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Paulo Fábio Dantas Neto: Notas sobre a conjuntura e o depois – abril 2020

Interpretação de uma situação de fato

A substituição do ministro da Saúde foi um revés para uma boa política de enfrentamento da pandemia. Esse é o impacto mais importante. Atinge todo mundo. A sociedade perde, ao menos momentaneamente, a orientação, segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério da Saúde, numa conjuntura crítica de incerteza e medo. O próprio Estado sofre, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, tendem a ficar ainda mais tensionadas. E o governo, particularmente, terá que alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.

O impacto sobre o Presidente da República é ambíguo. De um lado, o fato dele ter tomado uma decisão na contramão da ampla maioria da população certamente desgasta mais sua imagem, já bastante desgastada por sua conduta imprudente no cargo, que não começou agora. Ao mesmo tempo o devolve ao jogo, pois ele retoma, em parte, a iniciativa política que perdera por causa dessa conduta. Ele não abandonou a atitude imprudente, longe disso, mas, radicalizando-a, criou nova situação e parece começar a sair das cordas, reanimando suas falanges - as radicais e as áulicas -, energizadas com a ostentação de autoridade. Acima de tudo, afastou do seu governo uma personalidade política em ascensão, no caso o ex-ministro Mandetta, que ele logo enxergou como concorrente. De fato, desde que Lula caiu no ostracismo e Sergio Moro foi absorvido pela rotina de governo e por seu próprio elitismo, ninguém conseguia se comunicar embaixo com a população, como Mandetta conseguiu. Tirando-o dos holofotes, mesmo ao preço de colocar a saúde pública em sério risco, o presidente espera reverter um jogo que lhe vem sendo desfavorável. Parece ter sido essa a intenção. As próximas semanas e meses mostrarão o tamanho da distância entre a intenção e consequências políticas reais do gesto.

Mandetta teve apoio da população à sua conduta, em parte por méritos pessoais de quadro tecnicamente correto da área da saúde e de quadro político afeito ao entendimento e à articulação, dotado do talento para gerar empatia com públicos amplos. Em outra parte, pela sinergia entre a equipe do ministério e o engajamento da comunidade técnica da saúde. Com espírito público e consistente experiência em gestão da saúde pública ela soube se impor e o ministro a valorizou, como fez com a comunidade científica e acadêmica. Também pela ampla adesão da imprensa e da sociedade civil ao conceito geral da política adotada pelo MS.

Esse apoio social influenciou a atitude das forças políticas. Mas nessa área, o apoio à personalidade pública do ministro não teve o mesmo tamanho do apoio à política do MS. Foi assim inclusive com forças ditas de centro e centro-direita, com as quais ele interage com mais facilidade, por afinidade prévia. É compreensível que tenha sido assim. A projetos políticos como o do governador de São Paulo, a ascensão popular do ex-ministro não teria como ser ideia simpática, ainda que sejam convergentes as visões acerca do combate à epidemia. A possibilidade do DEM passar a cogitar o nome de Mandetta para 2022 não poderia passar despercebida. Já na esquerda petista ou vizinha, a atitude em geral não foi hostil, mas cooperativa (caso dos governadores), combinada a silêncio obsequioso das bancadas parlamentares e reticências e ressalvas, geralmente ligadas no retrovisor, nas redes sociais e sites ligados a ela. O trânsito ficou mais fluente com o embate entre Mandetta e Bolsonaro. Mas na reta final, perto da queda, o ainda ministro teve restrições diretas de Lula e Ciro Gomes. Elogios no campo político dessa esquerda só se tornaram mais visíveis após sua saída do ministério.

O novo ministro, como bem assinalou a colunista Miriam Leitão, ainda não disse a que veio. Talvez consiga dizer. Por ora, o que se pode especular, a partir de genéricas pistas que deu, é que ele esteja em linha com informações e estratégias que transitam, não necessariamente de modo consensual, nos ambientes científico, empresarial e militar. Mas é improvável que consiga realizar intentos pensando e agindo apenas como técnico. O processo deve confirmar a convicção do seu antecessor de que sem política não há caminho. E no esquema que está combinado, parece que a política vai caber a Bolsonaro, mordendo e a seus militares, assoprando.

Sobre a situação do Presidente

Nove entre dez analistas da política brasileira constatam o isolamento político do presidente. Sem negá-lo, faço duas ressalvas. O isolamento chegou ao auge na primeira semana de abril, quando lhe faltou, inclusive, condições para demitir o então ministro da Saúde. Mas a partir daí nota-se uma operação para tirá-lo das cordas, levada a cabo pelos seus ministros militares. É significativo o dado de recente pesquisa do Data Folha de que 48% do empresariado, em geral, aprovaram a mudança do ministro. Trata-se, ao que parece, de uma operação de estado maior em pleno curso, mesmo que o perfil político e pessoal de Bolsonaro a dificulte. A segunda ressalva é que, para um político com atitude política extremista e personalidade arrogante como as de Bolsonaro, isolamento político não deve levar a recuo, reflexão e reorientação de conduta. Assim reagiria um liberal-democrata e ele é a antítese disso. Para políticos como Bolsonaro, isolamento é convite à radicalização.

Parece inevitável que caia no colo de Bolsonaro a responsabilidade política pelo aumento de vítimas da pandemia, mesmo que não haja aí uma relação necessária de causa e efeito, pois nunca se poderá mensurar com precisão em que grau o afrouxamento do isolamento social se deverá à influência do presidente e em que medida o afrouxamento causará maior contaminação, ou pane no sistema de saúde. Não há nem haverá provas, mas já há forte conexão de sentido, que será difícil seu discurso neutralizar, nas condições da nossa democracia. Ainda mais quando se somar, à crise sanitária, uma dura recessão econômica, com suas implicações sociais.

Os movimentos do governo Bolsonaro – estratégia ou vôo cego?

Enxergo uma estratégia de governo, da qual Bolsonaro faz parte de modo pouco usual para quem ocupa o cargo de presidente. Há momentos de confusão, mas não desorientação. O modo de enfrentamento da pandemia e o desfecho do affair com Mandetta podem ajudar a desfazer dois erros de interpretação difundidos durante o primeiro ano do governo, dos quais não me excluo, aliás. Pensava-se em alguns ministros militares como quadros da corporação dentro do governo e que eles, nessa condição, estariam contendo um presidente incompetente e radical, para o país ser governado apesar dele, com racionalidade e moderação.

Parece mais claro, agora, que paraquedistas que ocupam salas no Planalto ou na Esplanada não o fazem como agentes do Estado, ou da corporação militar, mas como governistas cujo objetivo é sustentar esse específico governo, dando respaldo a Bolsonaro, ainda que à custa de agressões ao Estado e de saias justas com a própria corporação militar. Inclusive o Gal. Braga parece migrar para essa posição. Quando convenceram Bolsonaro a não exonerar Mandetta, naquele chamado dia do fico, quem estava sendo blindado era o presidente, não o ministro. Esse começou a ser fritado em fogo alto no dia seguinte e não a partir da sua entrevista ao Fantástico, uma semana depois. A entrevista parece ter sido a reação de Mandetta e do DEM para consumar, em condições mais favoráveis, um desenlace já decidido pelo governo, por entendimento entre Bolsonaro e seus militares.

Isso não significa que, mais adiante, essa simbiose se manterá. Mas caso se desfaça, o plano alternativo não parece ser o de dar protagonismo, com vistas a 2022, a um político democrático, seja de esquerda, ou mesmo de centro, direita, ou centro direita, como Mandetta, Dória, Maia ou outro qualquer. Vejo hoje em movimento um projeto de guardiania que tem e terá relação tensa com a ampla democracia política que vigora no Brasil. Se depender desse grupo de militares (insisto que não me refiro à corporação, mas a um grupo político) seu colega fardado que ocupa a vice-presidência da República pode ter um destino político além do de um presidente- tampão. Coloca-se aqui, de novo, em questão, o tamanho da distância entre a intenção dos militares governistas e as consequências e possibilidades reais de êxito dessa estratégia, que vai ficando nítida. A questão política só se resolverá após a pandemia, a depender, em boa medida, dos estragos sociais e econômicos que ela provocar.

Mas desde já é possível dizer que esse grupo militar, além de exercer força de gravidade sobre grupos palacianos e ministérios, através dos quais dialoga com políticos e partidos, parece ter certo apoio empresarial. A base conjuntural desse entendimento que pode enlaçar, por cima, esses atores no curto prazo é a necessidade de retomar, o mais brevemente possível, a atividade econômica, com vistas a atenuar os efeitos, necessariamente rigorosos, da recessão que já se instalou e que não irá embora junto com a pandemia. Mas para que uma aliança como essa seja sustentável e produza consequências políticas sistêmicas, as suas partes terão que se acertar em assuntos estratégicos, tais como o perfil futuro da presença do estado na economia e os limites aceitáveis de absorção institucional e processamento democrático do conflito social. Normal que não haja definições sobre eles nesse momento, mas a indefinição não significa que cada qual dos atores não já esteja formando uma ideia a respeito.

No caso do empresariado é insensato pensar que chegarão a uma visão “de classe”. Decisivo será, sim, o nível se convergência possível entre setores que sejam distintos o bastante para tornar a articulação ampla e suficientemente coincidentes quanto à relevância do seu peso econômico, para que essa relevância compense, na hora da operação política, a dificuldade comunicativa com a base da sociedade, decorrente da posição assimétrica que ocupam, nessa sociedade. Para eles a questão política de fundo é a escolha entre os riscos e vantagens da democracia, de um lado, e riscos e vantagens da guardiania, de outro.

