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Ascânio Seleme: Casa dos horrores

No Brasil, Prevent Senior parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei

Ascanio Seleme / O Globo

Coma exceção do Afeganistão e talvez da Síria, que têm problemas mais urgentes e tenebrosos, todos os países do mundo tratariam como escândalo espantoso um episódio como o da Prevent Senior. Não apenas porque a prestadora de serviços de saúde ministrou remédios sem eficácia a seus pacientes, mas porque usou parte da sua clientela, velha e indefesa, para fazer testes e experiências que resultaram na morte de pessoas. No Brasil, parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei.

Os dados até aqui revelados pelos repórteres Ana Clara Costa e Guilherme Balza não deixam margem para dúvida, a Prevent Senior agiu deliberadamente de maneira criminosa e odienta. Desrespeitou o direito dos pacientes e seus familiares, não cumpriu com o seu dever profissional, moral e ético, omitiu ou fraudou informações e mentiu. O pacote de absurdos praticados por orientação expressa dos dirigentes da empresa, que alguns médicos se recusaram a obedecer, precisa ser ainda esmiuçado e em seguida seus responsáveis punidos com toda a extensão e com o absoluto rigor da lei.

Além de matar pacientes, as orientações dadas aos funcionários da Prevent Senior serviriam também para esculachar os doentes com experimentos sem qualquer apoio científico e sem autorização formal de pacientes, famílias ou entidades que regulam o setor, como a Anvisa. A empresa diz que a orientação era dos médicos, não do seu corpo administrativo. Mentira. As reportagens mostram o contrário. Há casos, já fartamente documentados, de clientes da Prevent Senior que ligavam para a empresa para relatar casos de Covid e recebiam em casa horas depois, sem pedir, kits de cloroquina, ivermectina e outras drogas comprovadamente ineficientes no combate à doença.

O Hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior, em São Paulo, virou uma casa de horrores. Pacientes, todos idosos, porque a empresa como o nome diz trata exclusivamente de seniores, foram tratados até a eclosão do escândalo como cobaias de experiências macabras. Se fosse um filme, você diria que o roteirista exagerou. Exagerou tanto que colocou dentro do hospital três personagens que se somaram ao esforço do gabinete paralelo do presidente Jair Bolsonaro para enfrentar a Covid por meios ineficazes. Estavam lá os médicos Nise Yamagushi e Anthony Wong e o empresário travestido de periquito Luciano Hang.

Nise, que se sentiu ofendida ao ser contestada na CPI da Covid, andou pelo Sancta Maggiore fazendo a interface do gabinete paralelo com a Prevent Senior. Wong, que como Nise pregava o tratamento precoce, morreu naquele hospital bombardeado pelo pacote completo de remédios ineficientes. Até ozônio pela via retal foi administrada em Wong enquanto ele estava desacordado num leito de UTI pouco antes de morrer. Hang levou para a casa de horrores a sua mãe, que obviamente morreu com tratamento inadequado.

O milionário, que poderia ter levado a genitora para se tratar no Einstein ou no Sírio Libanês, preferiu usar os serviços da Prevent Senior, possivelmente orientando por Nise ou outro membro do gabinete paralelo. Quando o caso se tornou público, Hang emitiu uma nota reclamando da “maldade humana” pelo que chamou de desrespeito com a sua mãe. Nenhuma palavra sobre a omissão da Covid no atestado de óbito da senhora que, como no de Wong, constavam diversas causas e nenhuma menção ao que a levou a ser internada.

Hang também nada disse sobre a continuada exploração do cadáver da mãe por ele próprio, que fez um vídeo para tratar disso e afirmou que ela poderia ter sobrevivido se tivesse tido “tratamento precoce”, levantando um cartaz com esses dizeres. Pior é que a pobre senhora foi submetida a toda a bateria de remédios do kit Covid da Prevent Senior. Até ozônio foi ministrado a ela. O empresário lamenta que não foi preventivo e não conseguiu salvar a vida da mãe. Mas, como disse o presidente que ele tanto mitifica numa entrevista a ativistas alemães de extrema-direita, a maior parte dos óbitos foi de pessoas com comorbidade que “apenas tiveram suas vidas encurtadas em alguns dias ou semanas”.

De volta em 2026

O maior equívoco da vida pública nacional pode dizer adeus temporariamente à política no ano que vem? Muita gente que circunda Jair Bolsonaro tem dito que ele pode não se candidatar à reeleição em 2022. O quadro ainda está sendo desenhado, mas a hipótese é bem concreta caso se confirme a inviabilidade da sua candidatura, já detectada por pesquisas. Neste caso, ele poderia dizer estar apenas cumprindo promessa de campanha. O Centrão até já se posicionou, sugerindo que poderia blindar a ele e seus filhos no Congresso para não serem punidos pelos crimes que cometeram. Como pacote adicional, Bolsonaro encaminharia ao Congresso uma PEC acabando com o instituto da reeleição. Neste caso, poderia voltar em 2026 sem ter de enfrentar um presidente no cargo.

Basta?

A saída do cenário de Bolsonaro bastaria? Não, não bastaria. Ele precisa ser julgado e condenado pelos inúmeros crimes que já cometeu e pelos que ainda vai cometer até deixar o Palácio do Planalto. Nem o impeachment sozinho seria suficiente para que o Brasil mostre ao mundo, depois da passagem grosseira do presidente Sujismundo e de sua comitiva por Nova York, que o seu maior dano histórico foi reparado.

Senado progressista

O Senado sempre foi a casa conservadora do Congresso Nacional, cabendo à Câmara um perfil um pouco mais (não muito) progressista. Esses papéis se inverteram desde a posse de Arthur Lira e a implantação da sua pauta para lá de heterodoxa. A Câmara virou um feudo do que há de mais retrógrado na política e o Senado passou a exercer a função de reparador de estragos produzidos pelos deputados. Foi o que aconteceu com a PEC da reforma política, com a revogação da permissão dada pela Câmara para as coligações em eleições legislativas. Por isso, aliás, Rodrigo Pacheco é pré-candidato a presidente. Já Lira...

Uma vez fantasma...

