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Alberto Aggio: Na grande crise que vivemos é preciso resistir e derrotar Bolsonaro

Este vídeo faz parte de uma excelente iniciativa da Unesp que se propõe discutir as implicações da epidemia do Covid-19 para o país e o mundo. A ênfase da intervenção está centrada no diagnóstico da “grande crise” que vivemos (sanitária, econômica e política) e na dinâmica perversa que se instalou gerando milhares de mortos e centenas de infectados. O problema não envolve apenas a dimensão sanitária, a despeito da sua forte especificidade.

O problema tornou-se fundamentalmente político pelo comportamento aberrante do presidente Jair Bolsonaro, desdenhando as orientações médicas, manifestando comportamentos impróprios e exemplarmente negativos e, por fim, desorientando a população na medida em que confronta abertamente as orientações e medidas dos governadores e prefeitos que seguem as indicações da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Em meio à “grande crise”, Bolsonaro se tornou um agente provocador e negativo para o país. O Brasil precisa resistir a Bolsonaro em seu movimento sinistro contra os brasileiros. Em defesa da vida, contra a morte!

https://youtu.be/lchTBxbCqps

Míriam Leitão: A esperança, o poeta e o tempo

Nossa esperança de novo se equilibra. Perdemos quem cantou para o país que dores pungentes não podem ser inutilmente. Com seu talento, Aldir Blanc fez do sofrimento de um tempo extremo músicas que nos ajudaram a seguir por um trilho estreito. É impensável tudo isso que anda acontecendo, mas a verdade é que tantos anos depois, de novo, a tarde parece cair como um viaduto. A doença que o atingiu já levou mais de sete mil brasileiros, e o Brasil dança na corda bamba. Várias cordas, todas bambas. A da luta diária pela vida, a de um país atormentado, a de velhas sombras que o próprio governante joga sobre nós.

As más intenções estão sendo ditas pelo presidente Jair Bolsonaro, por atos e palavras. Todos os dias. Ele se reuniu com os militares no domingo. Ouvi um general do alto escalão do governo, e ele me disse que existe uma “extrapolação de funções por parte do Judiciário”, e que isso vem desde 2014. Citou dois exemplos, a escolha de auxiliares e a política externa. Seriam prerrogativas do chefe do Executivo que foram invadidas. Portanto, o que senti nessa autoridade foi apoio ao presidente em dois fatos específicos: a suspensão da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal e o problema dos diplomatas venezuelanos. Bom, uma coisa é a fricção que possa existir entre os poderes. Normal. Outra é fazer o que Bolsonaro fez.

Bolsonaro usou as Forças Armadas para ameaçar quem pensa diferente daqueles que, ao seu lado, na manifestação de domingo, pediam a volta da ditadura. O protesto contra a democracia poderia ser um evento menor, ainda que sujeito à punição legal, mas o ato se agiganta quando o presidente comparece e afirma: “As Forças Armadas estão do nosso lado.” E quem não está daquele lado deve pensar o quê?

O Brasil tem vivido entre cantos e chibatas há tempo demais. Há muitas pedras pisadas nesse nosso cais. Não é possível, à luz da história, reduzir a gravidade do que tem acontecido diante de nós, na frente de prédios que simbolizam o poder no Brasil. Quem viveu não pode dizer que não vê. Os olhos dos fotógrafos veem melhor. São agudos, têm foco, não se perdem na multidão. E por isso sobre eles veio a agressão de domingo no ato em que o presidente se divertia espalhando ultimatos para os poderes.

Da autoridade com quem eu tentei entender como o ato de Bolsonaro era visto, eu só ouvi crítica aos manifestantes. Alguns teriam “ideias radicais e que não param em pé”. A fonte garantiu que “ninguém vai embarcar numa aventura”. É o mesmo que ouvi de outras fontes há duas semanas, quando o presidente também participou de uma manifestação contra a democracia. Essa primeira é objeto de um inquérito. Portanto, Bolsonaro participou de um evento semelhante a outro que está sob investigação. Ele dobrou a aposta.

As Forças Armadas no começo da tarde soltaram a segunda nota em apenas 15 dias. Disseram que são democráticas, repudiam as agressões aos jornalistas e que “estão do lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. Bolsonaro também listou esses quatro, “lei, ordem, democracia, liberdade”. E acrescentou: “estão do nosso lado.” O Ministério da Defesa não refutou essa insinuação de estar a favor de manifestantes que querem fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Fica mais um silêncio pesando sobre o país.

A tibieza das instituições, a desenvoltura com que o presidente fere as leis, a agressividade que ele autoriza que seus apoiadores pratiquem, ao lançar, ele mesmo, ofensas verbais contra pessoas ou instituições, o assalto aos órgãos de Estado. Tudo vai se misturando, tudo lembra o passado. “Batidas na porta da frente. É o tempo.”

Quando Aldir Blanc e João Bosco lançaram a música que virou hino, “O bêbado e a equilibrista”, a gente vivia sentimentos mistos. O país carregava muitos anos de dor, mas o irmão do Henfil estava voltando e “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Então era cantar bem forte, junto com Elis, o fim daquele exílio. E agora? Qual é a melhor resposta ao tempo que bate na porta? Que ele passe. Porque tudo isso foi há muito tempo nas águas da Guanabara. E para o poeta que nos deixou, vítima da pandemia, a gente pode cantar sua música que fica como um legado, um carinho, no meio de tantas lutas inglórias.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)


Demétrio Magnoli: O paradoxo de Bolsonaro

O cenário é sombrio para o presidente da ‘gripezinha’

Meio a meio, duas vezes. A pesquisa Datafolha realizada na esteira da demissão de Sergio Moro indicou 45% favoráveis à deflagração de processo de impeachment e 48% contrários. O instituto também registrou queda de apoio ao isolamento social, agora em 52%, contra 46% que querem a “volta ao trabalho”. Paradoxalmente, a mesma emergência sanitária que precipitou a crise do governo mantém Bolsonaro à tona — e não apenas porque impede manifestações públicas.

O cenário é sombrio para o presidente da “gripezinha”. O “estado de guerra”, como regra universal, dá coesão às sociedades em combate ao “inimigo comum”. Pelo mundo afora, os governos ganham popularidade na emergência do coronavírus. O Brasil, onde metade dos eleitores pede a adição de uma crise institucional à crise da pandemia, é a única saliente exceção.

Moro entrou em confrontação letal com Bolsonaro, cindindo a coalizão política e social de sustentação do governo. O ex-juiz, ex-ministro e sempre candidato leva ao campo de batalha o “Partido dos Procuradores”, duas legendas parlamentares (PSL e Podemos) e uma camada de eleitores incensados pela narrativa da luta contra a corrupção. Segundo o Datafolha, 52% avaliam que, no intercâmbio de acusações, a verdade está com Moro, contra escassos 20% de crentes na palavra presidencial.

Mas os números são caprichosos, solicitando leitura mais sofisticada. O governo mantém apoio de 33% dos eleitores, e o desempenho de Bolsonaro na crise sanitária tem o aplauso de 27% e uma resignada aceitação de outros 25%. Vitória na derrota: o presidente resiste, ainda sem ventilação mecânica. A solução do mistério encontra-se na dependência e nos sofrimentos impostos pela emergência sanitária, subestimados entre analistas que fazem quarentena com vista para o mar.

Dezenas de milhões começam a receber os esquálidos, mas vitais, R$ 600, que levam a assinatura oculta do presidente. Cinco milhões de trabalhadores formais já perderam seu empregos ou experimentam cortes salariais. Multidões de comerciantes assistem, impotentes, à destruição de negócios que garantem a renda familiar. Cumpre não confundir essa vasta parcela da população com o núcleo militante bolsonarista, que reage a estímulos ideológicos extremistas.

