, Cunha!”, e viram o ex-presidente da Câmara ser cassado e depois preso. E mais adiante viram um impeachment de presidente.

Não bastasse isso, acompanharam a um outro grande escândalo no governo Temer e, em seguida, viram a eleição de um presidente de extrema direita, reconhecido no mundo inteiro como racista, homofóbico e misógino. Sob Bolsonaro, elas e todos os jovens de 20 e poucos anos assistem apavorados ao festival diário das bobagens produzidas pelo presidente. Muitas delas apenas tolas, outras graves, e algumas gravíssimas.

Depois de ultrapassar todas essas etapas, elas se deparam agora com a crise mundial do coronavírus. Se o pai delas, com mais de 60 anos, está angustiado e inseguro, imaginem o que se passa no coração dessas duas jovens de 21 e 25 anos. O fato é que elas estão metidas num turbilhão que parece não ter fim. E que vem sempre aumentando em escala e densidade. Jovens como Laura e Clara passaram a vida inteira convivendo com ansiedade, às vezes mais, outras um pouco menos.

A questão a ser respondida agora é como essa geração vai superar a sucessão de eventos iniciada com o ataque às Torres Gêmeas. A carga traumática que a garotada carrega é pesada demais. Com alguns poucos intervalos de paz e tranquilidade, a vida emocional desta turma não tem sido fácil. Há quem diga que jovens criados na adversidade são mais fortes. Pode ser. Mas, no caso dessa geração, parece ter havido um certo exagero.

Crise de ciúmes
Mandetta tem mesmo muita paciência para aturar Bolsonaro. Não bastassem as declarações absurdas contra o isolamento social, ele passou a atacar o seu ministro em entrevistas e em lives para rede social. Mandetta já sabia que o seu chefe é um homem inseguro e meio abobado, mas descobriu agora os ciúmes doentios que o capitão tem pelo sucesso alheio. Por ser raso intelectualmente, Bolsonaro não aceita quem pensa direito e se expressa bem. Diante disso, o presidente produziu a frase mais ridícula desde o início da crise sanitária: “Mandetta quer fazer valer a vontade dele...”. Esqueceu que a vontade do ministro da Saúde é a vontade da OMS, dos médicos, dos sanitaristas e dos infectologistas. É a vontade da ciência. Por isso, Mandetta tem o apoio de 76% dos brasileiros, contra 33% de Bolsonaro, segundo a pesquisa Datafolha divulgada ontem.

Os fanáticos
Eles formam um grupo cada vez menor, mas muito barulhento, até mesmo pela sua natureza. São os fanáticos, aqueles que não conseguem enxergar, não entendem o que ouvem e repetem de maneira mecânica, agressiva e extravagante as barbaridades que seus líderes transmitem pelas redes sociais. O caso mais visível de fanático idiotizado foi visto esta semana no Alvorada. Trata-se da mulher que se disse professora e que pediu a Bolsonaro uma intervenção militar para permitir que as pessoas voltassem a trabalhar. Pior que isso, muito pior, foi o presidente distribuir a fala da mulher em rede social. Tudo bem ela não entender como funciona a República e desconhecer os ritos da democracia, ela é uma fanática. Mas o presidente cometeu um crime ao referendar sua fala.

O comandante diz não
Tentando trazer pelo menos um governador para o seu lado na campanha contra o isolamento, Bolsonaro tem pressionado o governador de Santa Catarina, o comandante Moisés, ex-bombeiro. Já mandou recado pelos filhos, por lideranças políticas locais e por empresários do estado, como o dono da Havan. Ele mesmo ligou exortando Moisés a suspender o isolamento usando o velho argumento “você se elegeu graças a mim”. Mas não colou. Até aqui o comandante tem dito não.

O pior quadro
Não há quadro na Praça dos Três Poderes ou na Esplanada dos Ministérios mais fraco do que Jair Bolsonaro. Todos os problemas que são levados ao seu gabinete saem de lá maiores do que entraram. O presidente raramente acerta, e quando o faz, cuida para, em menos de 24 horas, destruir o acerto. Nem Weintraub, Damares ou Araújo se comparam a ele. São gênios diante de sua excelência.

Façam o que eu digo
Apenas Jair Bolsonaro deseduca mais do que o formato das entrevistas organizadas no Palácio do Planalto para divulgar os dados do combate ao coronavírus. Os ministros que falam estão sempre colados uns nos outros, não há nunca o distanciamento de dois metros que a OMS recomenda. Não bastasse a proximidade social, uns cochicham com outros e se tocam desnecessariamente. E os garçons se debruçam pelas laterais dos ministros para trocar os copos de água gelada. Uma festa.