Como revelou o repórter Felipe Bachtold, a mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira, denunciada como funcionária fantasma quando era empregada da Assembleia Legislativa de Alagoas, foi nomeada em julho secretária-adjunta da representação estadual do governo de Roraima em Brasília. No escritório, ninguém sabe dizer se aex-fantasma Angela Lira tem aparecido para trabalhar. Nem porque uma alagoana que mal conhece Roraima virou representante do estado na capital federal.

O que é pior?

O que parece mais patético: o deputado zerinho dizer que o prefeito de Nova York é marxista e os EUA podem se tornar uma grande Venezuela ou o apresentador Tucker Carlson, da Fox News, fazer ar sério e assustado como se estivesse ouvindo uma revelação?

Melhor calar

Não havia hora melhor para ficar calado, mas o vice Hamilton Mourão é daqueles que não pode ver uma geladeira aberta, acha que é flash de TV e começa a falar. Ao defender o machismo de Wagner do Rosário, dizendo ser normal as pessoas eventualmente darem uma aloprada, Mourão mostrou o que mesmo velhos oficiais aprendem na caserna.

Medalhas

Depois que a Assembleia Legislativa de São Paulo resolveu criar a medalha Erasmo Dias de Segurança Pública, vale avaliar se não cabem também a medalha Brilhante Ustra de Interrogatório Policial e a medalha Newton Cruz de Pacificação das Vias Públicas. Da mesma forma, pode-se pensar na medalha Jair Bolsonaro de Respeito aos Valores Democráticos.

Fenaj X Google

A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, a Zequinha, quer criar uma taxa progressiva a ser cobrada de plataformas digitais como Google, Facebook e Amazon para formar um fundo que promoveria o “jornalismo de qualidade” no Brasil.

Ir à igreja

Pesquisa da Bateiah Estratégia e Reputação revela que as pessoas estão ansiosas para a pandemia passar para poder, veja só, ir à igreja. A sondagem, que ouviu 1.455 pessoas em todo o país, mostra que 26,2% pretendem prioritariamente voltar aos seus templos quando a pandemia cessar. Outros 17,8% querem fazer turismo, enquanto 14,5% estão loucos para voltar a bater perna nos centros populares de comércio; 11,1% querem ir a restaurantes; 9,5% sonham em voltar para as academias de ginástica; e 8,7% querem retomar sua agenda cultural indo a teatros e a shows.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/casa-dos-horrores-25212355


Oscar Vilhena Vieira: Legalizando a devastação ambiental

Presidente e seus auxiliares não poupam esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental

Oscar Vilhena Vieira / Folha de S. Paulo

Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.

Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.

Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.


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O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.

O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.

Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.

A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.


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Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.​

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/09/legalizando-a-devastacao-ambiental-no-brasil.shtml


Garimpo causa má formação e desnutrição em crianças Yanomami

Mães Yanomami relataram vários dramas nas comunidades, onde a violência e as ameaças dos invasores não dão trégua  

Ana Lucia Montel / Amazônia Real

Boa Vista (RR) – O futuro dos Yanomami está ameaçado. Crianças estão nascendo com má formação por consequência do garimpo ilegal. Algumas mães são obrigadas a enterrar as que não sobrevivem. Outras têm de lidar com a interrupção da gestação. Os filhos sobreviventes correm o risco de sofrer com a desnutrição. A água dos rios está suja de mercúrio, contaminando os peixes e as caças. Amamentar se tornou um perigo. E doenças que poderiam ser facilmente tratadas, como malária, diarreia e pneumonia, já mataram dezenas de crianças entre 2020  e 2021 em comunidades da etnia, denunciou o II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana.

Não é de hoje que o garimpo de extração ilegal de ouro traz graves consequências para os povos indígenas do Brasil. O que o II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana alertou é mais preocupante: o futuro dos povos que vivem neste território está ameaçado. 

“O mercúrio está contaminando os rios e nossas famílias, na comunidade  Palimiu, na Terra Indígena (TI) Yanomami em Roraima, já nasceram crianças com má formação. Nossos parentes estão morrendo de doenças simples, de fácil tratamento, porque não têm atenção de saúde básica. Se não fossem os remédios tradicionais e os xapiri (médicos das florestas), mais gente ia morrer”, alertou o documento elaborado pelas lideranças dos povos Yanomami e Ye’kwana. 

Como uma resposta diante aos ataques sofridos pelos Yanomami, o II  Fórum ocorreu entre 4 e 7 de setembro na região da Tabalascada, município do Cantá, ao norte de Roraima. Foi um momento de união, conversas e resistência desses povos. Danças, rituais, pinturas e cantos reforçaram ainda mais a vontade de continuar na luta em defesa da terra, da água, de ar puro e principalmente de um futuro cada vez mais ameaçado. Ao acompanhar o fórum, a equipe da Amazônia Real notou cada olhar, fala, lágrimas e esperança daqueles que já lutaram por garantias de direitos, e hoje fazem parte da linha de frente na defesa da vida dos povos originários do Brasil.

Leila Yanomami durante debate sobre saúde indígena no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)

“Eu só quero que olhem para a gente como ser humano, como mulheres que não merecem todo dia estar enterrando seus filhos”, afirmou Neila Paliwithele, 59 anos, moradora de Palimiu. Desde o início de maio deste ano, a comunidade sofre violentos ataques de garimpeiros. A Amazônia Real foi o primeiro veículo de comunicação a noticiar a invasão da facção criminosa PCC no garimpo na TI Yanomami.

“Todo mundo já sabe que a saúde para o povo Yanomami não é boa, mas para nós que somos mães muitas vezes não chega nem a existir. Tem crianças nascendo deficiente, muitas mães estão perdendo seus bebês, estamos sem direito a nosso futuro, pela destruição do branco”, desabafou Neila Paliwithele.

Entre as doenças que afetam as crianças, as mais recorrentes são malária, diarreia e pneumonia. Neila disse que na maioria das vezes as equipes médicas só chegam nas comunidades quando não há mais nada o que fazer. As crianças já estão mortas. Isso quando chegam. “Só chegam para querer enterrar nossas crianças. Mas nós não precisamos de ninguém para enterrar nossos mortos. Isso nós mesmos fazemos conforme nossa cultura, que nem isso é respeitada.”