O apelo da “volta ao trabalho” cala fundo no Brasil que não pratica o nobre esporte do home office. Uma sondagem conduzida pelo cientista político Carlos Pereira e publicada no “Estado de S. Paulo (20/4) mostra nítida correlação positiva entre apoio às ações de Bolsonaro na pandemia e a vivência de prejuízo econômico pessoal. O medo de um vírus de consequências incertas atenua-se diante da certeza da perda de meios dignos de subsistência.

A cláusula de exceção, detectada pela sondagem, é o conhecimento direto de pessoa que faleceu sob a Covid. Dois terços dos óbitos no Brasil concentram-se em cinco regiões metropolitanas. Num país de 217 milhões de habitantes, quase ninguém conhece algum dos mais de 7 mil mortos, especialmente em milhares de cidades do interior.

Bolsonaro não perde eleitores, mas os substitui. Saem os admiradores incondicionais do xerife da Lava-Jato. Entram os órfãos da quarentena, espalhados social e geograficamente. Qualificá-los como ignorantes ou incultos nada revela sobre eles. Diz muito, porém, sobre a bolha de classe que delimita o olhar dos analistas.

“Não vão botar no meu colo uma conta que não é minha”, reclamou Bolsonaro, referindo-se à sinistra contabilidade das mortes. O presidente, que não se descolou de Trump tanto assim, cobra de outros a dívida do emprego mas recusa a fatura dos óbitos. Ele nem simula governar, operando como agitador de rua. De um lado, clama contra os governadores e provoca aglomerações. De outro, abstém-se de usar suas prerrogativas para reabrir escolas federais ou liberar acesso às praias e parques nacionais — e seu novo ministro da Saúde jura respeito às determinações estaduais de isolamento social.

A curva da Covid no Brasil tem a forma de um morro em meia-laranja. Já a curva de nossa epidemia política vai adquirindo as feições dramáticas de um Everest.


George Gurgel: Tempos difíceis. O imperativo da democracia e do diálogo

Estamos vivendo uma situação mundial e nacional de crises. A pandemia colocou em evidência a insustentabilidade da sociedade contemporânea. Coloca-se o imperativo de defesa e ampliação da democracia como caminho para a construção de novas relações centradas na vida e na preservação da natureza.

A pactuação desta construção, através do dialogo e da cooperação permanente, é o desafio colocado às dificuldades que estamos vivendo no Brasil e em toda humanidade. A pandemia desnuda as fragilidades do sistema político, econômico e social em que vivemos.

O confinamento social está nos proporcionando uma necessária reflexão individual e coletiva. Como estamos pensando e agindo na perspectiva de superação desta complexa realidade?

A pandemia está nos transformando. Sob qual perspectiva nos colocamos?

As mudanças estão acontecendo no mundo do trabalho e da cultura. A vida em home office já está proporcionando mudanças significativas no nosso cotidiano. Muitas vieram para ficar.

Estamos nos vendo melhor e, portanto, vendo melhor o outro. O isolamento social está nos aproximando e nos fazendo pensar e agir de outra maneira, entendendo melhor as nossas limitações e fragilidades individuais e coletivas. Estamos e podemos ser melhores. Há uma preocupação maior para o que nos faz humanidade: a cooperação, a solidariedade, a luta pela igualdade, liberdade e fraternidade.

A realidade grita a favor dos excluídos, nos agride com a chegada da pandemia. Coloca nas ruas e nas redes a tragédia social de milhões de pessoas, excluídas das conquistas sociais elementares (trabalho, alimentação, moradia e saúde-saneamento básico). Será o despertar da sociedade para a importância de cada ser humano, independente em que lugar esteja no Planeta?

No Brasil, a polarização da cena política, delineada de uma maneira contundente nas últimas eleições presidenciais, levou Jair Bolsonaro à Presidência, em 2019.

É a vitória das forças conservadoras, do discurso liberal na economia, de uma efetiva participação dos militares na política e a derrota daquelas forças políticas fiadoras da transição democrática e que estiveram de maneira alternada, no centro do poder no Brasil, nos últimos 30 anos. É a derrota principalmente do PT, da maneira como agiu e construiu o exercício do poder durante os quatro mandatos na Presidência da República.

Assim, as forças conservadoras chegam ao poder pelo voto, com apoio dos militares, através de uma liderança que foi menosprezada até as eleições, pelos partidos hegemônicos da política brasileira.

Desde os primeiros dias de mandato de Jair Bolsonaro, inaugurou-se uma maneira de governar pautada na agenda do cotidiano presidencial, espetacularizada no dia a dia dos meios de comunicação, inédita na vida nacional.

A crise recente instalada no Governo Bolsonaro, com a saída dos ministros Luiz Henrique Mandetta (da Saúde) e Sérgio Moro (da Justiça), nos desafia como sociedade à construção de alternativas democráticas para o enfrentamento dos nossos problemas cotidianos, de superação da pandemia e o enfrentamento da nossa difícil realidade social, que exclui a maioria da cidadania brasileira das conquistas do bem-estar, aterrorizando em cada esquina a vida dos brasileiros.

O presidente Bolsonaro traz para a cena política um ativismo beligerante do conservadorismo brasileiro. Ameaça e despreza as conquistas do Estado de Direito e da Constituição de 1988. Desautoriza a tudo e a todos. Está recolhido ao seu labirinto familiar, com apoio e a tutoria dos generais e de uma parcela, ainda significativa, da sociedade.

O Governo Bolsonaro movimenta-se para o enfrentamento da atual conjuntura vivida pela sociedade brasileira. Há uma importante inflexão em curso de aproximação do “centrão”, colocando na berlinda o discurso eleitoral e de governo. Atua para a conquista da maioria no Congresso Nacional para barrar impeachment, colocado na sociedade e no Congresso Nacional e, adiante, havendo a continuidade do governo, para aprovação das reformas planejadas, interrompidas com a pandemia.

A política para o presidente Jair Bolsonaro é o confronto. Confronto cotidiano – mesmo quando tenha que recuar no dia seguinte. É o modo Bolsonaro de Ser e de Agir.

A República não é isto. Não pode ser isto. O que pode ser?

O futuro da sociedade e da democracia deve ser, e vai ser, mais generoso para todos os brasileiros e brasileiras. Estamos desafiados à construção de uma alternativa democrática para a nossa sociedade.

A tecelagem de uma alternativa democrática às crises política, econômica, social e sanitária é o desafio de trabalhar a unidade das forças democráticas, dialogando com a cidadania, com o mundo do trabalho e da cultura para a mobilização de uma frente ampla que garanta o Estado de Direito, a defesa da Constituição e a continuidade das reformas, assegurando a melhoria de vida da população.

O momento nos coloca a necessidade de refletir, de sonhar e de agir. A pandemia desafia a tudo e a todos. A própria vida. A ciência, como nunca, é imprescindível. São muitos os questionamentos e as possibilidades de mudanças. Há espaço para o novo, a imprevisibilidade, a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais.

Assim, as condições estão dadas, com cenários plausíveis a serem escolhidos, como acontece nos momentos cruciais da história da Humanidade.

As opções entre a democracia e a barbárie continuam postas. A democracia venceu os grandes embates no século XX. É um processo em construção. A questão democrática se impõe como um valor para a sociedade nas suas relações em si e com a própria natureza.

*Professor da Universidade Federal da Bahia e membro da Fundação Astrojildo Pereira


Fernando Henrique Cardoso: Não esquecer

Passada a tormenta, vê-se que o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes

O tema é repetitivo e desafiador: o coronavírus. Procuro me afastar dele dia e noite, mas ele nos envolve. O vírus está por toda parte, principalmente em nossa alma. Meus pais tinham na memória a “gripe espanhola”. Quiseram de novo tachar o coronavírus como “vírus chinês”. Não pegou, e ainda bem. A propagação do vírus pelo mundo faz-me recordar a advertência do Antigo Testamento: “Pulvis est et in pulvis reverteris” - somos pó e a ele voltaremos. Diante da morte, somos todos iguais. O vírus não distingue gênero, idade, riqueza ou o que seja. Mata muitos e se não nos cuidarmos... Às vezes até mesmo nos cuidando.