Já os ministros militares - que desde a campanha eleitoral passada vêm se constituindo como grupo político e que buscam recrutar novos quadros entre os ativos e reservistas da corporação - parecem servir-se de um pensamento estratégico mais amadurecido. A formulação, naturalmente, é externa a grupo e, nesse sentido, há nexos com a corporação militar, ainda que a execução não conte com ela e até a constranja, em certos momentos, quando entram em jogo fatores estranhos à lógica estratégica do intelectual militar. O calcanhar de Aquiles está na baixa perícia desse grupo no manejo da política, que é necessária para operar a estratégia.

Já as lideranças civis, que formam a elite política, se têm revelado prudentes e hábeis em táticas de conjuntura nessa quadra difícil, mas, ainda na defensiva e presas ao imediatismo, parecem se ressentir de uma estratégia positiva que lhes dê unidade ao lidar com desafios de médio e longo prazos. Sintoma disso foi não terem encarado a ascensão pública do ex-ministro Mandetta como capital político comum, para dar nome e sobrenome à ideia de centro político que há anos se cogita para tirar o país de uma polarização política estéril. Um cavalo passou selado e não foi montado, embora ainda possa ser, mais adiante, a depender da percepção pública sobre as decisões tomadas para enfrentar a pandemia. Se já houvessem se entendido sobre apostas a médio e longo prazos, o desafio da saúde pública justificaria ensaios de reação política e institucional à exoneração do ministro. Se não poderiam impedir Bolsonaro e os militares de removê-lo, ao menos teriam mostrado a eles que o preço político para plantar uma guardiania em vestes de democracia no Brasil será mais alto do que será se o centro político permanecer fragmentado. Mas os dados ainda rolam. Um otimismo moderado permite considerar a unidade da elite política civil como um processo em construção. É desse processo que essas notas se ocuparão, a partir daqui.

Relações entre Legislativo e Executivo – o estado da arte

Esse é terreno crucial para definir o desfecho da crise atual. Do ponto de vista dos democratas é terreno mais promissor que o da disputa, com Bolsonaro, pela simpatia do grupo militar governista. O Legislativo é o leito mais seguro para a construção de uma unidade que vá do Centrão à esquerda. Essa via – que já se ensaiava antes, principalmente com o fortalecimento da liderança de Rodrigo Maia na Câmara - tem sido intensamente testada na conjuntura de combate à pandemia. A conduta já observada entre forças aliadas na viabilização da reforma da Previdência passa, agora, quando a pauta é mais consensual, a ser adotada como padrão para as relações entre praticamente todas as forças e partidos. Esse padrão tem levado o Legislativo a suprir carências governativas advindas da irresponsabilidade presidencial, através de ampliação dos consensos internos e de um diálogo tenso, mas efetivo, com as zonas de racionalidade presentes no Executivo. Esse script tem testado positivo, não só como solução para a governabilidade, mas também como rota para a unidade política requerida para, num primeiro instante posterior à pandemia, resolver, republicanamente, a questão Bolsonaro.

Esse entendimento parte da premissa de que a ação subversiva do presidente, conquanto possa ter seus danos minimizados não se sabe até quando, promove fissuras nas crenças e procedimentos democráticos. Daí estende uma nuvem sobre as possibilidades de uma saída democrática a partir de 2022. Há uma pedra no caminho do reencontro do país com a sua normalidade e não se pode subestimar o fato dessa pedra estar ocupando a cadeira presidencial, usando-a para tentar trincar a democracia de variados modos. A reação institucional precisar vir e Legislativo e Judiciário precisarão observar o timming que, uma vez ultrapassado, tornará essa reação impraticável. Três pontos, entrelaçados, sobressaem na pauta: a avaliação prospectiva da possibilidade de se processar o impedimento no imediato pós-pandemia, a condução articulada da sucessão das mesas diretoras das duas casas legislativas e a formação de um consenso a respeito das eleições municipais.

Sobre possibilidades de impeachment

Depende de um conglomerado de fatos, circunstâncias e vontades. Fatos como a extensão da crise sanitária e de suas consequências econômicas, no Brasil e fora dele. Circunstâncias como o humor do eleitorado, a ser captado em pesquisas no pós-pandemia, ou como a realização ou não de eleições esse ano. Vontades traduzidas em estratégias de atores políticos relevantes, nos âmbitos dos três poderes e nos partidos, com destaque para a atitude e atos do presidente. E as de agentes organizados na sociedade civil, incluindo aí imprensa, empresariado e organizações populares. Matemáticos poderiam armar uma matriz de probabilidades com essas variáveis. Analistas e cientistas políticos precisam esperar. Partidos políticos podem se dar a esses luxos?

Do ponto de vista da política em ato, a questão não pode ser submetida a cálculos matemáticos, nem pode ser mais postergada. As justificativas públicas para o adiamento cessarão com o arrefecimento da crise sanitária. Se a elite política não se mover por moto próprio terá que fazê-lo de improviso quando o tema ganhar as ruas num contexto pós-isolamento, situação em que as lideranças políticas terão menos chance de orientar a sua direção.

Antecipar-se é o mais prudente e, se diante de uma conjuntura nada matemática, não é possível fazê-lo com clareza sobre a sequência dos passos, há que se fazer ao menos com a clareza possível sobre o sentido político que se queira dar ao processo. Construir as premissas para que ele se desenrole como causa cívica, apoiado por arco político mais amplo do que foi o “Fora Collor” e muito mais ainda do que o arco político e social que se formou para o impeachment de Dilma Rousseff, que não estancou a divisão do país, embaixo. Conduzido assim, o processo jurídico-político do impedimento poderá aprofundar o nível do consenso já alcançado no Congresso.

O timming também se relaciona a condições objetivas do ambiente do STF. A crise sanitária colocou em segundo plano, ao menos por enquanto, as clivagens políticas que vinham marcando algumas decisões e a imagem pública do tribunal e limitando suas possibilidades de exercer a moderação que constitucionalmente lhe compete. A virtual cristalização daquela situação está entre os motivos que faziam cada vez mais olhos se voltarem a militares, como se eles pudessem ser substitutos funcionais da instituição. A irresolução do presente conflito entre o presidente, de um lado, o sistema político e a sociedade civil de outro, mostra que o equívoco dessa posição não é apenas institucional, mas também político. A lição desse março/abril precisa ser assimilada e o novo momento do STF valorizado, ainda mais quando se sabe que a situação pode se tornar volátil com a mudança do seu presidente, prevista para setembro e a substituição do seu decano, logo a seguir.

As sucessões no Legislativo

Como maior volatilidade e maior número de incertezas são traços óbvios de conjunturas críticas, prospecção aqui é inútil. O que não impede fixar uma premissa lógica sobre esse tema. Quanto mais o ponto de equilíbrio político alcançado hoje nas duas casas for conservado a partir de 2021, tanto melhor para que o processo siga na direção unitária em que está indo e, por conseguinte, permita resolver, republicanamente, a questão Bolsonaro. Esse ponto de equilíbrio é soma de despolarização política e compromisso social. O primeiro termo do par exige, principalmente, um reposicionamento da esquerda parlamentar, mormente do PT, cuja atitude “histórica” é de resistência à integração a um centro de articulação comum, onde não possa exercer hegemonia.

Um reposicionamento vem avançando, sem prejuízo do viés populista e/ou personalista das vozes eleitorais de partidos de esquerda fora do Parlamento. O segundo termo da equação exige reposicionamento da centro- direita, que precisará acompanhar o que se dá no mundo todo e rever resolutamente seu compromisso com a ortodoxia econômica dita neoliberal. Em suma, para ter bom andamento, a estratégia da convergência para vencer as crises sanitária, econômica e política terá que afastar os fantasmas de duas ideologias contrárias à política: o hegemonismo pré-político do tempo de Rousseff e o fundamentalismo econômico de Paulo Guedes.

Na Câmara, esse script prudencial tem no atual presidente da Casa, que não concorrerá ao cargo, um protagonista natural. Na interação positiva em torno dele está a chave da execução. O risco a ser evitado é a direção do processo sair das suas mãos, situação em que consensos amplos serão mais difíceis. No Senado, incerteza adicional decorre do fato de que o detentor da posição institucional capaz de coordenar o processo deseja, ao que tudo indica, achar caminhos de interpretação regimental para se candidatar à reeleição. Essa situação em si já torna o ambiente daquela Casa mais poroso às interferências do Executivo, pela exploração desse interesse, apoiando-o ou não. O sucesso do script prudencial que sustenta o instável equilibro atual não necessariamente depende das direções da Casa e do processo político ficarem nas mãos do mesmo ator. Pode até ser requerida a moderação do Judiciário daí porque ele pode, em alguma medida, também vir a ser um ator.

