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PEC dos Precatórios: relatório de Bezerra é novo abalo nas instituições fiscais do país

PEC dos Precatórios agora está dando uma pedalada tripla, avalia analista do Senado

Álvaro Gribel / O Globo

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, vai apresentar amanhã o seu texto final sobre a PEC dos Precatórios. Mas pontos da proposta circularam entre senadores nesta terça-feira. O que mais chama atenção nas mudanças do senador é o forte abalo na Lei de Responsabilidade Fiscal: o governo ficará dispensado de apresentar compensação para aumento de gastos com programas de transferência de renda. Ou seja, poderá subir o Auxílio Brasil o quanto quiser, desde que dentro do teto, sem ser obrigado a cortar despesas ou apresentar as fontes de custeio.

Na visão do analista do Senado e especialista em contas públicas Leornado Ribeiro, a PEC dos Precatórios agora está dando uma pedalada tripla. Adia o pagamento de precatórios, criando uma bola de neve em dívidas, altera a regra do teto de gastos, permitindo mais gastos no ano eleitoral, e burla a necessidade de compensação para aumento de gastos sociais, dentro da LRF.

- A proposta dá um calote nos precatórios, aumenta casuisticamente a fórmula do teto de gasto e pedala na LRF. É a consolidação do abalo nas instituições fiscais, inclusive alcançado agora a LRF, que, a meu ver, é até mais importante do que o teto, porque disciplina todo o arranjo fiscal do país - afirmou.

Em nota, o PSD, partido do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e a segunda maior bancada da Casa, avisou que pedirá vista após a leitura do relatório de Bezerra, na sessão de amanhã pela manhã na CCJ. O que incomodou os senadores foram não só as mudanças sem negociação, mas o fato de saberem das alterações pela imprensa. O PSD também anunciou que terá reunião com Bezerra nesta quarta-feira à tarde para discutir o texto.

Nos governos do PT, os investimentos foram excluídos da necessidade de compensação dentro da LRF. Isso abriu caminho para que vários tipos de despesas dentro do PAC fossem excluídos da regra fiscal, ajudando a minar a confiança de investidores no país. Agora, o governo Bolsonaro abre uma nova brecha de enfraquecimento da principal regra fiscal fo país.

Fonte: Míriam Leitão / O Globo 
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/pec-dos-precatorios-relatorio-de-bezerra-e-novo-abalo-nas-instituicoes-fiscais-do-pais.html


Felipe Salto: Os custos da confusão fiscal e a PEC dos Precatórios

O esforço de zerar o déficit e produzir um superávit necessário para que a dívida estacionasse seria de R$ 450 bilhões

Felipe Salto / O Estado de S. Paulo

A PEC dos Precatórios foi aprovada pela Câmara dos Deputados e tramita no Senado. A mudança no cálculo do teto de gastos e o calote nos precatórios levariam à perda de credibilidade, à insegurança jurídica e, como um tiro pela culatra, ao aumento do endividamento público. Parte da fatura já está sendo paga.

Os juros previstos para os próximos dez anos a partir de 2022, tomando-se a curva a termo (que indica as taxas exigidas pelo mercado em diferentes prazos), estão em 12% ao ano. Isto é, o custo para o Tesouro Nacional tomar emprestado do mercado (quando emite títulos) para financiar suas despesas poderá ser muito alto por um bom tempo.

Para ter claro, há cinco meses, esse custo era precificado em torno de 7% (prazo de um ano), em pouco mais de 8% (cinco anos) e em 9% (dez anos). O aumento das taxas para 12% reflete a subida do prêmio exigido pelo risco. Diante de incertezas crescentes, quem tem poupança (o mercado) exige maior remuneração (juros) para comprar títulos públicos.

Se o governo tivesse receitas tributárias suficientes para pagar suas despesas, inclusive os juros da dívida, só precisaria emitir títulos para substituir os que estivessem vencendo. Ocorre que ele está no vermelho. Neste caso, brincar com fogo é ainda menos recomendável. Mesmo assim, aí está a PEC dos Precatórios.

A perda de credibilidade tem custos imediatos. Os agentes econômicos interpretam que o calote nos precatórios (despesas obrigatórias) poderia transbordar para outras áreas. Por que não dar calote em salários ou previdência e, assim, abrir mais espaço para outras despesas? Trata-se de pedalada: o Estado se financiando em cima de terceiros (os precatoristas, neste caso).

O custo aparece nos juros, como já mostrei, mas também na taxa de câmbio, porque a atratividade do País ao capital estrangeiro diminui, afetando o preço do dólar medido em reais. Consequentemente, bate na inflação, pois tudo o que se compra de fora fica mais caro. Por fim, afeta o crescimento econômico, sobretudo pelos juros mais altos e pela perda de previsibilidade, veneno na veia do investimento produtivo.

Aliás, a insegurança jurídica associada ao calote dos precatórios deve ser destacada. Combina-se à mudança do cálculo do teto, que subiria por uma inflação mais alta, desde 2017, abrindo espaço fiscal de R$ 93 bilhões para 2022. Criase, ainda, uma bola de neve nos precatórios, pois as despesas não pagas se somariam aos calotes dos anos seguintes, criando um passivo superior a R$ 850 bilhões até 2026.

Se o governo e o Congresso quisessem aumentar o Bolsa Família, um programa bem avaliado dentro e fora do País, poderia: 1) cortar despesas de custeio em R$ 11 bilhões; 2) corrigir a contabilização dos precatórios do Fundef/fundeb (educação), abrindo espaço de R$ 16 bilhões; e 3) direcionar metade das emendas parlamentares para o social, amealhando mais R$ 8 bilhões. O total, de R$ 35 bilhões, permitiria dobrar o valor do programa fixado na proposta de Orçamento para 2022.

A inflação ajudou a melhorar as receitas e a dívida pública por um tempo. Essa ilusão de melhora foi enaltecida por alguns irresponsáveis. É óbvio que isso despertaria a sanha por novos gastos. Não os sociais, necessários. “Ora, se está sobrando, vamos gastar!” Alertei, neste espaço, sobre isso. Entre agosto e setembro, a dívida bruta do governo geral já voltou a aumentar, de 82,7% para 83% do Produto Interno Bruto (PIB). Os pagamentos de juros estão subindo à razão de quase 40% em relação a setembro de 2020. Inflação não resolve nada. Nunca resolveu.

Com juros a 12% e inflação na casa de 6% (hoje está acima de 11% pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC), os juros reais seriam de 6% ao ano. Se o crescimento econômico ficar em 2%, em média, e a dívida pública rodear os 86%, num horizonte de três a quatro anos seria preciso produzir um superávit nas contas do governo de 3,4% do PIB para que a dívida estacionasse. O déficit deverá ficar em torno de 1% do PIB em 2022. Esse esforço de zerar o déficit e produzir o superávit acima calculado representaria R$ 450 bilhões.

Eis o custo mais escancarado desta confusão fiscal. Ainda há tempo para reverter parte dos danos. Assim como os juros subiram rapidamente, podem descer. Isso dependeria, entre outros fatores, de reverter a PEC dos Precatórios e fazer o dever de casa.

Os cinco anos da IFI. A Instituição Fiscal Independente (IFI) completará cinco anos no próximo dia 30. A IFI conquistou credibilidade e, hoje, colabora como mecanismo de freio e contrapeso típico dos regimes democráticos. A imprensa cita seus trabalhos, em média, duas vezes ao dia. A Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE) incluiu a IFI brasileira no rol de instituições monitoradas. Os números da IFI são usados para contrapor os cenários do governo e avaliar os custos das decisões de política econômica. Há, ainda, trabalho pela frente. Como um bom cão de guarda, seguiremos alertando sobre as ameaças à responsabilidade fiscal. Vida longa à IFI e parabéns à equipe!