A China recolhe os seus
A embaixada da China em Brasília está recolhendo para dentro do prédio da chancelaria todos os funcionários chineses sediados na capital. Vão morar dentro das instalações oficiais até que os ânimos melhorem na cidade. O chineses estão sendo objeto de ofensas e agressões verbais nas ruas. Funcionários brasileiros da embaixada dizem que o rancor com a China deve-se aos ataques feitos por Eduardo Bolsonaro, o Bananinha.

Respirador artificial
Se a indústria não consegue dar conta da demanda, se a China ignora e não atende os pedidos do Brasil, por que não usar a criatividade? Um grupo de profissionais e professores de Medicina, Engenharia e Informática da Universidade Federal de Itajubá desmontou um velho respirador mecânico, fabricado no Brasil nos anos 1950, e copiou digitalmente todos os seus componentes. Agora, sua transcrição digital pode ser lida por impressoras 3D e reproduzidas em escala. Aplausos.

Claustrofobia global
Meu amigo Evaristo não gosta de elevador. Ele os evita sempre que pode e vai de escada quando o andar é mais baixo. Até o oitavo ele sobe de escada numa boa. Uma vez subiu a pé 22 andares para chegar a um escritório em um prédio velho, com elevador de porta sanfonada, no Centro. Evaristo tem claustrofobia. Esse sentimento é o que assalta o mundo inteiro nesses dias de coronavírus. Além de manter a maioria isolada em casa, a doença ataca as vias respiratórias do paciente e o deixa sem ar. O pavor do claustrofóbico, dono de um sintoma que causa medo mórbido de espaços fechados, não é tanto de ficar em casa, mas sim de perder o ar.


Monica de Bolle: A renda básica emergencial

Voucher, ou um “vale”, não é renda. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população

Na última segunda-feira foi aprovada por unanimidade no Congresso Nacional a Renda Básica Emergencial (RBE), um benefício de R$ 600 mensais a ser destinado a uma parte da população brasileira mais vulnerável, como os trabalhadores informais. Embora haja muito o que aprimorar, a RBE foi uma enorme conquista para o Brasil. Foi, também, um momento de protagonismo do Congresso, que tem tomado as rédeas da crise enquanto o governo, quando muito, dorme no ponto. Mas não vou tratar das andanças do presidente da República por Brasília, tampouco de suas conclamações ao vírus e à epidemia.

Apesar de a RBE ter sido uma conquista da sociedade junto ao Congresso, movendo o Estado a despeito da inércia do Executivo federal, não tardou para que o governo quisesse dela se apoderar. Ou melhor, quisesse se apoderar da medida para propaganda, porque o pagamento do benefício para quem já está passando fome o governo tratou mesmo foi de embromar. Nos lábios do ministro da Economia, Paulo Guedes, a RBE ganhou logo um nome inapropriado, insensível, de mau gosto, que beira o obsceno: “coronavoucher”. Parte da imprensa pôs-se a repeti-lo sem se dar conta de que um imenso equívoco havia sido cometido pelo ministro. Voucher, ou um “vale”, não é renda. O “vale” é um papel que dá ao detentor o direito de obter um desconto numa compra ou de trocá-lo por um bem ou serviço: vale-transporte, vale-alimentação. Renda é um fluxo de dinheiro para o recipiente, seja na forma de salários, de dividendos ou de transferências do governo. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população. A RBE é como o Bolsa Família, com a diferença de que o Bolsa Família exige contrapartidas dos beneficiários. Portanto, o ministro embrulhou conceitos econômicos, na melhor das hipóteses, para se fingir de pai da filha que não havia gerado.

Mas não ficou só nisso. Depois de ter tentado dar nome à filha que não era dele, o ministro disse ser muito difícil começar a pagar a RBE imediatamente. Inventou a necessidade de uma Emenda Constitucional para fazê-lo, o que, além de ser desnecessário, atrasaria o pagamento do benefício, colocando vidas em risco. Sim, vidas. Afinal, os beneficiários são pessoas que só comem aquilo que conseguem arrecadar de renda a cada dia. Pensem nos ambulantes, que, com a quarentena, não têm para quem vender. Pensem em todas as pessoas que têm de escolher entre comer ou arriscar ser contaminadas pela doença e, de quebra, transmiti-la a seus entes queridos. São essas pessoas que Guedes não quer abraçar.

Como fazer para pagar a RBE? O ministro deveria saber, pois não é difícil. Há duas maneiras. A primeira, mais fácil, seria o governo editar uma Medida Provisória (MP) para o pagamento do benefício, indicando como fonte de recursos o superávit financeiro da União — o superávit financeiro, proveniente de operações de câmbio e outras mais, é de dezenas de bilhões de reais, ou seja, muito mais do que o necessário para cobrir a RBE. Outra forma seria o governo emitir dívida.