No documento produzido para o II Fórum de Lideranças, há o relato de dezenas de crianças mortas nas seguintes comunidade: Kayanau (12 mortes em 2020), Palimiu (13 entre 2020 e 2021, de diarreia e pneumonia), Haxiu (4 neste ano), Baixo Mucajaí (3 em 2021), Marauiá (4 entre 2020 e 2021, de malária), Baixo Catrimani (2 crianças neste ano, de pneumonia), Korekoma (3 de pneumonia, no ano passado) e Keeta (5 entre maio e julho por falta de atendimento). Em janeiro inteiro deste ano, o polo da comunidade Surucucu ficou fechado e 54 Yanomami, adultos e crianças, morreram.

Seja por morte, doença ou desaparecimento, os Yanomami choram todos os dias a falta dos seus filhos. Neila é uma dessas mães que espera até hoje o retorno do filho. “Quando os garimpeiros atacaram nossa comunidade, meu filho com medo correu para o mato. Isso foi já faz meses, até hoje ele não voltou. O garimpo destrói nossa floresta, destrói nossos rios, nossos alimentos, nossa convivência e ainda tira da gente o direito de ser mãe”, finalizou com uma expressão de cansaço e lágrimas nos olhos ao falar da saudade que está do seu filho.

Mais do que a missão de elaborar documentos relatando os problemas enfrentados pelos indígenas, o II Fórum mostrou essa luta das mães para preservar o futuro dos Yanomami. Em meio às várias falas, uma liderança mãe trouxe a realidade da luta das mulheres Yanomami. “Eu sou mulher, mas não tenho medo, vou defender minha a nossa terra até meu ultimo dia. Nós, mulheres, também estamos lutando, somos fortes assim como a mãe natureza, que mesmo diante de todo ataque está resistindo, está viva. Eu sou mãe e aprendi a lutar como a mãe natureza”, disse a liderança.

Desnutrição de mães e filhos

Ana Lice Yanomami, 45 anos (Foto: Ana Lúcia Montel/Amazônia Real)

Na comunidade de Ana Lice Yanomami, no Baixo Rio Mucajaí, já morreram mais de três crianças esse ano. Com os rios poluídos com mercúrio, as crianças estão deixando de querer comer peixe e carne de caça. Reclamam do gosto da comida, provavelmente já contaminada. “Eles sabem que a comida está suja por causa do garimpo; eu não sei mais nem o que fazer”, lamentou.

A desnutrição, que já foi um dos principais problemas de saúde e hoje se reduziu drasticamente nacionalmente, é outra realidade que ameaça o futuro dos Yanomami. Mães e crianças apresentam baixa estatura e não é de hoje. Em outras palavras, há gerações esse problema se perpetua, o que reforça a hipótese de transmissão da desnutrição crônica intergeracional nesta etnia. É o que afirma um estudo publicado por Jesem Orellana e outros pesquisadores.

Ana Lice reforça essa questão. “Estão muito desnutridos, a maioria das crianças está como peso muito baixo. O pior é que não podemos fazer muita coisa, não tem equipe de saúde para examinar. Nossa comida está toda contaminada, até as mães que estão amamentando estão sofrendo, muitas estão desnutridas também, quando falamos que o garimpo tem que acabar, é porque quem está sofrendo somos nós”, afirmou. 

Em maio deste ano, uma criança Yanomami da comunidade Homoxi morreu ao ser negado atendimento médico porque ela era de nacionalidade venezuelana. “Não importa a nacionalidade, o fato de sermos indígenas Yanomami eles não fazem nada. Estamos tentando avisar a sociedade, mas ninguém quer escutar”, disse Ana Lice. 

“Senhor Bolsonaro, você tem que  parar de mandar seus filhos garimpeiros destruir nossa terra, nós estamos chorando na nossa terra. Bolsonaro, você tem que entender que o índio vive dentro da floresta. Estou com raiva, nossos filhos estão nascendo deficiente e a culpa é de vocês”, finalizou Ana Lice, que participou pela primeira vez do fórum de lideranças.

O documento elaborado pelo II Fórum de lideranças Yanomami e Ye’Kwuana lembra como a saúde indígena atendia às necessidades dos povos indígenas. As aldeias possuíam rádios que funcionavam, os postos de saúde estavam abastecidos, havia uma estrutura que dava conta de cuidar dos Yanomami. “Os médicos visitavam as comunidades com frequência e buscavam entender nossa cultura para saber como estava a saúde de cada um de nós, antigamente não faltava remédio para doenças simples, por isso a saúde era boa”, diz  o documento entregue às autoridades.  

Descaso no atendimento 

Angelita Prororita Yanomami, da comunidade Jamani no Amazonas
(Foto: Ana Lúcia Montel/Amazônia Real)

Angelita Prororita Yanomami, de 32 anos, da comunidade Jamani no Amazonas, relatou sua experiência como a única intérprete da língua Yanomami de Roraima. Hoje, ela trabalha na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, em Boa Vista. “Se as mães Yanomami já não têm atendimento nas comunidades, quando procuram na cidade a situação é ainda pior: só tem eu de intérprete Yanomami aqui em Roraima, quando as mães chegam nos hospitais o tratamento não é nada humanizado”, relatou Angelita à Amazônia Real.

Para Angelita, muitas das mães Yanomami não procuram atendimento nos hospitais da cidade por receio de não serem atendidas. “Quando essas mulheres chegam na maternidade e veem que estou ali, elas se sentem mais seguras em dizer o que estão sentindo, em serem atendidas”, disse. Sempre que chega uma mulher Yanomami, a intérprete apressa em intermediar a comunicação, “porque quando não estou lá, o atendimento dessas mulheres vai sendo deixado para depois”. Se Angelita não está, muitas até desistem e vão embora.

“Nos hospitais de Boa Vista, o que você mais vê é Yanomami pelo chão, deitados nos corredores. Isso não é novidade, mas as pessoas fecham os olhos, preferem colocar culpa no meu povo do que cobrar atendimento adequado. Temos direitos como qualquer outro cidadão. Saúde é um direito básico, que para os Yanomami não existe, nem na comunidade, nem na cidade, em lugar nenhum”, protestou Angelita.