*É Diretor-executivo da IFI e responsável por sua implantação

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,os-custos-da-confusao-fiscal,70003905658


Elio Gaspari: Propaganda transforma Planalto em casa da sogra

Palácios brasileiros passaram a ser tratados como propriedade privada há pouco tempo

Elio Gaspari / O Globo

O capitão mandou pendurar um painel de 10 metros por 2,5 no saguão do Palácio do Planalto. Chama-se “Brasil acima de tudo” e faz seu gosto. Bolsonaro também quer privatizar a Petrobras. É seu direito defender a ideia, tomando as providências que a lei determina. Não é seu direito, contudo, tratar o prédio onde trabalha como propriedade privada. Se o Instituto do Patrimônio Histórico não serve para proteger a arte do palácio presidencial, seria melhor fechá-lo.

Os palácios brasileiros passaram a ser tratados como propriedade privada há pouco tempo. Getulio Vargas pouco mexeu no Catete ou no Laranjeiras. No Alvorada de JK, a sala de jantar era iluminada por lâmpadas fluorescentes que arruinavam a maquiagem das senhoras. No governo de FHC, colocou-se uma grande escultura de madeira no jardim do Alvorada. Com a chegada de Lula, a peça foi retirada e acabou num galpão. No lugar, entrou um canteiro de flores vermelhas com a forma da estrela do PT. No Planalto, Nosso Guia instalou um pequeno museu com peças de sua vida. Lula se foi, e com ele a estrela de flores e o museu.

O presidente americano Ronald Regan comparou o palácio da “Alvarado” ao QG de uma companhia de seguros. Bolsonaro já havia exposto no saguão do Planalto, onde pôs o painel, as roupas que ele e sua mulher Michelle usaram no dia da posse. Elas continuam lá, afastadas.

Essas manifestações de falso gosto histórico ou artístico são bregas e constrangedoras. Os museus brasileiros conservam peças que poderiam ser emprestadas ao Planalto. Aquelas paredes não são molduras de painéis de propaganda política.

Os retirantes que somem

Saiu o primeiro dos dois volumes da biografia de Lula, escrita pelo jornalista Fernando Morais. Perto da metade de suas 468 páginas ocupam-se com minuciosas descrições de suas prisões, a de 2018, como ex-presidente, e a de 1980, como líder sindical.

É o livro de um biógrafo que gosta do seu personagem, circunstância que o enriquece. Em um parágrafo, ele conta a partida de Dona Lindu, em 1952, com seis crianças na caçamba de um caminhão do interior de Pernambuco a Santos. Lula tinha sete anos. Essa viagem de 13 dias teve algo de épico, sem conforto, com quase nenhuma comida e já foi contada muitas vezes. Dona Lindu e seus filhos estão imortalizados no Recife, num monumento aos retirantes nordestinos da época. Plantado num parque que leva o nome da matriarca, foi projetado por Oscar Niemeyer.

A história tem suas trapaças. Faltam no monumento aos retirantes, e em quase todas as descrições da viagem, Dorico, irmão de Lindu, a mulher, Laura, e mais suas duas crianças. Eles também vieram no pau-de-arara. Quando chegaram a Santos, foi Dorico quem chamou o táxi que os levou ao endereço de Aristides, o pai de Lula. Trabalhando como estivador, vivia com Mocinha, a prima de Lindu, com quem viera de Pernambuco. Isso foi revelado há anos pela jornalista Denise Paraná em seu excepcional “Lula, Filho do Brasil”.

Morais fez duas referências nominais a Dorico, ambas mostrando que, anos depois, Dona Lindu e seus filhos moraram num quarto nos fundos de seu bar, em São Paulo.

A ausência de Dorico e sua família no monumento do Recife e nessa parte da história do garoto Luiz Inácio é um aspecto da vida dos retirantes dos anos 50. É a presença do ausente, aquele migrante que acaba engolido pela História, mesmo que seu sobrinho tenha sido presidente da República por dois mandatos.

O Touro de Ouro

Se o monumento a Dona Lindu, do escultor Abelardo da Hora, é uma homenagem ao andar de baixo, o Touro de Ouro que papeleiros puseram diante da Bolsa de Valores é um monumento à falta de imaginação do andar de cima de Pindorama. É um eco da escultura semelhante colocada em frente à Bolsa de Wall Street.

Madame Natasha lembra que no Brasil, e em português, touros nada têm a ver com Bolsas. Em Wall Street, o touro, “bull” em inglês, designa um mercado que o bicho joga para cima com seus chifres. Já um mercado em queda é chamado de “bear” (urso) porque empurra suas presas para baixo.

O touro de Wall Street é de bronze, com a cor do metal. O touro paulista é de fibra de vidro, pintada de dourado. De ouro era Baal, a divindade pagã que Moisés destruiu quando desceu do Monte Sinai.

Enquanto o Touro de Ouro foi para a frente da Bolsa, o urso dava o ar de sua graça e os papéis caíram abaixo da marca de novembro do ano passado.

O recado de Leite

Seja qual for o resultado da prévia tucana, o governador gaúcho, Eduardo Leite, deixou sua marca no debate presidencial. Anunciou que é contra a reeleição de presidentes, governadores e prefeitos. Tem autoridade para isso porque não disputou a reeleição em Pelotas, foi para o sereno e dois anos depois elegeu-se governador do Rio Grande do Sul.

Lula foi contra a reeleição, até que chegou sua hora. Bolsonaro também prometeu não disputá-la.

Todos os males da vida nacional, do descontrole dos gastos ao toma-lá-dá-cá, têm raízes estruturais e são ossos duros de roer. Só a reeleição pode ser cancelada com uma desambição exemplar e um ato parlamentar.

Nunes Marques, o quieto

Desde que chegou ao Supremo Tribunal Federal, o ministro Kassio Nunes Marques tem sido visto como uma figura silenciosa e dissidente, com jeito de penetra. Ele se tornou um discreto articulador nas escolhas do Planalto para o preenchimento de vagas no Judiciário.

Nisso ele é um mestre, tanto que chegou à Corte como um verdadeiro azarão.

Pesadelo diplomático

Depois que Bolsonaro foi aos Emirados Árabes para andar de motocicleta enquanto Lula era recebido como um chefe de Estado na Europa, um pesadelo diplomático assombra o Planalto. É a possibilidade dele ir aos Estados Unidos no ano que vem.

Se Lula se encontrar com metade das vítimas das caneladas do bolsonarismo, repetirá o êxito do périplo europeu.

Pastore tem sorte

O economista Affonso Celso Pastore, que está no círculo de colaboradores de Sergio Moro, sabe economia e passou pela presidência do Banco Central (1983-1985) com biografia imaculada, e é também uma pessoa de sorte.

Em 1982, quando participava de uma reunião do FMI em Toronto, saiu para almoçar e pediu ostras. Mordeu uma coisa dura e achou que tinha quebrado um dente.

Era uma pérola.

Um ano de Pix

As coisas podem dar certo. O Banco Central comemorou discretamente um ano de funcionamento do aplicativo Pix.

Sem marquetagens, mentiras ou pixulecos, ele já atendeu 104 milhões de pessoas, movimentando R$ 4 trilhões.

Teve falhas e foram corrigidas, pode melhorar e o BC está trabalhando nisso.

Missão para Mourão

Se o general da reserva Hamilton Mourão for um homem caridoso e tiver uma brecha na agenda, bem que poderia ir a Washington para almoçar com sua colega Kamala Harris.

