governo bolsonaro
Alon Feuerwerker: Saindo? Não, entrando
Articulação política é o nome pomposo dado ao ministério, ou à secretaria, que faz a divisão de poder entre os aliados do presidente da República, no que aqui se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão.
Se os nomes das cadeiras federais deixassem de lado eufemismos, deveria chamar-se Ministério, ou Secretaria, da Repartição de Cargos e Verbas Orçamentárias. Sua missão em todos os casos é evitar que o presidente veja formar contra ele uma maioria parlamentar.
A opinião pública não chega a ter posição, digamos, de princípio sobre o assunto. A complacência da opinião pública (não confundir com sociedade ou eleitorado) diante da articulação política depende dos objetivos do governo.
Se estão alinhados a essa opinião pública, o viés pejorativo ou morre ou vegeta ou é repaginado. Como aconteceu nos meses anteriores à reforma da previdência, quando a opinião pública era só lamentos por o presidente não ter uma maioria. E, por isso, colocar em risco a reforma.
A reforma da previdência social nunca esteve realmente em risco, mas isso é outro assunto. O fato: aqueles meses foram ricos em demandas por mais articulação política. Para que a ausência de uma base parlamentar não ameaçasse a agenda do ministro da Economia.
Agora, quando Jair Bolsonaro precisa formar alguma base parlamentar para sobreviver no cargo, e a “nova política” é bananeira que já deu cacho, quem deseja remover o presidente da cadeira desenterra antigas terminologias, sempre úteis em ocasiões assim.
Voltam as acusações de fisiologismo, de toma lá, dá cá. Antigos prontuários policiais que não deram em nada são desenterrados com ar de escândalo.
E pode-se ter certeza: se houver uma substituição presidencial, a mesma opinião pública que hoje se escandaliza amanhã apoiará a divisão de poder. Talvez em nome das reformas, ou de uma interessada união nacional.
Tudo isso é previsível, e chega a ser entediante, mas no Groundhog Day (filme traduzido para o Brasil como Feitiço do Tempo; deveria ser Dia da Marmota) da política nacional não há como escapar das repetições. Não inventaram ainda criatividade que dê conta.
Bolsonaro precisa de maioria parlamentar para enfrentar eventuais pedidos de impeachment, se o presidente da Câmara finalmente ceder às pressões. Ou para barrar a abertura de processos criminais contra ele no Supremo Tribunal Federal.
Só há um caminho para isso. Distribuir poder.
Fernando Collor fez assim com o chamado ministério ético. Deu errado. Itamar Franco abdicou da caneta em favor de Fernando Henrique Cardoso. Deu certo. FHC cedeu ao PMDB quando flagraram a compra de votos para a reeleição. Deu certo.
Lula fez assim quando acossado pelas acusações inauguradas por Roberto Jefferson. Deu certo. Dilma tentou a manobra para escapar do impeachment. Deu errado.
Se vai dar certo ou errado com o atual ocupante da cadeira presidencial, só acompanhando em tempo real. Mas, cuidado: base parlamentar é um troço perigoso. Mais ou menos como o tempo (meteorológico) em certas regiões extremas do planeta. Muda de repente.
Vai depender dos fatos, sempre eles. Para monitorá-los, de vez em quando é útil colocar a política no mudo. Em vez de concentrar-se no que os políticos dizem, prestar atenção no que fazem. Por enquanto, não estão querendo um outro governo.
Preferem entrar neste mesmo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Eliane Cantanhêde: Nada faz sentido
Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda
Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF… Ah, bem!
O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F…. com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.
O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.
“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.
Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.
Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo… Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?
A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.
Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.
Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.
Vera Magalhães: Piada no exterior
Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.
O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.
Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.
A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.
Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.
Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?
Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.
A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.
Marcos Lisboa: A falência do Estado
Descoordenação e oportunismo empurram o país para o desastre
O país está cansado e doído. Alguns perderam parentes em razão da pandemia. Outros têm alguém próximo contaminado pelo vírus, sendo alguns casos graves e preocupantes.
Todos sabemos de pessoas que sofrem com a falta de renda e de emprego ou que estejam assistindo à destruição do trabalho de uma vida. Está difícil manter a serenidade nestes tempos tão difíceis.
Os governos, federal e locais, tornam-se os maiores advogados involuntários em favor de uma reforma urgente do Estado brasileiro. A sua incompetência em administrar a crise não para de surpreender.
Não sabemos quais os protocolos a serem adotados. Não sabemos que conselhos seguir. A sociedade assiste atônita à ineficiência do poder público, disfuncional e oportunista.
Servidores, com salário garantido e estabilidade no emprego, pedem para não pagar suas dívidas. Esquecem-se de comentar que a crise afeta o país, mas não o seu contracheque.
Tribunais de Justiça concedem novos auxílios para aumentar a remuneração dos juízes. Alguns estados aprovam licença-prêmio indenizável para magistrados, com efeito retroativo para mais de uma década.
O auxílio aos governos locais deveria ter tido como contrapartida a aprovação de reformas da previdência dos servidores para reduzir o descontrole do gasto com pessoal, que inviabiliza as contas públicas.
Alguns acharam que a crise seria curta e que a política pública deveria apenas garantir a travessia. Estavam errados.
Trata-se de desastre. Muitos negócios irão desaparecer; empregos serão perdidos. O Estado deveria cuidar das pessoas, porém se perde ao atender os oportunistas usuais. Medidas de saúde e da economia são tomadas de forma atabalhoada.