Para isso, teria de abrir uma exceção ao cumprimento da regra de ouro, dispositivo constitucional que proíbe a emissão de dívida pública em determinadas circunstâncias. Abrir exceção para o cumprimento da regra de ouro não requer Emenda Constitucional alguma. Basta que o governo prepare uma MP indicando ao Congresso por que é necessário descumpri-la para determinada finalidade e que o Congresso aprove o projeto de lei autorizando o governo a fazê-lo. Dada a disposição do Congresso de ver a implementação da RBE, nada disso seria difícil e provavelmente poderia ser feito em menos de 24 horas. Contudo, ao invés de buscar soluções, Guedes busca empecilhos.

No calor desse momento de tamanha aflição, hashtags subiram imediatamente nas redes sociais pedindo o pagamento ou a saída do ministro. Até ministros do Supremo Tribunal Federal se pronunciaram sobre o descalabro.

A RBE será paga, de um jeito ou de outro. A RBE será aprimorada e ampliada, de um jeito ou de outro. A RBE haverá de tornar-se permanente, de um jeito ou de outro. Ela é a esperança para que, na saída dessa crise, tenhamos ao menos uma sociedade menos injusta. Da pandemia ainda nascerá um dos pilares da cidadania.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Ricardo Noblat: O plano de Bolsonaro para acabar com o confinamento social

Para salvar a Economia e a reeleição

Se tudo sair como deseja o presidente Jair Bolsonaro e admitiu, ontem à noite, em entrevista à Rádio Jovem Pan, será assim: neste domingo, seus devotos promoverão uma jornada nacional de jejum e de orações sob o estímulo e a benção de pastores evangélicos.

E ele, a partir da segunda-feira, poderá a qualquer momento assinar uma Medida Provisória para acabar na prática com o confinamento social decretado por governadores e prefeitos e apoiado por seus principais ministros. Esse é seu plano. Simples.

É fato que o sistema federalista adotado no Brasil concede autonomia administrativa para estados e municípios em áreas como saúde, educação e comércio, o que restringiria a possibilidade de interferência de Bolsonaro. Só que…

Só que Estados e municípios não podem contrariar decreto presidencial que defina como atividades essenciais as que, a juízo de Bolsonaro, devam funcionar. À Justiça, provocada mais tarde, caberá a última palavra. Nesse meio tempo…

Nesse meio tempo boa parte dos brasileiros se sentirá autorizada a voltar a circular, pois o presidente não mandou? O confinamento sofrerá duro abalo. E Bolsonaro terá alcançado seu objetivo. Mas por que, se dependesse dele, jamais teria havido confinamento?

O confinamento enfraquece a Economia, e do sucesso dela depende a reeleição de Bolsonaro em 2022. Não há o que fazer contra o coronavírus, disse Bolsonaro à Jovem Pan. Melhor que o vírus contamine logo cerca de 70% da população, como se estima.

Morrerá muita gente? Morrerá. Morrerão principalmente idosos que já sofrem de outras doenças e estão condenados a morrer mais dia menos dia. Coisas da vida. Tudo passa, passará. Sem eles, a pressão sobre a Previdência será menor. E a Economia, salva.

O The New York Times, o mais importante jornal do mundo, contou que o presidente Donald Trump ouviu de banqueiros e de empresários que deveria permitir que o vírus seguisse seu curso natural, infectando e matando quem tivesse de morrer.

Por isso, até a última sexta-feira, Trump tratou a pandemia como se fosse uma “gripezinha”. Afinal convencido de que estava errado, pediu aos norte-americanos: “Fiquem em casa”. Pediu ajuda à China e à Rússia. E foi à luta. Está perdendo feio a parada.

Bolsonaro também está perdendo feio – no seu caso porque ficou isolado. Isolado dentro do governo, isolado dentro do Congresso, isolado dentro dos tribunais superiores e isolado nas ruas que ficaram vazias. Daí o desespero que não consegue disfarçar.

Quem, em público, ousa lhe dar razão? Apenas os devotos de raiz nas redes sociais e os pastores aflitos com a queda de arrecadação nas suas igrejas, fábricas de dinheiro. Banqueiros e empresários até que lhe dão razão, mas só às escondidas. E em voz baixa.

Bolsonaro virou um pária. Está para a política como o coronavírus está para a Saúde e a Economia – ambos são tóxicos e letais. Na próxima eleição, antes de digitar na urna o nome do seu candidato, lave bem as mãos com álcool gel para votar melhor.


Bruno Boghossian: Na crise, Bolsonaro só quer saber de fugir de responsabilidades

Presidente transfere culpa e joga para a plateia em busca de proteção

Jair Bolsonaro só pensa no próprio poder. O presidente ameaçou derrubar com uma canetada as medidas de isolamento para conter o avanço do coronavírus. Apesar de fingir coragem, ele sugere que não quer ser responsabilizado pela tragédia que essa ordem pode causar.