Poderia explicar-lhe o que deve fazer para continuar viva numa Casa Branca habitada por um presidente cercado por fofoqueiros que não têm o que fazer e, se tivessem, seriam incapazes de enfiar um prego numa barra de sabão.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/propaganda-transforma-planalto-em-casa-da-sogra-25285090


Cristovam Buarque: Vigília responsável e solidária

Os políticos optaram pela velha tradição brasileira de liberar despesas maiores do que a receita. Agora miram o teto de gastos

Cristovam Buarque /Blog do Noblat / Metrópoles

Nossa geração de brasileiros foi condenada a pagar dívidas com brasileiros que não receberam no passado pagamentos a que tinham direito. Os precatórios surgiram de irresponsabilidades e incompetências cometidas por governos anteriores, que o atual governo deve pagar. Se não fizer, além de represálias jurídicas que sofrerá, estará adiando o problema para brasileiros do futuro, e cometendo injustiça com aqueles que têm direito de receber os créditos que a lei já reconheceu. Esta situação é simples se não for confrontada com a realidade aritmética, comparando o valor da dívida que vem do passado com a disponibilidade de dinheiro no presente. O setor público brasileiro não dispõe dos bilhões de reais necessários para pagar a dívida, salvo se os políticos fizessem uma reforma fiscal para retirar dinheiro de empresas e pessoas para financiar estes gastos; ou se rompesse as amarras da responsabilidade fiscal e permitisse ao governo gastar mais do que dispõe, pagando com moeda desvalorizada pela inflação, o que não deixa de ser uma reforma fiscal em que todos pagariam pela redução do valor da moeda que têm em mãos. A alternativa de emitir títulos em vez de moeda é uma forma de trocar precatório hoje por pagamento da dívida no futuro acrescida de juros, com o agravante de que para trocar os títulos por dinheiro seria necessário aumentar a taxa de juros a ser paga aos que emprestam o dinheiro, assustados com risco de futuros calotes, provocando nefastas consequências sobre a economia, tais como desemprego e recessão.

Os políticos optaram pela velha tradição brasileira de liberar despesas maiores do que a receita, como sempre fizeram para atender ao apetite por gastos em privilégios, emendas, ostentação, subsídios, obras necessárias ou não, e até por gastos sociais necessários. Para isto eles precisam romper a PEC do Teto que, sendo determinação constitucional, precisa de um quórum qualificado. Embora a maioria de nossos políticos sejam, historicamente, populistas e irresponsáveis nos gastos públicos, o fato de estar na Constituição faz com que a liberação para gastar exige uma maioria expressiva. Com isto, uma minoria dos parlamentares pode barrar a volta do casamento entre economistas negacionistas da aritmética e populistas de direita e de esquerda que conduziram as finanças públicas brasileiras, ao longo de grande parte das últimas seis a sete décadas.

Para vencer esta minoria que deseja manter a responsabilidade fiscal do Teto, os defensores da irresponsabilidade encontraram dois argumentos: não se deve dar calote em dívida e é preciso atender aos pobres que passam fome. De repente, políticos de esquerda que defendiam calote ou renegociação da dívida pública agora ae tornam radicais opositores do calote e de renegociação dos “precatórios”, e políticos insensíveis ao sofrimento do povo passam a defender os brasileiros que passam fome. Além do imediatismo eleitoral, estão usando a fome e os “precatórios” para voltar ao negacionismo da aritmética que permite tratar com irresponsabilidade as finanças públicas. Tomando carona na fome e nos “precatórios”, políticos de esquerda e de direita querem voltar ao tempo de gastos sem limites para suas emendas, privilégios, subsídios, ostentação, desperdícios, fundo partidário, fundo eleitoral, e certos gastos sociais, sem tocar nos privilégios e na concentração de renda, nem na tributação regressiva que isenta os ricos e penaliza aos pobres..

A derrubada da PEC do Teto é uma contrarrevolução feita em nome de atender aos esfomeados e cumprir ordem judicial. Mais uma vez a política nacional beneficia aos ricos com a ilusão de beneficiar aos pobres, jogando para estes pagarem o que recebem com a carestia que roubará o que recebem. Em um país com o potencial para a produção agrícola e com a capacidade de distribuição de alimentos a ocorrência de fome só se explica pela maldade e cegueira da política. Se quisessem de fato enfrentar a fome genocida que acontece sob nossos olhos, o Congresso deveria se reunir em vigília, responsável e solidária, contra a fome, dia e noite, sábado e domingo, com a pauta exclusiva de como resolver o problema da fome, definir um programa emergencial, estimado quanto será preciso tirar dos que comem para os que não comem, sem roubar ao povo com inflação. Em um país com o potencial.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/vigilia-responsavel-e-solidaria-por-cristovam-buarque


Alessandro Vieira: Precisamos falar do Orçamento

Quadro atual traz dilemas que persistem desde a redemocratização

Alessandro Vieira / O Globo

Às vésperas da votação da PEC dos Precatórios no Senado, precisamos falar sobre o verdadeiro problema que ela traz à tona. Não é a PEC, muito menos o auxílio social que ela — em tese — torna possível. Não é só o orçamento secreto, ou as emendas distribuídas a alguns parlamentares “coincidentemente” próximo a votações importantes. A verdade é que precisamos falar sobre o Orçamento federal.

O Orçamento no Brasil não tem passado de uma peça de ficção. Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA), em tese, deveriam servir como norte para um planejamento de país: da Educação à Saúde, da Infraestrutura à Agricultura. No entanto o que temos visto governo após governo é um jogo de quebra-cabeça em que as peças não se encaixam e acabam por formar uma imagem turva do que gostaríamos de ser.

A ideia do ciclo de planejamento é bonita: começa com o PPA, quando o presidente eleito tem a missão de desenhar o país que pretende conduzir pelos próximos quatro anos. Ali, os ministérios descrevem suas diretrizes, objetivos e metas para aquele ciclo, que se inicia no segundo ano de cada mandato e se encerra no primeiro ano do mandato seguinte, trazendo o senso de continuidade. Seus programas e ações devem orientar a LDO, em que serão elencadas as políticas públicas a ser priorizadas para que as metas sejam cumpridas. A LOA completa o quadro. Ali se demonstra como o governo pretende pagar por aquilo que foi planejado para o ano seguinte.

O problema é que a teoria tem se mostrado ineficiente na prática, especialmente quando o governo se exime de qualquer responsabilidade sobre presente e futuro. Uma das principais alterações feitas por Bolsonaro na estrutura administrativa foi a incorporação do Ministério do Planejamento ao Ministério da Economia, uma estrutura que se tornou grande demais para a pequena capacidade de gestão deste governo. Em certa medida, perdeu-se a visão estratégica da economia e do próprio planejamento. Talvez tenha sido uma mostra do que se podia esperar.

No entanto o quadro atual traz dilemas que persistem desde a redemocratização. Por vezes, não é possível compreender os confusos Projetos de Lei do Congresso (PLNs) que buscam alterar a colcha de retalhos que virou o Orçamento público federal. A atenção de todos acaba se voltando mais para o não previsto, e o recurso discricionário (livre de definições prévias) se torna objeto principal, seja como RP2 (emendas discricionárias), RP9 (emendas de relator) ou a manobra orçamentária que surgir. Ocupam-se mais com o recurso que deveria apenas corrigir distorções do que com o que deveria balizar o funcionamento do país.

Então tem-se uma bola de neve: processos nada transparentes geram execuções obscuras, dificultam a fiscalização da execução e permitem o surgimento de esquemas que só mudam de nome, independentemente de qual partido esteja no poder. No passado, Anões do Orçamento, mensalão. Atualmente orçamento secreto (ou bolsolão). E nos atemos mais aos nomes que às soluções.

Especialmente no pós-pandemia, precisamos de governantes que compreendam a importância do ciclo: planejar, executar, fiscalizar. Precisamos nos concentrar no que é essencial para garantir um mínimo de dignidade à população mais carente e criar as condições necessárias para que a nossa economia seja reconstruída. Precisamos de processos transparentes, de um Orçamento que possa ser revisto, mas que sirva como norteador real, e não fictício, de um projeto de país.

Com parlamentares mirando na poupança eleitoral e um presidente preocupado em manter seu poder de compra sob o Centrão, dificilmente teremos o melhor resultado. Ou começamos quanto antes a construir um país em bases verdadeiramente sólidas, ou tudo que teremos será uma nação sempre prestes a ruir.