Para piorar, parte do Legislativo e do Judiciário sucumbe ao populismo à custa de quem trabalha. Pagamentos são interrompidos por liminares arbitrárias, prejudicando empresas ainda em atividade.
As medidas para o mercado de crédito em discussão no Senado conseguem ser tecnicamente ainda mais desastrosas do que a intervenção no setor elétrico realizada pelo governo Dilma.
Quem mesmo vai investir no Brasil após tanto desatino? Há crescente resistência em emprestar para um país com políticas públicas frequentemente tão incompetentes e erráticas.
Enquanto isso, tenta-se saber a quantidade de disparates gravados em reunião ministerial. Não há dúvida de que as polêmicas do Executivo apenas revelam seu despreparo, mas a imprensa poderia colaborar esclarecendo também os difíceis dilemas que estamos enfrentando e as implicações do que estamos fazendo.
Muitos irão sucumbir em meio à trágica constatação de que haverá mais mortos do que caixões.
*Marcos Lisboa, Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Vinicius Torres Freire: Um Brasil morre menos de Covid, todos morrem de Bolsonaro
Em 6 estados ocorreram 83% das mortes, mas desgoverno pode espalhar a epidemia
A epidemia do coronavírus tem diferenças continentais no Brasil. Seis estados contam 83% das mortes brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Pará. Nesse país da Covid feroz, há 130 mortes para cada milhão de habitantes.
No conjunto dos outros estados, 22 mortes por milhão.
O motivo das diferenças dá o que pensar. O efeito dessa discrepância, também. Embora a ruína econômica seja disseminada, a percepção da doença pode ser diferente.
Tal disparidade pode influenciar a opinião que brasileiros de diferentes estados têm das atitudes de Jair Bolsonaro.
Em algumas pesquisas de opinião, cerca de metade dos entrevistados aprova o desgoverno federal da doença. Mais de 115 milhões de pessoas moram naquele Brasil bem menos devastado pela pandemia, em termos de mortes. No país da Covid feroz, vivem os outros 95 milhões.
A pandemia quase não existe no Centro-Oeste e no Sul, embora não seja difícil promover uma desgraça.
Mas o morticínio não é bem questão regional, noutras partes do país.
A Bahia, por exemplo, tem 19 mortes por milhão de habitantes. Pernambuco, 162 por milhão. O Ceará, 145. No Sudeste, Minas Gerais tem 7 por milhão. O Rio de Janeiro, 141 por milhão. São Paulo, 98. O estado com a maior taxa de morte é o Amazonas, com 321 por milhão.
O fato de alguns estados serem centro de conexões de viagens de negócios e turismo parece ter algum efeito na taxa de morte. Mas por que o Rio seria tão diferente de São Paulo? A Bahia, de Pernambuco?
Diferenças de renda, desigualdade ou indicadores sociais em geral não parecem explicar nada.
O morticínio está concentrado em grandes regiões metropolitanas. A administração da epidemia nessas cidades e, talvez, a cultura de contatos sociais e o tipo de vida urbana podem ser uma explicação.
No entanto, “cultura”, sem mais, é um saco onde cabem muitos gatos pardos.
Além de concentrarem o morticínio, cinco daqueles seis estados da Covid feroz têm também as maiores taxas de crescimento da doença na última semana, afora São Paulo, onde há uma desaceleração notável.
No conjunto do Brasil, até fins de abril a taxa de crescimento do número de mortes perdia força, desacelerava. Durante quase duas semanas, essa despiora parou, na média nacional. A explosão da doença em alguns estados do Norte e do Nordeste e a alta velocidade da doença no Rio explicam a estagnação fúnebre.
Enquanto boa parte do mundo desacelera, desde o início de maio o Brasil vai se tornando uma aberração.
Desgovernado ou sob o governo da morte, do golpeamento institucional, da perversidade lunática e da cafajestada facinorosa, há risco de o país piorar. O distanciamento funciona, mas tem sido avacalhado em geral e sabotado por Bolsonaro e colaboracionistas.
Quanto mais avacalhadas as medidas de contenção, mais o morticínio vai durar. Quanto mais durar, maior deverá ser a propensão individual a abandonar o distanciamento, por desespero material ou psicológico. Quanto maior essa bola de neve, mais duradoura a destruição da economia. O desmanche do distanciamento não vai reativar a produção nem o desejo de consumir.
A epidemia pode então transbordar lá onde já ferve baixo. Pode se espalhar também para estados bem menos afetados pelo coronavírus. Mas existe ainda alguma chance de evitar essa aberração brasileira que seria a longa duração da primeira fase da pandemia: chance de achatar a curva, de segurar o vírus.
No entanto,Jair Bolsonaro está solto.
Elio Gaspari: Weintraub, ministro da educassão, é uma ameassa a ceguranssa nacional
Ministro sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal
Segundo o ministro Augusto Heleno, a divulgação integral da conversa de botequim ocorrida na reunião do conselho de ministros de 22 de abril pode ser um “ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”. De fato, é possível que tenham sido tratados assuntos sensíveis e seria razoável mantê-los embargados, assim como foi elegante abreviar o verbo fornicante da fala do presidente. Se de fato o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal, seria um ato patriótico expô-lo, para que responda pela sua proposta na forma da lei.