"O que os governadores mais querem é que eu tome uma decisão para trazer o problema para o meu colo. Dali para a frente, qualquer morte que acontecer, começar a me culpar", disse nesta quinta (2). "Essa que é a minha preocupação no momento."

Bolsonaro, como se vê, continua tratando com desdém os alertas das autoridades de saúde sobre os riscos de se lançar milhões de pessoas de volta ao trabalho. A única estratégia do presidente durante a crise é abrir mão de suas responsabilidades.

Ao alimentar a campanha pela retomada das atividades, Bolsonaro tentou transferir novamente aos governadores o ônus pela freada brusca da economia. Atacou o paulista João Doria e afirmou que líderes estaduais que decretaram restrições contra a Covid-19 não devem pedir ajuda para pagar suas contas.

"Quer agora vir para cima de mim? Não, ele tem que se responsabilizar pelo que ele fez", disse a um grupo de pastores, na portaria do Palácio da Alvorada. "Não vai cair no meu colo essa responsabilidade."

Em sua rota de fuga, o presidente joga para a plateia. Pela manhã, ele pediu que seus seguidores compartilhassem um vídeo em que uma professora pede que militares reabram as lojas. Mais tarde, ele explicou a manipulação: "Você sabe que existe gente poderosa ali em Brasília que espera um tropeção meu. Eu estou esperando o povo pedir mais".

Para reduzir seu próprio desgaste político com a crise, o presidente tenta transformar suas bases mais fiéis em tropas de choque. Parte daí seu novo esforço de aproximação com grupos evangélicos. Além de advogar pela retomada de cultos religiosos, Bolsonaro agora propõe um dia de jejum em todo o país.

"Em nome de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido possível", completou."


Alon Feuerwerker: Não é porque o governo mandou

A economia não é o conjunto das “coisas”. É preciso acrescentar as pessoas. Não é a reunião apenas das máquinas, matérias-primas, mercadorias e do dinheiro, nas suas variadas formas. É a reunião disso e, mais importante, dos seres humanos que estabelecem relações materiais de produção e troca no mercado.

Impor uma contradição definitiva entre “a saúde” e “a economia” tem utilidade para fins propagandísticos, é útil para criar mistificações políticas, mas traz um problema: supõe que a segunda pode ser analisada abstraindo aspectos subjetivos e até objetivos da força de trabalho.

Não à toa as modernas abordagens econômicas levam cada vez mais em conta os vetores subjetivos, que pedem equações mais complexas.

Qual será então o melhor caminho para evitar que a retração econômica trazida aqui, como em todo lugar, pela chegada da pandemia da Covid-19 vire um “L”, sem retomada vigorosa visível? O ideal seria o “V”, mas até um “U” vai ser aceitável. É melhor dar prioridade ao combate da pandemia ou deixar ela cobrar maior custo em vidas em troca de menos queda na atividade?

Quem defende esta segunda visão poderá argumentar que se toda a população britânica tivesse passado a Segunda Guerra Mundial escondida em bunkers era certo que teriam tido grande dificuldade para prevalecer contra o inimigo ao final. E o outro lado poderá contrapor que se todos tivessem morrido, também. Onde estará o ponto ótimo de equilíbrio na Covid-19?

Parece variar em cada país.

É bom observar o que acontece em Wuhan, o epicentro da epidemia na China. Aprender com os erros e acertos alheios é sinal de inteligência. Ali, após hesitações iniciais, as autoridades impuseram medidas duríssimas de isolamento social para conter o avanço da doença. Mas não esperaram a completa eliminação da circulação do vírus para tentar voltar a alguma normalidade.

Se é que algum dia se poderá, lá como aqui, falar ainda em “normalidade”.

O mais importante? A economia só reagirá mesmo quando as pessoas se sentirem novamente algo confiantes para retomar o papel de produtores e consumidores. Na Itália, fábricas que tentaram voltar prematuramente enfrentaram greves. E adianta pouco reabrir o comércio e os shoppings se a confiança do consumidor continua no chão.

Ele simplesmente não comparecerá, ou não comprará.

Fica uma dica: as pessoas não estão em casa principalmente porque algum governo mandou. Estão em casa porque têm medo.

A volta da confiança será função direta de acreditar que as autoridades reduziram bem os riscos à saúde, e são capazes de dar conta das tarefas que restam. Por isso, o maior entrave à retomada da nossa economia são a irracionalidade e a continuidade da guerra política. Que já deu o que tinha de dar.

Só observar: os danos à saúde e à economia provocados pela Covid-19 em cada país são função direta da desorganização política interna.