*Senador (Cidadania-SE)

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/precisamos-falar-do-orcamento.html


Brasil, Bolívia e Peru estão entre campeões mundiais de desmatamento

O compromisso assumido de acabar com o desmatamento e revertê-lo até 2030 foi considerado um dos acordos mais importantes da COP26

BBC News

Não é a primeira vez que os líderes mundiais fazem esse tipo de promessa e muitos duvidam que os acordos venham a ser concretizados na data prevista.

Em 2014, a Organização das Nações Unidas anunciou um acordo para reduzir o desmatamento pela metade até 2020 e a zero até 2030.

Depois, em 2017, foi estabelecido outro objetivo, de aumentar as áreas de floresta em 3% em todo o mundo até 2030.

Mas o desmatamento prosseguiu em "ritmo alarmante", segundo um relatório de 2019, com sérias consequências para a luta contra as mudanças climáticas.

Mesmo assim, os especialistas não têm dúvidas em classificar este tema como "urgente". As florestas absorvem grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2), que é um dos principais causadores do aquecimento global, e o corte de árvores pode ter grande impacto sobre a vida no planeta.

A ONU afirma que 420 milhões de hectares de florestas foram perdidos desde 1990, principalmente devido à agricultura.

Foram realizados alguns esforços de reflorestamento, seja por crescimento natural ou plantio, mas as árvores precisam de anos para crescer, até que possam absorver completamente o CO2.

Durante a última década, foram perdidos 4,7 milhões de hectares de florestas por ano. Entre os países mais afetados, encontram-se o Brasil, a Bolívia, o Peru, a Indonésia e a República Democrática do Congo.

É alarmante para muitos que três países da América Latina estejam no topo da lista. Veja qual é a situação em cada um deles.


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Brasil

Cerca de 60% da floresta amazônica ficam no Brasil, que desempenha um papel fundamental na absorção do CO2 nocivo que, de outra forma, escaparia para a atmosfera.

Após reduções constantes desde 2004, o desmatamento da Amazônia brasileira aumentou novamente, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Segundo um relatório do instituto, a taxa de desmatamento em 2020 foi a mais alta em mais de uma década.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou na ONU que, desde agosto deste ano, o desmatamento no Brasil diminuiu em comparação com 2020.

Mas a taxa de desmatamento ainda é superior aos níveis anteriores à sua chegada ao poder, em 2019.

Os dados do Imazon - Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia - não demonstram desaceleração da taxa de desmatamento este ano.

O presidente Bolsonaro foi criticado pelas suas políticas contrárias à preservação ambiental, como o incentivo à agricultura e à mineração na Amazônia.

O mandatário brasileiro também foi questionado pelo corte dos fundos das agências governamentais responsáveis por fiscalizar os agricultores e madeireiros que violam a legislação ambiental.

Em 2020, as multas por cortes ilegais caíram em 20%.

Os números exatos não estão disponíveis, mas estudos recentes sugerem que até 94% do desmatamento e da destruição dos habitats brasileiros podem ter causas ilegais.

Área desmatada na Amazônia: Bolsonaro afirmou na ONU que, desde agosto deste ano, o desmatamento no Brasil diminuiu em comparação com 2020. Foto: Felipe Werneck/Ibama

Bolívia

O Brasil não é o único país responsável pelo desmatamento da Amazônia. Os países vizinhos também contribuem — e um deles é a Bolívia.

No ano passado, a Bolívia perdeu quase 300 mil hectares de florestas tropicais — o quarto maior desmatamento do planeta.

Entre 2002 e 2020, a Bolívia perdeu 3,02 milhões de hectares de floresta primária úmida, que representam 51% da sua perda total de cobertura florestal no mesmo período, segundo os dados da ONG Global Forest Watch.

A área total de floresta primária úmida do país andino foi reduzida em 7,4% nesse período.

Entre 2001 e 2020, a Bolívia perdeu 6,11 milhões de hectares de cobertura florestal, equivalentes a 9,5% de redução da cobertura florestal desde o ano 2000, o que representa cerca de 2,67 bilhões de toneladas de emissões de CO2.

Segundo o estudo da Global Forest Watch, 74% da perda de cobertura florestal do país entre 2001 e 2019 ocorreram em regiões onde os fatores dominantes de perda resultaram em desmatamento.

Peru

Entre 2002 e 2020, o Peru perdeu 2,16 milhões de hectares de floresta primária úmida e a área total de floresta primária úmida foi reduzida em 3,1% nesse período, segundo a Global Forest Watch.

Nesse mesmo período, o país perdeu 3,39 milhões de hectares de cobertura florestal, equivalentes a 4,3% de redução com relação à cobertura existente em 2000 e a 2,17 bilhões de toneladas de emissões de CO2.

Em outros continentes

A Indonésia, na Ásia, e a região do Congo, na África, são outras áreas que apresentam as maiores taxas de desmatamento do planeta.

A Indonésia tem permanecido entre os cinco países com maiores perdas florestais relatadas nas últimas duas décadas.

Segundo os dados da Global Forest Watch, o país perdeu 9,75 milhões de hectares de floresta primária entre 2002 e 2020, principalmente devido à derrubada de árvores para plantio de palma oleaginosa. Dados oficiais indicam que até 80% dos incêndios florestais foram iniciados com esse objetivo.

Em 2016, houve um recorde de 929.000 hectares de floresta perdidos, mas tem havido reduções constantes da taxa de desmatamento do país desde então.

A floresta da bacia do Congo é a segunda maior floresta tropical do mundo. Mais da metade dela encontra-se na República Democrática do Congo.

A organização ativista ambiental Greenpeace afirma que o corte ilegal, por pequenas e grandes empresas, está causando o desmatamento.

Embora os Estados Unidos e a União Europeia tenham proibido a importação de madeira ilegal, ainda existe contrabando para fora do país

Outras ameaças incluem a agricultura de subsistência em pequena escala, a extração de carvão e combustível, a expansão urbana e a mineração.

Nos últimos 5 anos, a perda anual de floresta primária naquela região foi de quase meio milhão de hectares, segundo a Global Forest Watch.

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59300251


Amazônia: Desmatamento é o maior em 15 anos; governo teria 'escondido' dados

Dados estavam prontos no final de outubro, mas só foram divulgados ontem (18), dias depois do final da COP26, a cúpula do clima

Naiara Galarraga Gortázar / El País

A Amazônia brasileira perdeu 13.235 quilômetros quadrados de árvores em um ano, de acordo com o último balanço anual, divulgado nesta quinta-feira com enorme discrição pelo Governo de Jair Bolsonaro. A cifra indica que o desmatamento ilegal entre agosto de 2020 e julho de 2021 aumentou 22% em relação ao período anterior, quando somou 10.851 quilômetros quadrados. É a maior registrada nos últimos 15 anos. Este balanço anual, elaborado com medições de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), é o mais esperado por todos os envolvidos na proteção e preservação da maior floresta tropical do mundo. É como uma prova final, a medida do sucesso ou do fracasso.

É também o parâmetro pelo qual o mundo mede o desempenho ambiental do país que abriga a maior parte da maior floresta tropical do mundo. Neste ano, a nota aponta um fracasso clamoroso.

O expressivo aumento registrado pelo sistema Prodes contribuirá para agravar a crise climática, mas é também um problema diplomático para o presidente brasileiro. O desaparecimento acelerado da vegetação na Amazônia representa uma ameaça para o futuro do Brasil e do planeta. À medida que a área arborizada da Amazônia diminui de tamanho, a floresta perde biodiversidade e a capacidade de refrescar o planeta e desacelerar o aquecimento global. O sistema Prodes contabiliza áreas desmatadas de mais de 6,25 hectares, o que o torna o mais preciso entre os utilizados pelo Brasil.


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Viagem pela BR-319: estrada rumo à destruição da Amazônia

O saldo foi conhecido quando o Governo o disponibilizou na internet, sem anúncio ou apresentação, por meio de uma nota. A declaração não está datada desta quinta-feira, mas do último dia 27 de outubro, portanto antes do início da cúpula do clima COP26, em Glasgow. Cientistas e ONGs ambientalistas acusaram o Executivo e o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, de terem ocultado as informações de que dispunham durante as negociações nas quais o Brasil se comprometeu a eliminar completamente o desmatamento até 2028. Também acusam as autoridades brasileiras de ter enganado o restante dos participantes da cúpula ao apresentar os resultados de outra medição, a dos alertas do sistema Deter, que é menos precisa e rendeu dados muito mais positivos.