Pedir a volta do AI-5 e o fechamento do Supremo numa manifestação popular é uma coisa. Sugerir a prisão de ministros do Supremo numa reunião ministerial é bem outra.
Esse tipo de arbitrariedade não tem precedente. O marechal Floriano Peixoto ameaçou, mas não prendeu ministros. Nas ditaduras seguintes, o tribunal foi coagido e três ministros foram aposentados compulsoriamente, mas nenhum foi preso.
É o caso de se perguntar como é que se faz isso. Só há um caminho, o da ditadura, enunciado há dois anos por Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo bastam um cabo e um soldado”. Junto com isso, viriam o fechamento do Congresso e a censura à imprensa. Daí à reabertura dos DOIs, seria um pequeno passo.
A divulgação do que se disse na reunião permitirá o conhecimento das exatas palavras do ministro. Sua colega Damares Alves, a quem se atribuiu a proposta de prisão de governadores e prefeitos, esclareceu que se referia aos larápios que desviavam recursos e equipamentos. Weintraub fechou-se em copas.
A JBS fez, e nós?
Um dia a Covid será passado e o Brasil se lembrará de que quadrilhas de larápios bicavam as compras emergenciais. Felizmente, restará também a lembrança de grandes empresas que olharam para o andar de baixo. O Itaú-Unibanco, com sua doação de R$ 1 bilhão, e a Vale, fretando aviões ou distribuindo equipamentos, fizeram história. A eles juntou-se, pelo tamanho da iniciativa, a JBS. Ela anunciou uma doação de R$ 400 milhões. A maior parte desse dinheiro irá para a construção de hospitais e para a distribuição de leitos e equipamentos. R$ 50 milhões irão para pesquisas da área de saúde, e R$ 20 milhões, para organizações sociais sem fins lucrativos. O ervanário será gerido por três comitês de médicos, professores e administradores. Entre eles, Roberto Kalil Filho (Incor) e Henrique Sutton (Einstein) e Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas.
A JBS ficou famosa pelos seus malfeitos mostrados na Lava-Jato e fechou um acordo de leniência com a Viúva comprometendo-se a desembolsar R$ 2,3 bilhões para projetos sociais. Os irmãos Wesley e Joesley Batista resolveram renunciar ao direito que tinham de usar a doação de R$ 400 milhões para abater o que deviam.
Com 130 mil colaboradores diretos, a JBS passou por todos os seus perrengues sem demitir um só trabalhador.
Profecia
A investigação pedida a partir da denúncia de Sergio Moro tende a virar limonada por dois motivos: primeiro porque espremendo o caso, não há como demonstrar que houve crime. Além disso, pode-se intuir que a vontade do procurador-geral Augusto Aras de apresentar uma denúncia contra Bolsonaro é próxima de zero, com viés de baixa.
A zona de conforto dos Bolsonaro termina quando se mexe com dois fios desencapados: a CPI das Fake News e a investigação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal, relacionada com as mesmas “alopranças”.
Farra elétrica
As concessionárias de energia elétrica levaram uma pancada com a pandemia. O consumo caiu em cerca de 10%, a inadimplência cresceu em outros 10% e o dólar encostou nos R$ 6, encarecendo o custo da energia de Itaipu.
Com toda razão, as empresas estão pedindo socorro ao governo. A conta acabará nas costas dos consumidores.
Até aí, tudo bem, mas o doutor Paulo Guedes está condicionando as ajudas aos estados à entrega de contrapartidas. Seria razoável que as concessionárias de energia também oferecessem contrapartidas. Por exemplo: limitações na remuneração dos diretores e na distribuição de dividendos aos acionistas. Essa tunga duraria o tempo da outra, que penalizará os consumidores.
A exigência de contrapartidas teria o efeito colateral de inibir a voracidade das empresas.
Dólar a R$ 6
No início de março, quando o dólar estava a R$ 4,65, o ministro Paulo Guedes disse que “se fizer muita besteira”, poderia ir a R$ 5. Foi, bateu nos R$ 5,91 e poderá ir a R$ 6.
O sujeito da frase de Guedes estava oculto e ficou no ar quem precisaria fazer “muita besteira”. Uma coisa deve ser reconhecida: até agora, não foi ele.
Moro na muvuca
O juiz aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi um dos principais colaboradores de Sergio Moro no Ministério da Justiça, disse que ele foi para o governo sem que “tivesse ideia de como seria a vida comum ali”.
O doutor pode achar isso, mas ninguém vai para ministério, em governo algum, sem ter ideia de como será a vida ali. Moro, assim como Nelson Teich, sabia quem era Bolsonaro e Bolsonaro sabia quem eram Moro e Teich.
Com uma diferença: Moro não se ofereceu para a cadeira.
Faz tempo, quando o presidente João Figueiredo expandiu seu temperamento errático e explosivo, dois de seus colaboradores diretos conversavam dentro de um automóvel e deu-se o seguinte diálogo.
— Depois que ele operou o coração, virou outra pessoa.
O outro, que entendia de medicina, respondeu:
— O problema não está no hardware. É coisa do software.
Ajuda aos estudantes
A gloriosa Faculdade Nacional de Direito do Rio tem 244 alunos que precisam de ajuda, quer para o transporte (R$ 250 mensais), quer para continuar estudando (R$ 900). De cada quatro, um mora na Baixada Fluminense.