Problemas burocráticos


II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana. (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Ruthe Yanomami durante debate sobre Saúde indígena, mesas de trabalho por território. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Érica Vilela. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Alfredo Yanomami (direita) no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Romeu e Manoel Yanomami. Ritual com Horoma para escutar os Xapiri. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Júlio Ye'kwana durante o debate sobre garimpo. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami durante debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Francilene Dos Santos Pereira, falando sobre o histórico da invasão Garimpeira na TI Yanomami. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Kopenawa e demais lideranças no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Canção e dança da guerra. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Yanomami no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
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II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana. (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Ruthe Yanomami durante debate sobre Saúde indígena, mesas de trabalho por território. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Érica Vilela. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Alfredo Yanomami (direita) no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Romeu e Manoel Yanomami. Ritual com Horoma para escutar os Xapiri. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Júlio Ye'kwana durante o debate sobre garimpo. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami durante debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Francilene Dos Santos Pereira, falando sobre o histórico da invasão Garimpeira na TI Yanomami. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Kopenawa e demais lideranças no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Canção e dança da guerra. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Yanomami no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
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O não-atendimento nas comunidades Yanomami se deve a uma série de problemas, alguns meramente burocráticos. No Xitei, há subpolos que não estão sendo atendidos porque o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-YY) não fez a licitação regular para voos de helicóptero. Há mais de um ano, o polo base Parima, em Mokorosik+, não recebe visita de profissionais de saúde. No local, ninguém foi vacinado contra a Covid-19.

Uma das reivindicações feita pelas lideranças são profissionais com compromisso e respeito para atender o povo Yanomami, além de atendimentos permanentes nas comunidades. Mas, principalmente, segurança para os profissionais que atuam na área de garimpo.

O documento das lideranças reivindica profissionais comprometidos em atender o povo Yanomami. A série Ouro do Sangue Yanomami, publicada pela Amazônia Real em parceria com a Repórter Brasil, denunciou o caso de uma funcionária da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que tentava negociar ouro do garimpo ilegal em Boa Vista. O  Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kuana (Condisi-YY) denunciou que 106 vacinas contra a Covid-19 foram desviadas para garimpeiros pelos profissionais de saúde em vez de imunizar os indígenas.

“Não queremos profissionais de saúde que não têm compromisso. Não queremos profissionais com duplo vínculo, que não vão atender nas comunidades. Queremos gestores e médicos bem preparados. Queremos nutricionistas para tratar da desnutrição. Queremos dentistas para tratar da saúde bucal. Queremos uma rotina de diagnóstico e tratamento de contaminação por mercúrio nos rios e nos Yanomami e Ye’kwana. Queremos água limpa. Queremos atendimento permanente direto em nossas comunidades, em escalas revezando profissionais e nunca deixando o posto vazio. Queremos que as comunidades onde tem ameaça de garimpeiros tenham atendimento de saúde com segurança garantida”, pede o documento.

Desvio de recursos

Júnior Yanomami durante protesto pelas ruas de Boa Vista, capital de Roraima, no dia (8/9) contra os garimpos ilegais em seu território (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Como resultado do  II Fórum de Lideranças, onde participaram representantes das organizações Hutukara Associação Yanomami, Associação Wanasseduume Ye’kwana, Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma, Associação Kurikama Yanomami, Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes, Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima, Hwenama Associação do Povo Yanomami de Roraima, Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana, cerca de 70 lideranças de 15 regiões da TI Yanomami elaboraram uma carta com os principais problemas que a etnia enfrenta na saúde.

As associações que assinam a carta protocolada pedem investigação com urgência no Dsei-YY. “Queremos formação de AIS (Agente Indígena de Saúde), Aisan (Agente Indígena de Saneamento) e guarda de endemias Yanomami e Ye’kwana para podermos cuidar do nosso povo. Pedimos  que o Ministério Público investigue o Dsei-YY, e para onde está sendo destinado o recurso que deveria ser usado para melhorar a saúde dos povos Yanomami e Ye’kwana, solicitamos transparência do Dsei-YY através do Condisi-YY,  queremos que o Condisi-YY convoque todas as associações para falar dos assuntos da saúde”, prossegue o documento.

O presidente do Condisi YY, Júnior Hekurari Yanomami, disse à Amazônia Real que a situação está cada vez mais tensa. “Mais duas crianças morreram na comunidade Parima. O Dsei Yanomami justificou que não tinha combustível para o helicóptero. Incrível essa justificativa deles. O Dsei está colocando muita dificuldade para nós, do Condisi, trabalharmos. Voltamos a ter acesso a algumas informações, mas estão tirando pessoas que realmente nos ajudam a fazer algo pela saúde, tá muito difícil trabalhar com o Dsei Yanomami”, relatou Júnior Yanomami. 

Desde o dia (08), quando lideranças foram à sede do  Dsei Yanomami, para protocolar a carta e não encontraram o coordenador, Rômulo Pinheiro de Freitas, a Amazônia Real entra em contado com a Sesai e o próprio Dsei solicitando informações sobre o que tem sido feito para atender e solucionar o colapso na saúde Yanomami. Não houve respostas até a publicação desta reportagem.

*Ana Lucia Montel, mulher negra amazônida, nortista, é comunicadora popular, militante social desde os 12 anos de idade, e finalista no Curso de Comunicação Social (Jornalismo) na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Atua diretamente com pautas voltadas para migrantes, indígenas, mulheres, negros e povos amazônicos, através do audiovisual. É fundadora da Resistir Produções Roraima, uma produtora cultural independente.

Fonte:


Murillo de Aragão: Ninguém manda no Brasil

Somos uma sociedade plural onde atuam diversos polos de poder

Murillo de Aragão / Revista Veja

As turbulências institucionais recentes provocaram temores no país quanto a potenciais rupturas e episódios de violência. No desenrolar dos acontecimentos, o presidente do STF, Luiz Fux, apresentou um cartão amarelo com tons de laranja que precipitou uma série de embaixadas entre atores políticos relevantes. O dito ficou pelo não entendido ou pelo mal-entendido.

Uma reflexão acerca dos episódios de 7 de setembro nos leva a uma questão essencial para entender o Brasil: quem, de fato, manda no país? A resposta não é fácil nem pacífica. Isso porque aqui há setores que mandam, mas não parecem mandar; e outros que pensam mandar, mas não mandam. Além do mais, o próprio conceito de “mando” é frágil.