Deveria ser um alerta para nós.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


William Waack: Um outro país

Bolsonaro precipitou mudanças institucionais, algumas contra ele

Entre os vários medos à disposição parece claro que as pessoas permaneceram apegadas ao medo de morrer, o mais natural de todos. A grotesca forçada de barra dos “gênios” de comunicação de Bolsonaro – a falsa dicotomia entre empregos ou saúde – voltou-se contra o próprio presidente. Em geral, ficou demonstrado que se confia mais no que dizem médicos e técnicos em saúde pública do que nas palavras do presidente.

O resultado, bastante previsível dada a correlação das forças políticas, foi mais um encurtamento da caneta presidencial. A diminuição do seus poderes vem de uma combinação de restrições institucionais que dificilmente desaparecerão quando a urgência da questão de saúde pública amainar, e ninguém sabe quando. Tem como mais recente exemplo a articulação para a aprovação do tal “orçamento de guerra”, que não é outra coisa senão a definição de responsabilidades políticas e administrativas na utilização de recursos para enfrentar uma situação de calamidade nacional.

Para ter acesso aos fundos com os quais pretende combater a inevitável recessão, o próprio ministro Paulo Guedes assinalou que precisa de uma PEC (sim, tudo no Brasil passa por mudar algum artigo da Constituição e, portanto, pelo Congresso) que regula rigidamente como o Executivo atuará, dando amplas prerrogativas ao Legislativo e ao Judiciário. Na prática, o chefe do Executivo não faz nada na gestão de crise sem consultar previamente os outros Poderes.

A chave para entender o que se convencionou chamar de “isolamento” do presidente está em dois fatos concomitantes, um de fundo e o outro bem escancarado. O de fundo é o Legislativo atuando diretamente em entendimento com governadores e prefeitos, além de uma série de entidades representando setores da economia, ao largo do Planalto. O Judiciário entrou nessa articulação desde o primeiro momento, há mais de 15 dias. O presidente ficou de lado.

O segundo foi o escancarado comportamento institucional do “dream team” de ministros (Sérgio Moro, Paulo Guedes e Henrique Mandetta), além dos militares. Prevaleceu entre eles a reiteração de que obedeceriam à norma técnica – para todos os efeitos práticos, deixaram Bolsonaro falando sozinho contra o isolamento social. Chegava a ser constrangedor assistir ao contorcionismo verbal com o qual esses ministros tratavam de “traduzir” bobagens ditas ou feitas pelo presidente ao mesmo tempo em que se esforçavam para não apoiá-las.

Os tais famosos “bastidores” (pedacinhos de informação a respeito dos quais nunca se sabe exatamente o que é fato e o que é fofoca) em Brasília indicam que Bolsonaro esteve, sim, à beira de provocar grave crise ao considerar decretos que suspenderiam medidas restritivas tomadas por governadores, preso à paranoica noção de que é alvo de conspirações e superestimando a claque de apoiadores que chama de “povo”. Ao mesmo tempo em que deflagrava campanha política usando também recursos públicos.

Tomou uma freada brutal em público e em privado. O STF o proibiu de seguir adiante com a campanha “O Brasil não pode parar”. Em conversas reservadas, mais de um ministro garantiu que o Judiciário derrubaria qualquer decreto de Bolsonaro que fosse contrário ao isolamento social. E, em privado, ele ouviu o seguinte recado de uma importante autoridade da qual dependem várias investigações de interesse direto também do presidente: “Não vou ser coautor de um genocídio”.

O fenômeno da contestação da autoridade presidencial, como aconteceu agora, pertence à categoria “gênio que não volta para dentro da garrafa”. Ou seja, trata-se de consequências políticas duradouras.

Mas há outros gênios que não voltarão para a garrafa: em prazo recorde houve flexibilização de leis trabalhistas, suspensão do teto de gastos, alterações em regimes de contratação, desengessamento do Orçamento. Teremos um outro país.


Cristiano Romero: E assim caminha a humanidade

Civilização vive pendor para o totalitarismo que parecia adormecido

Cientistas nunca chegaram a um acordo para definir se um vírus é ou não um ser vivo. Eles carregam material genético, mas não têm célula como as bactérias, por isso, dependem das células de um ser vivo para se reproduzir e, dessa forma, viver. Viver? Mas, como, se não são seres vivos? Parasitas obrigatórios, sua missão é odiosa. Eles infiltram seu código genético em células dos hospedeiros, mudam a programação original, fazendo com que as células produzam vírus até explodir. O plano é diabólico: a explosão não é um ato suicida; ela libera milhões, bilhões de partículas, prontas para infectar outros corpos.

Volta e meia brotam da natureza vírus com grande capacidade de assombrar a humanidade. Nossos avós fizeram relatos terríveis sobre a gripe “espanhola” teria infectado, entre 1918 e 1920, um quarto da população mundial na época (2 bilhões) e matado pelo menos 17 milhões de pessoas - os números da tragédia são muito díspares; há dados sustentando a morte de 50 milhões e até de 100 milhões de pessoas.