Os ministros Luiz Fux (STF), Luís Felipe Salomão e Benedito Gonçalves, bem como o desembargador Cezar Rodrigues Costa, organizaram um webinar para ajudar esses jovens que, como eles, se formaram na rede pública. O debate se chama “A Covid e o futuro das Cortes de Direito”.
A inscrição custa R$ 200. Mas quem quiser, pode fazer a doação inscrevendo-se, mesmo que não os ouça.
Bolsonaro fashion
Além das camisetas de clubes de futebol, Jair Bolsonaro tem um lado fashion. Em outubro passado, vestiu uma casaca com gola redonda no Palácio Imperial de Tóquio, sacrilégio para quem usa essa fantasia de pinguim.
Na marcha de lobistas que liderou, sobre o Supremo Tribunal Federal, o capitão usava um paletó com um bolsinho sobressalente do lado direito.
Esse adereço espalhou-se pelo mundo no século passado, graças a Lord Halifax, o famoso rival de Winston Churchill. Ele era um inglês esguio e vestia-se de forma conservadora, porém amarfanhada.
O bolsinho de Halifax nada tinha a ver com estilo. Ele havia nascido sem a mão esquerda.
Elimar Pinheiro do Nascimento: Fios do Tempo. O impeachment é viável?
Será que o impeachment de Bolsonaro é viável? Esta é a questão que Elimar Pinheiro do Nascimento se propõe a responder hoje no Fios do tempo. A partir de uma perspectiva comparativa, tomando os exemplos anteriores dos impeachments de Collor e Dilma, Elimar do Nascimento expõe cuidadosamente as variáveis normalmente necessárias para haja a viabilidade de um processo de impeachment. Como ele mostra, uma resposta plausível depende de uma análise das relações da “opinião pública”, das ruas, dos mídias, do Congresso e do empresariado com o Governo Bolsonaro. Desta forma, tendo um olhar sociológico com um inteligente distanciamento dos interesses imediatos de militância, o autor faz uma reflexão lúcida sobre como, apesar de muitos desejarem o impeachment, tudo indica que ele é, por enquanto, inviável.
A. M.
Fios do Tempo, 14 de maio de 2020
O impeachment é viável?
13 de maio de 2020
Independentemente do julgamento que fizermos sobre o processo de impeachment já utilizado no País por duas vezes em menos de 30 anos, o assunto veio à ordem do dia quando no domingo 19 de abril o Presidente esteve presente e apoiou uma manifestação que defendia o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, em frente ao quartel general do Exército. O tema foi reforçado, em seguida, quando o Presidente pretendeu humilhar o, até então, ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, comunicando-lhe a mudança do chefe da Polícia Federal pelo simples motivo de que a corporação não estaria lhe prestando as informações sigilosas sobre processos contra os seus familiares e aliados. Um claro abuso de autoridade e desrespeito às instituições democráticas. Antes, preparou a mudança certificando-se, em conversas palacianas, do apoio do Centrão, que conta com cerca de 200 cadeiras na Câmara dos Deputados. Em troca do quê, ainda não sabemos, mas podemos imaginar. Os dois primeiros cargos já foram cedidos a esse agrupamento político: a direção do DNOS e Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional do Ministério do Desenvolvimento Regional. Mas, outros virão.
Em face dessa conjuntura, a pergunta sobre a viabilidade do impeachment tem cabimento.
Os dois casos anteriores de impeachment no Brasil mostram que pelo menos cinco condições devem ser preenchidas para que o processo, traumático, tenha sucesso: 1) estar, o Presidente, com índice de aprovação inferior a 10%; 2) ter na oposição a maioria da mídia; 3) perder o apoio da maioria dos grandes empresários; 4) perder a batalha das ruas e, finalmente; 5) ter a maioria esmagadora dos congressistas na oposição (2/3). Este último critério, aliás, só é preenchido depois que os anteriores se cumprem. Collor de Mello caiu depois de ter, nos 12 meses antes de sua queda, 48 das 52 edições das capas da revista Veja com reportagens de críticas e denúncias à sua gestão. Dilma precisou fazer um estelionato eleitoral, ter uma operação extraordinária de combate a corrupção no governo petista, que se alastrou por mais de dois anos antes de sua queda, e uma recessão econômica extraordinária no primeiro ano de seu segundo mandato, em 2015, para cair. Claro que uma crise econômica sempre favorece a perda de apoio popular e empresarial do Presidente, o que poderá ocorrer no segundo semestre deste ano. Porém, ainda não se sabe a quem a população culpará pelo recesso econômico.
Vejamos em que medida as condições, aparentemente indispensáveis a um impeachment, estão preenchidas ou em vias de o serem.
Pesquisa do jornal Folha de São Paulo, de 27 de abril, mostra que a maior parte dos brasileiros (48%) são desfavoráveis a um processo de impeachment. Apenas 45% são favoráveis. O mais importante, contudo, é que nesta mesma pesquisa, 33% aprovaram o governo de Bolsonaro. Aprovação que era de 30% em dezembro de 2019. A reprovação de seu governo é de apenas 38%. Em pesquisa mais recente, 7-19 de maio, da CNT/MDA, apoiam o Presidente 32% dos entrevistados, com queda de 2,5% desde janeiro de 2019. Ou seja, apesar de todos os feitos Bolsonaro mantém o apoio de 1/3 dos brasileiros. Dilma, às vésperas do impeachment tinha 7%. Portanto, a condição de perder, de maneira esmagadora, a luta da opinião pública não está preenchida. Ao contrário, o Presidente mostra ter um contingente de apoio de grande fidelidade. Minoritário, mas expressivo e, sobretudo, capaz de lhe levar ao segundo turno, que ele imagina ser contra o PT, o que lhe daria possibilidades reais de vencer. Registre-se que reeleição é o projeto prioritário do atual presidente.