Começando de trás para a frente e respondendo à indagação, digo que ninguém manda no Brasil. O país, como um organismo vivo, reage e atua com base em dezenas de inputs que levam a decisões que, por sua vez, são influenciadas pelos eventos. Sendo organismo vivo, temos inúmeros atores no jogo político.

E, como sempre, os fatos geram repercussões que se refletem no processo político, numa espécie de moto contínuo. Por exemplo, o acirramento das invasões de fazendas estimulou a organização da União Democrática Ruralista, entidade de proprietários que, por sua vez, foi essencial para a criação da poderosa bancada ruralista. Não há tema relevante aprovado no Congresso Nacional sem as digitais do agro.

“Nossas instituições funcionam com pesos e contrapesos para conter exageros, arroubos e bravatas”

O entrechoque de forças sociais move a política, bem como as idiossincrasias, as crenças, as expectativas e as narrativas que circulam, historicamente, país afora. Para entender por que ninguém manda no Brasil e por que o processo político é resultante do embate com múltiplos atores, devemos seguir um breve roteiro de esclarecimentos.

Somos uma sociedade plural com diversos polos de poder, seja no universo público, seja no privado. Os campos de disputa política não afloram só em período de eleições. Prosseguem cotidianamente no Congresso, na mídia, no Judiciário, no mercado e suas expressões (bolsa, câmbio e juros futuros), no empresariado, nos trabalhadores, nas organizações não governamentais, nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas. Apesar do intenso bombardeio ideológico do século XX, a maioria dos polos de disputa política se expandiu em torno de agendas de interesses específicos em uma luta por privilégios e poder.

A quantidade de polos de poder político e de campos de disputa multiplica os lugares de fala e dificulta a construção de narrativas hegemônicas. A própria construção de consensos é dolorosa, tanto para aperfeiçoamentos quanto para retrocessos. Nossas instituições, como nos acontecimentos de 7 de setembro, funcionam com pesos e contrapesos para conter exageros, arroubos e bravatas.

Em 2023, seja lá quem for o presidente eleito, o quadro institucional prosseguirá o mesmo. E ninguém, de forma isolada, mandará no Brasil nem romperá o equilíbrio “desequilibrado” entre as suas instituições. Prosseguiremos como um regime semiparlamentarista com forte influência do Judiciário, descobrindo-se como federação e com múltiplos atores brigando por espaço e influência no processo político.

Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757

Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/ninguem-manda-no-brasil/


Marco Aurélio Nogueira: Crises, transformações, pesadelos

Democratas têm de saber usar a inteligência política para desenhar um caminho unitário

Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo

Há muito mais coisas no ar além dos tiranos de plantão. Eles perturbam porque são um subproduto delas. Sobrevivem porque manipulam os medos.

A nossa é uma época de transformações rápidas e profundas, que tumultuam o modo como vivemos. As mudanças fazem com que tudo pareça solto no ar, como se faltasse um centro de gravidade. As crises se sucedem, varrendo o que está instituído. É outro capitalismo, outro modo de trabalhar, outros padrões de família, outra escola, e assim por diante.

Os cidadãos, compreensivelmente, ficam atônitos. Carecem de referências e portos seguros onde ancorar. Frustrados por não conseguirem conquistar o que lhes é prometido, afastam-se de governos, partidos e políticos, responsabilizando-os pelo que não recebem, seja como direitos, seja como bens e serviços.

O estado de espírito coletivo passa a desconfiar da democracia, muitas vezes atacando-a como desnecessária ou prejudicial. O povo fica contra a democracia, escreveu Yascha Mounk. As pessoas têm raiva e pressa, o sistema democrático é lento e não inclui as grandes massas. As redes sociais canalizam essa miríade de vozes ressentidas. A democracia representativa entra em estado de sofrimento.

Ao mesmo tempo, crescem as lutas por identidade e reconhecimento, que projetam novos patamares de direitos, mas também criam mais fragmentação e complicam as unificações necessárias. Os partidos políticos não sabem como tratar os impulsos identitários, os novos grupos, temas e expectativas. Abre-se uma rachadura na política, por onde escapam sentimentos e emoções, que ficam disponíveis. Evapora-se a agenda reformadora. Os democratas se desorientam, os autoritários ganham terreno.

Todo este processo transcorre molecularmente, deixando pegadas no chão da vida. Quando menos se espera, produzem-se estrondos que lançam as pessoas às ruas, como a anunciar rupturas iminentes. Foi assim em 2013, no Brasil, quando o estrondo polifônico deixou evidente que nada mais poderia ser pensado como antes. O sistema político, porém, não ouviu as palavras, não decodificou a mensagem.

Aumentaram, então, as atitudes “antissistêmicas” radicalizadas, que dizem o que não aceitam sem saber o que pretendem ou como realizar os desejos. A frustração permanece pulsando e muitos saem em busca de salvadores, que se agigantam quanto mais se apresentam como portadores de uma purificação geral. Entram em cena tiranos e autocratas de um novo tipo, que ora surgem como extremistas, ora como populistas, ora como xamãs prontos para produzir milagres com suas feitiçarias e beberagens.

Há de tudo entre eles. Tecnocratas, militares, empresários, cantores, parlamentares inexpressivos. Apresentam-se como conservadores honestos, tementes a Deus, defensores da família; prometem recriar a democracia de modo “iliberal”, para que o povo tenha mais voz. Muitos são caricatos. No início, são tratados com arrogância e subestimados pelos democratas, que não levam a sério as “narrativas” tecidas para manipular os descontentes.

Numa articulação global, o extremismo de direita sai das catacumbas em que se enfurnava para anunciar uma “nova política”, livre de comunistas, liberais, imigrantes, pobres, refugiados, gente tratada como detrito.

Os “salvadores” se distinguem pelo destempero, pelo negacionismo, pela busca de polarizações artificiais com que procuram manter as sociedades em estado de guerra permanente. Inventam problemas, criam realidades paralelas nas quais a desordem imperaria, o povo estaria acuado, clamando por armas e resgate. São líderes sem estofo, péssimos governantes. Sobrevivem à custa de expedientes bélicos, falseamentos e mentiras, que despejam incessantemente sobre a opinião pública. Vão, assim, ocultando sua incompetência e pescando incautos nas águas sujas que derramam na vida.

