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Marco Aurélio Nogueira: Sobre homens e monstros
O personagem que governa o País encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, confusão.
Ninguém pode dizer que está surpreso. Em 2018 elegeu-se um presidente com um prontuário bem fornido. Como indisciplinado, arruaceiro, com dificuldades para cumprir ordens ou bater continência. Foi expulso do Exército por insubordinação. Enquanto na ativa, quis jogar bombas em quartéis e se preocupou em agitar a tropa. Contra o que? Contra tudo, em nome de ideias vagas e de simpatia explícita pela violência, pela tortura e pela ditadura.
Elegeu-se assim uma pessoa que ao longo da vida se mostrou despreparado para as batalhas mais simples. Um personagem tosco, sem qualquer refinamento intelectual, que durante 30 anos montou um bunker com os filhos e alguns fanáticos para tomar de assalto o Estado brasileiro. O quartel-general foi a Câmara dos Deputados, de onde a malha se expandiu, envolvendo políticos tradicionais, milicianos e uma chusma de desqualificados. Nenhum técnico, nenhum intelectual, mas muitos oportunistas, à espreita para descolar uma boquinha quando a hora chegasse.
2018 foi um ponto fora da curva. Há quem prefira analisá-lo como decorrência do impeachment de Dilma Rousseff, visto como um “golpe” que teria aberto a estrada para a extrema-direita. Não é uma visão majoritária, especialmente porque não leva na devida conta a decomposição política que vinha em marcha desde antes e a responsabilidade do PT na ausência de governo, que encorpou a ponto de provocar verdadeira metástase no sistema político, misturando-a com doses cavalares de corrupção e instrumentalização da máquina pública.
Naquele ano, o desencanto do eleitorado com o PT e a esquerda somou-se à incompetência dos políticos democráticos, que se deixaram consumir pela vaidade e pela arrogância, não foram capazes de articular um programa de ação e acabaram por entregar a Presidência de mão beijada para o personagem que estava ali, pronto para agitar, na hora certa, uma hora agônica, que simbolizava o fim de uma época política.
O que assistimos hoje é só um desdobramento desse quadro. O personagem continua solto, com o mal crescendo dentro dele. Piorou muito depois que chegou ao poder. Sentiu-se em condições de fazer tudo e mais um pouco. Contou com militares a seu lado, que aderiram a ele com a expectativa de conseguir controlá-lo. Organizou uma rede de robôs e influencers para espalhar suas mensagens, suas mentiras, seu veneno. Beneficiou-se da covardia de tantos políticos, da falta de clareza dos partidos, da reprodução na opinião pública de uma ideia de que a “política tradicional” era inútil, um desperdício para o País. Foi-se mantendo, ora esperneando, ora agitando os fanáticos, ora minando as instituições. De governo mesmo, não se teve notícia.
O personagem se isolou no seu novo bunker, o Palácio do Planalto. Foi perdendo a guerra que se prontificou a lutar. Manteve a pose de que estava vencendo com a ponta da caneta, demitindo e nomeando. Fazendo lives diárias com os seguidores amontoados na porta do Palácio. Agredindo e ofendendo os que ousavam discrepar ou fazer fluir a informação, como os jornalistas.
O monstro passou a dominar por completo o personagem. Encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, desencontro, horror, confusão. Adubou esse habitat e fez dele a rampa de lançamento para seguir atacando a população, os políticos, o STF.
Manteve a ressonância entre os fanáticos, como era de se esperar. Eles são como o rebanho que se deixa arrastar para lá e cá. Batem bumbos, fazem carreatas, agridem e ameaçam.
O personagem foi sendo levado pelos aplausos fáceis, tirando vantagem da lentidão das instituições, que não reagem com rapidez, jogando um partido contra outro, governadores contra prefeitos, povo contra povo.
Agora que o caldo está entornando, algumas perguntas ficam soltas no ar.
Como foi possível que um País como o nosso tenha chegado a esse ponto?
Onde estão as figuras “responsáveis” que integram o governo, que nada falam, nada fazem, a tudo assistem como se se tratasse de uma comédia bufa ou de um drama de horror? Continuarão escondidos atrás da “prudência”, da “minimização de danos”, enquanto o fogo se alastra na Esplanada e invade recônditos inesperados?
Onde estão os democratas ativos e responsáveis, permanecerão adormecidos, confusos, olhando para urnas, fazendo cálculos mesquinhos, bem nessa hora em que boa parte do destino nacional pode estar sendo definida? Onde estão os grandes da República, os chefes das instituições, os defensores das melhores tradições?
E os eleitores que sufragaram o personagem em 2018, continuarão a vê-lo como uma solução, como o “mal menor”, agora que o monstro tomou conta daquele corpo e daquela mente de modo irremediável?
Marcelo Calero: O Itamaraty prevalecerá
Cabe à diplomacia profissional a tarefa de limpar o rastro de imundice do gabinete do ódio
A crise internacional sem precedentes e as situações extremas que vivemos na luta contra a pandemia do novo coronavírus jogaram luz sobre profissões até então pouco valorizadas e mesmo desconhecidas na nossa sociedade. Este é o caso dos diplomatas, funcionários públicos do Serviço Exterior Brasileiro, cuja contribuição é essencial ao desenvolvimento do país, seja em tempos de paz, seja em tempos de guerra.
Nas últimas semanas, provocações desrespeitosas feitas por integrantes do governo federal e dirigidas a autoridades estrangeiras chocaram o brasileiro boa-praça, que prefere a amizade ao conflito, e nos lembraram que cultivar boas relações com todas as nações, dos Estados Unidos à China, é sempre o melhor caminho. Além de termos interesses recíprocos, sabemos que, cedo ou tarde, podemos precisar de ajuda de quem menos esperamos. O que muitos ignoram é que são justamente os diplomatas que atuam discretamente na construção e na manutenção do relacionamento com outros países. Organizados em um corpo técnico experiente e especializado, esses servidores diuturnamente informam, negociam e representam os interesses do Brasil mundo afora. Em linguagem clara: cabe à diplomacia profissional a tarefa de limpar o rastro de imundice deixado pelo gabinete do ódio no trato amador de nossas relações internacionais.