Os vírus são específicos para cada hospedeiro. O novo coronavírus covid-19 apareceu para infectar seres humanos. Chama-se covid-19 porque foi descoberto pelos chineses em 2019, aliás, no derradeiro dia do ano. Isso é assustador porque, em menos de três meses, o novo coronavírus chegou aos quatro cantos do planeta, a todos os Estados de três (China, Estados Unidos e Brasil) dos cinco maiores países.

Cientistas sustentam que os vírus, principalmente os mais letais, aparecem porque estamos destruindo a natureza e libertando partículas infecciosas que costumam hospedar-se em animais, fungos e bactérias. Por esse raciocínio, o homem tem sido vítima do progresso sem medida, que se traduz na destruição do meio ambiente em que vivemos.

Debates sobre temas que dependem de conhecimento científico devem evitar o “achismo” tolo de alguns e a irresponsabilidade de outros, que, diante de tragédia sem paralelo na história recente da raça humana (ou desde sempre), estão fazendo cálculo político pensando nas eleições agendada para daqui a três anos. Seria o equivalente ao capitão do Titanic, crente na hipótese de seu navio não afundar, apenas adernar, pedir aos passageiros, contra a opinião de toda a tripulação, para ficarem na embarcação porque o casco atingido pelo iceberg seria consertado por bravos marinheiros antes do amanhecer.

Esse mesmo debate, ainda que instruído, deve tomar cuidado redobrado para não ser manipulado por moralismos de qualquer espécie. Muitos surtos e epidemias de vírus não se tornam pandemias, como a do coronavírus covid-19. Atingem grupos expostos ao vírus em alguns locais do planeta. O HIV, o vírus da AIDS, suscitou debate temerário e descabido sobre a opção sexual. E a doença foi apontada pateticamente como um recado de Deus contra o sexo livre da década anterior (1970).

A humanidade vive, talvez, seu Grande Teste. O covid-19 emergiu num momento particularmente difícil. Ao mesmo tempo em que, nos últimos 30 anos, o mundo ficou pequeno graças ao desenvolvimento acelerado da tecnologia da informação, conectando bilhões de viventes em tempo real e relativizando fronteiras histórico-culturais, a civilização vive pendor para o totalitarismo que se julgava adormecido (inexistente, nunca).

Justamente quando materializamos o acesso amplo dos cidadãos à informação, a liberdade, característica que nos define como humanos, corre risco. E o epicentro desse tenebroso movimento está nas nações ricas, onde figuram as democracias mais antigas e consolidadas. Diz-se que a História é pendular e que, no seu caminhar, uma nova onda se opõe obrigatoriamente à anterior e assim caminha a humanidade. Ora, o covid-19 não tem nada com isso. Vivemos uma fragmentação política sem precedentes desde o pós-Guerra.

Na França, o partido que conteve o avanço da extrema-direita fora criado há apenas um ano da eleição. Nos EUA, um bilionário outsider, novato na política, xenófobo, só chegou à presidência porque venceu a eleição em estados que votam tradicionalmente em candidatos democratas. Na Alemanha, nunca desde a ruína do nazismo os extremistas da direita tiveram tantos votos quanto na última eleição.

Na Inglaterra, um referendo tirou o país da União Europeia, enfraquecendo-o econômica e politicamente, confirmou a decisão e reelegeu o Partido Conservador, levando seu líder, Boris Johnson, ao posto de Primeiro-Ministro. Johnson é abertamente racista e islamofóbico.

Aparentemente, a revolução tecnológica foi crucial para fragmentar a política. Por quê? Porque desestabilizou o financiamento da mídia tradicional, afetando a produção e a distribuição de notícias, provocando o fechamento em massa de jornais em todo o planeta. Do lado da liberdade de expressão, a democracia perdeu curadoria.

Nota do redator: o capitão, registre-se, não tem o apoio da tripulação, mas ainda goza de grande prestígio junto aos passageiros mais afortunados. Estes estão preocupados apenas com o prejuízo que aquele acidente já estava causando a seus bolos, afinal, investiram pesadamente no projeto ambicioso do capitão. Além disso, já tinham reservados, em local estratégico do barco, botes para transportá-los, às suas famílias e às joias que levavam, com segurança à terra firme.

Negócios são negócios - não se sabe ainda com que grau de intensidade o Leviatã, o monstro que vem na cola do novo coronavírus, na hora oportuna, atingirá a nossa já enfraquecida economia; mas no caso do Titanic, lembrem-se, o navio afundou junto com as joias dos ricaços; o capitão, pelo menos, foi o último a abandonar o grande navio naufragado.