No Brasil, em particular, este tipo de líder tem sua hierarquia. Há muitos chefes, chefetes e militantes, mas somente um Mito. O movimento se espalha, incorpora elites sem orgulho próprio, vazias de ambições cívicas. Como um Duce fascista falsificado, o Mito recusa-se a governar: sua essência é o combate, seu desejo é a ditadura, sua intenção é criar confusão. Sustenta-se no espanto social, no amorfismo ideológico da população, na desorientação impulsionada pela desunião dos democratas, no ativismo boçalizado da extrema-direita. Estigmatiza adversários para assustar eleitores e ascender.

A pobreza, as desigualdades, o desemprego, a pandemia, a inflação que retorna complicam sua situação, mas não ajudam a oposição. A imagem do Mito esfarela.

Há resistência nas instituições (STF, TSE), na grande mídia, nos partidos democráticos, em crescentes setores da sociedade civil. A Câmara dos Deputados, sob pressão, atua com excessivo fisiologismo. Os pesadelos se repetem, noite após noite, à espera do raiar de um novo dia, que virá na medida em que os democratas souberem usar a inteligência política para desenharem o caminho unitário que os projetará como construtores do futuro.

*Professor de Teoria Política da Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,crises-transformacoes-pesadelos,70003849686


El País: Conservar a Amazônia é um bom negócio para o Brasil

Existem diversas frentes e iniciativas para extrair de maneira sustentável produtos da floresta e, assim, monetizá-la em pé

André Guimarães / Marcello Brito / El País

Polo financeiro mundial, Wall Street esteve à frente de diversas inovações no mercado de capitais, e hoje nada é mais urgente do que dedicar atenção e criar instrumentos que viabilizem o investimento e a transição para um mundo mais sustentável e resiliente.

Manter uma floresta em pé tem um custo, que não é pequeno. Encontrar maneiras de financiar a conservação é a solução pragmática para assegurar que as florestas remanescentes sejam protegidas, trazendo maior segurança climática, as chuvas das quais depende a agricultura, e o fluxo de água que necessitamos para a nossa economia e sobrevivência.

Nova York, endereço de Wall Street, é nesta semana o palco de um dos mais importantes encontros ambientais do ano. A Climate Week dedica tempo e espaço para debates que discutam as consequências das mudanças climáticas em todas as esferas, dos riscos econômicos aos socioambientais.

Embora a crise ambiental atinja a tudo e a todos, só na última década o mundo entendeu a correlação entre as florestas e o bem estar do planeta, reconhecendo os importantes serviços prestados pela natureza e aumentando assim a preocupação em conter o avanço do desmatamento e as queimadas. É hoje consenso que as florestas e a biodiversidade devem ser preservadas ou pagaremos, como já estamos pagando, um alto custo social e econômico. Resta saber qual o tamanho da perda, se nada fizermos, e quanto teremos que investir para evitarmos que o pior aconteça.


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Com quase dois terços da Amazônia em seu território, o Brasil tem um protagonismo natural nas conversas sobre a preservação das florestas, e o desmatamento que vem sofrendo ao longo dos anos, seguido de queimadas e estabelecimento de pastagens de baixíssima produtividade, tem colocado o país sob o escrutínio mundial. Isso se exacerbou nos últimos anos, quando passou a se discutir se a Floresta Amazônica teria atingido um “ponto de não-retorno”, a partir do qual o processo de savanização seria irreversível, com consequências catastróficas para todo o mundo.

O Brasil tem recebido críticas à sua política ambiental, e o agronegócio que abraça práticas responsáveis já manifesta sua preocupação com ameaças de boicote aos seus produtos no exterior. Devemos lembrar que este é um mercado que tem um forte protecionismo, e não podemos dar “pano para a manga” para que se formem barreiras contra os produtos nacionais, e hoje a bandeira de proteção ambiental encontra ressonância junto ao público consumidor, especialmente em países desenvolvidos.

A crescente preocupação ao redor do mundo com as mudanças climáticas, e a consequente crise de alimentos, podem se tornar uma oportunidade de o Brasil se tornar uma potência agroambiental, desde que consiga proteger suas florestas e sua biodiversidade, ao promover o crescimento da produção agrícola enquanto ajuda a alimentar o mundo.

O Brasil já demonstrou ao longo dos anos que sabe aumentar sua produtividade agrícola sem destruir nosso ativo florestal, que abriga a maior diversidade de plantas e animais do planeta. No entanto, manter a vegetação em pé e protegê-la tem um custo financeiro. Se o mundo manifesta angústia com a derrubada da floresta, deveria se dispor a contribuir financeiramente para impedir o desmatamento. Mas será que os governos dos países desenvolvidos e demais entidades internacionais estão de fato dispostos a bancar isso, ou se restringirão à retórica?

Cabe a nós criar canais de diálogo e viabilizar o investimento. Claro que precisamos também fazer o nosso dever de casa interno, acabando o quanto antes com a perda de nossa cobertura vegetal nativa, monitorando nossas florestas, evitando incêndios e mudando certas práticas agrícolas. Mas precisamos também engajar o capital internacional nesta empreitada.

Um hectare de floresta amazônica armazena pelo menos 100 toneladas de carbono, ou 360 toneladas de dióxido de carbono (CO2) equivalente. Hoje, cada tonelada de CO2 é comercializada a US$ 10 no mercado internacional. Portanto, devastar um hectare, o tamanho de um campo de futebol, significa queimar US$ 3,6 mil, ou mais de R$ 16 mil. Abrir mão de riquezas naturais é um desperdício de dinheiro, além de uma perda irreversível de valor biológico.

Não devemos nos contentar em erradicar a devastação ilegal da Amazônia. Mesmo as frações de reservas onde o desmatamento é permitido (equivalente a 20% da área de cada propriedade legal) poderiam ser mantidas intactas, se devidamente remuneradas pelo seu custo de oportunidade. Trata-se de mais do que preservação, é um investimento.

Existem diversas frentes e iniciativas para extrair de maneira sustentável produtos da floresta e, assim, monetizá-la em pé. Porém a grande maioria dos projetos e estudos ligados a bioeconomia da floresta ainda está em seus primórdios, exigindo alto investimento, inclusive em pesquisa. Demandarão muito tempo para chegarem a uma escala que reverta a perda da vegetação nativa.