Será que esta pandemia servirá para nos darmos conta disso? Sei bem que os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer. Passada a crise, poucos se lembrarão dela. Mas suas marcas vão permanecer e delas devemos cuidar.

Na minha geração não se pode dizer: “Nunca vi tanto horror perante os céus”. Os terremotos matam indiscriminadamente. As guerras também. A bomba atômica dizimou centenas de milhares, e por aí vai. Isso não diminui o pavor diante do que está acontecendo e do que poderá acontecer. A situação obriga-nos a mais humildade e a reconhecer que a desigualdade faz os mais pobres pagarem o preço mais alto das tragédias pandêmicas.

O coronavírus chegou ao Brasil “de avião”. Pessoas das classes mais altas (quanto à renda) viajam mais. No começo foram as que se contaminaram. Agora se vê que é enorme a propagação do vírus nas periferias pobres, nos cortiços, nas comunidades urbanas que ontem chamávamos de favelas (desde a revolta de Canudos, quando os soldados regressavam das campanhas e se amontoavam no Morro da Favela, no Rio). O atendimento da saúde “não dá conta”.

É injusto cobrar só do SUS as falhas havidas. Não fosse ele, só os que podem pagar os serviços médicos e hospitalares seriam atendidos. Ele atende de modo universal. Mas é possível cobrar de quem decide o porquê de tanta “falta”: falta equipamento para os atendimentos, faltam luvas adequadas, faltam máquinas para ajudar a respirar, falta não sei o que mais. Contudo pelo menos há um sistema de saúde pública estruturado, mesmo carente. Na bonança é difícil prever as prioridades e haverá argumentos, até mesmo econômicos, para dizer: isso não é prioritário. E não é só no Brasil que se veem dificuldades no atendimento à saúde, basta olhar para Nova York. É preciso prever.

Que pelo menos a crise atual sirva de advertência para o futuro: há que olhar com mais carinho a saúde pública, a começar pela água tratada e pelo sistema de esgotamento sanitário. Reconhecer que alcançamos melhoria na saúde não quer dizer que conseguimos o necessário. Ao sair da atual pandemia, não nos esqueçamos: ela pode voltar. Quando? Ninguém sabe. Preparemo-nos.

E assumamos que, se é verdade que a crise atual de saúde alcança todo o mundo, também é verdade que ela é mais devastadora para os mais pobres. Por enquanto (sem que se saiba até quando) não dispomos de vacinas nem de medicamentos específicos. Só resta o “isolamento social”. O refrão “fiquem em casa” está por toda parte. Mas que casa? Para os que dispõem do aconchego familiar e dos meios necessários, trabalhar em casa é suportável. Mas quando as pessoas moram empilhadas, sem conforto mínimo, que fazer? Vão para a rua e nem sempre guardam a distância recomendável. E os que trabalham em situações que são essenciais para a sociedade continuar a funcionar, nas fábricas, nos hospitais, no transporte ou onde seja, também ficam em casa? Haverá dois pesos e duas medidas?

Não acho que o mote esteja errado. Ao contrário. Mas urge ampliar nosso senso de realidade. Espero que a gratidão seja concreta para alcançar os que, não tendo meios para ficar em casa, vão à luta. Nesta, que usem máscaras, tomem os cuidados necessários e façam o possível para derrotar o vírus. A luta é dos governos, mas também é de cada um de nós.

O que é descabido é a insensibilidade diante do que acontece, sem ver que estamos imersos num mau momento. Precisamos de coesão. Insistir em que se trata de uma “gripezinha”, ou que “eu fui atleta” e nada me acontecerá, é mais do que equivocado. É irresponsável.

Além de recursos financeiros, precisamos de coesão. Na crise viramos “keynesianos”, cremos que é necessário gastar, pois “o governo” tem de salvar as empresas e as pessoas. Mas nada substitui o carinho, o dar a mão aos que mais precisam e sofrem. Não apenas à moda antiga, dos bons samaritanos. Passada a tormenta, vê-se que foi possível ultrapassá-la porque o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes.

Não basta escolher quem é “do contra”. Os governantes precisam saber decidir e entender que nas sociedades contemporâneas as redes de internet pesam na eleição, mas não dá para governar “contra”. Para fazer frente à situação de tantas crises, fazem falta o senso comum e o do universal. Só juntos se constrói uma nação. A escolha foi e, espero, será nossa, de cada um. Que o erro não se repita. Assim teremos aprendido com a crise.

*Sociólogo, foi presidente da República


Persio Arida: Estabilizar dívida a longo prazo importa mais que conter seu aumento na pandemia

Uma vez que a dívida pública pode chegar a 100% do PIB neste ano, economista diz que o drama não é o patamar alto, mas a percepção de que ela poderia estar em rumo explosivo, sendo fundamental estabilizar tal relação.

Espero que o país saia desta crise o mais brevemente possível, com um senso maior de justiça e solidariedade e evitando a tragédia humana que decorreria da inação e da indiferença em relação à Covid-19. Espero que o custo social da crise seja relativamente pequeno. Espero que sejamos capazes de diferenciar os governantes responsáveis dos incapazes e malandros.

Esperanças à parte, o fato é que não sabemos como e quando a epidemia vai passar. A menos que haja um surpreendente avanço da ciência no curto prazo, teremos provavelmente repiques da infecção e quarentenas intermitentes. E passada a epidemia, além de todos os desafios econômicos e sociais que já existiam, um novo surgirá: a dívida pública será muito maior do que era.

Com exceção dos libertários adeptos do darwinismo social, ninguém discorda da necessidade de o governo sustentar a economia diante do extraordinário desafio que enfrentamos. Por razões humanitárias, devemos gastar o que for necessário na saúde e na rede de sustentação dos mais necessitados. Temos que evitar o desemprego em massa que decorreria de recuperações judiciais e falências, apoiando pequenas e médias empresas e setores específicos.

Há o apoio na forma de empréstimos com garantia do Tesouro, como o Brasil tem feito, e o apoio direto através de pagamentos a fundo perdido de parte substantiva da folha salarial, como em alguns outros países. A proporção entre pagamentos a fundo perdido e empréstimos com garantias do Tesouro varia de país para país, assim como o total da ajuda. Alguns países fazem mais e melhor que outros, mas no mundo todo os governos estão tendo que se endividar para sustentar suas economias.

No Brasil, a dívida pública deve aumentar de 75% do PIB em 2019 para cerca de 90% ao final deste ano. É um patamar inédito na nossa história. O salto decorre do aumento dos gastos públicos (mais dívida), mas também da recessão (menor PIB).

E a dívida pode facilmente chegar a 100% do PIB se pressões políticas tornarem os gastos emergenciais permanentes ou o governo cair na tentação de turbinar a economia para ganhar a eleição em 2022. A pergunta se impõe: qual nosso futuro com um grau de endividamento tão elevado?

Há quem argumente que o governo pode facilmente pagar essa dívida vendendo ativos. Simples de falar, simples de contar —R$ 1 trilhão viria da venda de ativos imobiliários, outro trilhão da venda de estatais e mais R$ 1,5 trilhão da venda de reservas internacionais—, mas pura fantasia na prática. E se o déficit público for muito grande, o efeito da venda de ativos será apenas temporário, porque a dívida vai voltar a crescer mais cedo ou mais tarde.

Há quem argumente, de forma mais sofisticada, que o problema não existe porque a dívida é interna. Uma espécie de Zé com Zé, nós devendo a nós mesmos. No outro extremo, há quem entenda que exista uma conta salgada a ser paga. Teríamos que implementar um regime de austeridade fiscal que gerasse 25% do PIB para fazer uma dívida de 100% do PIB, digamos, retroceder ao nível anterior.