*Cristiano Romero é editor-executivo


Vera Magalhães: 31 de março/1º de abril

País tem pior dia da pandemia entre apologia ao arbítrio e o império da mentira

Este texto é escrito no aniversário do golpe militar de 1964, e será lido no Dia da Mentira. Essa mudança no calendário ocorre no momento em que vivemos o agravamento da pandemia do novo coronavírus submetidos, de um lado, à apologia do arbítrio e, de outro, ao império da mentira como política de Estado.

Eis por que o País passou o dia prendendo o fôlego já curto, imaginando se o pronunciamento de rádio e TV de Jair Bolsonaro seria para espalhar fake news sobre a pandemia e mandar as pessoas saírem às ruas ou para louvar a ditadura. Ou ambas as coisas.

Mas o que se viu e ouviu foi um presidente assustado recuar de todas as bravatas recentes e fazer apenas menção à ajuda das Forças Armadas no combate à pandemia, sem revisionismo histórico.

Bolsonaro pela primeira vez colocou a defesa da vida à frente da dos empregos. Procurou mostrar empatia sincera enquanto lia um teleprompter com expressão e olhos contraídos.

O suspense que antecedeu o pronunciamento era extensivo a ministros, que não sabiam qual seria o tom da fala. Não por acaso. O presidente começou o aniversário do golpe na toada do confronto e da mentira: reuniu sua claque de blogueiros e youtubers fanáticos para interromper e hostilizar os jornalistas na frente do Palácio da Alvorada. Desta vez, no entanto, a imprensa virou as costas e foi embora. Deixou o presidente nu: solitário e cercado de acólitos, o que tem sido a marca de seu governo em 2020.

A OMS também teve de parar tudo que está fazendo para desmentir a versão, depois remendada por Bolsonaro no pronunciamento, de que tinha reconhecido a necessidade de as pessoas trabalharem para “ganhar o pão”.

O recuo repentino de Bolsonaro mostra que ele está ciente de que vem minguando em todas as pesquisas realizadas, inclusive as medições de sua influência nas redes sociais.

Estudo diário feito pela consultora de imagem Olga Curado com base nas redes mostra que há “dois governos” na percepção da população: um “prudente”, simbolizado pelo ministro Luiz Mandetta (Saúde), e outro visto como “irresponsável" e “autoritário”, representado por Bolsonaro.

A incapacidade de lidar com essa diluição da própria imagem e a tendência a ouvir um grupo liderado pelos filhos para tomar decisões vinham ditando a aposta no confronto. “Não há estratégia. Ele age instintivamente, orientado por pessoas rasas, que pensam em consonância com ele. É tática de orelha de livro”, disse Olga Curado, que assessorou presidentes da República e candidatos à Presidência nos últimos 20 anos, à coluna.

O pronunciamento de ontem foi uma tentativa de inflexão nos vários “dias da mentira” e de se aproximar do governo de Mandetta e Paulo Guedes e se afastar dos conselhos dos três filhos, sobretudo de Carlos, o czar da comunicação, e Eduardo, o tradutor que não sabe inglês e cunhou o apelido definitivo do clã: “Família Buraco”.

Bolsonaro reconheceu que não há remédio de eficácia comprovada contra a covid-19, disse que o vírus é uma “realidade” (e não “gripezinha”) e lamentou a perda de vidas, sem o “paciência, acontece” que despejou em entrevista na última sexta.

O barulho ensurdecedor das panelas nas janelas do Brasil durante a fala, no entanto, mostra que a confiança numa mudança sincera de propósito vai depender de ações nos próximos dias.

A missão do governo é fazer a renda de R$ 600 aos mais necessitados, já aprovada no Congresso, chegar às pessoas, algo para que ainda não há data nem formato. É coordenar esforços com governadores e prefeitos e conduzir o País numa única direção para atravessar uma crise que não é possível determinar que duração terá, mas que não pode ser enfrentada com o autoritarismo dos idos de março nem narrativa de Primeiro de Abril.


Vinicius Torres Freire: Governo federal está lento diz Meirelles

Ideias vão na linha correta, mas falta levá-las à prática, diz ex-ministro e secretário paulista

Nos últimos dias, o governo de São Paulo tem ouvido clientes de bancos reclamarem de juros em alta e da redução da oferta de crédito —da dificuldade crescente de conseguir empréstimos a taxas e prazos suportáveis, enfim.

O governador do estado, João Doria, e seu secretário da Fazenda, Henrique Meirelles, conversaram com os bancos a respeito, segundo o próprio Meirelles, ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do Banco Central e ex-banqueiro.

O que os bancos disseram? Meirelles não se estende sobre o assunto. Em resumo, disseram um “não é bem assim”.

“Levamos a preocupação, as queixas sobre cortes de linha de crédito etc. Não temos os dados, claro. O Banco Central tem, em tempo real, pode saber o spread, a oferta de crédito. Mas deve haver uma contração de crédito com uma crise deste tamanho”, diz Meirelles.