É imperativo que o Brasil se torne um país atraente a esses investimentos. Nossas florestas em pé e preservadas podem servir de lastro, garantia financeira, para a atração dos capitais necessários para fazermos frente à exploração predatória atual. Conservar a Amazônia pode se tornar um ótimo negócio para o Brasil e para os milhões de pessoas que lá vivem.

Conciliar economia e meio ambiente é um passo crucial para a vitalidade do desenvolvimento brasileiro. O futuro do país depende de uma reflexão conjunta dos vários atores, de maneira pragmática e buscando a equação econômica que possa viabilizar a manutenção dos nossos preciosos ativos ambientais.

Temos que seguir a importante missão de alimentarmos o mundo através do nosso pujante agronegócio, mas de tal maneira a conciliar produção e preservação, produtividade e tecnologia de ponta, para também usufruirmos da riqueza biológica das nossas florestas. E o mercado financeiro deve ajudar a viabilizar instrumentos para fomentar esta revolução verde.

André Guimarães é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e integrante da Coalizão Brasil Clima, Agricultura e Florestas.

Marcello Brito é presidente do conselho da ABAG e co-facilitador da Coalizão Brasil Clima, Agricultura e Florestas.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-22/conservar-a-amazonia-e-um-bom-negocio-para-o-brasil.html


Marcus Pestana: Nem golpe, nem impeachment

Governar não é fácil. É fazer escolhas. Na democracia, muitas vezes a política resvala na demagogia

Marcus Pestana / O Tempo

Desde que me entendo por gente, assisti a inúmeros debates e palestras. Sempre me incomodou a figura retórica de certos oradores que começavam com a frase: “O Brasil vive a pior crise da sua história”. Era claramente um artifício para valorizar a fala. O Brasil viveu diversas crises graves. O suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio Quadros, o golpe de 64, as moratórias externas, a hiperinflação, recessões profundas, dois impeachments, entre outras. Fato é, que estamos mergulhados numa crise complexa e multifacetada.

Governar não é fácil. É fazer escolhas. Na democracia, muitas vezes a política resvala na demagogia. Mas, ou se enfrenta os problemas ou a demagogia vai cobrar um alto preço em algum momento futuro. Como disse Montesquieu: “O político deve sempre buscar a aprovação, porém jamais o aplauso”. A legitimação do poder só é duradoura se os resultados aparecem e a realidade avança. A democracia gera o famoso sistema de freios e contrapesos como antídoto aos abusos de poder. Como afirmou o líder conservador irlandês, Edmond Burke: “Quanto maior é o poder, tanto mais perigoso é o abuso”.

Muita discussão houve sobre a máxima de Bismarck: “A política é a arte do possível”. Será? Ou será a arte de fazer possível o necessário? Ou até mesmo um dos lemas do maio de 68 na França: “Sejamos realistas, peçamos o impossível”? Independente disso, a política é o único instrumento capaz de mudar o mundo e a vida. Para avançar é preciso construir apoios majoritários. Assistimos, no Brasil, a dificuldade imensa de aprovação de reformas tributária e administrativa que mereçam o nome. Também, com 24 partidos representados no Congresso e uma dispersão disfuncional, onde o maior partido tem apenas pouco mais de 50 deputados. Hoje não há maioria e minoria organizadas no Congresso e a política, que avança na relação dialética entre cooperação e conflito, se caracteriza pela predominância quase absoluta do conflito, ditado pelo estilo de governar de Bolsonaro.

No último 7 de setembro pairou um clima de golpe. Especulações, temores, ameaças dominaram a cena. O golpe não veio. O apoio popular à uma virada de mesa alcançaria no máximo 10% da população. Não houve sustentação das Forças Armadas ou das forças policiais. O recuo foi rápido através de nota do Presidente, aconselhado por Michel Temer. A poeira baixou, uma tranquilidade provisória se instalou, e é possível afirmar que não haverá golpe.

Por outro lado, forças oposicionistas apontam o caminho do impedimento do Presidente da República. Embora crimes de responsabilidade tenham sido cometidos, duas outras pré-condições para um afastamento não estão dadas: mobilização social e maioria parlamentar. Lula e o PT não têm interesse no impeachment. Muito menos o chamado “Centrão”, que constituí a base parlamentar do governo e se instalou no coração do poder. Um terceiro impeachment seria traumático. Portanto, é possível vislumbrar que não haverá impeachment.

Daqui a dez meses, a sucessão presidencial estará nas ruas, com os candidatos escolhidos pelas convenções partidárias. Tudo indica que teremos escaramuças, novas tensões, instabilidade permanente e a crise permanecerá irresolvida. A solução virá do pronunciamento soberano do cidadão brasileiro nas urnas, eletrônicas. Felizmente, a democracia será o caminho de superação da presente crise.     

*Presidente do Conselho Curador ITV – Instituto Teotônio Vilela (PSDB)

Fonte: O Tempo
https://www.otempo.com.br/opiniao/marcus-pestana/nem-golpe-nem-impeachment-1.2546633


Ampla frente democrática será discutida pela FAP como alternativa a Bolsonaro

Conselheiros e diretoria executiva da entidade se reunirão de forma online, com transmissão em tempo real, no próximo dia 25/9, a partir das 10h

Cleomar Almeida, da equipe FAP

Ações para fortalecer a democracia e alternativas ao nome do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nas eleições de 2022 serão abordadas em reunião conjunta da Diretoria Executiva e dos Conselhos Curador, Fiscal e Consultivo da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. O evento será realizado, de forma online, no próximo sábado (25/9), a partir das 10 horas.


ASSISTA!



A transmissão da reunião conjunta da FAP ocorrerá, em tempo real, pelo portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da fundação, para todos os internautas interessados. Os conselheiros e integrantes da diretoria se reunirão por meio da sala virtual do zoom. O link de acesso será enviado com antecedência, pela entidade, também aos integrantes do Diretório Nacional do Cidadania.

Conselheiros destacam a necessidade de entender “o fenômeno Bolsonaro”, para lançar uma alternativa apoiada por uma ampla frente democrática que resgate direitos violados no atual governo e avance na busca de uma sociedade que exerça a cidadania plena e seja menos desigual, menos injusta e menos excludente.

Conselheiro da FAP e professor da Universidade de Brasília (UnB), o sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento destaca a importância de compreender as características que moldam o governo Bolsonaro, que protagoniza a figura do populismo de extrema direita.