Entender o problema corretamente é meio caminho andado. Em princípio, uma economia pode funcionar bem com uma dívida muito alta desde que os agentes econômicos acreditem que a dívida ficará estável como proporção do PIB.

O drama não é o patamar da dívida, mas sim a percepção de que possa estar numa trajetória explosiva. É a perspectiva de um crescimento descontrolado da dívida/PIB que erode a confiança no nosso futuro, afugenta o investimento privado, aumenta a percepção de risco do país e leva à depreciação exagerada da moeda nacional.

A dívida/PIB é estável se a dívida e o PIB crescerem na mesma velocidade. O valor da razão não se altera quando o numerador e o denominador crescem na mesma proporção. Essa condição de estabilidade está expressa na equação abaixo.

D*(r - g) = z

O significado dos símbolos é o seguinte: g é a taxa de crescimento do PIB, r é a taxa real de juros que incide sobre o estoque de dívida D e z é o superávit primário. Se a taxa de juros for igual à taxa de crescimento (r = g), basta equilibrar o orçamento (z = 0) para manter a dívida constante em relação ao PIB. Se a taxa de juros for maior do que a taxa de crescimento, como tem sido nosso caso, precisaremos de um superávit orçamentário (z > 0) para manter a dívida estável em relação ao PIB.

A equação serve para analisar o efeito de um aumento na dívida pública. Com uma taxa de juros de 4% e uma taxa de crescimento de 2%, a dívida/PIB permanecerá inalterada em 75% se o superávit orçamentário for 1,5% do PIB. Porém, se a dívida subir para 100% do PIB, o superávit necessário para estabilizá-la passa a ser 2%. Em outras palavras, o salto da dívida de 75% para 100% do PIB requer um esforço fiscal adicional e permanente de 0,5% ao ano. Essa é a conta que terá que ser paga pelo meu, o seu e o nosso.

O papel aceita tudo: é sempre possível calcular o superávit primário que torna qualquer dívida sustentável, mesmo que absurdamente alta. Na realidade política, no entanto, há limites para o montante da renda que os segmentos ativos da sociedade (trabalhadores e empresários) estão dispostos a transferir para os rentistas, os detentores da dívida pública. Um estoque de dívida muito elevado pode levar o país a entrar na zona de instabilidade se a sociedade se recusar a gerar o superávit necessário.

O que deve ser feito para tornar uma dívida de, digamos, 90% ou 100% do PIB sustentável?

O primeiro cuidado é com as contas públicas (o z da equação). Quando a crise passar, temos que voltar ao teto de gastos aprovado no governo Temer e reforçar a Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso.

A longo prazo, devemos reduzir a parcela do orçamento público absorvida por salários e Previdência de 80% para 50% ou 60%, como na maioria dos países, para abrir espaço no Orçamento para gastos nas funções precípuas do Estado: prover saúde e educação de qualidade, zelar pela segurança pública e pela defesa nacional, apoiar a ciência, a inovação tecnológica e as artes. Será um processo longo e difícil.

O segundo cuidado é assegurar que o custo da dívida seja o menor possível (o r da equação). A má notícia aqui é que, tudo o mais constante, quanto maior o estoque de dívida pública, maior a taxa de juros necessária para induzir os agentes econômicos a mantê-la em seus portfólios.

Isso é verdade tudo o mais constante, mas a realidade está em perpétua mudança. O mundo terá taxas de juros mais baixas por um período longo de tempo e talvez juros nominais negativos venham a ser o novo normal pós-epidemia. Um arcabouço mais moderno das relações entre Tesouro e Banco Central, instituindo reservas bancárias remuneradas e facultando ao BC comprar títulos do Tesouro no mercado secundário de forma permanente, pode contribuir para baixar o custo da dívida.

No entanto, mesmo com medidas modernizantes e contando com o vento a favor dos juros mais baixos no mundo todo, talvez não consigamos administrar um estoque tão maior de dívida com um custo menor que o atual.

O que podemos dizer sobre g, a taxa de crescimento da economia? No final deste ano, ainda estaremos com uma renda per capita inferior à que tínhamos em 2014. Sabemos o que não fazer: dar subsídios à margem do Orçamento, alimentar os campeões nacionais, reeditar o PAC da dupla Lula-Dilma ou lançar o plano Pró-Brasil, a caricatura do Plano Marshall aventada pelo governo Bolsonaro. O caminho para crescer mais é tornar a economia mais produtiva.

A agenda da produtividade é tão (ou mais) importante que as reformas no campo fiscal. Para aumentar nossa taxa de crescimento de longo prazo, precisamos de avanços no mercado de capitais, de uma lei geral de garantias, de um bom marco regulatório, inclusive para o saneamento básico, de mais certeza jurídica na execução de contratos. É preciso ir além do marco regulatório e jurídico avançando em cinco vertentes:

(a) Abertura comercial e de serviços a sério de forma prenunciada e, se necessário for, unilateral; (b) reforma administrativa radical para aumentar a produtividade do setor público; (c) um programa de privatizações de envergadura, atingindo as grandes estatais para evitar que parte substantiva do aparato produtivo seja regido por regras outras que não a busca da eficiência econômica; (d) uma reforma tributária que, além do IVA, elimine regimes de tributação favorecida; (e) uma educação pública de qualidade.

Estamos mal parados na agenda da produtividade. Apesar do prometido na campanha presidencial de 2018 e tantas vezes alardeado ao longo do ano passado, quase nada aconteceu. A reforma da Previdência foi aprovada em julho do ano passado graças ao empenho do presidente da Câmara, e o governo Bolsonaro entrou em estado de letargia desde então.

Seus projetos de reforma administrativa e de reforma tributária, se é que existem, nunca foram enviados ao Congresso. A última reforma administrativa de envergadura que fizemos foi em 1998, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso; a reforma tributária que avança no Congresso foi iniciativa do próprio Congresso.

A abertura se limitou a completar o acordo do Mercosul com a União Europeia, um acordo que já nasceu velho e que dificilmente será ratificado pela Comunidade Europeia por causa da nossa horrenda postura face ao meio ambiente. A privatização foi um fiasco: o efeito disfuncional da presença das grandes estatais continua firme e forte. A educação pública, o segredo do nosso futuro, está sendo gerida pelo pior ministro da nossa história.

Pouco surpreende que o crescimento de 2019 tenha sido anêmico. Sem a Covid-19, talvez tivéssemos tido uma recuperação cíclica que nos levasse a 2% de crescimento neste ano, mas para aumentar nosso crescimento de longo prazo precisamos tornar a economia mais produtiva. É só assim que os pobres e desesperançados terão uma vida material melhor, e de quebra resolveremos o problema de tornar uma dívida pública de 100% sustentável.
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*Persio Arida, economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso

Agradeço os comentários de Affonso Celso Pastore e Armínio Fraga


Bartyra Ribeiro de Castro e Elisa Quadros: A Inteligência, a Estupidez e a Paranoia

Há tempos não se viam. Dadas as circunstâncias, acharam melhor marcar um encontro por videochamada. Duas chegaram na hora, menos a Estupidez, que insistiu em dar uma voltinha e ainda tirou sarro da Paranoia, que foi logo falando:

- Nunca estive tão em voga.

Contrariada e fazendo bico, a Estupidez entrou na sala, ainda a ponto de escutar a Inteligência se gabar de seus atributos: entendia de Astronomia, sabia tudo de Religião, Medicina e Física, e ainda era alta referência no Direito. Segundo ela, já havia até sido Presidente da Corte de Apelação de Dresden.

A Estupidez mantinha um riso de canto de boca, onde se via claramente um resto de baba seca. Falava com certa dificuldade e tentou argumentar para impressionar a Inteligência. Buscou um termo em outra língua, para dizer que tudo o que queria era mudar o estabilish.