O Observatório do Clima afirma que esses 13.235 quilômetros quadrados desmatados ilegalmente em um ano revelam “o triunfo do projeto ecocida de Bolsonaro”. Para o Greenpeace, “o governo tentou lavar sua imagem em Glasgow sabendo que havia quebrado um recorde de desmatamento”. A organização alertou que o cerco ao Brasil está se estreitando porque, por exemplo, a Comissão Europeia propôs impedir a entrada nos mercados da União Europeia de soja, cacau, café, óleo de palma, carne bovina, madeira e seus derivados caso venham de áreas de desmatamento.

A extração ilegal de madeira tem aumentado desde 2017, mas desde que a extrema direita e os negacionstas da ciência chegaram ao poder, em 2019, o crescimento da área devastada se acelerou, impulsionado por vários fatores. Sua política ambiental tem consistido em enfraquecer as estruturas de fiscalização e vigilância, além de dar asas a quem explora a floresta contornando as leis. Bolsonaro demitiu ambientalistas veteranos de seus cargos para substituí-los por policiais militares encarregados dos órgãos responsáveis pela proteção do meio ambiente, dos povos indígenas e da biodiversidade.

O presidente cumpriu a promessa de não demarcar mais um centímetro de reservas ecológicas ou terras indígenas e o Congresso está trabalhando em um projeto de lei para legalizar a mineração em terras que hoje são legalmente intocáveis para exploração comercial.

A imposição de multas por crimes contra o meio ambiente despencou nos últimos anos. As medidas que o Governo tem adotado, face às pressões de outros países, investidores e ONGs, não surtiram efeitos significativos. O envio de milhares de soldados foi caro e ineficaz para conter o aumento do desmatamento, como indica o balanço. O ministro do Meio Ambiente sustenta que os números divulgados nesta quinta-feira “não refletem a ação do Governo nos últimos meses” com o destacamento, por exemplo, de integrantes da Guarda Nacional. O Governo Bolsonaro insiste em proclamar que não tolerará ilegalidades na Amazônia, mas a verdade é que basta ir lá para testemunhar a velocidade com que o desmatamento, a ocupação de terras por gado e as invasões de garimpeiros em terras indígenas estão avançando.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-19/desmatamento-na-amazonia-e-o-maior-em-15-anos-e-governo-e-acusado-de-esconder-dados-da-cop26.html


Maioria dos autocratas precisa de dois mandatos para destruir democracia

Casos da Hungria, Venezuela, Turquia e Nicarágua mostram que escalada autoritária se radicaliza a partir da reeleição

Oliver Stuenkel / El País

No começo dos anos 1990, um outsider de currículo irrisório conseguiu chegar à presidência do Peru com um discurso vago e antiestablishment. Em menos de dois anos no cargo, articulou um golpe de Estado que lhe renderia quase 10 anos no poder e uma ficha criminal enciclopédica. Em tempo recorde, a ditadura de Alberto Fujimori suspendeu o Congresso e a Constituição, acabando com a independência do Judiciário e do Ministério Público. Desde então, seu regime de perseguições, supressão da liberdade de expressão e abusos sistemáticos dos direitos humanos é o sonho de consumo de autoritários de todas as partes do mundo não apenas pela virulência, mas sobretudo pela agilidade.

O que torna o caso de Fujimori tão peculiar é a rapidez com a qual o peruano conseguiu efetivar sua passagem de presidente eleito a ditador, concentrando todo o poder no Executivo e corroendo a ordem democrática logo no primeiro mandato. Essa eficiência é motivo de admiração e inveja entre políticos com ambições autoritárias até hoje. Isso porque a maioria dos autocratas costuma demorar bem mais tempo para atingir seus objetivos, perdendo anos preciosos de poder absoluto e arriscando-se a ter seus planos interrompidos por um eventual fracasso em se reeleger. Casos como o de Hugo Chávez na Venezuela, de Daniel Ortega na Nicarágua, de Viktor Orbán na Hungria e de Tayyip Erdogan na Turquia mostram que, na maior parte das vezes, o autoritário precisa se reeleger ao menos uma vez para conseguir afundar o sistema democrático. Em todos esses exemplos, as ações do primeiro mandato já disparavam os alarmes dos observadores internacionais, mas foi a partir do segundo que o autoritarismo tirou a luva de pelica e mostrou suas garras.

As tendências autoritárias de Hugo Chávez já eram perceptíveis muito antes de ele assumir a presidência, em 1999. Afinal, sete anos antes, o então tenente-coronel já tinha feito uma tentativa de golpe contra o presidente Carlos Andrés Pérez. Mesmo assim, medidas claramente ditatoriais como não renovar licenças de canais de TV críticos ao Governo, enfraquecer a assembleia nacional e prender e intimidar juízes só começaram a ser implementadas após sua primeira reeleição, em 2006. No caso de Daniel Ortega, as coisas começaram de um jeito ainda mais sutil. Logo após sua primeira eleição, em 2006, o país sofreu uma ligeira melhora na análise do Índice Democrático da revista britânica The Economist, alcançando uma pontuação melhor que a de vários países da região, inclusive Equador e Honduras. No entanto, a partir do segundo mandato, em 2011, a democracia nicaraguense entrou em declínio permanente, com ampla cooptação do judiciário e das autoridades eleitorais. O resultado é que a eleição de fachada que lhe garantiu o terceiro mandato, em 2021, terminou com sete pré-candidatos presos a poucos meses do pleito.


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O quadro se repete mesmo em países onde a democracia parecia mais consolidada. Quando Viktor Orbán assumiu o comando da Hungria, em 2010, o país se encontrava várias casas à frente da maior parte da América Latina no Índice Democrático da The Economist. Durante seu segundo mandato, porém, Orbán conseguiu enfraquecer as instituições húngaras de tal forma que hoje o país está com pontuação pior no Índice Democrático do que o Brasil, a Argentina e até mesmo a combalida Filipinas, cuja democracia vem sofrendo golpes consecutivos nas mãos do populista Rodrigo Duterte.

É por isso que impedir a reeleição de um autoritário é ainda mais importante do que barrar sua chegada ao poder. Na República Tcheca, a oposição entendeu o recado e tomou uma postura inédita para evitar a reeleição de Andrej Babis ao cargo de primeiro-ministro. Juntas, as três maiores frentes opositoras do país passaram por cima de discordâncias ideológicas basicamente inconciliáveis e uniram-se em uma ampla coalizão cujo único objetivo era derrotar o incumbente. Contra todas as chances e previsões de analistas políticos, a frente opositora derrotou o projeto autoritário armada apenas com a certeza de que a democracia tcheca dificilmente sobreviveria a outros quatro anos sob as rédeas de Babis. Nesse sentido, uma ajuda fundamental foi fornecida pelo próprio Babis, que deixou claro quais seriam seus planos para o segundo mandato e, na reta final da campanha, convidou Viktor Orbán para participar de seus comícios.

É verdade que cada líder autoritário segue sua própria receita, mas um ingrediente indispensável a quase todas elas é o tempo. Para implementar um regime autoritário, é preciso reduzir a independência do Congresso e do poder judiciário, e isso costuma ser um processo mais demorado. A maioria das constituições limita o poder do Executivo em nomear juízes, o que significa que o incumbente precisa de mais de um mandato para fazer alterações expressivas na composição da casa. Trump, por exemplo, conseguiu nomear 3 juízes de um total de 9 na Suprema Corte, onde o cargo é vitalício. Já Bolsonaro encerrará o primeiro mandato com 2 nomeações de um total de 11 membros do Supremo. Caso seja reeleito, nomeará ao menos outros três, já que Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentarão até 2023. Isso fora a possibilidade de utilizar artimanhas como aumentar o número de juízes, como foi feito na Venezuela em 2004, ou baixar a idade de aposentadoria para expulsar desafetos, como foi feito recentemente na Polônia e em El Salvador. Foi nesse intuito que a deputada Bia Kicis propôs, em 2019, uma PEC para reduzir a idade de aposentadoria de juízes do STF de 75 para 70. Caso a PEC seja aprovada, Bolsonaro poderia nomear seis juízes em seu segundo mandato.