Temos igualmente acompanhado o aumento da atividade consular, que é a assistência dada aos brasileiros no exterior. Desde o momento em que países restringiram a circulação de pessoas para conter o coronavírus, centenas de diplomatas deram início a esforços incansáveis de repatriação de nacionais impedidos de retornar ao Brasil. De acordo com informações oficiais, 13.250 cidadãos foram repatriados até 16 de abril. No entanto, nosso desafio continua: mais de cinco mil brasileiros em 80 países permanecem na expectativa de reencontrar suas famílias.
Durante os quase 13 anos em que sirvo como diplomata, inspirei-me em profissionais que sempre tiveram compromisso inabalável com o Brasil, não importava o presidente que estivesse no poder. Mesmo que discordasse das ideias, seus nomes sempre remetiam à ética, à correição e à inteligência. Assim como ocorre nas Forças Armadas, esses diplomatas reforçam a ideia de que ocupamos uma carreira de Estado, fundada no respeito aos interesses permanentes do Brasil, portanto imune ao voluntarismo e aos caprichos dos governos de plantão.
Ao longo de décadas, nomes como Azeredo da Silveira, Araújo Castro, Saraiva Guerreiro, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e Carlos Calero deram ao Itamaraty um sólido legado. Hoje, atravessamos momento de impensável desprestígio internacional e baixa moral entre os diplomatas – desde jovens secretários a experientes embaixadores. Antes um modelo a seguir, o Brasil agora é sinônimo de chacota em escala global. Enquanto o mundo vive a Indústria 4.0, chefias do Ministério das Relações Exteriores abraçam o obscurantismo, o terraplanismo, o negacionismo da ciência – inclusive da pandemia – e a perseguição àqueles que ousam pensar diferente.
Como todos os tempos sombrios da história, este também passará. Por esse motivo, ofereço mensagem de otimismo e esperança, bem como homenageio os colegas pelo Dia do Diplomata, celebrado em 20 de abril – referência ao nascimento do Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira. Nossa carreira é magnífica e nós somos gigantes. Sigamos firmes em nosso propósito de fazer o melhor para os brasileiros e pelo Brasil. O ciclo de insegurança, fraqueza institucional e tropeços ficará para trás. Caberá a nós a tarefa de reconstruir o Itamaraty e recolocar os brasileiros e o Brasil no lugar de destaque que merecem no cenário internacional. Viva o Itamaraty, viva o Serviço Exterior Brasileiro!
Marcelo Calero é deputado federal (Cidadania-RJ) e diplomata de carreira
Hernan Chaimovich: As carreatas da morte
O Brasil é, aparentemente, o único país do mundo onde carreatas que podem ser consideradas verdadeiras manifestações a favor da pandemia COVID-19 se realizam com certa frequência em várias cidades, sem que o Estado tome qualquer providência.
Poder-se-ia pensar que a única ação possível para os que induzem, organizam e participam dessas atividades, que, além de irem contra qualquer racionalidade, são um chamado à morte, seria a recomendação de tratamento ou de internação psiquiátrica. Além de serem medidas de difícil implementação, existem ações bem mais concretas, legítimas e legais, que, por serem de implementação bem mais realista, devem ser praticadas com urgência, sob o risco de a loucura imperar em nosso país.
Para começar, transcrevo aqui um tweet de um médico que eu, por não estar autorizado, não posso identificar, mas com o qual me identifico “Eu trabalho em dois dos hospitais pelos quais passou a carreata da morte em São Paulo hoje. Saí de um deles as 7h a caminho de outro plantão. Na frente da gente, nas UTI´s gente lutando para não morrer de COVID. Do lado de fora “gente” querendo ver mais gente morrer. É desesperador”. Simultaneamente, compartilho uma notícia recente: “Presidente foi em comitiva ao Setor Militar Urbano, e participa de ato contra a quarentena e pró-intervenção militar em frente ao Quartel Geral do Exército, em Brasília” (@reporterenato).
Perante esta situação, nada mais eficiente do que sugerir algumas ações que dizem respeito às pessoas e às Instituições.
Começo pelo indutor mor, Jair Messias Bolsonaro. Um dos pedidos de afastamento do Presidente da República foi encaminhado à Procuradoria Geral da República pelo Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, onde cita diversas condutas de Bolsonaro que colocam em risco o país em relação à epidemia de COVID-19. Esse pedido, se a PGR aceitar, segue para o STF, que, se aceitar, pede autorização à Câmara para dar andamento. Como se pode perceber, esse procedimento é lento, e, no meio da pandemia, se requer ação rápida e processo pode não afetar tão cedo as carreatas da morte.
Outras ações que podem ser tomadas contra organizadores e participantes das carreatas estão em Leis e Decretos. O que chamo de “caravanas pró-pandemia” acontecem em cidades onde decretos estaduais e municipais impõem distanciamento social e uso de máscaras protetoras em público. Assim, burlar os Decretos estaduais de quarentena e de isolamento social deveria resultar em ação policial direta, pois o direito de ir e vir não colide com determinações legais que, por causa de uma emergência sanitária, limitam esses direitos.
Estas carreatas, com seus carros de som, fazem questão de se deter frente a hospitais e clínicas, afrontando as leis de Contravenções Penais além de diversas outras leis e decretos estaduais e municipais. A produção de sons acima de 50 dB no entorno de hospitais é passível de pena de reclusão. É evidente, pois, que existem condições onde o Estado está legalmente obrigado a coibir com força policial carreatas como a caravana a favor da pandemia.
Ora, se o Estado permanece inerte e as carreatas continuam, é dever dos indivíduos e das associações clamar contra o Estado na justiça. Desde os níveis mais básicos até o foro maior, o Supremo Tribunal Federal, se instâncias anteriores não forem efetivas, é imperioso recorrer contra um Estado que permite caravanas da morte. Por último, se nenhuma das instâncias nacionais aceitar que estas manifestações soturnas deveriam ser banidas, restam os foros internacionais que protegem os direitos humanos. Afinal de contas, dentro do rol dos diretos humanos, a vida é o direito mais fundamental.
Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP
O Estado de S. Paulo: Discurso de Bolsonaro 'incentiva desobediência' e é 'escalada antidemocrática', dizem políticos
Parlamentares, presidentes de partidos e governadores criticaram discurso feito pelo presidente da República em ato que pedia fechamento do Congresso e intervenção militar
Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
Lideranças políticas criticaram, neste domingo, 19, o discurso do presidente Jair Bolsonaro em uma manifestação que pedia o fechamento do Congresso e intervenção militar em Brasília. Os políticos classificaram como "grave", "incentivo à desobediência" e "escalada antidemocrática" a atitude de Bolsonaro de ir a um protesto antidemocrático e de incentivar a aglomeração de pessoas.
Na tarde deste domingo, o presidente voltou a descumprir as medidas de isolamento social, provocou aglomeração em frente ao Quartel General do Exército, na capital federal, e se dirigiu aos manifestantes do alto de uma caminhonete. "Eu estou aqui porque acredito em vocês, vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada", disse, enquanto a multidão pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e as Forças Armadas nas ruas.
Líder do Podemos no Senado, o senador Álvaro Dias afirmou que a atitude de Bolsonaro é um "estímulo à desobediência". "Fica difícil aceitar essa transferência de responsabilidade para o Congresso do fracasso do governo federal", afirmou o senador. "A atitude de Bolsonaro hoje (com manifestantes) foi grave. É um estímulo à desobediência. O presidente age como se estivesse em um parque de diversões."
O ex-ministro Bruno Araújo, presidente do PSDB, afirmou que Bolsonaro coloca em risco a democracia e desmoraliza a Presidência: " O presidente jurou obedecer à Constituição brasileira. Ao apoiar abertamente um movimento golpista, ele coloca em risco a democracia e desmoraliza o cargo que ocupa. O povo e as instituições brasileiras não aceitarão".
Já Roberto Freire, presidente do Cidadania, classificou a atitude de Bolsonaro como uma "escalada antidemocrática". "O STF e o Congresso devem ficar em posição de alerta. O presidente está se aproveitando da pandemia para articular uma escalada anti-democrática. Além de um ato criminoso contra a saúde pública, foi um cirme de responsabilidade apoiar um ato que prega a volta do AI-5 e contra o Congresso e STF".
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que vem travando debates com Bolsonaro desde que determinou medidas de isolamento social para combater o coronavírus, assim como a maior parte dos governadores, chamou de "lamentável" a atuação do presidente neste domingo. "Lamentável que o presidente da República apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5. Repudio também os ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal. O Brasil precisa vencer a pandemia e deve preservar sua democracia."
O AI-5 foi o Ato Institucional mais duro instituído pela repressão militar nos anos de chumbo, em 13 de dezembro de 1968, ao revogar direitos fundamentais e delegar ao presidente da República o direito de cassar mandatos de parlamentares, intervir nos municípios e Estados. Também suspendeu quaisquer garantias constitucionais, como o direito a habeas corpus, e instalou a censura nos meios de comunicação. A partir da medida, a repressão do regime militar recrudesceu.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse neste domingo (19) que é “assustador” ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia.
Bolsonaro vem acumulando desgastes com o Congresso e governadores de todo o País por conta do enfrentamento do novo coronavírus. O presidente defende um relaxamento do distanciamento social por temer o impacto do isolamento sobre a economia brasileira. Na quinta-feira, 16,, o presidente atacou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao dizer que acha que a intenção do parlamentar é tirá-lo da Presidência.
Em reação às críticas, Maia disse que não entraria numa disputa pública com Bolsonaro: “O presidente não vai ter ataques (de minha parte). Ele joga pedras e o Parlamento vai jogar flores”, completou. Neste domingo, seu correligionário, o deputado Efraim Filho (PB), líder do DEM na Câmara, minimizou a participação do presidente da República na manifestação: "É hora de quebrar o retrovisor e pensar no amanhã em diante. Não é hora de trazer para o cenário mais uma crise política. A nação brasileira espera um gesto de paz e diálogo."
Na oposição, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que vai entrar com uma representação contra Bolsonaro na Procuradoria-Geral da República (PGR). "O senhor presidente da República atravessou o rubicão da tolerância democrática e ofendeu a Constituição em vários aspectos. Ele atentou contra as instituições do Estado democrático de direito e ofendeu inclusive o código penal", declarou.
O PSOL publicou uma nota de repúdio, assinada pelo seu presidente, Juliano Medeiros. "Essa provocação soma-se a outras tantas e comprova que ele não tem mais condições de seguir governando. É preciso que Bolsonaro deixe o poder imediatamente, pelos meios constitucionais disponíveis, para que o Brasil não siga sob as ameaças de um genocida", diz a nota.
Alberto Aggio: Isso é Bolsonaro
Com recessão à porta, presidente combate as lideranças que ameaçam seu caminho para 2022
É traço comum das análises sobre o Brasil atual buscar entender o que melhor caracterizaria Jair Bolsonaro e seu governo. Bolsonaro é efetivamente um personagem singular, minimamente letrado, um tanto tosco, que numa circunstância especialíssima chegou à Presidência da República. Não estaria errada essa descrição, mesmo reconhecendo sua insuficiência.
Dizer que ele representa os militares seria uma generalização absurda e um desprestígio da categoria. Os militares compõem uma camada intelectual de relevância incontestável para o Estado brasileiro. Como se sabe, Bolsonaro foi afastado do Exército por indisciplina. Tornou-se político profissional com votos da corporação militar por longos 28 anos. Como parlamentar e agora como presidente permanece um defensor das demandas dos militares – vide a reforma da Previdência. É certo que recheou o Ministério com muitos deles, o que não garantiu identidade absoluta entre o presidente e os militares convidados.