Em relação à mídia, Bolsonaro adotou uma postura inteligente, diferentemente de Dilma e Collor. Primeiro, manteve ativa sua potente comunicação via internet, além de dezenas de comunicadores que o apoiam, não se sabe muito bem por quê. Segundo, tem tentado enfraquecer e desacreditar o canal de TV que lhe é mais crítico, e de maior audiência no País, a TV Globo, enquanto alimenta outros canais, particularmente a Record, com grupo dirigente reconhecidamente evangélico e conservador. Seus ataques constantes ao grupo Globo, que se somam às críticas dos petistas, têm como único objetivo desclassificar seu noticiário. Dessa forma, ele mantém fiel a si uma parte da mídia e veicula suficientes informações para alimentar as narrativas em seu favor, mantendo a opinião pública dividida.
Não há indícios claros, por enquanto, de perda do apoio da maioria dos grandes empresários. Pelo menos desconheço informações consistentes neste sentido. E, inteligentemente, Bolsonaro mantém seu ministro da economia, sua ponte mais segura com o mercado. Além de insistir em um discurso de retomada do trabalho, contra todas as prescrições dos especialistas, mas que agrada a maioria dos empresários.
Quanto às ruas, apenas os bolsonaristas a ocupam, com muito barulho, muitos carros e pouca gente, como as manifestações de 27 de abril e 9 de maio em Brasília. As pessoas que dele discordam, que são maioria no País, porém não absoluta (43,4% segundo a CNT/MDA), têm receio da pandemia e se manifestam apenas por panelaços nas janelas, e nas redes sociais. Fazem um pouco de barulho, mas em locais bem definidos e sem o poder de imagem que tem uma avenida paulista repleta de gente. Sem dúvida, como afirma Marcus André (colunista da Folha de São Paulo), a pandemia atrapalha.
Finalmente, com o aceno ao Centrão, Bolsonaro se prepara para uma eventual, mas improvável batalha congressual sobretudo após o fato de Lula ter dado ordens para o PT não assinar o pedido de impeachment que deputados começaram a preparar no início de maio. Não interessa ao PT a saída de Bolsonaro, pois, com ele, tem mais chances de ir ao segundo turno. De toda forma, o apoio do Centrão pode ser extremamente útil a Bolsonaro, caso os processos que correm no STF, inclusive o das denúncias de Moro, progridam de maneira desfavorável aos seus interesses. Questão que Bolsonaro tratou de reduzir ao nomear como seu novo ministro da Justiça e Segurança Pública um amigo do Presidente do STF, o ex-dirigente da AGU e forte candidato ao STF, André Mendonça, que ele denominou de “terrivelmente evangélico”.
Assim, a permanência de Bolsonaro, por enquanto, está assegurada. Em política as conjunturas mudam com rapidez, contudo, a probabilidade ainda é pequena e, no momento, inexistente.
Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (Rene Descartes, 1982), e pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Como citar
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. O impeachment de Bolsonaro é viável? Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades), 14 de maio de 2020. Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2020/05/14/fios-do-tempo-o-impeachment-e-viavel-por-elimar-pinheiro-do-nascimento/
Eliane Brum: O nojo
É isso que diremos aos nossos filhos, que vamos esperar passivamente Bolsonaro nos matar a todos?
A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.
O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.
Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.
Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.
Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.
Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.
Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.
O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?
Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês...), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.
Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.
Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.
Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.
Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.
Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.
Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.
Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?
Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.
Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.
Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.
São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.
E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?
Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.
É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.
O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?
Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.
Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Marcus Pestana: O legado possível da pandemia
Já ficou gasta, pelo excessivo uso, a afirmação de que as crises, por um lado, geram desafios, ameaças e problemas graves, por outro, abrem oportunidades. Do enfrentamento de eventos catastróficos como a atual pandemia do coronavírus e do aprendizado individual e coletivo decorrente, podem nascer mudanças de atitudes, gerando saltos de qualidade nas políticas públicas, no comportamento empresarial e no relacionamento humano e social.
Tudo pode acontecer, inclusive nada. Não é uma decorrência automática. Depende do comportamento de cada um e de todos. A “gripe espanhola” de 2018, que infectou 25% da população mundial da época, 500 milhões de pessoas, e levou a morte de 17 a 100 milhões de pessoas, segundo as precárias e imprecisas estatísticas, se deu em plena 1ª. Guerra Mundial e não obrigatoriamente gerou mais solidariedade e integração entre as Nações e as pessoas, visto que logo à frente tivemos a maior recessão da história em 1929 e a 2ª. Guerra Mundial, de 1939 a 1945.
Sejamos otimistas. Vamos torcer e trabalhar para que a pandemia da COVID-19 produza, no Brasil e no mundo, avanços civilizatórios na direção de uma sociedade mais solidária, humana, justa e democrática.