Porém, há outro fator que explica por que a reeleição de um autoritário geralmente representa o começo do fim para os regimes democráticos. A primeira eleição de um candidato com retórica autoritária muitas vezes ocorre durante profundas crises econômicas, no embalo de uma retórica antiestablishment que costuma atrair eleitores. Muitos deles podem até discordar dos comentários mais radicais de um Trump, Duterte, Orbán, Babis, Erdogan ou Chávez, mas, naquele momento, não enxergam outra alternativa. Ironicamente, boa parte dos eleitores que concedem ao autoritário esse primeiro mandato pecam justamente por um excesso de confiança de que as regras do jogo político acabariam moderando seus excessos. É como se esse voto não tivesse sido no autoritário e em suas propostas, mas contra o establishment e a sensação de inação passada pelos outros candidatos. Esse voto sem grande apoio faz com que muitos desses eleitores rapidamente vivenciem um sentimento de vergonha de sua própria escolha. Do ponto de vista do autoritário, essa falta de convicção impõe certa moderação nos primeiros anos.


Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
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Foto: Roque de Sá/Agência Senado
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Uma vez reeleito, o autoritário ganha confiança. Enquanto a primeira vitória de um líder extremista pode ser vista como acidental, a reeleição tem um profundo impacto empoderador sobre o autocrata, permitindo uma escalada autoritária mais explícita. Mesmo um país com instituições tão resilientes quanto os Estados Unidos correria sérios riscos nessa segunda rodada. Durante a corrida de 2020, Thomas Wright, diretor do Centro de Estudos Americanos e Europeus do Instituto Brookings, escreveu que o Trump do segundo mandato seria ainda mais perigoso que o do primeiro. Após romper com o antigo chefe, seu ex-assessor, John Bolton, alertou para o fato de que a reeleição produziria um “Trump sem freios”.

Além de inflar o ego do incumbente, a reeleição de um líder com tendências autoritárias costuma abalar a oposição e a sociedade civil, dificultando qualquer tipo de reação. Diante da perspectiva de amargar oito anos na geladeira, parte dos opositores simplesmente se deixa cooptar pelo Governo. Outros perdem as esperanças e se retiram da vida pública. Foi isso que aconteceu na Venezuela, quando a segunda vitória de Chávez gerou um desânimo sem precedentes entre os opositores. Àquela altura, eles sabiam muito bem que o presidente ou seu sucessor provavelmente se perpetuariam no poder. Na Hungria, a reeleição de Orbán deu início à perseguição no mundo acadêmico, levando ao fechamento de uma das principais universidades do país.

O caso dos países que sofreram uma guinada autoritária, mas não repetiram o erro na eleição seguinte, costuma ser bem menos grave. Quase um ano após a saída de Trump, a democracia americana ainda apresenta sequelas de seu flerte autoritário, mas saiu dessa experiência relativamente ilesa. Com poucos meses da derrota de Babis, a República Tcheca ainda não deixou completamente a zona de risco, mas há grandes esperanças de que a aliança opositora leve o país a mares mais amenos. Em ambos os casos, a população soube aproveitar sua segunda chance e evitar o abismo.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-11-16/maioria-dos-autocratas-precisa-de-dois-mandatos-para-destruir-a-democracia.html?event_log=oklogin


Viagens de Bolsonaro e Lula ao exterior antecipam 'queda de braço' eleitoral

Jair Bolsonaro e Lula miram tanto o público externo quanto o eleitorado brasileiro nas viagens, segundo análise de especialistas

Leandro Prazeres / BBC News Brasil

Nesta semana, dois potenciais candidatos às eleições de 2022, o presidente Jair Bolsonaro, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estão cumprindo uma intensa agenda de viagens ao exterior.

Bolsonaro faz uma visita oficial a países árabes. Lula, por sua vez, está na Europa, onde foi recebido por lideranças de centro-esquerda. Especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as duas viagens, ainda que de forma não intencional, servem para "medir as forças" de cada um na arena internacional.

Bolsonaro embarcou na sexta-feira (12/11) para uma viagem de uma semana a três países do mundo árabe: Emirados Árabes Unidos, Catar e Bahrein. Na sua agenda, Bolsonaro participou da Expo Dubai 2020, uma feira internacional onde o Brasil tem um pavilhão, encontros com empresários, políticos e com o rei do Bahrein, Hamad bin Isa Al Khalifa.

Já o ex-presidente Lula começou sua viagem na quinta-feira (11/11) com destino a quatro países da Europa: Alemanha, Bélgica, França e Espanha. Durante o tour, o ex-presidente se encontrou com líderes da centro-esquerda europeia como o provável novo chanceler alemão, Olaf Scholz, que é líder do Partido Social-Democrata, com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que é do Partido Socialista, e, em Bruxelas, Lula discursou no Parlamento Europeu.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as viagens revelam diferenças gritantes como as imagens que ambos tentam passar, mas também mostram uma preocupação com o público interno, especialmente a pouco mais de um ano das eleições de 2022.

Duelo de imagens

Para o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Guilherme Casarões, Bolsonaro e Lula travam um duelo na esfera internacional e tentam projetar duas bastante distintas.

"Essa viagens são uma medição de forças, sim. De um lado, o atual presidente vai ao Oriente Médio e adota o discurso de que está em busca de investimentos para o país. É a imagem do presidente mercador. Do outro, Lula volta à Europa com um discurso de estadista, tentando mostrar ao exterior que o Brasil tem alternativas seguras para um futuro pós-Bolsonaro", afirmou.

A professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG) Fernanda Cimini, também vê diferenças nas imagens que Bolsonaro e Lula tentam passar durante suas viagens.

Bolsonaro de máscara, entre homens com trajes típicos dos Emirados Árabes
O presidente Jair Bolsonaro participou da Expo Dubai, nos Emirados Árabes. Foto: Alan Santos/PR

Ela explica que Bolsonaro aproveita a viagem para vender a narrativa de que, apesar das críticas que vem recebendo nesta área, sua política externa estaria conseguindo atingir seus objetivos.

"As imagens são muito simbólicas. Quando Bolsonaro aparece sendo recebido por líderes do mundo árabe, com seus trajes típicos, tenta vender a imagem um presidente que consegue o respeito de líderes fortes com quem ele pode se sentir mais alinhado. Do outro lado, Lula tenta se posicionar como alguém com quem a comunidade internacional pode dialogar", explicou.

Reconstruir pontes versus Isolamento

Nas últimas semanas, o atual presidente foi duramente criticado por sua atuação tímida na reunião do G20, em Roma, e por sua ausência à COP 26, em Glasgow, no Reino Unido.

A decisão de não ir à conferência do clima contrastou com a tradição que o Brasil vinha tendo nos últimos anos de se posicionar como uma potência verde. Analistas afirmam que a política externa do Brasil vem conduzindo o país a um isolamento.

O governo, por outro lado, se defende afirmando que o país continua relevante na esfera internacional.

Mais uma vez, as viagens de Bolsonaro e Lula, segundo os especialistas, evidenciam as diferenças entre os dois em relação à política externa. Enquanto Lula estaria tentando "reconstruir pontes" de olho em 2023, Bolsonaro estaria refém da agenda adotada nos últimos anos.

Para o professor de Relações Internacionais da UFMG, Dawisson Belém Lopes, os destinos e a agenda de Bolsonaro refletem o seu isolamento diplomático.