Não há novidade também na caracterização de Bolsonaro como representante da extrema direita. Não apenas ele, mas seus filhos – igualmente políticos profissionais, vale ressaltar – não escondem isso de ninguém, até mesmo as ligações internacionais com essa corrente política. Tal posição, distinta de outras correntes e personalidades desse campo, acabou por definir mais precisamente Bolsonaro como expressão de uma facção da direita que tem cultivado um comportamento fascistizante.
O presidente não abre mão de concentrar em si a narrativa e a estratégia de seu governo. Embora em ambas não haja um programa determinado, coerente e sistêmico, que ele faça questão de explicitar. Mas há uma ênfase digna de menção: a persona (o “mito”) sobrepõe-se ao governo e por isso a dimensão pessoal está sempre à frente da institucional, no limite do decoro. A pessoalização existe, porém, sem nenhum afeto, nem o maneirismo típico da nossa tradição ibero-americana. A Bolsonaro não interessa o savoir-faire da política, as gentilezas com outros atores, mesmo com possíveis aliados.
Ele modula seu comportamento pelo que entende ser o jogo duro do poder. E para isso adota o método do confronto permanente, pondo sempre em relevo as discrepâncias ideológicas no lugar das soluções para os problemas da Nação. A confrontação é essencial para sua estratégia de manter o apoio de parcela significativa do eleitorado, rumo à reeleição de 2022.
Tudo isso lhe garantiu a iniciativa política até aqui. Mas 2020 começou mal para ele e para todos nós. A divulgação do “pibinho” (1,1%) de 2019, a disparada do dólar, a fuga de investimentos e, por fim, o ingresso do Brasil na pandemia do covid-19 alteraram o cenário. A pandemia jogou Bolsonaro nas cordas, fazendo-o perder a iniciativa política. Em poucos dias deu mostras de faltar-lhe o chão e de que sua estratégia maior poderia estar comprometida.
Desde então as ações do presidente visam à recuperação da iniciativa perdida. Com parte da sua equipe contaminada pelo vírus, Bolsonaro lançou-se numa escalada desesperada: não hesitou em cumprimentar os poucos manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em seguida, com declarações estapafúrdias, atacou os governadores que determinaram o isolamento social para conter o avanço da epidemia. Essa atitude produziu uma fratura na estrutura federativa do País, criando embate institucional, desorientação política, além de complicar o combate à pandemia.
Mesmo na defensiva, Bolsonaro tenta manter a opção por uma “guerra de movimento” definida desde a campanha e a posse, cujo objetivo é destruir a democracia da Carta Constitucional de 1988 e implantar um regime iliberal no Brasil. Essa espécie de “revolução reacionária” levada em fogo brando (sem violência aguda, até o momento) não pode parar até as eleições de 2022. É nela que Bolsonaro imagina consolidar sua legitimidade e impor ao País uma “nova hegemonia”, não mais com os valores e ideias da “esquerda”. Para ele 2022 é o turning point.
Mas até lá haverá muita turbulência. O certo é que, para confrontar o frágil reformismo liberal-democrático que marcou a trajetória do País desde o fim da ditadura, Bolsonaro não cederá à “guerra de posições”. Em sua avaliação, esse é um ambiente hostil. No limite, poderia fazê-lo, mas imagina que estaria compactuando com um modelo que, segundo ele, marcou os governos dos presidentes que o antecederam, com custos e problemas que não saberia gerenciar.
Diante da pandemia, Bolsonaro age com mão pesada: escanteia governadores e prefeitos, desafia orientações epidemiológicas, desestrutura a federação e tensiona ao limite a relação com o Congresso. Mas não ganha nenhuma posição. Busca resgatar sua “guerra de movimento” e colocar nas ruas os que o apoiam incondicionalmente, pouco se importando em ver o País à beira da conflagração.
Com a recessão às portas, o que pode comprometer sua reeleição, Bolsonaro visa a combater as lideranças que ameaçam seu caminho rumo a 2022. Isso é Bolsonaro.
*Historiador, é professor titular da Unesp
Alon Feuerwerker: A inércia opera a favor de quem?
O presidente da República vive uma situação contraditória. Nunca o apoio a ele foi tão sólido na sua base fiel. Todas as pesquisas mostram entre 25% e 35% do eleitorado acompanhando-o mesmo nas polêmicas em que está sozinho contra o resto da política e a opinião pública. Mas a faca tem dois gumes, e nunca como nesta crise da Covid-19 Jair Bolsonaro esteve tão próximo do isolamento. Na sociedade, nas instituições e mesmo dentro do próprio governo.
As falas e ações de Bolsonaro deixam claro que os movimentos dele com acenos à conciliação são apenas manobras táticas para ganhar tempo e reagrupar forças com o objetivo de retomar a ofensiva. Ele joga com a atitude dos que confiam plenamente na vitória final, ou dependem excessivamente dela para sobreviver. E também por isso não têm maior interesse num acordo de paz. Ou mesmo num armistício mais duradouro, que possibilite a estabilização do front.
Em política, é sempre importante levar em conta a inércia. Responder à pergunta “se não acontecer nada, acontece o quê?”. É a outra forma de perguntar a favor de quem joga o tempo. E a análise desse fator deve ser sempre pontual, pois o vento pode mudar de sentido de uma hora para outra. Então cabe perguntar: se persistir à esquerda e ao dito centro a rejeição a enveredar pelo caminho do confronto final contra o presidente, qual será o desfecho?
Para recuperar a expressão popularizada pelo técnico da Seleção na Copa de 1978 (faz tempo...), Cláudio Coutinho, Bolsonaro mostra jogar de olho no ponto futuro. Na crise provocada pelo SARS-CoV-2, apesar de ajustes táticos aqui e ali, parece confiar que a fortaleza dos adversários, particularmente os governos estaduais, vai cair diante da inevitabilidade de alguma hora as pessoas precisarem voltar ao trabalho para garantir a subsistência.