O tema da sucessão será inevitavelmente implicado na tentativa de Rodrigo Maia de retomar/ melhorar seu diálogo com a esquerda, meio estremecido desde que pautou e fez aprovar a MP do contrato verde-amarelo. Efeitos imediatos desse movimento são notados em recíprocas declarações públicas dos interlocutores. Maia cuida, como deve, da mobilidade do seu pé esquerdo. E a esquerda, por seu turno, ocupa, como também deve, o espaço que lhe oferece Alcolumbre no Senado para se recuperar do revés sofrido na Câmara. O alvo comum parece óbvio: acelerar, ampliar, aprofundar o entendimento e acumular forças para um enfrentamento com o Presidente. Essa convergência de interesses contra um adversário comum não seguirá itinerário cor-de-rosa. A sucessão nas duas casas será um desafio. Pela lógica da disputa sucessória, a esquerda – mesmo que não tenha pretensões próprias – pressionará Maia para enfrentar Bolsonaro, mas em litigio, ainda que relativo, com o Centrão.

Pela lógica do processo do impeachment cívico e não politicamente polarizado, Maia resistirá a essa pressão. O jogo todo é legítimo, de todas as partes. Contanto que os jogadores não o levem ao ponto de permitir espaço a quem quer virar a mesa e o próprio jogo. A radicalização provocada por Bolsonaro pode servir de biombo a ministros como Guedes, Moro e os militares para veicularem soluções que aliviem sintomaticamente os impasses, mas permitam a reintrodução, no Congresso, de uma polarização mais permanente, seja direita x esquerda, São Paulo x nordeste, ou Câmara x Senado. Pode-se ver esse jogo quando Bolsonaro desafia Maia para uma briga de rua, enquanto o governo procura amaciar o Centrão e o Presidente do Senado. A disputa pela sucessão na Câmara e entendimentos sobre reeleição no Senado são fatores que devem ter influência crescente.

As eleições municipais

O presidente da Câmara tem usado um argumento prudencial para resistir ao adiamento das eleições. Seria um precedente a alimentar virtuais apetites no futuro. Ao lado dessa razão, é intuitivo que haja outra, de mais complexa enunciação, porém de maior peso. A interação política entre as medidas de socorro federativo ora em curso por conta da pandemia e um processo de renovação dos governos municipais criaria, na base do sistema político que se relaciona diretamente com a sociedade, um ambiente favorável à solução que o Congresso encontre para a crise política derivada da conduta presidencial. Basta pensar na possibilidade de um efeito Mandetta, em contraste com um Teich sem efeito, para supor que Maia raciocina com hipóteses conectadas ao mundo da política real. Compare-se esse cenário com o seu oposto.

Adiadas as eleições para 2022, ficariam os atuais prefeitos livres do risco das urnas e expostos a duas pressões: a do alinhamento político em torno de projetos eleitorais estaduais, comandados pelos governadores e/ou as do governo federal, que voltaria em alguns meses a deter a chave do cofre sem ter mais que obedecer aos critérios federativos estipulados consensualmente no Congresso, no contexto da crise sanitária.

Sendo fortes no Brasil, como se sabe, os laços de reciprocidade eleitoral entre prefeitos e deputados federais, o aumento da força gravitacional dos governos estaduais e do federal sobre os prefeitos, permitido pelo adiamento das eleições, afetaria, indiretamente, os parlamentares federais, no sentido de uma maior fragmentação das suas preferências. Tenderia a diminuir a influência da dinâmica política consensual em curso no Poder Legislativo na indução do comportamento dos parlamentares diante do processo de impeachment e da nova situação política que esse processo instituir.

Ademais, a ideia de prorrogar os atuais mandatos até 2022, para a coincidência dos vários níveis de eleição, é um retrocesso na autonomia que pleitos municipais passaram a ter na política brasileira, permitindo maior influência do eleitor sobre a gestão de suas cidades. Unificar os pleitos, seja com argumentos financeiros, políticos ou gerenciais é, em tese, apostar em mais verticalização do contencioso político e mais polarização.

O adiamento das eleições pode, no entanto, resultar não de escolhas políticas, mas de uma imposição das circunstâncias da crise de saúde pública. Para não brigar com fatos, talvez haja espaço para pensar num adiamento por alguns meses, garantindo a separação dos pleitos. Se as circunstâncias e interesses, combinados, descartarem uma solução intermediária e houver a unificação em 2022, esse cenário aqui suposto como adverso, não produz fatalidades. Havendo política e preservada a democracia, todo limão pode virar limonada.

Especulando preventivamente sobre o longínquo 2022

Com a pandemia, Keynes voltou à voga em economia. Mas seu chiste pragmático de que “no longo prazo todos estaremos mortos” tem estado, talvez inconscientemente, no radar da elite política brasileira e aqui se trata da elite civil, nela incluídos militares e ex militares que adentram na política. Tome-se o Congresso e os governos estaduais como palcos e será visto como a elite política, atacada por um senso comum da opinião pública que a condena pelos seus vícios e por suas virtudes, entrega-se com apuro a manobras táticas defensivas e habilmente as converte em contraofensivas. Essas devolvem-lhe poder de iniciativa, usado para tomar certas decisões racionais e socialmente positivas, como tem ficado mais evidente durante as crises que ora atravessamos.

A partir dessa performance tática, lideranças políticas, ocupando posições institucionais chave, têm conseguido não só livrar o País de ser convertido num quintal de milicianos, como recuperar, embora em dose ainda pequena, uma reputação razoável, que tinha sido quase completamente varrida pela sucessão de seus erros e, em seguida, pela captura do ambiente político pelo fundamentalismo lavajatista.

Sem de modo algum pretender fazer reparo a essa conduta tática, é possível esperar que a ela se junte alguma perspectiva estratégica, a que for possível num contexto tão volátil. Algumas linhas do que pode ser essa adição tonificadora foram esboçadas acima como sendo derivadas lógicas da tática prudencial que se tem adotado, especialmente na Câmara dos Deputados, não só por seu presidente e alguns dos líderes partidários. Exemplificam prudência também, jovens parlamentares recém-eleitos acenando a uma “nova política” e que logo se distinguiram da demagogia rasteira que se apossou dessa boa ideia.

São personalidades, algumas muito jovens, que têm compreendido, na prática, a dignidade e a eficácia da tradição do trabalho parlamentar e partidário para efetivar os compromissos que assumiram com seus eleitores. Nota-se também a crescente musculação política do presidente do Senado, um neófito alçado ao cargo pela onda de descrédito da chamada “velha política”.

Também se pode interpretar como prudencial a recente guinada pragmática ao centro do governador de São Paulo, a moderação surpreendente (ainda que seja uma febre efêmera) que acomete o do Rio de Janeiro, a cooperação ativa de governadores nordestinos de esquerda numa articulação federativa liderada por João Dória, para não falar do surgimento de genuínas e animadoras atitudes prudenciais, como as do governador gaúcho e a do ministro da Saúde, exonerado na semana passada. São exemplos diversos e distintos de um mesmo processo regenerativo da política brasileira, pelo qual ela retoma o seu espaço, miseravelmente usurpado, desde 2014, por uma associação destrutiva de ideologia e distopia. Isso tem relevância estratégica para quem busca uma saída política para a crise, que signifique opção pela democracia, não apenas em oposição a formas aberrantes de autocracia, ditadura, fascismo, etc.., mas como algo também muito distinto de uma guardiania, seja ela judicial, militar, tecnocrática, ou qualquer outra.

As linhas esboçadas nessas notas querem dizer que uma estratégia democrática não precisa de um ingrediente diferente do que compõe a tática democrática hoje em plena operação no Brasil. A atitude prudencial pode orientar uma e outra. E talvez uma das primeiras tendências de uma política prudencial é não se congelar em um plano, fora do qual ela se sinta em fracasso e resmungue, isolando-se no resmungo até se comportar como ideologia. Diversos são os caminhos pelos quais uma atitude prudencial pode prevalecer. Pode, como se sugeriu aqui, arriscar-se num passo político ousado como o de dar partida, daqui a meses, a um processo de impedimento de um presidente cinco anos após outro, desde que seja um processo distinto, pelo seu caráter cívico, não só republicano e democrático, porque a aventura destrutiva atualmente investida de poder político ameaça não só a república, mas o próprio estado; não só a democracia, mas a própria sociedade.

Ninguém sabe se a situação concreta que se desenhará no pós-pandemia permitirá que a solução parta de uma articulação entre Legislativo, Judiciário e sociedade e se concretize tão logo a pandemia passe, como aqui se supõe possível. Talvez ela não se consume, porque dividiria parte do que já está unido e assim perderia sua razão de ser. Nesse caso, por uma razão política razoável, será melhor esperar 2022. Na ausência de certeza, a prudência sugere que se pense nos dois caminhos sem descartar nenhum deles. O que não se pode arriscar é não termos saída democrática possível em 2022 porque se deixou a sabotagem da democracia consumar seu desiderato, sem a devida contenção institucional. Isso pode ocorrer, se no âmbito das forças democráticas - aqui permitam evocar Max Weber - o raciocínio se restringir a uma calculo com respeito a fins. A atitude prudencial morre no varejo político se não mobilizar também valores. Toda prudência logo será abandonada na luta para conservar o poder pelo poder. Luta ilusória, como é ilusório o poder que se exerce assim.

A conclusão dessas notas evocará não mais o pensamento de um autor, mas um processo da história política brasileira recente que tem a ver com a concretíssima democracia que temos. Qual foi a estratégia da frente democrática que a conquistou após derrotar uma ditadura num processo político de 15 anos, de 1974 a 1988? Constituição primeiro e eleição direta depois, como aconteceu, ou diretas já e constituição depois, como poderia ter acontecido? O primeiro caminho implicava num passo intermediário: participar do antidemocrático Colégio Eleitoral. O segundo exigia, com passo intermediário, obter apoio de dois terços do Congresso a uma Emenda Constitucional. Houve quem preferisse e defendesse tanto um como outro caminho.