- O que mesmo? perguntou a Inteligência.

A Estupidez rapidamente mudou de assunto, gritando para a Paranoia:

- Abre a boca aí logo!

A Paranoia, como sempre, bem no seu feitio, ficou a observar desconfiada, a matutar cada palavra, a caçar o significado oculto em cada frase. Concordava ora com a Inteligência, ora com a Estupidez. Balançava a cabeça suavemente, mas, se alguém a olhasse nos olhos, reconheceria assustadoramente algo que poderia ficar sem controle. A Paranoia, perigosa, está sempre certa.

Irritada com a Estupidez, a Inteligência mal diz:

- Você não sabe de nada ao certo, não acredita na ciência, só fala bobagem.

Sem levar para casa, a Estupidez vocifera:

- Você fica só de mimimi. Todo letrado. Diz que fala um monte de línguas. Meu filho fala inglês melhor que você. Já morou nos Estados Unidos. Você só viveu aí na Alemanha.

- Ora, ora! Saiba que já li muitos livros, já escrevi minhas memórias. Conheço o homem melhor que qualquer um, retrucou a Inteligência.

- Homem? Do homem quem sabe sou eu. Eu sou macho, tive cinco filhos, foram quatro homens; na quinta, dei uma fraquejada e veio uma mulher. E você, que não teve nenhum?, atacou a Estupidez, mirando no ponto fraco da Inteligência.

- Aí está seu engano! Se eu não tive filhos foi porque Deus tinha um projeto magnífico para mim: gerar a humanidade inteira novamente.

- Você tá maluca!

- Você não sabe? Não lê, dá nisso! Eu fui como o Judeu Errante. Uma nova humanidade veio por minha causa. Ser escolhido por Deus, embora Ele não seja lá só bondade, me deu muito mais filhos, que estes cinco aí dos quais você se gaba. Quando houve a fratura na construção prodigiosa, os raios divinos penetraram pelo teto da minha casa e entraram no meu pensamento. E, depois no meu corpo, me fazendo mulher. Não uma qualquer, mas a que transformou os homúnculos em uma nova humanidade. Você estaria entre os homúnculos, se não fosse eu.

- Judeu eu respeito, mas mulher…

A essa altura, a Paranoia ria de satisfação. Para ela, a conversa estava digna de um tratado psicopatológico, que se apresentava em cada manifestação narcísica ali exposta. Esse encontro já se mostrava digno de entrar para a história.

Sem muito esforço, lembrou-se dos dias que conviveu plenamente com a Inteligência e com o poder: do momento em que Roma foi incendiada; de quando perseguiu bebês para aniquilar os primogênitos; cismou com os judeus, levou um exército inteiro a morrer gelado nos campos russos. Isso só para falar daqueles que a história não esquecerá.

A Inteligência e a Paranoia construíram uma amizade verdadeira, emaranhada sob o signo da prosperidade. Ambas chegaram juntas a lugares reconhecidamente importantes. Nesse momento, a Paranoia se deu conta de que também flertava com a Estupidez e agora estava onde um punhado de gente a havia colocado, num lugar alto, abençoado por Deus.

- Vou dizer uma coisa, engatou a Paranoia com tamanha ênfase que a Inteligência e a Estupidez se calaram para ouvir. Tenho certeza de que o mundo lhes deverá algo. A uma, a nova humanidade. À outra, seu fim. Ou vocês pensam que este vírus que está por aí não foi colocado para acabar com os melhores planos que tinhamos? Estupidez, você não está sozinha. Entenda. Lá para cima, tem um como você, só que mais rico. E esses caras, de olhinhos puxados, infestaram o mundo inteiro só para destruir líderes geniais como vocês. Você, Inteligência, nem sempre é o que parece. Se deixa levar por algo ainda mais forte que você. E nisso, você e a Estupidez são muito parecidas. Basta se olharem no espelho.


Revista Piauí: A conta chegou para Bolsonaro

Avaliação positiva do governo cai oito pontos em uma semana e presidente bate recorde de desaprovação, segundo pesquisa inédita do Ideia Big Data

José Roberto de Toledo, da Revista Piauí

Demorou. Foi preciso ele demitir os dois ministros mais populares do governo, admitir usar a Polícia Federal em causa própria e desprezar milhares de mortes por Covid-19. Após muito tentar, Jair Bolsonaro conseguiu perder oito pontos de popularidade em uma semana, voltar à menor taxa de ótimo e bom de seu governo e bater o recorde de avaliações negativas desde a posse: 41%. Mesmo assim, o governo ainda mantém 28% de avaliações positivas e 35% de confiança. O presidente, porém, está pior do que isso.

O tombo foi grande. Bolsonaro não apenas fez romper pela primeira vez o patamar dos 40 pontos de ruim e péssimo de sua gestão como conseguiu outro feito inédito. A avaliação negativa do governo superou a positiva por 13 pontos, muito além dos 4 pontos de margem de erro da pesquisa. Se, num extremo, o governo mantém uma linha de resistência em torno de 28% dos que o apoiam, na outra ponta, ganhou uma oposição maior e mais intensa – como nunca teve. Dos 41% de avaliação negativa, 25 pontos agora são de “péssimo” e 16% de “ruim”. Apenas uma semana antes essas taxas eram respectivamente 19% e 15%. Ou seja, a turma do “péssimo” cresceu tanto que quase se equivale à soma dos que avaliam o governo como ótimo ou bom.

Os números são da pesquisa Ideia Big Data realizada entre 28 e 29 de abril. Por intermédio de um aplicativo de celular, o instituto fez 1.609 entrevistas ponderadas para representarem as mesmas proporções de idade, gênero, escolaridade, classe social e divisão regional da população brasileira de 18 anos ou mais. A margem de erro máxima é de quatro pontos percentuais, para mais ou para menos. O método usado para coleta não é tão testado quanto o das pesquisas face a face, nas quais entrevistadores abordam aleatoriamente entrevistados em casa ou em pontos de fluxo, mas a pesquisa do Ideia é a única que acompanha semanalmente a avaliação do governo desde 2019 e é divulgada com regularidade. A longa série histórica e a alta frequência com que é feita permitem acompanhar os vaivéns da popularidade de Bolsonaro como nenhuma outra pesquisa publicada até agora.

O salto de impopularidade ocorreu de uma vez mas não foi surpresa. Bolsonaro construiu o aumento de sua rejeição live a live, tuíte a tuíte, entrevista a entrevista. Brigou com governadores, fritou Mandetta, humilhou Moro. Desrespeitou a Constituição, provocou o Congresso, atacou o Supremo. Acumulou tensão na opinião pública diariamente. Os grãos de animosidade se acumularam ao ponto de uma parte significativa de seus simpatizantes não conseguir mais aprovar suas atitudes. Ao forçar a demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, o presidente desencadeou a avalanche vista esta semana, mas as causas para sua aprovação rolar ladeira abaixo se somam há tempos.

A ladeira é igualmente íngreme mesmo quando a pergunta se refere ao presidente: “Aprova ou desaprova a maneira como Jair Bolsonaro está lidando com seu trabalho como presidente?” O time dos que aprovam a figura presidencial em si encolheu os mesmos oito pontos, foi de 30% para 22%. Ou seja, há menos brasileiros de acordo com as atitudes do presidente (22%) do que os que consideram seu governo ótimo ou bom (28%). Esse descolamento entre as duas taxas vai para a conta pessoal de Bolsonaro. Ele é pior do que seu governo para ao menos um quinto dos que acham que o ministério faz algo de bom ou ótimo.

Nem sempre foi assim. Em fevereiro do ano passado, logo depois da posse, 45% aprovavam o presidente e 44% achavam o governo bom ou ótimo. Em junho do mesmo ano, ambas as taxas eram de 36%. A partir dali, porém, as curvas se emanciparam e seguiram caminhos distintos. A aprovação pessoal do presidente caiu a 30% em agosto de 2019 e nunca mais ficou acima disso. Em novembro passado, a taxa de ótimo e bom do governo teve um pico de 40%, mas a aprovação de Bolsonaro manteve-se em 30%. Os 10 pontos de diferença eram pessoas que aprovavam o que o governo fazia mas não o presidente. Aturavam-no.