Não chega a ser uma aposta tão arriscada. O tema começa a ganhar espaço em todo o mundo mesmo sem o vírus da Covid-19 estar neutralizado. Até porque fica cada vez mais evidente que isso talvez demore. E bastante. Então trata-se de planejar a executar a volta à atividade mais dia menos dia, tomando as providências necessárias, ou possíveis, para reduzir a transmissão do patógeno quando as pessoas voltam de algum modo à vida social.
Um governo convencional teria assumido cedo a liderança do lockdown, e agora estaria liderando o planejamento da operação para sair dele. E saborearia os píncaros da popularidade. E a completa imobilização da oposição. É o que acontece, por exemplo, na Argentina. Onde está a diferença? Talvez ela esteja em Alberto Fernández ter um partido institucional hegemônico e vertebrado, enquanto Bolsonaro não tem nenhum.
Talvez essa diferença leve o presidente brasileiro a acreditar que se decidir enveredar pelo caminho da conciliação com o establishment acabará imobilizado, se não terminar derrubado. Na ausência de um partido institucional para chamar de seu, Bolsonaro precisa manter em movimento o partido bolsonarista extra-institucional, exatamente para bloquear o movimento de adversários políticos, especialmente dos que se apresentam como possíveis aliados.
Entrementes, disputa espaço nas manchetes com a contabilidade de mortes.
E fica a pergunta: “Se não acontecer nada, acontece o quê?”
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Raul Jungmann: Um esboço de cenário pós-crise
Ao que tudo indica, em 2020 teremos uma contração do PIB da ordem de 4%. Já o mercado do trabalho deve chegar aos 14 ou 15 milhões de desempregados. Como se prevê que a economia irá se comportar em forma de “V”, em 2021 e 2022 estima-se um crescimento de 4%, o que, na média do triênio 2020/2022, dará um crescimento acumulado próximo a 6%.
Logo, é previsível que a renda a renda real medida pela Pnad contínua decresça, em 5% este ano. No conjunto, o cenário aponta para um quadriênio de relativa estagnação nos âmbitos econômico e social.
Na política, tendo o Presidente da República aberto mão do presidencialismo de coalizão e da coordenação e/ou alinhamento entre o Executivo e o Legislativo, o Congresso tende a distanciar-se da agenda governamental, intensificar seu movimento rumo a uma menor dependência do Planalto e a redução do apoio às reformas.
Isso, sobretudo após a condução da crise do coronavírus, mas também pela mudança do comando da Câmara e do Senado, cujos futuros presidentes dificilmente terão a sintonia e liderança dos atuais incumbentes em relação às reformas, em especial na Câmara.
Além das mudanças na Câmara e no Senado, igualmente no Judiciário haverá troca de guarda, com o fim do mandato do atual presidente do STF, Antônio Dias Toffoli que, juntamente com os atuais presidentes do Legislativo, compõe uma tríade afinada nas questões democráticas e de contenção aos excessos do Executivo. Quanto a este, seus movimentos têm conduzido ao distanciamento da Câmara e Senado, idem cúpula do Judiciário, academia, cultura, imprensa e, ainda que de modo lento, porém contínuo, apoio popular.
Já os militares, motivo de indagação ou apreensão de alguns, mantêm-se dentro dos limites institucionais e aí permanecerão. Porém, mais à frente, diante de uma vitória das oposições, ainda que hoje remota, terão que lidar com a sua substantiva presença e possível desengajamento das funções de mando, em especial as palacianas.
Se os próximos meses e anos não apontam para uma redução expressiva da presente instabilidade e tampouco para o resgate da capacidade plena de coordenação e governança do Executivo, pode-se prever a conclusão do mandato presidencial dentro do prazo constitucional, idem uma crescente dificuldade para sua reeleição.
*Raul Jungmann é ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública
José Casado: O falso dilema de Bolsonaro
Presidente passa a flertar com o suicídio político
Morreu um brasileiro por hora nos últimos 20 dias de pandemia. É provável que o número de mortos no país aumente para 25 por hora na média dos próximos 180 dias. Em São Paulo, a previsão oficial é de 111 mil mortos até setembro. É o cenário governamental mais suave para os próximos seis meses.
O que faz o presidente? Jair Bolsonaro insuflou uma crise de confiança na sua capacidade de liderar o país na devastação. Talvez consciente da própria inconsciência, resolveu apostar no agravamento da situação.
Ele se esforça para submeter o ministro da Saúde à tortura da humilhação pública. Até agora, só conseguiu aumentar o respaldo a Luiz Mandetta nas pesquisas e o estresse na gerência do socorro à população.
Alguns veem fobia paranoica na fantasia de criar inimigos para afirmar o poder. Outros percebem em Bolsonaro apenas um político oportunista, à procura de dividendos na tragédia, interessado só na reeleição.
Podem ser as duas coisas, mas a insistência de Bolsonaro no falso dilema entre salvar vidas ou a economia, talvez seja ainda mais reveladora sobre o presidente-candidato.
Mostra que, na prática, ele opera com a lógica da busca pelo número “mágico” de vítimas da pandemia — o do total de mortos que imagina “aceitável” pela sociedade em troca de pontos de aumento do PIB.
Incapaz de conduzir políticas que evitem o colapso econômico sem aumentar o número de caixões, recorre à exaltação do seu poder legitimado nas urnas. Porém, a política é cruel, dizia Tancredo Neves: “Voto você teve. Você não tem, você teve”.
Quando, tacitamente, estimula ministros e a parentela a reverberar racismo contra a China, transforma a suposta paranoia em fator de risco ao país, porque os chineses são principais sócios estrangeiros na infraestrutura e compram um terço de tudo que o Brasil exporta. O sinais de prejuízos já são notáveis em redutos de Bolsonaro, dependentes das exportações, e que lhe deram mais de 70% dos votos locais em 2018.
Ao fomentar crises interna e externa em plena pandemia, Bolsonaro passa a flertar com o suicídio político.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 09:52:00
Cristovam Buarque: A voz do vírus
Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como enfrentar a nova peste: com o isolamento.