A saúde, que sempre foi uma preocupação central dos brasileiros, assumiu um protagonismo inédito. O verdadeiro bombardeio de notícias e informações sobre o coronavírus, roubando a cena de outros assuntos da política e da economia, tende a gerar uma atenção maior às políticas públicas de saúde. Um primeiro legado da pandemia, portanto, pode ser o crescimento da consciência de que é preciso aumentar os investimentos em saúde e melhorar muito a gestão de nosso sistema.
O sistema brasileiro de saúde, apesar de no nome o SUS carregar a palavra “único”, é composto de três subsistemas: o sistema público nacional universal, de cobertura integral e gratuita; a saúde suplementar – planos e seguros privados; e o sistema de desembolso direto dos cidadãos – os pagamentos particulares feitos nos balcões das farmácias e laboratórios ou para remunerar serviços médicos e odontológicos.
O SUS é ancorado no texto constitucional e na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/1990) e baseado no direito de cidadania e no dever do Estado prover os serviços de saúde indistintamente a todos os cidadãos brasileiros. Portanto, um direito determinado pela Constituição brasileira no âmbito das relações Estado/cidadão.
Diferentemente, a saúde suplementar é derivada de uma relação de mercado entre o usuário contratante e as operados e seguros de saúde, baseada numa figura central nas economias de mercado, realidade, porém, muitas vezes esquecida no Brasil: o contrato. A saúde suplementar atende a 47 milhões de brasileiros, ou seja, quase 25% da população.
Nas lacunas existentes no SUS e na saúde suplementar, muitas vezes os brasileiros são levados a tirar o dinheiro do próprio bolso para pagar medicamentos, consultas, exames.
O SUS tem resistido heroicamente à epidemia, embora em vários estados e cidades o sistema hospitalar esteja vivendo um colapso, sobretudo na oferta de leitos de UTI. Vivemos um descompasso crônico no SUS entre os recursos humanos e financeiros disponíveis e as necessidades da população. Isto é fruto de uma realidade histórica desde sua criação que é a do subfinanciamento. Segundo dados da OMS (2014), em dólar equalizado, o investimento público anual por habitante no Brasil gira em torno de US$ 435. Enquanto isso sistemas de acesso universal e cobertura integral em outros países investem muito mais: Portugal (US$ 1.363), Espanha (US$ 1.890), Reino Unido (US$ 3.266), Canadá (US$ 3.704) e França (US$ 3.868). Dinheiro não é tudo. Prova disto é que o país que mais gasta, os EUA, não tem os melhores resultados. Mas não há como fazer mágica.
Quem sabe, com o aprendizado da pandemia, governos, Congresso Nacional, sociedade deem mais atenção ao orçamento do SUS e priorizem este investimento essencial para a sociedade? Numa das inúmeras LIVEs que participei neste período de isolamento social, testemunhei um emocionante e sensível depoimento de um prefeito de uma grande cidade brasileira, que tendo passado dias angustiantes em uma UTI, graças a COVID-19, ao ser perguntado sobre qual o aprendizado pessoal que herdou, ele disse que tinha construído quatro viadutos em seu mandato, mas que a partir de agora teria um novo foco em relação ao sistema de saúde. Será que teremos a mesma percepção coletiva após a pandemia?
Mas outros legados poderão prevalecer. Entre eles, certamente haverá uma revalorização do desenvolvimento científico-tecnológico e da cadeia produtiva nacional da saúde. Todos nós ficamos na torcida por nossos cientistas, que num esforço concentrado e hercúleo, buscam uma vacina ou um tratamento contra o coronavírus. Vamos investir mais em nossos cientistas e pesquisadores? A inovação é a chave do desenvolvimento no mundo contemporâneo. Também, não só no Brasil, ficamos alarmados com a excessiva dependência global da oferta de equipamentos e insumos farmacêuticos ativos (IFAs) de alguns poucos países como China, Índia e Coréia do Sul. Houve uma verdadeira “guerra comercial” para a compra de ventiladores pulmonares, insumos e equipamentos de proteção individual. Haverá mais atenção no Brasil ao setor produtivo nacional e uma política industrial inteligente para que situações assim não se repitam?
Outra conquista possível e que veio para ficar é a telemedicina. Poderemos aumentar e muito a produtividade de nossos escassos recursos e ampliar o acesso aos serviços de saúde com o uso das modernas ferramentas tecnológicas que possibilitam o atendimento à distância. Claro que precisamos de uma boa normatização do assunto. Mas este avanço não pode ficar prisioneiro de razões corporativas.
Ainda como herança, nós certamente poderemos ter uma integração muito maior entre o SUS e a saúde suplementar. Como os recursos públicos são escassos e a saúde suplementar atende a um quarto da população, é fundamental abrir os canais de diálogo e discutir transparentemente as linhas de cooperação, já que quanto melhor for o desempenho da saúde privada, melhor para o SUS. Várias iniciativas governamentais e legislativas têm, nesse momento de crise, buscado o apoio do sistema privado de saúde, que voluntariamente fez doações expressivas para centros de pesquisas, hospitais de campanha, governos, organizações não governamentais de assistência social, disponibilização de leitos de UTI, equipamentos. Muitas vezes estas meritórias iniciativas esqueciam a diferença essencial entra a natureza constitucional do SUS e o fundamento contratual da saúde suplementar. Se queremos que a saúde suplementar seja eficiente e complemente as ações do SUS, não podemos minar a sustentabilidade econômica do setor privado. O diálogo transparente e fundamentado é o caminho da cooperação e da solidariedade.