Pode-se especular que esse grupo acreditava que Bolsonaro poderia ser tutelado por Paulo Guedes na economia, por Moro na segurança e pelos militares em tudo o mais. Agora, parte do grupo caiu na real. A diferença entre as avaliações positiva do governo e do presidente diminuiu de 10 para 6 pontos: 28% contra 22%. Significa que menos gente crê que Bolsonaro seja passível de tutela. Significa também que as atitudes presidenciais são cada vez menos aceitáveis mesmo entre seus apoiadores. O presidente contamina a popularidade do governo como um vírus contra o qual não há ministro que consiga desenvolver anticorpos. Tampouco há remédio ou vacina à vista.

A resultante da deterioração da popularidade do presidente e de sua equipe é que 58% dos brasileiros passaram a declarar que não mais confiam no governo Bolsonaro – um crescimento de 7 pontos em comparação com a semana anterior. É outro recorde negativo deflagrado pela ejeção de Moro do ministério.

Na manhã de sábado, manifestantes antipetistas voltaram a promover atos em frente à sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde Moro prestaria depoimento a respeito das acusações que fez contra Bolsonaro quando deixou o governo. Dois grupos que até poucos dias atrás se confraternizavam agora racharam: de um lado, defensores de Bolsonaro gritavam “Mito! Mito!“; de outro, apoiadores da Lava Jato respondiam em coro com “Moro! Moro!“.

Trata-se do fim de Bolsonaro? A acusação de Moro de que o presidente serviu-se do cargo para interferir em investigações da Polícia Federal é sua pá de cal? Ainda não.

A avaliação de Bolsonaro nas classes D/E, A/B e C:

Nas classes D e E, o desapontamento com o governo Bolsonaro aumentou bem menos do que nas classes A e B. Entre os brasileiros com menor poder de consumo, a taxa de ruim e péssimo cresceu apenas de 31% para 35%. No topo da pirâmide socioeconômica, a desaprovação disparou de 36% para 47%. É um movimento mais parecido com o que aconteceu com as pessoas da classe C – a maior de todas –, entre as quais o ruim e péssimo pulou de 34% para 42%. Ou seja, o anúncio dos R$ 600 de auxílio para quem mais precisa pode comprar alguma popularidade para o governo pelos três meses enquanto o dinheiro for distribuído. Mas e depois?

À medida que a crise econômica se aprofundar, o bolso esvaziado dos pobres será o maior obstáculo para Bolsonaro sustentar o que lhe resta de apoio na opinião pública. O presidente se segura no público evangélico, mas várias igrejas neopentecostais começam a enfrentar problemas financeiros por causa dos cultos esvaziados durante a quarentena. Sem dízimo, falta dinheiro para bispos e pastores pagarem pelos horários que alugam nas emissoras de tevê. Se eles perderem influência entre os fiéis, Bolsonaro tende a perder apoio também nesse público religioso e pobre.

Tudo isso ocorre em meio ao crescimento geométrico de casos de Covid-19 e ao aumento contínuo do número de mortes diárias provocadas pela doença que o presidente desdenhou. Se o presente é ruim para Bolsonaro, o futuro próximo tende a ser pior. Mas não só para ele.

Colaborou Felippe Aníbal

*José Roberto de Toledo  é editor-executivo da piauí (site), foi repórter e colunista de política na Folha e no Estado de S. Paulo e presidente da Abraji


José Roberto Mendonça de Barros: Descendo a rampa

O governo Bolsonaro caminhará para bater no muro por volta de agosto/setembro

Não bastassem os desafios trazidos pela pandemia e a recessão decorrente da parada súbita da vida econômica, o governo viveu desde meados do mês passado uma sucessão de eventos que resultaram num ponto de inflexão da atual gestão que, a meu ver, é irreversível.

No dia 16 de abril, o então ministro da Saúde, Mandetta, foi dispensado do cargo. Seu trabalho de enfrentamento do coronavírus estava sendo muito importante para o País, embora não fosse isento de críticas, como a pouca atenção dada à testagem em larga escala. Em consequência, sua popularidade subiu e começou a fazer sombra ao presidente, que com isso não conseguiu conviver. Aparentemente, o que dá certo não pode ser mantido. Seu sucessor está totalmente perdido.

No dia 22 de abril, o chefe da Casa Civil anunciou um plano de investimentos (Pró-Brasil) destinado a promover a volta do crescimento econômico a partir de obras de infraestrutura. Projetos de investimento público direto e concessões ao setor privado seriam elencados, sem uma articulação entre eles.

O anúncio, primariamente destinado a injetar ânimo na plateia, não encantou ninguém por um robusto conjunto de razões:

- O plano lembra duas tentativas semelhantes que acabaram por resultar em períodos muito ruins: o II PND e a década perdida dos anos 80; e o PAC do PT e a grande recessão de 2014/2016.

- A comparação com o Plano Marshall peca, naturalmente, pela notável ausência do Tesouro americano.

- O plano não menciona como o capital externo, ora em fuga do País, voltaria a fluir em grandes proporções.

- O plano não menciona como seria financiado: com novos impostos? Com emissões? Estourando o teto de gastos? Isso num momento em que as despesas necessárias para enfrentar a pandemia resultarão numa piora substancial de nossa posição fiscal. Mais ainda, passada a emergência, caberá uma correção nas prioridades de gasto, incluindo a saúde. Mais uma razão para que não abracemos um rumo que já se mostrou fracassado mais de uma vez.

- Finalmente, o plano foi desenvolvido e anunciado sem a participação do Ministério da Economia, que, claramente sinalizou sua contrariedade.

Não é, pois, de se estranhar que os mercados tenham reagido mal, com desvalorização cambial e alta nas taxas de juros, pois foi colocado em dúvida o compromisso com a adequada gestão das contas públicas passado o período da emergência.

A recente entrevista conjunta dos ministros da Casa Civil e da Economia não teve o poder de tranquilizar ninguém. Vem aí mais tumulto.

Após a demissão de Moro, fica consolidada uma constatação. Bolsonaro tem três características importantes: limitada capacidade de percepção da realidade, é profundamente autoritário e é bastante descontrolado.

Os eventos acima descritos e as negociações recentes com o chamado Centrão mostram que o presidente apertou o botão emergência e deu uma guinada no seu governo, buscando blindar sua família e sua posição no Congresso.

Se as coisas parassem por aqui já não estaríamos bem. Entretanto, nos próximos meses a situação da pandemia, das pessoas e das empresas ainda irá piorar substancialmente.

Caminhamos rapidamente para ser o segundo país do mundo com maior número diário de óbitos, atrás dos Estados Unidos. A dificuldade de manter as quarentenas deverá empurrar o pico da doença para o final do semestre.

O salto do desemprego deverá ser atingido no terceiro trimestre, quando os esquemas temporários de suporte começam a vencer. Da mesma forma, a pressão financeira sobre as empresas vai se elevar, levando muitas delas a insolvência e a pedidos de recuperação judicial.

Por tudo, acredito que haverá uma convergência negativa por volta de agosto/setembro, pressionando para piorar a situação política. O que ocorrerá a partir daí é incerto, mas não tenho dúvida que o governo Bolsonaro caminhará para bater no muro. A questão é apenas quanto tempo vai levar para isso.


Alon Feuerwerker: O abacaxi para descascar

Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai.

Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar mas só de vez em quando têm os votos para tal.

Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como estava quase todo mundo meio encrencado com a Lava Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelos menos um punhado de bois atravessarem.

Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.

O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.

Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.

Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores da reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.