A insensatez está levando ao debate sobre a importância e não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito para viver e condições para buscar a felicidade.
O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.
O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social. Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores. “Nossos” governos.
O vírus está nos indicando que o obscurantismo do atual presidente tem características de genocídio. Mas lembra que nas gestões anteriores não fizemos o suficiente para impedir dezenas de milhares de mortos por malária, dengue e sarampo. O vírus está nos apontando que não cuidamos do analfabetismo porque não há um “letravírus” que contamine os que aprenderam a ler, fazendo-os analfabetos outra vez. E lembrando que sem educação não daremos emprego e renda aos que sobreviverem, despreparados profissionalmente. Para viver não basta respirar.
O vírus nos revela ainda que ele foi trazido do exterior por avião para os bairros ricos e nos pergunta se a epidemia seria enfrentada com o mesmo rigor se tivesse chegado de ônibus, direto para os bairros pobres. Nesse caso, talvez estivesse recebendo a pouca atenção dada ao aedes aegypti, que transmite a dengue, ou do anopheles, que transmite a malária. Ele especula que se o vírus da poliomielite não atingisse as pessoas indiscriminadamente, talvez não tivéssemos dado ao mundo o exemplo das “gotinhas” que erradicaram essa antiga epidemia.
O vírus anuncia que para salvar nossas vidas estamos em quarentena, sobrevivendo à síndrome da abstinência ao vício do consumismo nos shoppings e à falta de viagens. Ele nos ensina que podemos ver o mundo, estudar, trabalhar mesmo sem sair de casa. E que a saúde de cada um depende da saúde de todos, que a solidariedade com os outros é necessária para a sobrevivência de cada um, que a saúde de cada um não será plenamente segura se não cuidarmos da saúde pública.
O vírus está confirmando que além de levarmos a sério a ciência médica precisamos respeitar a ciência econômica e sobretudo a velha aritmética. Que neste momento devemos gastar o que for preciso para atender às necessidade dos doentes, de trabalhadores desempregados e se empresários falidos, mas que não devemos deixar a conta ser paga depois pelos pobres com a carestia da inflação, nem pelos jovens que pagarão o aumento da dívida pública. A solidariedade na doença precisa ocorrer na hora de pagar a conta
O vírus tem falado que além da quarentena, precisamos de uma revolução no nosso comportamento e nas nossas prioridades. E nos grita que é preciso mudar o velho padrão do progresso baseado na voracidade do consumo e na ganância do lucro. Mas ele sussurra o medo de que, passada a epidemia, voltaremos aos velhos costumes de antes: o desprezo ao saneamento, à educação de base e à saúde pública, e a preferência pela ilusão inflacionária, obrigando os pobres a pagarem a conta com a carestia.
Ricardo Noblat: Bolsonaro rompe o cordão sanitário montado para contê-lo
Tudo como dantes no quartel de Abrantes
Em versão light de fim de semana (do mais recente porque nem sempre é assim), o presidente Jair Bolsonaro repetiu sem levantar a voz tudo o que vinha dizendo até que os ministros militares que o vigiam de perto, mas que não conseguem domá-lo, riscaram uma linha que ele não deveria ultrapassar, mas que ultrapassou.
O presidente usou um encontro com devotos evangélicos nos fundos do Palácio do Planalto para voltar a atacar governadores, “mas não todos” como fez questão de sublinhar, a imprensa que não perde uma chance de malhá-lo e, indiretamente, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, sua mais nova obsessão.
Enquanto ouviu o que ele dizia, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, passou a mão na cabeça mais de uma vez como se pensasse que aquele não era o script combinado. Se não foi por isso, pode ter sido pelo vento que soprava na direção de suas costas despenteando sua rala cabeleira.
A recaída de Bolsonaro desatou uma série de manifestações dos que rezam por sua cartilha ou fazem sua cabeça. Abraham Weintraub, ministro da (des)Educação, entrevistado ao vivo no Facebook pelo deputado Eduardo Bolsonaro, retomou os ataques da ala ideológica do governo à China. Disparou ao seu modo tosco:
“Eles têm contato com um monte de bicho que não é pra comer. E comem. E têm muito contato com porco e frango. Nos próximos 10 anos virá outro vírus desses da China? Probabilidade é alta”.
O autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho valeu-se das redes sociais para novamente a bater sem piedade no general Hamilton Mourão: “Lembro-me de haver promovido, na modesta medida das minhas possibilidades, a escolha do general Mourão para vice-presidente. Mais uma cagada numa vida já tão repleta delas”.
Não ficou só nisso. Sobrou ainda para Mandetta, os militares e até Bolsonaro:
“O Punhetta é o exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros “critérios técnicos”, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica. O que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica. Os militares de 1964 fizeram exatamente essa cagada”.
Para seu desgosto recém-filiado ao PT e ao PSOL, uma vez que tornou público os números de sua carteira de identidade e CPF e os engraçadinhos logo disso se aproveitaram, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, atirou no governador do Maranhão e acertou no próprio pé. Disse:
“Flávio Dino, governador do Maranhão, creditou ao presidente Bolsonaro os 300 óbitos do Covid-21. Sempre acreditei, pelo passado histórico, que comunistas são seres alienados, sonsos, insensíveis e insensatos. Atitudes como essa confirmam esse perfil”.
Após cerca de duas horas no ar, tempo necessário para ser copiado pelos interessados, o comentário foi apagado. Dino (PC do B) não creditou morte alguma a Bolsonaro. E o Covid em questão é o 19, não o 21. Salvo se o general, responsável pelo setor de inteligência do governo, saiba de algo que prefira esconder por enquanto.
Foi um fim de semana e tanto no âmbito e nas cercanias de um governo que parece não ter mais o que fazer a não ser chamar a atenção para a sua inutilidade e sabotar os esforços dos que enfrentam a mais grave pandemia dos últimos cem anos. Os próximos 10 dias se encarregarão de demonstrar isso.