Em ambos os casos os argumentos e os argumentadores eram muitos, e dentre esses muitos, havia vários politicamente muito respeitáveis e vários outros socialmente bem amparados. Durante aqueles anos houve momentos de avanço e recuo, de esperança e de desalento. E muitas reviravoltas, de situações e de opiniões. Gente que preferia um caminho passou a preferir outro e vice-versa. Ao final aquela ditadura acabou e, em seu lugar, não ficou outra ditadura politicamente oposta, ou uma guardiania. Instalou-se uma democracia. Esse era o objetivo estratégico. Foi alcançado porque os atores políticos não o perderam de vista, apesar da cacofonia em torno do caminho. A unidade prevaleceu porque a liderança política soube ouvir a sociedade e por isso a preservou.

Ulisses Guimarães e Tancredo Neves encarnavam, cada qual, um dos dois caminhos. Cada qual lutou pelo seu, mas não apenas agiu em favor do seu. Quando preciso, em nome do objetivo comum, ajudou a pavimentar o outro. Tancredo esteve ao lado de Ulisses em todas as praças lotadas que gritavam por diretas e mobilizou, como governador de Minas, todos os recursos possíveis para lotá-las. Ulisses comandou os democratas na ida ao Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo. Altruístas? Não. Políticos realistas, orientados aos fins e aos valores.

A regeneração da política brasileira passa pelo resgate desse tipo de realismo. Há sinais de fumaça a indicar que ele renasce, em meio ao drama do bolsonarismo e do Covid-19. Trata-se hoje de defender a democracia real que o realismo político criou. A liderança e a cidadania precisam se sintonizar no agir. A FAP pode ajudar a pensar.


O Globo: Após demissão de Moro, generais manifestam 'forte preocupação' com o futuro do governo

Mensagem foi vocalizada especialmente pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

Vinicius Sassine, O Globo

BRASÍLIA — Apesar da tentativa de demonstração de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, com a presença dos ministros no pronunciamento feito após a demissão de Sergio Moro, os generais que são ministros e que despacham dentro do Palácio do Planalto manifestaram a colegas de farda um sentimento de "perda" e de "forte preocupação" com o futuro do governo de agora em diante. A mensagem foi vocalizada especialmente pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

Antes da demissão de Moro nesta sexta-feira, Heleno já havia feito movimentos para que o ex-juiz da Lava-Jato não deixasse o governo, com a interpretação de que a gestão Bolsonaro acabaria se isso ocorresse. Teve êxito uma vez, mas não duas.

Os ministros que também são generais — Heleno, do GSI; Braga Netto, da Casa Civil; e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo — ouviram de generais que estão no governo ou na ativa que a continuidade de apoio ao governo Bolsonaro dependerá da permanência do trio dentro do Palácio do Planalto. Este recado explica a tentativa de demonstração de apoio dos ministros ao presidente.

Os ocupantes dos cargos na Esplanada dos Ministérios compareceram em peso ao pronunciamento no fim da tarde, numa tentativa de demonstrar unidade. Chamou a atenção a presença do ministro da Defesa, general Fernando Azevendo e Silva, logo ao lado de Bolsonaro. O ministro da Defesa tem ascendência hierárquica sobre os comandantes das três Forças Armadas. Sua função no governo excede a burocracia do cargo. Ele é, hoje, um dos principais conselheiros do presidente.

Um entendimento entre militares de alta patente — tanto integrantes do governo quanto integrantes das cúpulas das Forças — é que a demissão de Moro não se compara a uma outra rumorosa demissão, a do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. No caso de Mandetta, demitido em meio à pandemia do novo coronavírus, que já matou 3.670 brasileiros até agora, generais enxergaram uma indisciplina, uma quebra de hierarquia, à medida que o então ministro confrontava o presidente. Com Moro, que pediu demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública nesta sexta-feira, alegando interferência de Bolsonaro na Polícia Federal (PF), não existe essa impressão.

— Moro é uma figura muito emblemática. Tem projeção no país. Sempre vou aplaudi-lo pelo que ele fez. Então, até quem torce contra não deve estar gostando do que se viu hoje — resume um general com assento no governo, sob a condição de anonimato.

Os militares que despacham no Planalto, apesar do esforço pela imagem de unidade, não disfarçavam o sentimento de "perda", "tristeza" e "preocupação" nas mensagens disparadas a colegas da caserna. O entendimento é que a saída de Moro ocorre num momento que já é de grave crise sanitária e econômica. Eles entendem que o que ocorreu nesta sexta, inclusive, terá impactos decisivos para a própria crise do novo coronavírus.

— Não deveríamos perder nem A nem B — diz um general, em referência a Bolsonaro e Moro.


Vinicius Miguel: Coronavírus, desarmonia federativa e estratégias democráticas para a pandemia

A redação de ponderações sobre eventos inconclusos é sempre delicada. Mais cautela ainda é necessária quando se trata de fenômenos que não podem ser inadvertidamente comparados 

A pandemia da doença do corona vírus é um desses momentos históricos, sem equivalentes na história recente.

Tantas circunstâncias da conexão do tempo-espaço da sociedade industrial-global ainda conferem mais complexidade ao intrincado problema: migração internacional e fluxos acelerados de pessoas; celeridade de desinformação com potencial de letalidade sem precedentes e escassez de instituições multilaterais capazes, de pronto, a ofertar respostas efetivas para a pandemia. 

Esses aspectos realçam a prévia fragilidade dos sistemas de saúde – sobretudo de Estados periféricos – apontando para a vulnerabilidade de nossas sociedades. 

A incapacidade societal e estatal de coordenar a melhoria da saúde pública e coletiva conduz à reflexão sobre temas indispensáveis, mas usualmente negligenciados, como o saneamento básico, a vigilância epidemiológica e sanitária, a ampliação de imunização e demais mecanismos de rompimento da cadeia de transmissão de doenças, de melhora da qualidade de vida de uma população e do exercício democrático da administração de políticas de saúde.

Merece alguma ponderação a dimensão da paradiplomacia subnacional no combate à doença do corona vírus (Covid-19). 

É bem sabido pelos estudos em Saúde Pública e Coletiva que as doenças não conhecem fronteiras e invalidam a clássica noção de soberania política: as bactérias e os vírus trespassam limites de nacionalidades sem para isso precisarem de passaporte.

A participação de entidades subnacionais (Estados e municípios) sempre foi um aspecto observado com peculiar curiosidade pelo Direito Constitucional e pela Política Internacional. Dito de outro modo, a persistência de Estados e municípios como atores e sujeitos de direitos (e obrigações) no esquema federativo e de relações internacionais é um tema de considerável importância. 

A disputa interfederativa já se instalou no Estado brasileiro. Além disso, governadores e prefeitos tem recorrido a uma “paradiplomacia”, ao acessarem diretamente o governos da República Popular da China, em busca de produtos hospitalares, que seriam transportados para o Brasil por aviões da FAB.

Na atual pandemia, o comando constitucional de solidariedade nas responsabilidades para assegurar a saúde ganhou contornos graves.

Em tempos de indisponibilidade de equipamentos médico-hospitalares (como o clássico respirador), o acirramento de conflitos entre os entes federativos vem ocasionando intensas batalhas político-judiciais. Não menos, a escassez no mercado internacional dos mesmos itens, vem gerando disputas entre Governos Estaduais com fornecedores internacionais.

Na tentativa de coibir a remessa para o exterior de respiradores, o Ministério da Saúde proibiu exportação. Não bastando, proibiu igualmente a venda para qualquer município ou Estado, requisitando de forma compulsória os aparelhos. 

Essa medida vem gerando evidente turbulência nas esferas locais.

Exemplo dessa disputa interfederativa, foi o caso do município de Recife (PE), que se socorreu na Justiça Federal para obter a liberação de 200 respiradores requisitados pela União

Outro exemplo foi o município de Cotia (SP), que usou do mesmo expediente judicial para vencer o bloqueio da União e ter acesso aos respiradores. A ansiedade foi tamanha, que em cena pitoresca, o vice-prefeito foi buscar os aparelhos na fábrica, sem que tivessem certificados de adequação para o uso.

Outro ponto de conflito entre Estados e União (ou, ao menos, à figura da Presidência da República) tem sido as medidas a serem adotadas.

As medidas de isolamento social, de fechamento de comércios e até mesmo de regulação do transporte aéreo e fluvial foram pontos de acirramento das tensas relações entre a Presidência e Governos Estaduais. 

Nesse aspecto, duas Medidas Provisórias foram editadas pela Presidência da República, tentando subverter Decretos estaduais (as MP Nº 924, de 18 de março de 2020 e a MP Nº 926, de 20 de março de 2020).

Parte de tais conflitos escoou no STF, na Medida Cautelar na ADI 6.341 (DF). Na ação, o PDT demandou o Presidente da República e o Rel. Min. Marco Aurélio determinou que os Municípios e Governos podem/poderão, de forma concorrente, restringir a locomoção e o transporte aéreo/fluvial/terrestre. Marque-se que o STF suspendeu o dispositivo da MP 926 em apenas 04 dias após sua edição. 