Por último, mas não menos importante, poderá sobreviver talvez um ambiente mais favorável às ações de prevenção e promoção da saúde e aos autocuidados. Fomos treinados na pandemia pelos profissionais da saúde, pelas autoridades sanitárias e pelos meios de comunicação a investir no autocuidado e na prevenção. Lavar as mãos, usar máscaras, evitar aglomerações. O aumento da consciência sobre a importância da prevenção contra doenças pode ser o maior legado dessa pandemia. Alimentação saudável, atividades físicas, combate ao tabagismo, ao alcoolismo e às drogas, hábitos sexuais saudáveis, monitoramento permanente dos vetores de doenças crônicas (hipertensão, diabetes, entre outras), podem ter um impacto inimaginável sobre os indicadores de saúde.
Como disse, nenhum avanço será automático. O ser humano é o único na face da terra que tem consciência plena, capacidade de aprendizado amplo, possibilidade de transformar a vida. Que os momentos de tensão e angústia provocados pela COVID-19 sirvam de alavanca para, através do aprendizado pessoal e coletivo, conquistarmos uma saúde melhor para todos os brasileiros.
Eros Roberto Grau: O tempora, o mores
O tempo nos livrará da angústia da pandemia e da insegurança política que suportamos
Repito a mim mesmo um verso de um poema do Augusto Meyer, gaúcho como eu que conheci pelas mãos de Manuel Bandeira em 1958, no Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro. Tornamo-nos amigos então, ele encantado pelo fato de eu declamar alguns de seus poemas. Em especial aquele verso que, em glosa, agora repito assim: masco e remasco a minha ansiedade, minha angústia chewing gum.
Começo a escrever estas linhas também a partir do Cântico Negro, do José Régio: “não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”. O ímpeto de escrever a respeito de mim mesmo e da superposição do passado, do presente e do futuro toma conta de mim. Múltiplo enquanto ser humano, fui membro do Poder Judiciário, voltando a atuar como advogado desde 2010. Hoje produzo livros jurídicos e literatura de verdade, retornando à fotografia. Muitos eu mesmo no passado e no presente – hoje, aqui, agora – convictos de que o tempo é convenção.
Escrevi a respeito disso no meu A(s) Mulher(es) que Eu Amo, afirmando que os acontecimentos não são encadeados, não se seguem uns aos outros. Menos ainda consequentes. Nada impede que o antes ocorra depois e um estalar de dedos seja mais longo do que a eternidade. No quadro da literatura que tento praticar, um sujeito inventou um descompressor do tempo, mexeu no lugar errado e pum! Entramos na Antiguidade e passamos a ser uma civilização sem pré-história. Começamos pela metade. Dei-me conta de que se aumentarmos cem vezes, exatamente na mesma proporção, o tamanho de todas as coisas que enxergamos, nada será diferente do que é. Tudo exatamente na mesma proporção. Objetos, pessoas, horizontes, nós mesmos. Multipliquem por mil ou os dividam por um milhão e tudo será exatamente igual ao que temos aqui, agora.
Realmente estou confuso. Não sei a respeito do que escrever, pois o tempo é uma convenção e – aprendi ouvindo o Lulu Santos – nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Pois tudo passa, tudo sempre passará. O velho Heráclito me ensinou ser impossível pisarmos duas vezes no mesmo rio. Depois Hegel, ao ensinar que a História não se repete e outro autor, ao escrever sobre o 18 Brumário.
Ainda que seja assim, manifestações do nosso Poder Executivo hoje me perturbam, de sorte que – sorte ou azar? – não sei o quê, do que falar, escrever…
Aqui mesmo, na edição de 2 de abril passado, afirmei que a pandemia que hoje suportamos impacta sobre o todo do qual somos meras partículas. Política é a atuação dos que se ocupam dos assuntos públicos, no quadro em que estão inseridas relações institucionais e sociais. A suposição de que se possa instalar acirramento entre essas relações é expressiva de ignorância ou de más intenções. Atuação que, na primeira hipótese, conduz a conflitos entre instituições políticas e o todo social. Conflitos que nos levam àquelas palavras de Jesus: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Na segunda hipótese, expressiva de más intenções. Os graves momentos que hoje vivemos trazem de volta um poema de Álvaro Moreyra, no qual ele afirma que palavras não dizem nada, melhor é mesmo calar. Nada mesmo a dizer a respeito da atuação de quem se dispõe a agredir o todo a fim de obter vantagens pessoais.
São terríveis os momentos que hoje vivemos. Além da pandemia que assola o mundo em seu todo, habitamos um país onde os juízes dos nossos tribunais são agredidos aos gritos pelas ruas. Conheci Alexandre de Moraes na Faculdade de Direito da USP. Ele e o Toffoli eram da mesma turma. Eu – mais velho que eles – professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Anos depois, início do ano 2000, Alexandre tornou-se meu colega, docente lá nas Arcadas. Quando chegou ao STF eu já me aposentara por conta da idade, mas esses três vínculos nos unem para sempre. Um homem correto, praticante de prudência – a phronesis aristotélica – ao decidir corretamente, no quadro da Constituição e das leis. A conduta de Alexandre como magistrado traz a mim esperança e certeza de que o Tempo nos livrará não apenas da angústia decorrente da pandemia, mas também da insegurança política que nos dias que correm suportamos.