Aviso aos navegantes da Era do Coronavírus
Arrependimento tardio não dará jeito
Quem sai de casa sem precisar é porque acredita no que o presidente Jair Bolsonaro diz – salvemos a Economia porque a morte de velhinhos “são coisas de vida”. Pode até não gostar de Bolsonaro, mas pensa como ele. Pode até mesmo não saber que ele manda as pessoas saírem de casa e circular, mas faz o que ele manda.
Mais adiante, se virem caminhões do Exército transportando caixões para cemitérios à falta de carros funerários suficientes, se não puderem se despedir de parentes e de amigos que morreram contaminados pelo vírus, não se surpreendam. Não digam que não foram avisados. Não joguem a culpa apenas em Bolsonaro.
Ninguém poderá dizer: “Eu não sabia”. Poderá dizer: “Eu não quis acreditar”. Mas aí será tarde demais.
Fernando Limongi: Coronavírus evidencia que cartilha de Bolsonaro é delírio de loucos
Neoliberalismo primitivo do presidente e de Guedes vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país
Diante da urgência do cenário que se desenha com a eclosão do coronavírus, cientista político considera que a cartilha neoliberal primitiva de Bolsonaro e Guedes, que vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país, deve ser ignorada como delírio de loucos e dos que acreditam em mitos.
“Victor Hugo era um louco que se julgava Victor Hugo”, disse Jean Cocteau. Com pequenas adaptações, o chiste se presta para definir o atual ocupante do Palácio do Alvorada: Jair Bolsonaro é o mito inventado por um bando de malucos.
Analistas, por dever de ofício, devem decifrar o comportamento dos políticos, conferindo racionalidade a seus atos. A tentação de atribuir cálculo ao presidente tresloucado é enorme. Diz-se que há método na loucura, que tudo não passa de encenação meticulosamente arquitetada.
Dizer que está mirando 2022 não é senão reafirmar o óbvio. Que político não tem olho voltado para os eleitores e para as próximas eleições? E Bolsonaro nunca escondeu que só pensa em sua reeleição, que esta é sua única preocupação e que, para tanto, precisa abater toda e qualquer liderança, no seu governo ou fora dele, que possa lhe fazer sombra.
Comprou briga com João Doria e Wilson Witzel porque os dois podem enfrentá-lo no futuro. Disto não se duvida. A questão é se fez as escolhas certas e se o seu comportamento destemperado lhe renderá votos.
Para dizer o mesmo de outro modo: para ser reeleito, o presidente tem que cumprir o que prometeu. Mesmos os mais fiéis, mesmo os que acreditam em mitos, precisam ser satisfeitos. E é aí que entra o coronavírus.
O destempero e a insensatez não são novidades. Bolsonaro sempre foi e será assim. O cavalão, como era conhecido no Exército, é indomável. A novidade é o desespero.
A reeleição que dava por assegurada está indo para o ralo com a desorganização da economia. As perspectivas já não eram as melhores antes da epidemia; as promessas da retomada do crescimento não passavam disso, de promessas.
Mas Paulo Guedes (ministro da Economia), tanto quanto Bolsonaro, acredita no mito que criou para si mesmo, o de que seria simples resolver os problemas econômicos do país. Rebento do neoliberalismo original, aluno de Milton Friedman, o ministro acredita que basta diminuir o Estado para que o Brasil experimente um novo surto de crescimento.
O nó da questão estaria na regulação excessiva a tolher a iniciativa empresarial virtuosa. Para a Escola de Chicago, tudo quanto o Estado faz é atender interesses especiais de grupos organizados.
Pode parecer estranho, mas o fato é que o neoliberalismo primitivo tem grande afinidade com o discurso populista. Não por acaso, ao tomar posse, Paulo Guedes encheu os pulmões para dizer que o Brasil era o “paraíso dos rentistas”, que o reino destes verdadeiros parasitas chegaria ao fim.
De forma mais elaborada, em seu discurso de posse, declarou: “Os bancos públicos se perderam em grandes problemas com piratas privados e burocratas políticos. Burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro”.
A harmonia do casal Bolsonaro-Guedes foi consumada no altar do populismo, com apelos simplistas em defesa do povo contra elites sanguessugas. Contudo, antes da eclosão da pandemia, Guedes vinha colhendo derrota atrás de derrota. O anúncio do pibinho e das revisões para baixo do crescimento deste ano foram as mais claras delas.
E todos os economistas de prol batiam na mesma tecla: sem reformas não haveria retomada do crescimento. O consenso, contudo, repousava na indefinição da lista de reformas prioritárias e de seu conteúdo. Em um ponto, contudo, quase todos concordavam: a disciplina fiscal não poderia ser abandonada.
E aí veio a pandemia, e qual foi a reposta de Guedes? No mínimo, tão atabalhoada quanto a de seu chefe. Inicialmente, defendeu que não havia motivos para mudar de rumos, que avançar as reformas teria se tornado ainda mais premente. Ou seja, o ministro não viu razões para abandonar a sua cartilha.
Com ou sem pandemia, o remédio seria o mesmo, diminuir o papel do Estado. Quando se convenceu de que alguma medida emergencial seria necessária, só se lembrou de aliviar o lado dos empresários, assinando medida provisória permitindo a suspensão temporária do pagamento de salários.
Enquanto isto, reconhecendo o inusitado da situação, a maior parte dos economistas ouvidos pela imprensa passou a defender programas de transferência de renda para os mais afetados, independente dos seus efeitos fiscais. Momentos extraordinários pediriam medidas excepcionais, e cada um dos entrevistados contribuiu com seu elenco de medidas emergenciais a serem adotadas.
Neste debate, a equipe econômica pouco contribuiu. Foi a voz discordante no novo consenso formado. Guedes saiu de cena, refugiando-se em seu apartamento, ao mesmo tempo em que Bolsonaro armava a sua guerra particular contra o isolamento social e suas repercussões sobre a renda dos trabalhadores impedidos de correr atrás de seu sustento.