A escalada de ataques da Presidência da República contra poderes locais e autoridades regionais vem se dando igualmente na dimensão discursiva.

Em 23/03, Bolsonaro fez pronunciamentos lançando ataques aos Governos Estaduais:

"Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia na questão do corona vírus”

"Não exterminar empregos, senhores governadores. Sejam responsáveis. Espero que não queiram me culpar lá na frente pela quantidade de milhões e milhões de desempregados"

Tentando jogar a responsabilidade política e econômica aos Governadores pelo fechamento do comércio, em 27/03, o Presidente lançou:

“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”

A retórica provocativa contra os governadores avançou, em 02/04, com o Presidente dizendo que os mesmos estariam “com medinho” do vírus e por isso não saiam às ruas. 

Dessa forma, se evidencia o recurso de mobilização ao “povo”, atribuindo responsabilidades aos Governadores, seja pelas medidas de restrição de tráfego, seja pelo fechamento de comércios ou por possíveis prejuízos imediatos (salários) ou futuros (“extermínio” de empregos).

Na ausência de ordenamento de demandas, se vê a formatação de um quadro de desarmonia federativa.

A incerteza jurídica e a instabilidade econômica tendem a agir de forma conjugada em uma deterioração da sociedade brasileira, podendo aprofundar radicalismos ideológicos.

Há, também, o risco do acirramento de enfrentamentos partidários em decorrência da proximidade do calendário eleitoral. Com isso, podem-se antecipar impactos ainda mais negativos na busca de soluções colaborativas.

As experiências internacionais, como no caso das conhecidas epidemias de HIV/Aids, Ebola ou de Zika, demonstram que os esforços interinstitucionais e a solidariedade multilateral são os únicos remédios disponíveis para a mitigação do sofrimento humano.

Nessa configuração, na escala nacional, em diálogo com a sociedade civil, as Defensorias, os Tribunais de Contas e os órgãos do Ministério Público ganham um importante protagonismo não apenas de controle democrático, como de mediação e de proposição de afinamentos institucionais indispensáveis para se vencer a crise federativa e epidêmica em curso.

No escopo das relações internacionais, reconhecer a interdependência de Estados nacionais e a essencialidade de organismos multilaterais para uma estratégia de governança colaborativa agora é, mais do que nunca, um projeto para salvar vidas.

Que da necropolítica possa emergir um potencial colaborativo e democrático para a efetivação do direito social fundamental à saúde.


Folha de S. Paulo: Moro diz que Bolsonaro queria mexer na PF para ter acesso a relatórios de inteligência

Moro largou carreira de juiz federal para virar ministro e disse ter aceitado convite de Bolsonaro em 2018 por estar 'cansado de tomar bola nas costas'

Ao anunciar sua demissão do governo federal nesta sexta-feira (24), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, criticou a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para a troca do comando da Polícia Federal, sem apresentar causas que fossem aceitáveis.

Moro afirmou ainda que Bolsonaro queria ter acesso a informações e relatórios confidenciais de inteligência da PF. "Não tenho condições de persistir aqui, sem condições de trabalho." E disse que "sempre estará à disposição do país".

"Não são aceitáveis indicações políticas." Moro falou em "violação de uma promessa que me foi feita inicialmente de que eu teria uma carta branca". "Haveria abalo na credibilidade do governo com a lei."

Moro disse ter o dever de proteger a instituição da PF, por isso afirmou ter buscado uma solução alternativa para o comando da corporação, o que não conseguiu. "Fiquei sabendo pelo Diário Oficial, não assinei esse decreto." O agora ex-ministro disse que isso foi algo "ofensivo" e que "foi surpreendido". "Esse último ato foi uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo."

Ele enalteceu seu papel na busca pela autonomia da Polícia Federal e destacou essa característica da corporação nos governos dos ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT.

Moro destacou a autonomia da PF nas gestões federais do PT, mesmo com "inúmeros defeitos" e envolvimentos em casos de corrupção. Relembrou promessa de "carta branca" recebida pelo então presidente eleito Jair Bolsonaro para nomear todos os assessores, inclusive na Polícia Federal.

O ex-juiz da Lava Jato disse que nunca houve condição para ser ministro em troca de indicação para uma vaga de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). A ideia, segundo Moro, era buscar um nível de formulação de políticas públicas, de aprofundar o combate à corrupção e levar maior efetividade em relação à criminalidade violenta e ao crime organizado.

Moro diz que somente colocou uma condição a Bolsonaro para que assumisse o cargo. "Se algo me acontecesse, uma pensão para a família." No cargo, Moro cuidava também da segurança pública.

"Me via, estando no governo, como um garantidor da lei e da imparcialidade e autonomia destas instituições", afirmou o ministro, em seu pronunciamento.

Em sua fala, Moro lamentou sua saída em meio à pandemia do coronavírus, com centenas de mortes no país, enalteceu sua carreira como juiz federal com atuação na Operação Lava Jato de Curitiba.

demissão de Moro foi antecipada pela Folha. Ele decidiu entregar o cargo nesta sexta-feira e deixar o governo após a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, ter sido publicada nesta madrugada no Diário Oficial da União. Ele anunciou a saída do governo a pessoas próximas.

Conforme a Folha revelou, Moro pediu demissão a Bolsonaro na manhã desta quinta (23) quando foi informado pelo presidente da decisão de demitir Valeixo. O ministro avisou o presidente que não ficaria no governo com a saída do diretor-geral, escolhido por Moro para comandar a PF.

A exoneração foi publicada como "a pedido" de Valeixo no Diário Oficial, com as assinaturas eletrônicas de Bolsonaro e Moro. Segundo a Folha apurou, porém, o ministro não assinou a medida formalmente nem foi avisado oficialmente pelo Planalto de sua publicação.

O nome de Moro foi incluído no ato de exoneração pelo fato de o diretor da PF ser subordinado a ele. É uma formalidade do Planalto.

Na avaliação de aliados de Moro, Bolsonaro atropelou de vez o ministro ao ter publicado a demissão de Valeixo durante as discussões que ainda ocorriam nos bastidores sobre a troca na PF e sua permanência no cargo de ministro. Diante desse cenário, sua permanência no governo ficou insustentável, e Moro decidiu deixar o governo.

Moro topou largar a carreira de juiz federal, que lhe deu fama de herói pela condução da Lava Jato, para virar ministro. Ele disse ter aceitado o convite de Bolsonaro, entre outras coisas, por estar "cansado de tomar bola nas costas".

Tomou posse com o discurso de que teria total autonomia e com status de superministro. Desde que assumiu, porém, acumulou série de recuos e derrotas.

Moro se firmou como o ministro mais popular do governo Bolsonaro, com aprovação superior à do próprio presidente, segundo o Datafolha.

Pesquisa realizada no início de dezembro de 2019 mostrou que 53% da população avalia como ótima/boa a gestão do ex-juiz no Ministério da Justiça. Outros 23% a consideram regular, e 21% ruim/péssima. Bolsonaro tinha números mais modestos, com 30% de ótimo/bom, 32% de regular e 36% de ruim/péssimo.

O ministro, nos bastidores, vinha se mostrando insatisfeito com a condução do combate à pandemia do coronavírus por parte de Bolsonaro. Moro, por exemplo, atuou a favor de Luiz Henrique Mandetta (ex-titular da Saúde) na crise com o presidente.

Aliados de Moro avaliam que ele foi um dos alvos da recente declaração de Bolsonaro de que usaria a caneta contra "estrelas" do governo.

"[De] algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, tem provocações. A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona", afirmou Bolsonaro, no início do mês, a um grupo de religiosos que se aglomerou diante do Palácio da Alvorada.

Com a saída de Moro do governo, o chefe da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, passou a ser um dos mais cotados para substituí-lo.

Num cenário ainda incerto, um dos desenhos no Palácio do Planalto é de que haja a cisão de Justiça e Segurança Pública, desejo antigo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Se isso se confirmar, a probabilidade maior é que Jorge assuma Segurança Pública por ser policial militar da reserva do Distrito Federal. Há, contudo, uma possibilidade e que ele vá para Justiça, mas considerada menor.

Já para a Justiça, o nome mais forte é o do secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson França, que tem se aproximado de Bolsonaro. Lateralmente, há uma possibilidade de o ex-deputado Alberto Fraga (DEM-DF) ser escolhido.

Fraga, que é amigo pessoal do presidente, poderia ainda ser indicado para a Secretaria-Geral, no lugar de Jorge. Com isso, o governo ganha um político no Planalto para auxiliar na articulação com o Congresso. Hoje, há apenas militares nas quatro pastas que ficam no prédio da Presidência.

Essas mudanças foram tratadas pelo presidente com o governo do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que esteve no Planalto na última quarta-feira (22).


Weiller Diniz: A maldição do capitão

A nostalgia é o insondável sentimento da recusa ou negação do tempo, do espaço ou de ambos. É o sempre querer estar alhures, desejar retroagir. A república brasileira do século XXI é uma sentença esmaecida da nossa ancestralidade. Depois de 5 séculos, ao menos 5 cruéis e pesadas heranças nos agrilhoam ao passado colonial: a inexperiência de administradores, a descontinuidade de projetos, pandemias, a autonomia das capitanias em relação ao poder central, além de um desonroso e obscuro sebastianismo.