Felizmente, no entanto, a angústia dos dias de hoje é superada por momentos de alegria, quais os que me trouxeram dois professores das velhas Arcadas do Largo de São Francisco que haviam rompido a amizade comigo e há dois ou três dias me convocaram para a ela voltarmos.
A música e a poesia me acompanham, por conta do que vou andar por aí, pra ver se encontro a paz que perdi! De repente soa em meus ouvidos o último verso de um poema do meu amigo Manuel Bandeira, Pneumotorax: a única coisa a fazer é tocar um tango argentino!
Os que por aí estão deveriam ouvir Sócrates: só sei que nada sei! Embora no fundo de mim mesmo eu suponha que Sócrates hoje se referiria a outros, assim: só sei que eles nada sabem!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do Supremo Tribunal Federal
Julianna Sofia: Guedes aproveita-se da crise para reciclar Carteira Verde e Amarela e nova CPMF
São ações provisórias com cheiro, cor e gosto de perenes
Ainda eram as trombadas iniciais do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso, no primeiro trimestre de 2019, quando Rodrigo Maia (Câmara) afirmou que o governo não tinha uma proposta clara para os problemas do país e que o Brasil era um "deserto de ideias". Poucos avanços desde então. Parcas e obtusas, medidas aventadas ao longo dos 16 meses de gestão bolsonarista agora encontram momento conveniente para prosperar.
A se confirmarem os dados do termômetro de atividade do Banco Central, a economia levou um tombo de 5,9% em março, quando a pandemia começou a produzir seus estragos. O Ministério da Economia projeta para o ano uma retração de 4,7%, considerando que as medidas de isolamento serão suspensas no final deste mês.
Vários dos programas de socorro anunciados pela equipe econômica precisarão ser prorrogados inevitavelmente, apesar da resistência do time do Ministério da Economia, como o auxílio emergencial de R$ 600. Outros começam a ser remodelados por não atingirem o efeito desejado --o financiamento da folha de salários, por exemplo.
É no lodaçal do desemprego, da queda de renda e do aumento da miséria, e sob pressão do setor produtivo e da oligofrenia de seu chefe, que o ministro Paulo Guedes pretende emplacar um modelo liberal de contratações.
Após ver contidos pelo Congresso seus planos de flexibilizar o emprego de jovens, ele pretende convencer o Parlamento a dar um passo ousado: um programa emergencial de desoneração de custos trabalhistas --similar à Carteira Verde e Amarela, sistema com redução de encargos e direitos, que evoluiria para um regime previdenciário de capitalização.
Inicialmente, o governo bancaria o alívio da folha de pagamento para salvar as empresas, mas a intenção seria recriar um imposto como a CPMF para financiar o projeto.
Soluções provisórias e oportunistas —com cheiro, cor e gosto de medida perene.
Bolívar Lamounier: Parece loucura, mas tem método
O bolsonarismo é uma força política perigosa, agressiva e hostil à ordem democrática
É lógico que uma democracia representativa digna do nome não tem condições de se firmar onde a ética da impessoalidade do Estado não se desenvolva; e tal ética, por sua vez, não se consolida se as Forças Armadas se mantiverem no universo do populismo ou do caudilhismo. Em qualquer país, a inexistência de harmonia entre essas esferas institucionais cedo ou tarde dará ensejo a retrocessos e, no limite, ao próprio rompimento da ordem constitucional. No Brasil, tal situação ficou claramente exemplificada nos episódios da renúncia de Jânio Quadros (1961) e do desgoverno de João Goulart (1961-1964).
Em 1945, logo ao regressar da guerra na Itália, o marechal Mascarenhas de Moraes deu o cartão vermelho para o ditador de plantão, o Sr. Getúlio Vargas, e exigiu a realização de eleições e a convocação da Assembleia Constituinte, como viria a ocorrer em 1946. Mesmo nos 21 anos (1964-1985) em que exerceram autoritariamente o poder, os militares não permitiram a personalização do poder, como era tradicional na América Latina.
No período recente, o populismo e a corrupção dos oito anos de Lula, aos quais se seguiram a incompetência e o voluntarismo econômico de Dilma Rousseff abortaram a retomada do crescimento econômico, mas o desarranjo institucional não chegou a se configurar plenamente, graças, é certo, ao penoso processo do impeachment de Dilma, Mas comparado ao ciclo Lula-Dilma, o momento atual suscita preocupações bem maiores.
A partir da eleição de 2018, a reação às sandices e tensões cultivadas pelo PT e o esvaziamento dos partidos de centro deixaram o espaço aberto para o surgimento de uma força política — o bolsonarismo — perigosa tanto na base quanto na cúpula. Na base, devido ao vazio de ideias, à hostilidade contra a ordem institucional e à agressividade dos adeptos de Jair Bolsonaro. Na cúpula, o presidente em vez de apaziguar os ânimos, fomenta os antagonismos; em vez de observar a liturgia do cargo que ocupa, não perde uma chance de desmoralizá-lo. Será tal comportamento uma simples emanação de idiossincrasias ou peças de uma estratégia que parece ser loucura, mas pode ter método. ´
Fato é que, alternando ameaças e gaiatices, Jair Bolsonaro parece empenhado em esticar a corda, em testar limites e em debilitar os anticorpos ainda existentes no Congresso, no STF e nas Forças Armadas. É um filme que já vimos muitas vezes, mas nunca tendo no papel principal um personagem tão manifestamente descerebrado.