Na sexta-feira passada, o governo federal anunciou que pretende criar uma linha de crédito de R$ 40 bilhões para pequenas e médias empresas, dos quais R$ 34 bilhões sairiam do Tesouro, da conta do governo federal (que vai fazer dívida para emprestar esse dinheiro, por meio de bancos comerciais, que entrariam com os outros R$ 6 bilhões). A taxa de juros seria de 3,75% ao ano, com carência de 6 meses e prazo de pagamento de 36 meses.

Meirelles diz que “a direção geral [dos planos federais] me parece correta, para ajudar informais, mais pobres, empresas. Mas não adianta ter ideias, é preciso implementação. O governo está lento”.

O pacote de crédito é suficiente? “Não deve ser suficiente, mas isso se deve avaliar mais adiante. Reitero: o problema agora é antes de mais nada de implementação, de regulação imediata das medidas, de fazer o dinheiro chegar aos bancos, às empresas. É uma questão de dias, de dois dias, não se pode esperar uma semana, muito tempo. Com o programa em andamento, vamos descobrir o que mais tem de ser feito”.

O tamanho das necessidades de crédito barato, bancado pelo Tesouro, depende também da duração das restrições decorrentes da epidemia, diz o secretário paulista.

“Como saber se é suficiente sem saber quanto isso vai durar, por exemplo? O que está claro é que precisamos ajudar as empresas a atravessar a crise, manter os empregos, e criar condições para a retomada. Se houver muito desemprego e um número muito grande de empresas em recuperação judicial [sob risco iminente de quebrar], a economia vai se recuperar muito lentamente. A crise se estende”, diz.

O que mais é possível fazer?

Meirelles repete que, primeiro, é preciso normatizar e implementar as ideias novas que têm sido levantadas para aumentar a oferta de crédito (linhas com dinheiro do Tesouro, compras de dívida privada pelo Banco Central etc.). Isso desafogaria um pouco as empresas e “faria pressão” sobre os bancos.

Segundo, talvez seja o caso de acionar os bancos federais (Banco do Brasil, Caixa). “O Brasil tem grandes bancos públicos. Outras economias importantes não têm. O governo pode recorrer a eles para aumentar a pressão competitiva, ofertando [mais] crédito. Como foi feito em 2008 [Meirelles era então presidente do BC, cargo que ocupou durante o governo Lula, de 2003-2010]”.

Mas os bancos públicos não vão correr os mesmos riscos que os bancos privados tentariam evitar, a grande inadimplência? Meirelles diz que há risco, mas que foram contornados na crise de 2008-2009 no Brasil, no que diz respeito à inadimplência.


Bruno Boghossian: Bolsonaro sentiu o baque

Quem dizia só lamentar a morte de milhares de brasileiros finge agora alguma preocupação

Jair Bolsonaro sentiu o baque. Por semanas, o presidente desprezou os alertas de autoridades internacionais sobre a gravidade do coronavírus. Agora, ele busca uma correção de rumo forçada, com direito a falsificação das avaliações técnicas desses mesmos personagens.

O presidente abandonou os diminutivos "resfriadinho" e "gripezinha" em seu pronunciamento desta terça (31). Depois de conduzir a crise com uma estratégia cruel e insensata, Bolsonaro percebeu que a catástrofe na saúde pública poderia esfarelar a popularidade de seu governo.

O homem que dizia apenas lamentar a morte de milhares de brasileiros resolveu fingir alguma preocupação com a saúde da população. Ensaiou um lance de empatia com os espectadores, afirmou já ter perdido entes queridos e emendou: "Sei o quanto isso é doloroso".

Bolsonaro agora tenta recuar a um ponto de equilíbrio entre sua obsessão pela preservação da economia e a intenção de salvar vidas --embora não dê a menor pista de qual é esse ponto. O jogo de manipulação presente em seu discurso, aliás, mostra que ele ainda prioriza o primeiro elemento desse binômio.

Em seu malabarismo, o presidente deturpou na TV as declarações do diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus. Depois que o dirigente afirmou que os países deveriam levar em conta as necessidades dos trabalhadores impactados pela crise, Bolsonaro inventou a versão de que a entidade defende a retomada imediata da atividade econômica.

O presidente, porém, sonegou o trecho em que Tedros reforça a importância do isolamento social e diz que os governos precisam proteger a população mais vulnerável. Apesar do ajuste no tom, ele continua evitando um encontro com a realidade.

Bolsonaro nunca respeitou a organização, já que seus especialistas contradizem a estratégia inconsequente de lançar milhões de pessoas às ruas no meio de uma pandemia. Contrariado, o presidente quer asfixiar a verdade e torturar os fatos para que eles fiquem a seu favor.