Após o ‘achamento’, em 1500, o Brasil amargou 30 anos de completo abandono pela coroa portuguesa. A ambição e entusiasmos concentravam-se nas Índias de Vasco da Gama. Durante 3 décadas de descaso, o país esteve entregue a saqueadores, mercenários, náufragos, traficantes, contrabandistas de pau-brasil e malfeitores de toda ordem. São os nossos primórdios. Terra de ninguém e reles ilha do desdém. A mais pesada das heranças lusitanas, o acaso, mais uma vez, nos pariu.

A embarcação francesa “Peregrina” foi, casualmente, pilhada em um entreposto comercial com toneladas de pau brasil, peles de animais, algodão e aves silvestres. Féria de meses de pirataria francesa em domínios portugueses, o Brasil. Rapinagem e tratados diplomáticos desprezados pela França, coagiram Portugal a colonizar o Brasil para abortar o dreno das riquezas. “Era o prenúncio de tempos sombrios”, pontuou o escritor Eduardo Bueno em “Capitães do Brasil”.

Em meio ao surto de uma pandemia dizimadora – a peste negra que matou D. Manuel, o Venturoso – inaugurou-se o arrendamento brasileiro, a leste de Tordesilhas e, com ele, iniciou-se nossa desventura. Foram rabiscadas 15 donatarias ou capitanias. Os aquinhoados – começo do compadrio e pioneiros do nepotismo – foram escolhidos em conchavos e lobbies junto aos amigos do rei, D. João III. A nobreza, infantes, condes e duques desdenharam a cortesia ultramarina. Aqui desembarcaram, majoritariamente, aqueles de mais baixa patente. Das 15 extensas faixas de terra, 12 foram dadas a capitães e parentes. Alguns jamais pisaram em suas posses.

O colapso do modelo expropriatório não tardou. O fracasso das capitanias foi outro pesado legado. Os capitães não tinham aptidão ou vocação para administrar. Eram íntimos das armas, do conflito, da beligerância e da morte. Administrativamente eram inexperientes, despreparados, desinteressados e sem projetos para desenvolver as propriedades. À exceção de duas capitanias, os capitães naufragaram em terra firme. Uma das heranças mais perversas – as sesmarias – nos amaldiçoaram para a eternidade. É o DNA do modelo latifundiário, da escravidão, monocultura e estratificação social.

Os capitães tinham poderes absolutistas em suas posses. Administrativamente podiam explorar as riquezas, doar as sesmarias e cobrar impostos; politicamente faziam as próprias leis com poder de escravizar; judicialmente tinham o poder de prender, arrebentar e matar. As leis eram circunscritas aos limites geográficos das capitanias. Cada estado forjava sua lei. A Coroa – ávida pelos 10% dos capitães e o quinto de 20% das riquezas minerais – desprezava o barril de pólvora na iminência de explodir em razão dos conflitos internos. A alternativa ao descalabro foi o centralismo da administração em 1548, com o 1 governo-geral.

A anarquia colonizadora ocorreu em meio ao sebastianismo ou mito sebástico. Um fenômeno de tola crendice popular envolvendo o falecimento de rei português, D. Sebastião, “O Desejado”. Morto em uma batalha na África e sem localização do corpo, disseminou-se um movimento messiânico de salvação através do renascimento do rei. A espera do ressurgimento do mito salvador se espalharia pelo mundo.

Jair Bolsonaro é o atual capitão da donataria. É um peregrino que gosta de predicações golpistas, sabota a ciência e tem desvarios monárquicos absolutistas. É a síntese do Brasil colônia: atrasado, belicoso, primitivo, desprezado pelo mundo e condenado a ruína. A estreiteza para gerir o Brasil é notória e antecede a pandemia. Não apresentou projetos ao país e troça com o diversionismo incensado por abjetas criaturas do rei e o gabinete do ódio. O esvaziamento político, derivado da inépcia, levou o capitão ao isolamento, como no período pré-colonial.

A federação vem sendo redesenhada por travas do Supremo Tribunal Federal. Os estados – como no Brasil colônia – tocam autonomamente a proteção sanitária a despeito do charlatanismo presidencial. As comichões autocráticas, típicas dos capitães de outrora, são democraticamente rechaçadas pelas instituições e o isolamento vai se transformando em confinamento. O débil sebastianismo também é indesejado e será exorcizado. Tampouco conseguirá restaurar os poderes absolutistas dos seus antepassados capitães.


Maria Cristina Fernandes: A cilada do impeachment

Pedido é a isca jogada por Bolsonaro para se vitimizar e unir militares em sua defesa

O presidente da República participou de uma manifestação que tinha por objetivo subverter a ordem política, infração que o enquadra tanto na Lei de Segurança Nacional quanto na Lei do Impeachment. Ao fazê-lo diante de um quartel, além de incitar militares à desobediência, preceito que também o enquadra nesta lei, infringiu a norma que submete atividades no perímetro de 1.320 metros dos quartéis militares à autorização se seus comandos.

Sozinha, a manifestação de domingo já dá motivos de sobra para juristas redigirem empolados pedidos de impeachment. Somado ao estímulo do presidente a que as pessoas quebrem o isolamento social, colocando em risco o direito coletivo e individual à saúde, tem-se aí abundantes argumentos para o afastamento do presidente do cargo. É um prato cheio de iscas.

O PT já fisgou a primeira ao aprovar o mote #forabolsonaro. Ao fazê-lo, o partido reverte decisão tomada dias atrás e torna-se a primeira grande legenda a cair na armadilha que o presidente montou para se apresentar como vítima de uma conspiração. Foi seguido pelo PDT, que briga pela hegemonia dos escombros da oposição.

O comando de caça aos esquerdistas continua vivo no bolsonarismo, ainda que roto e amarelado. No poder, o presidente da República ganhou novas bandeiras. Quer reviver o espírito antipolítica que move tanto as Forças Armadas quanto a classe média urbana desde o tenentismo e foi, em grande parte, responsável por sua eleição.

Para isso, gostaria de fisgar a Câmara dos Deputados e, se der, até o Supremo Tribunal Federal. Um inimigo comum com os militares é um cobiçado objeto de desejo do bolsonarismo e mesmo entre os militares mais abespinhados com o ato de domingo, encontra-se convergência com o discurso de que não o deixam governar. Ter evidências de que Rodrigo Maia estaria envolvido numa articulação para derrubá-lo é tudo que o presidente precisa para unificar, em sua defesa, militares da reserva e da ativa, em grande parte divididos em relação aos limites de sua provocação.

A ferida do domingo ainda está aberta. O acerto feito entre o comandante do Exército, Edson Pujol, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva era o de que o primeiro cuidaria das tropas e o segundo, da política. A geração que hoje ocupa cargos de comando nas Forças Armadas ainda se ressente por pagar o preço de um golpe do qual não participou. Por isso, a Pujol caberia manter as tropas longe da política e a Azevedo, tomar conta para que o capitão, além de militarizar o Palácio do Planalto, não se arvorasse a politizar os quartéis.

Faz tempo que esse acerto foi destroçado, se é que, algum dia, chegou a ter validade. No dia seguinte ao ato de domingo, quando o comandante do Exército não foi capaz de mandar sua tropa enxotar quem fazia do perímetro militar um palanque antes da chegada do comandante supremo, Bolsonaro encenou, mais uma vez, o papel de capitão tutelado. E debochado. Ao proclamar que ele era a Constituição, porém, gozou, mais uma vez, de seus bedéis.

Foi assim que o ministro da Defesa foi levado a emitir a nota na qual diz que as Forças Armadas só têm um aliado, a Constituição e, no momento, um inimigo, o coronavírus. Parece pouco, mas seus redatores viram ali o limite até onde um subordinado pode ir.

Os militares parecem se manter silentes frente a um governante que namora à luz do dia com o golpismo porque a alternativa os expõe ainda mais. O que seria um governo Hamilton Mourão senão a farda, sem disfarces, no poder? Por isso, desencadearam a operação panos-quentes. Buscaram interlocutores para mediar a relação com o Congresso. O apelo foi o de que era preciso pacificar para o capitão não radicalizar. Seria preciso aceitar um presidente que estupra mas não mata a Constituição.

De pelo menos um interlocutor ouviram que de nada adiantaria se vestir de bombeiro se o presidente- incendiário permanecia incontido. Bolsonaro voltou o gabinete do ódio contra o projeto aprovado na Câmara de ajuda a Estados e municípios. Considera-o pauta bomba, tanto pelo rombo nas finanças públicas quanto pelo benefício a seus adversários.

Mas isso não justifica que saia proclamando apoio a um ato pela prisão do presidente da Câmara. O segundo mandato de Dilma Rousseff não teria chegado a abril de 2016 se ela tivesse ido à rua protestar contra a patifaria de Eduardo Cunha, das pautas bomba e de todas as emendas impositivas aprovadas durante a agonia de seu mandato. Bolsonaro prova do mesmo veneno que vitaminou sua ascensão. E sinaliza que vai dar continuidade ao banquete.

Para isolar o presidente da Câmara, oferece aperitivos ao Centrão. Vai distribuir os de sempre, Funasa, FNDE, Codevasf, sabendo que vão pedir de entrada as agências reguladoras e, de prato principal, a presidência da Câmara. Como tanto o Executivo quanto parte do Centrão querem se ver livre de Maia, tudo parece convergir para o bem da nação. Só que não.