Um abacaxi não trivial de descascar.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Monica de Bolle: Como uma onda no mar?

Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo está, neste momento, agindo de forma imoral

“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Sem dúvida alguma. E, sim: “tudo passa, tudo sempre passará”. Mas a epidemia não vem em ondas mais ou menos simétricas, como o mar. A epidemia vem em onda forte seguida de outras ainda fortes, em onda moderada seguida de ondas fortes, em onda que tudo varre e ainda pode ser seguida do mais profundo descalabro.

A evolução depende de como os governos se comportam. Também depende de como os governos se comportam dentro da realidade de cada país. Não adianta imitar a Suécia, apostar na imunidade de rebanho e deixar a onda passar. Primeiramente porque não sabemos o que haverá de ser das escolhas da Suécia. Depois, porque o Brasil não é a Suécia. Por fim, porque os suecos estão respeitando o distanciamento social sem quarentena, por conta própria. Trata-se de questão de comportamento.

Muito me preocupam os cenários econômicos. Não por sua extrema gravidade. Eles me preocupam porque muitas vezes se baseiam em premissas equivocadas, como a de que haverá uma primeira onda — essa que estamos atravessando — seguida de onda mais mansa, ou de uma sequência de ondinhas. É este tipo de premissa que escora as projeções do FMI: a onda forte é agora, no segundo semestre haverá outra, mais fraca, e, depois, vida que segue.

Muitos economistas estão seguindo essa linha de raciocínio para justificar suas posições. Alguns resolveram inclusive ignorar já a primeira onda, voltando a apoiar uma agenda de reformas que, francamente, diz respeito a um mundo que não existe mais. Entre esses consta o ministro da Economia brasileiro, que resolveu mudar o tom no momento em que o país entra na fase mais crítica da crise humanitária. Com ele foram os economistas de mercado e todos aqueles que preferem ignorar a realidade. A realidade é que a capacidade hospitalar da cidade de São Paulo está se esgotando.

A realidade é que a taxa de mortalidade no Rio de Janeiro entre os mais pobres já é muito mais elevada do que entre os mais ricos. Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo — nada contra a música, gosto muito — está, neste momento, agindo de forma imoral. Queiram os economistas ou não, há uma dimensão moral nesta crise que não será esquecida.

Se alguém parasse para olhar os dados brasileiros — que estão subnotificados —, observaria que o número de casos no país está subindo rapidamente a cada dia. O número de mortos já é maior do que o da China. Quando vocês estiverem lendo esta coluna, já teremos superado a China no número total de casos. Não estamos na crista da onda, prestes a nela deslizar com a destreza daqueles que o fazem de forma incansável nas praias do Rio. Estamos no pé de uma montanha cujo pico nos ilude. E do pé dessa montanha resolvemos, de uma hora para outra, ignorar nossos mortos, nossos doentes, os do presente e os do futuro, voltando à ladainha das reformas.

Porque soberano é o vírus, não o presidente da República ou o ministro da Economia.

Cadê a renda básica emergencial, que não chega nas mãos das pessoas? E as filas criminosas em frente à Caixa Econômica Federal para sacar o benefício? O que dizer da ausência de repasses fundamentais para os estados e municípios? O que falar do desembolso de apenas R$ 5 bilhões para o SUS até agora? Como se pode pensar em defender a redução de tributação sobre os bancos neste momento? E por que cargas d’água vamos querer avançar com medidas de austeridade contidas nas reformas se o que precisamos é de mais endividamento público para ao menos atenuar a depressão econômica?

O Brasil nunca viu uma deflação. O modo-padrão é logo morrer de medo de inflação, é dizer que não podemos nos endividar porque cairemos na espiral inflacionária de eras passadas. Mas não. Essa não é mais a realidade. A realidade é uma espiral de queda de preços extremamente danosa para a economia, para as pessoas. Nos vídeos que tenho feito para o YouTube tenho explicado o que é uma espiral deflacionária. Para os leitores interessados, recomendo assisti-los, pois, para nós, brasileiros, é algo inédito. Mas não é algo que, nós, economistas, desconheçamos, ainda que alguns não a tenham visto de perto.

Como uma onda no mar? Não. Como um tsunami a chegar no oceano de ignorância deste desgoverno.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Sergio Leo: Entre a Casa Branca e a casa arrasada, a diplomacia do tiro no pé

O ministro Ernesto Araújo, que fez analogia entre isolamento social e campos de concentração, planta obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores. Para alguns temas, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington

Impassível, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, postou-se ao lado do Presidente da República no pronunciamento que se seguiu à queda do ministro Sérgio Moro, um dos aliados que deram corpo à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Os desencontros sobre os rumos da economia também ameaçam a imagem ― e a permanência ― de outro avalista eleitoral, Paulo Guedes, da Economia; mas Araújo continua com carta branca para destroçar as tradições diplomáticas brasileiras. E não só isso.

Alguns especialistas chegam a duvidar que o Governo Bolsonaro tenha uma política externa clara. Mas Araújo tem: seu objetivo, manifestado publicamente, é destruir condições que permitiram ao Brasil ter uma diplomacia para chamar de sua, na defesa do interesse nacional. Araújo protagoniza uma suicida diplomacia da “arminha”, de gangue, quase inteiramente voltada a agradar um público interno radicalizado que se deleita em imitar o gesto belicista de Jair Bolsonaro.

Como guia, essa política defende uma aliança acrítica com o líder do mundo cristão ocidental, os Estados Unidos, e, contraditoriamente, com governos nacionalistas radicais pelo mundo. É a política externa do tiro no pé: ela procura minimizar, obstruir ou simplesmente eliminar canais que permitem a um país como o Brasil exercer influência própria sobre a região sul-americana e no mundo.

Além de acordos de livre-comércio, que o ministério da Economia hoje comanda, deixando o Itamaraty em segundo plano, a única concessão à ação multilateral do Brasil já feita por Bolsonaro foi o elogio à atuação das forças armadas brasileiras nas missões de paz na ONU, das quais participaram alguns dos generais de seu Governo.

Em seu último ato histriônico, um artigo no qual acusou o esforço contra o novo coronavírus de abrir espaço a um suposto “comunavírus”, Araújo, a pretexto de analisar um artigo do filósofo Slavoj Zizek, argumentou que submeter políticas nacionais às orientações da OMS seria “apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária”. Na visão do chanceler brasileiro, “globalismo é o novo caminho do comunismo”, e a batalha mundial contra a covid-19 seria uma oportunidade “para acelerar o “projeto globalista” contra o qual ele dirige os esforços da diplomacia nacional.

No artigo, que provocou espanto nos meios diplomáticos, Araújo descreve como agiria esse “projeto globalista” incompatível com a política externa do Brasil: “por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio de raça [referencia às políticas de ação afirmativa, como cotas para negros], do antinacionalismo, do cientificismo (sic)”.

A falta de cuidado com as palavras, ao arrepio da prática diplomática, levaram até a uma censura pública do Comitê Judeu Americano, que exigiu do chanceler um pedido de desculpas por uma analogia, feita por ele no polêmico artigo, entre medidas de isolamento social e campos de concentração nazistas. Araújo não se desculpou; acusou as críticas de “injustas e equivocadas” e, enjeitando sua própria analogia, culpou Zizek por trazer à baila o tema dos campos de concentração.

Mais que folclórico, o projeto diplomático de Araújo rompe e contraria uma tradição de posicionar o Brasil como protagonista global, qualificado e interessado em reforçar a cooperação e negociação internacional. Ele contraria, por exemplo, manifestações como o comunicado do G-7 em favor de “coordenação global” para o combate à pandemia da covid-19; e, pior, provoca constrangimentos reais na diplomacia internacional.