"Essa viagem é, em certa medida, expressão de um certo estreitamento de possibilidades diplomáticas do Brasil neste momento. Brasil não tem relações de nível e fluídas nem com os Estados Unidos e nem com a China. Com os europeus, há problemas que se arrastam desde o início dessa gestão presidencial. O Brasil de hoje tem poucas opções", disse o professor.

Ao analisar o roteiro de Lula, o professor diz que a viagem pode ser vista como uma tentativa de "reconstruir pontes" do ex-presidente com a comunidade internacional.

Lula de máscara, rodeado de pessoas
Para Dawisson Belém Lopes, Lula está buscando 'reconstruir pontes' com atores internacionais em sua viagem. Foto: Ricardo Stuckert

"O que Lula está fazendo é uma tentativa de reconstruir pontes, de pavimentar o seu caminho para janeiro de 2023. Ele sabe que precisa de pontes com o exterior e começa por onde deveria começar, que é pela Europa, porque é lá que ele encontra um terreno mais fértil, especialmente entre líderes da centro-esquerda", explicou.

A pesquisadora do Wilson Center em Washington e professora da FGV, Daniela Campello, enfatiza o contraste entre as opções de Bolsonaro e de Lula.

"A ida de Bolsonaro ao Oriente Médio é reflexo claro da falta de espaço do Brasil na esfera internacional. Apesar de o presidente afirmar defender a democracia, ele obviamente não se manifesta sobre os regimes políticos dos países que está visitando. Por outro lado, Lula está discursando no Parlamento Europeu, está falando com prêmio Nobel de economia (Joseph Stiglitz)", disse Daniela.

Foco nas eleições

Apesar de esse "duelo" estar ocorrendo no cenário internacional, o centro da disputa entre Bolsonaro e Lula é, obviamente, as eleições de 2022. Nenhum dos dois confirmou oficialmente que será candidato, mas pesquisas de intenção de voto mais recentes colocam os dois na liderança do pleito do ano que vem. Nesse contexto, os especialistas afirmam que os movimentos feitos lá fora deverão refletir internamente.

Fernanda Cimini, da UFMG, diz que, a partir de agora, tudo o que os dois fizerem pode ou será usado como material para as eventuais campanhas de 2022.

"A política internacional também é um campo onde sobre o qual se dá a disputa eleitoral. Então, a partir de agora, viagem pra Europa, pro Golfo Pérsico, pro Nordeste, tudo será usado na disputa. A percepção de sucesso dessas viagens vai ser material de campanha, com certeza", afirmou.

Para Guilherme Casarões, a principal demonstração de que essa batalha no exterior tem foco doméstico é a forma como as militâncias tanto de Lula quanto de Bolsonaro estão abordando as viagens em seus grupos.

"De um lado, os petistas estão exaltando a forma como Lula está sendo recebido por lideranças europeias. Seria uma demonstração de que o Brasil pode voltar a ser respeitado internacionalmente. Do outro, os bolsonaristas estão enfatizando como o presidente estaria buscando investimentos ao Brasil", disse o professor.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/11/4963674-como-viagens-de-bolsonaro-e-lula-ao-exterior-antecipam-queda-de-braco-eleitoral.html


Luiz Carlos Azedo: Viagem de Bolsonaro agrada eleitores e mira em investidores

O presidente aproveitou o périplo para reforçar sua agenda interna e agradar sua base com declarações polêmicas

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A viagem das Arábias do presidente Jair Bolsonaro para atrair investidores mirou tanto a sua base eleitoral quanto os petrodólares com os quais o ministro da Economia, Paulo Guedes, imagina financiar a retomada do crescimento da economia no próximo ano, diante de previsões catastróficas dos analistas internacionais, inclusive os da prestigiada revista The Economist, que “erra todas”, segundo o nosso Posto Ipiranga.

No domingo e na segunda-feira, Bolsonaro participou do fórum Invest In Brasil, em Dubai, promovido pela Apex-Brasil, e visitou o pavilhão da Embraer na Dubai Airshow, evento do setor aeroespacial, e o pavilhão do Brasil na Expo 2020, onde a numerosa delegação brasileira festejou a viagem, com a primeira-dama Michele roubando a cena. Dubai é um emirado novo-rico, aberto para o mundo para não depender de uma atividade econômica sem futuro, o petróleo, e criar uma economia baseada no comércio internacional e no turismo, atividades que respondem hoje por 95% da sua economia.

Com o dinheiro do óleo, descoberto na região em 1966, voou do século 18 para o século 21 em apenas uma geração, nas asas da melhor companhia aérea da atualidade. Com um dos mais importantes hubs aeronáuticos do Oriente Médio, tornou-se um centro financeiro e de negócios que atrai executivos e milionários de todo o mundo, devido à segurança e às atrações turísticas de altíssimo luxo. É uma cidade-estado de população global (83% são estrangeiros), com um único dono, Sua Alteza Shaikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum, conhecido como Shaikh Mo.

Ontem, a comitiva presidencial viajou para o Bahrein, onde Bolsonaro participou da inauguração da embaixada brasileira na capital do país, Manama, ao lado do rei Hamad bin Isa al-Khalifa, cujo clã Bani Utbah capturou o Bahrein de Nasr Al-Madhkur, em 1778, e desde então governa o arquipélago do Golfo Pérsico. O Brasil deve se tornar o seu principal fornecedor de minério de ferro, superando a China e os Estados Unidos. Somos o quarto destino das exportações brasileiras no Oriente Médio, atrás de Arábia Saudita, Turquia e dos Emirados Árabes Unidos. No meio do Golfo Pérsico, suas 33 ilhas, juntas, não chegam à metade da cidade de São Paulo.

Foi a primeira nação a descobrir e explorar petróleo no Oriente Médio, na década de 1960. Sua exploração é responsável por 60% das exportações do Bahrein e por 18% do Produto Interno Bruto nacional. O país também investe na diversificação da economia, com a promoção da atividade industrial e de serviços financeiros, sendo o segundo produtor de alumínio do mundo, responsável por 16% das exportações do Reino no ano passado. O país também se destaca na produção de aço. Já foi colônia portuguesa, persa e britânica, famosa por seus pescadores de pérolas. Hoje é um “case” da economia pós-petróleo. Dos seus 1,5 milhão de habitantes, 25% são paquistaneses, afegãos, indianos, norte-americanos e britânicos.

Sem constrangimentos

Hoje, Bolsonaro chega ao Catar, um emirado absolutista e hereditário comandado pela Casa de Thani desde meados do século XIX. O xeque Hamad bin Khalifa Al Thani destituiu seu pai, Khalifa bin Hamad al Thani, em 1995, com um golpe de Estado. O presidente fará um passeio de moto em Doha, cuja arquitetura futurista é de tirar o fôlego. A agenda oficial inclui uma visita ao estádio Lusail, construído para a Copa de 2022. Os jornalistas, por mudanças nas regras sanitárias de véspera, foram proibidos de entrar no emirado.

O Catar foca os investimentos em setores não energéticos, porém, o petróleo e o gás ainda representam mais de 50% do PIB do país, cerca de 85% das receitas de exportação e 70% das receitas do governo. Suas reservas de petróleo, estimadas em 15 bilhões de barris, podem durar mais 37 anos. As de gás natural, cerca de 26 trilhões de metros cúbicos, representam 14% das reservas totais do mundo, a terceira maior reserva do planeta. O país exporta petróleo e derivados para China, Coreia do Sul, Japão e Índia. Importa aviões, carros, helicópteros e turbinas a gás de Reino Unido, França, Alemanha e China.