As lideranças que negociam com Bolsonaro são as mesmas que, em 2016, almoçavam com Dilma e, no mesmo dia, jantavam com Michel Temer. Vão sair correndo do porão antes de o barco começar adernar.
Furos não vão faltar. Paulo Guedes perdeu a aula que ensinava a gastar. Vai ficar ainda mais perdido num governo não vai conseguir se desvencilhar dos auxílios que começou a pagar. Se no Sudeste, os R$ 600 não refrescam o motorista do Uber, no Nordeste já bombou a venda de ovos. O pessoal que tomou conta do governo sabe abrir para-quedas melhor do que fechar contas.

Some-se a isso os dois inquéritos que tramitam no Supremo, fake news e ato antidemocrático, nas mãos do mesmo relator, Alexandre de Moraes. Como poderá compartilhar provas entre um e outro processo, a busca pelo nome e sobrenome do personagem por trás de ambos estará facilitada.

Por isso, o pedido de impeachment é contraproducente. E arrisca a antagonizar a oposição com a maioria que, se não aprova Bolsonaro, tampouco quer tirar o foco do principal, que é a pandemia. As cordas estão aí. O capitão que não consegue colocar uma máscara de proteção ainda está por se mostrar capaz de tirar o novelo que ele mesmo enrola no pescoço. Num país que está na UTI, quem se apresentar para puxá-lo vai passar por carrasco.


José Serra: A democracia sob ataque

Se tentasse agir fora dos limites da lei, o Poder Executivo seria contido pelas instituições

Quem estava atribuindo a última das crises governamentais ao estilo do presidente da República e ao conflito entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta não perdeu por esperar além de um par de dias. O presidente já está desautorizando o ministro recém-empossado, Nelson Teich, e desafiando o compromisso do novo ministro com uma atitude cautelosa e baseada em fatos comprovados, de revisão da política de isolamento.

Os menos pessimistas esperavam que, afastado o ministro que seria um suposto desafeto, Bolsonaro deixaria a política de combate à pandemia em mãos da autoridade competente, aliás, declaradamente em “alinhamento completo” com ele, e assumiria como prioridade total a gestão da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia. Mas sua conduta depois da demissão de Mandetta parece ser não mais a de combate à política identificada com seu ex-ministro, mas a de insatisfação com as instituições da República.

No domingo Bolsonaro liderou um comício em praça pública não para protestar contra o isolamento, como vinha fazendo, mas, como disse, a fim de dar sua vida “para mudar o destino do Brasil”. Em seu discurso, em palanque improvisado da caçamba de uma picape, deu um passo a mais em sua verdadeira campanha contra o Congresso, o Supremo, os partidos políticos e mesmo contra a Constituição, não só com palavras, mas também com condutas pouco apropriadas ao papel presidencial no Estado Democrático de Direito.

Em poucas palavras, expressou teses esdrúxulas sobre a democracia, como o conceito equivocado de que “todos estão submissos à vontade do povo”. Nas democracias, o povo não submete nem é submisso à vontade de ninguém. Só se submete à Constituição, que garante a sua liberdade e emana dele próprio, o povo.

O contexto do discurso, as palavras de ordem implícitas que não vêm de hoje - como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos partidos, e a substituição da Constituição pelo famigerado AI-5 - são questões graves. Evidenciam que, para Bolsonaro e seus seguidores, as autoridades legitimamente eleitas devem submeter-se a uma massa rebelada comandada por ele, que se compromete a fazer não tudo o que a Constituição permite, mas “tudo o que for necessário” - linguagem da política associada à da violência.

O povo brasileiro reconquistou sua liberdade em 1985, pelo voto popular, com imensas manifestações políticas - a campanha das Diretas-Já - e uma negociação realista entre praticamente todas as tendências da oposição, que escolheram Tancredo Neves e puseram fim a um longo período de regime autoritário. A Constituição de 1988, cuja legitimidade veio do voto popular, estabelece que a representação do povo, que se expressa nas urnas, e não em carreatas, é prerrogativa compartilhada pelo Legislativo e pelo Executivo. Qualquer medida de força contra o Congresso equivaleria a tentativa de golpe.

Talvez os inspiradores do presidente - não por acaso dotados de escassa experiência de vida pública, com pouco ou nenhum conhecimento da gestão de governo e nenhuma capacidade para avaliar tanto obstáculos reais como a resiliência dos que tratam como adversários - tenham elucubrado uma tática de provocar o Parlamento, com o propósito de induzi-lo a erro e justificar um golpe de força contrário.

Mas o Congresso, cuja experiência mediana de vida pública é considerável, incluindo familiaridade com a gestão de governo, e muitas vezes décadas de habilidades para fazer e receber concessões, não deverá cair nessa arapuca. Ao contrário, poderá exercer os freios e contrapesos que a Constituição lhe outorga para se contrapor a eventuais deslizes do presidente.

Talvez o primarismo das táticas de alguns dos inspiradores da Presidência os conduza ao devaneio de um golpe com apoio militar. Tratar-se-ia de uma perfeita manifestação de alienação do que hoje representam as Forças Armadas brasileiras, institucionalmente comprometidas com o Estado Democrático de Direito e com suas responsabilidades de manutenção da ordem interna e da defesa externa do País. Elas dispõem de uma oficialidade altamente preparada, disciplinada e hierarquizada, que repelirá qualquer tentativa contra a ordem democrática, como - fique bem claro - seus dirigentes têm tornado público inúmeras vezes.

Caso tentasse agir fora dos limites da lei e em desrespeito à Constituição, o Poder Executivo seria contido pelas instituições. Para tanto os cidadãos brasileiros contam com o Supremo Tribunal Federal, um Poder que fala pela Constituição e se há de pautar pela absoluta neutralidade partidária, ideológica e religiosa na imposição da lei.

Uma certa perda de confiança do Parlamento no presidente vem se avolumando desde sua eleição e a ela se soma um começo de desgaste de sua popularidade, uma vez que ele criou expectativas altas sem que as razões do descontentamento popular com os serviços públicos essenciais fossem bem enfrentadas por seu governo. Com popularidade relativamente menor e desconfiança do Parlamento, Bolsonaro terá de mudar, pois a democracia brasileira ele não mudará.

*Senador (PSDB-SP)


RPD || Editorial: Escalada autoritária

Mais uma vez, o Presidente da República consegue surpreender os cidadãos brasileiros. Comparece a uma manifestação convocada nas sombras de seu governo, endossa com sua presença as consignas autoritárias das faixas e cartazes ali levantados, promete a mudança radical no rumo de um novo e puro país, tudo para desmentir, no dia seguinte, qualquer intenção golpista. Se o roteiro é sempre o mesmo, pois se trata, afinal, de fazer retroceder as fronteiras do inaceitável, a ousadia dos atores é crescente.

Curiosa cruzada essa que investe simultaneamente contra a democracia e a ciência. Parece ter como premissa a incapacidade de os brasileiros estabelecerem relações de causa e consequência, tanto para prever o futuro, quanto para avaliar o passado. É certo que há concidadãos, letrados inclusive, que relutam em perceber que nossa situação hoje é em tudo similar à de outros países, semanas antes de mergulharem no abismo.

No entanto, são poucos. E, como mostram as notícias do mundo, quando a questão é perda de vidas, não há como ignorar para sempre a escalada dos números. Ou seja, em algum momento, as responsabilidades políticas pelo caos que está por vir serão estabelecidas e cobradas.
Cumpre reconhecer, contudo, que a crise sanitária provocada pela pandemia é um ingrediente exterior, que se soma, entre nós, a um processo político anteriormente iniciado e com ele se combina.

Está em curso, desde a apuração dos votos no segundo turno das eleições de 2018, uma escalada golpista no país. As manifestações visíveis dessa escalada são o comportamento do Presidente da República; os fluxos poderosos de falsa informação disseminada nas redes sociais contra seus presumidos desafetos ou em favor de suas bandeiras; e a insistência de um pequeno número de seguidores em sair às ruas, manifestando-se contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, em favor de uma intervenção militar.

É urgente enfrentar e derrotar essa escalada. Essa tarefa exige a ação firme das instituições e o diálogo e a cooperação entre todas as forças democráticas, na União, nos Estados e nos Municípios. Câmara dos Deputados, Senado Federal e Supremo Tribunal Federal devem acordar uma reação articulada aos desatinos do Presidente. Regras relativas à identificação e responsabilização de produtores e divulgadores de falsidades nas redes devem se aprovadas e aplicadas. Lidar com as ruas, por sua vez, é tarefa dos governadores, dos legislativos estaduais, do Judiciário e do Ministério Público nos Estados.


RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada

Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência

O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.

O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.

O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.

Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.

Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.

Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.

Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.

Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.

No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.

Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.

Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.

Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.

Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.

*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).


RPD || Marco Aurélio Nogueira: Serenidade, moderação, realismo

Bolsonaro torna ainda pior o grave momento que todos enfrentam por conta da pandemia do coronavírus - Covid-19, avalia Marco Aurélio Nogueira em seu artigo. Para ele, o presidente "não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais"

Discursos e narrativas à parte, é preciso ir ao centro da crise sanitária desencadeada pelo corona vírus. Dentre muitas coisas e tragédias humanas, ela expôs e agravou outras crises, que já vinham em curso. A econômica e a política, evidentemente, mas também a crise de ideias.

Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia. O governo não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais. Em vez disso, sobre os esforços do Ministério da Saúde e dos profissionais do sistema sanitário, o que há é disposição para o conflito, a arruaça, a briga de rua. Bombeiros movimentam-se o tempo todo, mas pouco fazem para conter a fúria e o ódio que se alojaram no Palácio do Planalto. A suspeita é que os que dizem querer diminuir danos não sabem bem o que desejam. Faltam-lhes coragem, clareza de propósitos, aquilo que os antigos chamavam de hombridade: honradez e determinação.

Está dada uma articulação maléfica, que se reproduz ainda que em condições menos favoráveis do que no ano passado. O presidente fala e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo. Não se pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder. Os olhos esbugalhados apontam para 2022 e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha. Azar da realidade.

Outra articulação, benéfica mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional.

O isolamento está sendo compreendido pela população e a grande maioria, segundo pesquisas recentes, concorda que ele é vital no momento. Mas os sinais contraditórios são muitos, a dubiedade do discurso governamental confunde, a cultura presidencialista do País faz com que as pessoas valorizem o mau exemplo dado pelo presidente e desconfiem das outras orientações. É uma luta surda, diária, um embate incessante entre diretrizes que buscam preservar vidas e diretrizes tresloucadas que alegam privilegiar o trabalho.

Basta que 20% dos brasileiros desobedeçam para que 50 milhões de pessoas passem a fazer a festa do Covid-19. Só em São Paulo seriam cerca de 8 milhões. Sabe-se bem que não há como manter todos confinados por longos períodos. Não é só porque a economia não pode parar. É porque as pessoas não conseguem ficar em casa passivamente, olhando a vida pelas janelas. Há inquietação e insegurança nelas. A população é um conjunto complexo. Está composta por gente que não se controla, gente que não tem para onde ir, gente que não tem onde ficar, gente que não tem imaginação, gente que gosta de agitar. Bolsonaristas fanáticos fazem parte dela. Estão nas ruas, em carreatas e abraçando o “mito”, como se não houvesse amanhã.

São pessoas desprovidas de inteligência cívica, que não se orientam pelo bom senso. Quantos seriam bolsonaristas, quantos são simplesmente tontos ou irresponsáveis, quantos são ingênuos, desinformados ou burros? Quantos irão se arrepender ou assumir a culpa pela contribuição dada à infecção generalizada e rápida da população, com o correspondente colapso do sistema de saúde?

São perguntas que apontam para o dilema que está atravessado na garganta da democracia brasileira: como sair da crise em que nos encontramos, não somente a sanitária, mas a política, aquela que tem a ver com a reorganização do Estado e do próprio sistema representativo? Aquela que tem a ver com a organização de um governo que governe, que articule os interesses da maioria da população, promova um crescimento econômico inteligente, não produtivista, distribua renda e combata as desigualdades abissais que dilaceram a sociedade, que “pacifique” a população?

A perspectiva política precisa olhar para além do futuro imediato, por mais que tenha também de operar com os olhos nas circunstâncias do presente, na crise sanitária e nas eleições municipais. 2022 passa por 2020 e será definido pelo que vier a ser feito depois da pandemia. Há uma tarefa imediata: articular os democratas para que seja possível fazer frente ao bolsonarismo. O realismo político precisa ser cultivado com dedicação.

O bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial. Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é “antipetista”, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de “olavismo”, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática. Não é religioso, pois lhes faltam a humildade, a compaixão, a solidariedade. Sua natureza é o fanatismo, a disposição de fazer tudo aquilo que o mestre mandar. Para esse estado de espírito, a realidade não é algo que se deve compreender, mas mero componente da paisagem desenhada por ideologias e convicções.

Diferentemente das anteriores, a pandemia atual eclode em uma estrutura mundial tão interconectada e tão “móvel”, com pessoas e mercadorias atravessando sem cessar os continentes, com variações climáticas intensas, que permitem a todo e qualquer patógeno se espalhar com extrema facilidade. Ao menos no médio prazo, não haverá como impedir que outras epidemias se disseminem sequencialmente, mais avassaladoras ou menos.

A resposta para isso é conhecida por todas as pessoas sensatas: aposta na ciência, melhoria radical dos sistemas de saúde, produção autóctone de equipamentos hospitalares, educação, cooperação, articulação internacional, políticas econômicas inteligentes, ambientalismo ativo.

Caminhar em sentido contrário, propalando curas milagrosas e poções mágicas, banalizando o vírus e politizando o combate a ele é simplesmente ir contra a vida.

A pandemia modificou o cenário político, externo e interno. No Brasil, a polarização mudou de eixo. A questão passou a ser isolamento ou não, saúde ou economia. O presidente percebeu que a água chegou ao pescoço e se debate freneticamente, pratica uma barbaridade por segundo, compra uma briga por dia. Não governa, nem mostra interesse em fazer isso. Sua meta é convencer a população de que o inimigo por trás do vírus são seus adversários políticos, o PT, a esquerda e o “comunismo” à frente.

O petismo, por sua vez, encurralado e sem força propositiva, procura aproveitar a posição em que está sendo colocado, pois ela embala seus sonhos de revanche e retorno glorioso. Porém, como escreveu a jornalista Rosangela Bittar (Estadão, 15/04/2020, p. A8), “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas. Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem”.

O estado de espírito bolsonarista não será enfrentado com bravatas personalistas ou lideranças carismáticas, mais populistas ou menos. Exigirá uma perseverança pedagógica, um processo de educação cívica que somente poderá ser posto em marcha se houver articulação democrática consistente. Tendo em vista a atual correlação de forças, a estrutura existencial da época e a situação social – desnivelada em termos de renda e inclusão, fragmentada ideologicamente, muito polarizada em termos políticos –, essa articulação não poderá ser “revolucionária”, quer dizer, seu ponto de inflexão não terá como se firmar a partir da esquerda. Seu campo de atuação será democrático e republicano, seu reformismo precisará ser seletivo, focado, liberal-social, não poderá ser concebida como a abertura de um ciclo de reformas estruturais profundas, “populares”. A moderação será sua condição de existência. A busca de renovação se condensará no surgimento de novas lideranças políticas e de composições políticas que estejam além dos partidos existentes. O que está estabelecido não poderá ser simplesmente reproduzido. Sob pena de se ter mais do mesmo.

De resto, é plantar no deserto, achar que a “sociedade” irá se voltar contra os políticos em nome da democracia. Se alguma revolta desse tipo ocorrer, seu Norte não será democrático, como nos revela a marcha do bolsonarismo. Se quisermos democracia, o caminho há de ser outro e terá de ser construído pelas elites políticas, pela intelectualidade, pelos partidos, pelas organizações da sociedade civil. Politicamente, com persuasão, realismo, educação cívica, serenidade e cooperação.

 


O Estado de S. Paulo: Nove partidos planejam ingressar com notícia-crime por participação de Bolsonaro em ato

Legendas também decidiram fazer atos virtuais com a participação de lideranças que estavam em campos opostos há anos, como Lula, Marina Silva e Ciro Gomes

Ricardo Galhardo, O Estado de S.Paulo

Presidentes e dirigentes de nove partidos de oposição reunidos nesta segunda-feira, 20, por videoconferência, decidiram ingressar com uma notícia-crime contra o presidente Jair Bolsonaro por ter participado de um ato pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) e pela destituição dos governadores na tarde de domingo, 19. Além disso, as legendas decidiram fazer uma série de atos virtuais com a participação de lideranças que estavam em campos opostos há anos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os ex-presidenciáveis Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT), entre outros.

A ideia é que a notícia-crime seja apresentada por entidades da sociedade civil e não pelos partidos e seja acompanhada de um amplo processo de mobilização com a presença de artistas e dos principais líderes da oposição.

A estratégia seria um ¨caminho rápido¨ para afastar Bolsonaro. Caso o STF aceite a denúncia, um pedido de autorização para o presidente ser processado é encaminhado à Câmara. Com votos de 342 dos 513 deputados, Bolsonaro seria afastado por 180 dias. O processo de impeachment demoraria mais de seis meses.

Os partidos pretendem levar a propostas a entidades da sociedade civil como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), entre outras, para que elas sejam as signatárias da ação.

Em paralelo, os partidos (PSOL, PT, PCdoB, PDT, PSB, Rede, PCB, PV e Rede) decidiram realizar uma série de atos virtuais contra Bolsonaro, com o mote ¨em defesa da vida, da democracia e do emprego¨. Os caciques se revesariam em "lives" com grandes artistas.

A ideia surgiu durante uma reunião de trabalho do fórum dos presidentes das siglas. A líder do PT, Gleisi Hoffmann, perguntou durante a reunião como cada partido está tratando o "Fora Bolsonaro". Alguns, como o PCdoB, disseram ser contra. O argumento é que a campanha abriria espaço para pressões por um pedido de impeachment e em caso de permanência, Bolsonaro sairia mais fortalecido.

Depois de recusar duas vezes propostas de correntes minoritárias, o PT deve empunhar a partir de amanhã a bandeira do "Fora Bolsonaro". Lula vai participar de uma reunião remota com as bancadas na Câmara e no Senado.

Segundo fontes do partido, o ex-presidente está convencido da necessidade de o partido ser mais incisivo no enfrentamento ao governo. Desde o início da crise causada pela pandemia do coronavírus o PT, maior partido da oposição, vem tentando assumir uma posição de destaque mas perdeu o protagonismo para lideranças como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).