O Brasil impôs veto, nos órgãos das Nações Unidas a referencias a expressões como “gênero”, nos documentos oficiais, e votou contra referências a promoção de educação sexual. Em uma dessas votações, segundo um membro da delegação brasileira em Genebra, um diplomata brasileiro foi abordado por um colega africano, com a queixa de que a posição do Brasil aumentava suas dificuldades em convencer políticos e membros do governo conservador em seu país da necessidade de apoiar na ONU políticas modernas de proteção às mulheres e à infância em matéria sexual.

Um dos mais ativos fundadores da Organização das Nações Unidas, que lhe dá o privilégio de ser o primeiro a discursar nas assembleias anuais da ONU, o Brasil hoje é alvo de chacota na organização, por manifestações como a do chanceler e acusações levantadas por figuras próximas a Bolsonaro, de que as Nações Unidas são uma peça no complô “globalista” contra o patriotismo e os princípios cristãos. A diplomacia bolsonarista boicota iniciativas da ONU, abertamente, para reforçar suas posições em política interna, desde sua guerra contra uma suposta “ideologia de gênero” até o desdém pelas políticas globais de direitos humanos.

Quando deixar a cadeira que ganhou graças à filiação às ideias paranoicas do ideólogo Olavo de Carvalho e à proximidade com Eduardo, o filho 03 do presidente, Araújo terá plantado obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores; seja ao ajudar a esvaziar instâncias internacionais de política externa como a ONU, a OMS ou o Mercosul, seja ao criar precedentes desmoralizadores para o Itamaraty em temas caros à tradição do país ― como o apego a soluções diplomáticas para conflitos, a oposição a ações unilaterais, o reforço de órgãos multilaterais para decisões que afetam a todos, ou a imagem do Brasil como um mediador confiável, capaz de propostas técnicas de qualidade.

Ele terá sido coadjuvante da política de Donald Trump na paralisação dos mecanismos da Organização Mundial do Comércio que atuam contra barreiras arbitrárias nas alfândegas; terá excluído o Brasil dos esforços conjuntos ― e eventualmente, de benefícios ― no combate à covid-19 patrocinados pela Organização Mundial da Saúde; e colaborado, em papel secundário, para esvaziar a integração dos países do Mercosul e enterrar iniciativas bem sucedidas de cooperação sul-americana em Defesa, comércio e outros aspectos supranacionais que afetam o futuro da região.

Com seus ataques aos acordos ambientais internacionais, terá contribuído, também, para tirar a legitimidade alcançada pelo Brasil nas discussões relevantes sobre o combate ao aquecimento global. E, ainda, para reforçar argumentos dos ecologistas e outros ativistas, na Europa, contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um dos poucos resultados a apresentar da política externa de Jair Bolsonaro ― acordo que diplomatas experientes afirmam estar moribundo, não só pelo crescimento das pressões protecionistas no continente europeu, após a pandemia, como pelos atritos criados por Bolsonaro e Araújo com dois dos principais Governos do bloco, Alemanha e França.

Iniciativas multilaterais, como o projeto de integração de infraestrutura das Américas (IIRSA), impulsionada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento perderam destaque na pauta do Itamaraty “antiglobalista”. A obra mais significativa apoiada pelo Itamaraty, o corredor bioceânico que passará pelo Mato Grosso, está hoje abrigada sob a ProSul, uma iniciativa de articulação governamental entre governos à direita no espectro político, inaugurada pelos presidentes do Chile e da Colômbia e comunicada depois ao Governo brasileiro.

No que diz respeito ao BID, nos últimos meses, esteve mais empenhado em secundar os Estados Unidos na ação para substituir o representante da Venezuela no banco, demitindo o indicado por Nicolás Maduro e nomeando um escolhido pelo autoproclamado presidente Juan Guaidó.

papel subordinado às determinações da diplomacia de Donald Trump, aliás, é uma marca que Araújo conseguiu impor mundialmente aos diplomatas brasileiros. Funcionários graduados do Itamaraty ― falando anonimamente, por temor de represálias ― revelam que, em questões relativas ao Oriente Médio nas quais não se tem uma posição clara do Brasil, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington.

Nos Governos que assumiram após o fracasso do regime militar (regime, este, que deixou o país com hiperinflação, crise fiscal, dívida externa impagável, corrupção e ineficiência no setor público e miséria com violências nas grandes cidades), a política externa teve mudanças de foco ou de ênfase, mas não de substância. E a ação diplomática nas instâncias internacionais foi usada para resolver problemas e apontar soluções, muitas vezes buscando protagonismo.

Com José Sarney, o projeto que resultou no Mercosul desarmou desconfianças entre os militares de Brasil e Argentina, e, no governo seguinte, permitiu uma imprevista cooperação em matéria nuclear. Com Collor, a concretização do mercado comum permitiu superar resistências dos setores industriais nos dois países e derrubar barreiras ao comércio que alimentavam ineficiência dos parque produtivos da região.

No Governo Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Saúde José Serra obteve vitórias na OMC e na OMS que facilitaram a produção e comercialização de medicamentos genéricos. No Governo Lula, apesar das críticas de opositores e veteranos diplomatas, houve uma dose de pragmatismo que sepultou iniciativas na Venezuela, Bolívia e outros vizinhos para caracterizar o Brasil como uma espécie de potência “subimperialista” beneficiada no comércio e na infraestrutura; e gerou-se até um insuspeito acordo Brasil-Estados Unidos, com George Bush do lado americano, em torno da popularização do etanol combustível ― boicotado pela Venezuela de Hugo Chávez.

Enquanto o Governo FHC argumentava que o Brasil, pela falta de recursos de poder (força militar e econômica, especialmente), deveria escolher iniciativas internacionais de seu interesse, já existentes, para aliar-se a elas, o Governo Lula, em sua “diplomacia ativa e altiva” avaliou que poderia influir na própria agenda global, o que gerou iniciativas criticadas como o esforço por um acordo nuclear com o Irã, mas forte influência nos debates globais e relativo êxito em alguns momentos, como na formação do G-20 da OMC, dedicado a defender interesses dos países emergentes, além do convite para participar de outro G-20, o político, que reúne chefes de Estados ricos e emergentes para discutir saídas conjuntas para temas globais.

Há um consenso, entre os analistas, de que o Governo Bolsonaro, ao hostilizar a China, França e outras potências, atacar os organismos multilaterais e orientar declarações de autoridades para objetivos de mobilização de sua base mais radical, comprometeu um esforço de décadas para dotar o Brasil do chamado poder brando, ou “soft power”, que permite a um país alcançar resultados usando recursos de persuasão e convencimento pelo exemplo.

O criador do conceito de soft powerJoseph Nye Jr., diz que o poder brando “pode parecer menos arriscado que o poder econômico ou o poder militar, mas, em geral, é mais difícil de usar, fácil de perder e difícil de restabelecer”. É fácil imaginar a influência da política “antiglobalista”, subordinada a iniciativas de parceiros ideológicos, especialmente os Estados Unidos de Donald Trump.

É urgente a necessidade de tirar o chanceler paranoico do comando da diplomacia. A pandemia levanta o risco de aumento do protecionismo e de decisões unilaterais por parte das grandes potências, e o crescimento da influência da China, primeiro país a levantar-se após o choque da quarentena, provocará respostas ainda imprevisíveis por parte dos outros grandes atores globais.

Nos próximos anos, teremos um debate em torno das estratégias para lidar com novas ameaças à saúde mundial, com a recuperação da economia e com a reorganização das cadeias globais de comércio e serviços, em meio ao aquecimento global e o aumento da influência da Ásia nos arranjos globais. O Brasil já teve papel importante dessas discussões, e, hoje, é mero espectador. Com a permanência de Ernesto Araújo ou algum equivalente genérico, corre risco pior, o de assistir a tudo como o inconveniente no fundo da sala, cujas manifestações só perturbam quem está levando a sério as negociações para enfrentar problemas que afetam a todos.

Sergio Leo é um jornalista e escritor brasileiro, especialista em relações internacionais