Em nenhum momento, tudo indica, sua equipe econômica o instruiu de que havia alternativas, de que os autônomos e desempregados poderiam ser assistidos por programas de transferência de renda.
E se Bolsonaro quer se reeleger, se tem uma estratégia eleitoral, não seria mais apropriado assumir a paternidade dos programas defendidos pelos economistas? A solução da charada é simples: Bolsonaro não o faz porque não é isso o que ouve de seu guru.
Em meio a seu sumiço, o ministro encontrou tempo para se reunir com investidores. Pressionado a se posicionar, afirmou que, como cidadão, apoiava as medidas de isolamento social preconizadas pelo Ministério da Saúde. Por que precisou do adendo “como cidadão”? Qual sua posição como autoridade máxima da política econômica do governo? Evitou entrar em conflito com o chefe ou o apoia?
O fato é que o ministro resistiu o quanto pôde, recorrendo a inúmeros subterfúgios, postergando a entrada em vigor do plano aprovado pelo Congresso. Provavelmente, para parafrasear um de seus ídolos, vê no programa o início do caminho que leva à servidão. Carlos Bolsonaro, com sua sutileza e tato habitual, foi direto ao ponto: quem defende programas deste tipo são os esquerdistas.
A urgência do cenário que se desenha, contudo, recomenda que Bolsonaro e a ideologia que fundamenta seu governo sejam ignorados, como são ignorados os delírios dos loucos e dos que acreditam em mitos. Aplicando a regra usada pelo presidente para identificar seus filhos, não seria inadequado tratá-lo como o zero-zero, isto é, como um zero à esquerda.
*Fernando Limongi é professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e do departamento de ciência política da USP.
José Roberto Mendonça de Barros: Da parada súbita à recessão global
Não há uma coordenação na resposta do governo federal à crise
Como já colocamos no nosso último artigo, a expansão rápida do coronavírus provocou uma parada súbita nas principais economias do mundo, o que já garante que 2020 será um ano de recessão global, apesar dos grandes esforços das autoridades sanitárias e econômicas para deter a pandemia e suportar a economia.
A percepção da gravidade da situação está chegando aos poucos, o que faz com que as projeções mais recentes sejam sempre piores do que as anteriores.
O desconhecimento do vírus e de como lidar com ele gera uma enorme incerteza. Mas algumas coisas parecem claras. A crise será longa. Nos locais onde a contenção tem sido bem sucedida, decretou-se uma quarentena ampla e testagem em larga escala.
Na política econômica, a incerteza levou a lançar sobre a mesa todas as fichas fiscais e monetárias. É certo que o PIB do primeiro semestre será francamente negativo na maior parte dos países. Quedas de 3% a 10%, em bases anuais, para as principais regiões não devem surpreender.
Desde que não haja uma segunda onda da doença, todos esperam alguma recuperação no segundo semestre, em resposta aos esforços sanitários, à política fiscal expansionista e a uma política monetária agressiva. A dúvida aqui é qual será a velocidade da recuperação, se em formato de um V ou de um U. Muita gente espera o primeiro caso para a China e Estados Unidos e o segundo caso para a Europa.
Acho pouco provável que se confirme a expectativa otimista da recuperação rápida, dados os efeitos fortes sobre a saúde financeira das empresas, levando a muitas falências, e sobre a disposição de compra de um consumidor sofrido e assustado, tendo muitos vivido tragédias familiares recentes. Tudo indica que não seremos mais exatamente os mesmos.
O Brasil está atrasado na resposta ao vírus em várias frentes. Em primeiro lugar, e por incrível que possa parecer, o presidente ainda acredita e age como se o vírus fosse uma pequena gripe (caso único no mundo!), brigando com os Estados e prefeituras que decretaram o isolamento, medida universalmente aceita como necessária. Em consequência disso, não há uma coordenação na resposta do governo federal à crise, o que evidentemente resulta numa baixa eficiência da gestão.
Temos apenas uma coordenação na área de saúde, apesar do Planalto, onde um trabalho profissional está sendo realizado e é digno de apoio. Entretanto, mesmo aí temos de salientar o atraso de um mês na compra e aplicação de testes, bem como no suprimento de equipamentos, inclusive de proteção individual e outros materiais para a saúde, num mundo em que a oferta está curta.
Na frente econômica, após várias semanas, vai tomando forma um conjunto mais articulado de ações, embora em estágios muito diferentes de aprovação e com baixíssima taxa de execução. As medidas podem ser organizadas em seis áreas:
– Manter a logística e o abastecimento;
– Ações do Banco Central para garantir liquidez;
– Elevação dos gastos com saúde;
– Apoio aos mais vulneráveis: pobres e trabalhadores informais;
– Apoio às pequenas empresas, com manutenção de emprego;
– Flexibilização de certas condições contratuais: trabalho e outros.
As ações nas duas primeiras áreas andaram bem.
A elevação de gastos com saúde é certamente correta, mas, na sua maior parte, ainda não chegou na ponta final.
As ações nas áreas de apoio a pessoas e empresas mais vulneráveis estão muito lerdas, com baixa taxa de entrega. Aqui também não há uma liderança efetiva na discussão das medidas, prevalecendo um caráter algo burocrático.
Como muita gente, sinto falta de uma liderança equivalente àquela empoderada e exercida por Pedro Parente na ocasião do apagão de energia.
Olhando o conjunto, e mesmo considerando-se a efetiva colaboração do Congresso, as políticas federais de suporte à população irão tardar ainda um bocado de tempo.
Em consequência, a população vulnerável depende neste momento muito mais das ações locais, especialmente do grande movimento de solidariedade que a crise detonou, incluindo organizações não governamentais, pessoas e empresas.
De forma dramática estamos vendo o que significa a má distribuição de renda e a imperiosa necessidade de enfrentá-la.
A frase tem sido muito usada, mas é ainda assim verdadeira: nós e o País nunca mais seremos os mesmos.
*Economista e sócio da MB Associados.