Ao contrário do que aconteceu na viagem à Itália, onde enfrentou protestos populares, Bolsonaro não passou por constrangimentos nesses emirados, que reprimem duramente a população, mas são “cases” de modernização autoritária. Aproveitou a viagem para reforçar sua agenda interna e agradar sua base conservadora, com declarações polêmicas sobre a situação da economia brasileira, o desmatamento da Amazônia, as provas do Enem e o aumento dos servidores, anunciado para legitimar a aprovação da PEC dos Precatórios no Senado. A estratégia serviu de contraponto à viagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Europa, cujo ponto alto foi seu discurso no Parlamento Europeu, onde foi aplaudido de pé.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-viagem-de-bolsonaro-ao-oriente-medio-agrada-eleitores-e-mira-em-investidores

Elio Gaspari: A China jogou pesado

Pequim aderiu à diplomacia de segunda

Elio Gaspari / O Globo

A revelação veio do repórter Marcelo Ninio. Depois que a China suspendeu a importação de carne bovina brasileira, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, pediu hora para falar ao telefone com seu equivalente, e Pequim respondeu que ele estava sem espaço na agenda. No pedido, não se havia especificado dia nem hora. A resposta esfarrapada foi grosseria inédita para uma diplomacia experimentada como a do Império do Meio.

De um lado, ela mostra como a China é capaz de jogar bruto quando acha que está numa posição de força. De outro, ensina que o governo do capitão cultiva malcriações delirantes, mas é, acima de tudo, disfuncional.

A China embargou as importações de carne bovina no início de setembro, acompanhando uma iniciativa pontual do governo. Suspendeu as vendas por causa da ocorrência de dois casos da doença da vaca louca. Desde então, foram remetidas informações às autoridades sanitárias chinesas, mostrando a natureza isolada dos episódios. Passaram-se mais de dois meses, e o embargo continua. Se o ano terminar sem que a barreira seja levantada, a pecuária brasileira poderá perder até R$ 10 bilhões em negócios.

O recurso a embargos comerciais como forma de pressão diplomática é coisa velha. O pelotão palaciano acredita em mulas sem cabeça e cultivou a crença segundo a qual os chineses precisam das proteínas brasileiras. Os fornecedores da Europa e do Cazaquistão agradecem, pois estão ocupando o espaço aberto no mercado chinês.

A disfuncionalidade do governo brasileiro tem de tudo. Já houve um chanceler que dizia ser um pária orgulhoso, e o presidente diz o que lhe vem à cabeça. O Itamaraty perdeu a relevância nas negociações internacionais. Foi substituído por uma diplomacia de compadrio de maus resultados. Joe Biden está na Casa Branca, e Steve Bannon, guru de Trump e de Bolsonaro, está sem o passaporte. O embaixador do Planalto para a África do Sul (Marcelo Crivella) está no sereno, sem agrément. O telefonema do capitão ao presidente Cyril Ramaphosa resultou num desprestígio inútil. O caso do embargo ilustra quanto custa desprezar a máquina institucional do Estado.

A funcionalidade exigiria que o assunto, apesar da natureza comercial, fosse coordenado pelo Itamaraty. Ministros de outras pastas ajudam, orientam, mas não devem tomar iniciativas. Quando a ministra Tereza Cristina anunciou, em meados de outubro, que estava disposta a ir a Pequim para negociar o fim do embargo, foi para a chuva. Ao pedir agenda para um telefonema a seu colega chinês, molhou-se. É verdade que não lhe restavam outros caminhos, pois a embaixada do Brasil em Pequim ficou sem canais para cuidar de um assunto como o embargo, já que o Planalto já fez sucessivas malcriações com a embaixada chinesa em Brasília. A reciprocidade, como o hábito de escovar os dentes, faz parte do cotidiano da diplomacia.

O tranco chinês era coisa previsível, questão de quando e como. O silêncio numa questão que envolve o agronegócio e o Ministério da Agricultura indica que há um certo método do jogo bruto. Deram um joelhaço nos aliados potenciais numa negociação racional. Foi o recado de uma diplomacia de segunda classe, recíproco, porém de má qualidade.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/a-china-jogou-pesado-25279360


Cristovam Buarque: Brasília tentou

Proposta foi apropriada pelo populismo e transformada em programa assistencialista

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

A substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil faz lembrar que Brasília serviu de exemplo para um programa com impacto transformador na estrutura social, e faz perceber que a ideia inicial criada no Distrito Federal se transformou em programa assistencial.

Em 1987, no Núcleo de Estudos do Brasil Contemporâneo, da Universidade de Brasília (UnB), foi elaborada e divulgada a ideia de pagar às famílias pobres uma renda vinculada ao trabalho da mãe para assegurar frequência dos filhos à escola. A ideia carregava a criatividade de ao mesmo tempo mitigar a pobreza, graças à renda, e transformar a estrutura social do país ao colocar as crianças na escola. A renda reduzia a pobreza atual e a escola aboliria a pobreza futura quando as crianças crescessem educadas.

Em janeiro de 1995, a ideia surgida na UnB, se transformou em política pública do Governo do Distrito Federal. Brasília inovou ao criar o programa teoricamente na UnB, e levá-lo à prática de forma pioneira pelo Governo do Distrito Federal. Servindo de inspiração à prefeitura de Campinas, em São Paulo, graças ao prefeito José Roberto Magalhães Teixeira, conhecido como Grama, e à cidade de Recife, graças ao prefeito Roberto Magalhães. Eleitos dois anos antes do governador do DF, eles começaram programas similares, embora sem o compromisso pleno de vinculação à educação: não adotaram a palavra “Escola” nem colocaram a gestão do programa nas Secretarias de Educação.

O programa Bolsa Escola do DF oferecia também um prêmio pelo desempenho escolar do aluno, a Poupança Escola: valor depositado em caderneta de poupança ao final do ano, se o aluno fosse aprovado, com a retirada do depósito condicionada à conclusão do ensino médio. Se abandonasse o estudo antes, o aluno perderia todo o valor na conta.

Depois de seis anos da implantação do programa no Distrito Federal e em dezenas de outras cidades e alguns países, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso adotou o Bolsa Escola Nacional, com o mesmo caráter educacional, tanto no nome, quanto na gestão feita pelo Ministério da Educação. Revistas internacionais já divulgavam o programa de Brasília, que os organismos internacionais chamaram de “conditional cash transfer to education” – transferência de renda condicionada à educação.

O governo do presidente Lula esperou um ano desde sua posse e transformou o Programa Bolsa Escola Nacional no Bolsa Família, ampliando o número de beneficiados de quatro milhões para 12 milhões de famílias, mas descaracterizando seu papel transformador pela educação, em razão de: a) retirar a palavra “Escola”, b) levar a gestão do programa para o setor de assistência social e misturar os beneficiários, independentemente de serem famílias com crianças em idade escolar, idosos, desvalidos, portadores de deficiências.

O programa ficou mais generoso, mas perdeu sua função de transformação estrutural. A prova é que, 20 anos depois de seu início no Brasil, ele continua ainda necessário, diante dos imensos bolsões de pobreza que já não deveriam existir se, desde então,  todos tivessem recebido educação de base com qualidade.

Vinte e seis anos depois de iniciado no DF, o atual Governo Federal decidiu descaracterizar de vez a ideia transformadora inicial, ao tirar até mesmo a palavra “Bolsa” e substituí-la por “Auxílio”.

Com o primeiro nome, as mães beneficiadas pensavam “recebo a bolsa porque meu filho vai à escola e graças a ela sairemos da pobreza”; com o segundo, “recebo esta bolsa porque minha família é pobre e se sairmos da pobreza perdemos o direito de recebê-la”; agora, com o terceiro nome, pensa: “recebo este auxílio por causa da tragédia da covid”.

Brasília formulou e implantou um programa transformador estruturalmente, tentou que o resto do Brasil o adotasse pelo prazo de 11 anos, tempo para que toda criança brasileira terminasse o ensino médio, fazendo a bolsa desnecessária a partir de então. Tanto quanto deixa de ser necessária a bolsa paga a um aluno universitário depois que ele conclui seu curso e se forma. Mas, 25 anos depois, em um quarto de século, a proposta que transformaria a estrutura social do país, pela educação de todas suas crianças, foi apropriada pelo populismo e transformada em um simples programa assistencialista.

Brasília não conseguiu, mas tentou inspirar o Brasil.

*Foi ministro da Educação, senador e governador do DF

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/11/4963383-brasilia-tentou.html