“Vou tentar mostrar a natureza do populismo de extrema direita de Bolsonaro, vertente internacional que não vai ameaçar a democracia como no passado, na ditadura, mas que tem o discurso de defender a refundação da democracia, no sentido de uma democracia iliberal”, analisa Nascimento.

DEMOCRACIA BRASILEIRA


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De acordo com o professor da UnB, a democracia iliberal é “despida de direitos humanos, do controle da mídia”. “Tem a supremacia do Poder Executivo e submissão dos outros poderes”, assevera Nascimento. “Se não soubermos desmontá-lo, ele vai persistir com ou sem eleição. Ele se adapta do ponto de vista tático, ora ataca ora recua, mas o princípio é o mesmo: desmontar a democracia liberal, destruí-la”, observa.

Conselheiro da FAP, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Paulo Baía diz que o principal ponto da conjuntura política é “a questão democrática”. “Temos que reagir a qualquer ataque, mesmo que verbal, às instituições democráticas e, com essa reação, finalizaremos um projeto para 2022”, acentua ele.

Na avaliação de Baía, o Brasil enfrentou muitos retrocessos no atual governo. “Perdemos muita coisa em função da desregulamentação que aconteceu, principalmente, nas áreas de proteção social, ambiental e educação. Nós temos um retrocesso regulatório nessas áreas”, afirmou o cientista político.

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“As pesquisas todas apresentam Jair Bolsonaro e Lula muito bem colocados, mas temos alternativas a eles. Essas alternativas vão ter que se firmar em uma candidatura, até abril do ano que vem, que possa reunir essa perspectiva, senão vamos ter risco de reproduzir Bolsonaro em 2023. Bolsonaro não está tão desgastado assim como alguns falam”, alerta.

O professor da UFRJ acredita que o ex-presidente Lula poderia ser incluído na ampla frente democrática. “Creio que o país está muito traumatizado no momento e que outro nome seria melhor, mas, evidentemente, é difícil convencer Lula disso. Eu, particularmente, não aposto nem em Bolsonaro nem em Lula”, disse ele.

Baía elenca, na sua lista de alternativas a Bolsonaro, os nomes da senadora Simone Tebet (MDB-MS); do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB-RS), e o de Ciro Gomes (PDT). “Outros nomes vão surgir”, afirma Baía.

Reunião conjunta da Diretoria Executiva e dos Conselhos Curador, Fiscal e Consultivo da FAP
Data: 25/9/2021
Transmissão: 10 horas
Onde: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da FAP
Realização: Fundação Astrojildo Pereira (FAP)


Comissão da Câmara conclui votação da reforma administrativa

Proposta seguirá para análise no Plenário da Câmara

Em uma reunião que durou mais de 13 horas, incluindo alguns minutos de tensão, a Comissão Especial da Reforma Administrativa aprovou, por 28 votos contra 18, o substitutivo do relator, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA) à Proposta de Emenda à Constituição 32/20. Entre os pontos mais polêmicos, o texto aprovado manteve os instrumentos de cooperação com a iniciativa privada e preservou os benefícios de juízes e promotores, como as férias de 60 dias.

Arthur Oliveira Maia observou que seu relatório garantiu a estabilidade e os direitos adquiridos dos servidores atuais. "Todas expectativas de direitos foram preservadas. Esta PEC não atinge nenhum servidor da ativa", comemorou.

Entre as principais inovações mencionadas pelo relator estão a avaliação de desempenho de servidores e as regras para convênios com empresas privadas.

Apesar da obstrução dos deputados da oposição, o relator reconheceu que seu parecer aproveitou as contribuições de vários parlamentares contrários à proposta. "Este texto não é do Poder Executivo, mas uma produção do Legislativo. Apesar das posições colocadas aqui de maneira tão virulenta, é uma construção coletiva", disse o relator.

Convênios
A sétima e última versão do substitutivo de Maia retirou algumas concessões que haviam sido feitas à oposição. Entre elas, o relator manteve os instrumentos de cooperação com empresas privadas. Esta era uma das principais críticas da oposição, que entende que os convênios podem desviar recursos da Saúde e da Educação, aumentar o risco de corrupção e prejudicar a qualidade de serviços públicos.

De acordo com a proposta, a cooperação com órgãos e entidades públicos e privados pode compartilhar a estrutura física e utilizar recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira. "O que se quer é lucro com dinheiro da Educação. As pessoas pobres não vão poder pagar pelo serviço público", teme o deputado Rogério Correia (PT-MG).

Já o deputado Darci de Matos (PSD-SC) rebateu que ninguém vai cobrar mensalidade de creche ou escola. "O setor privado quer dar sua contribuição. A cooperação do setor privado com o serviço público é o que há de mais moderno no mundo. Não tem nada de errado nisso", ponderou.

Temporários
Outro ponto polêmico foram as regras para contratações temporárias, com limite de até dez anos. O relator destacou que os contratos temporários terão processo seletivo impessoal, ainda que simplificado, e os contratados terão direitos trabalhistas. O processo seletivo simplificado só é dispensado em caso de urgência extrema.

A oposição teme que os contratos temporários levem à redução do número de servidores concursados. "O contrato temporário tem que ser exceção, não pode estar na Constituição", ponderou o deputado José Guimarães (PT-CE).

Redução de jornada
O relator fez uma concessão no dispositivo que permite reduzir em até 25% a jornada e o salário de servidores. No novo texto, os cortes serão limitados apenas a períodos de crise fiscal.

Ainda assim, isso não agradou a oposição. "O servidor atual fica facultativo se vai permitir ou não o corte, mas com certeza vai sofrer um assédio enorme para cortar seu salário", rebateu Rogério Correia. "Com o corte, vai ter que passar o serviço para a iniciativa privada."

Arthur Oliveira Maia argumentou que a redução é uma alternativa para que não haja demissão de servidores. "É muito melhor reduzir a jornada do que demitir", argumentou.

Para o deputado Alencar Santana Braga (PT-SP), o dispositivo joga a responsabilidade da má gestão de governadores e prefeitos nas costas dos servidores. "O servidor não vai poder pedir para reduzir sua dívida no açougue porque o governo reduziu o salário", comentou.

Juízes e promotores
O texto aprovado mantém benefícios de juízes e promotores, como as férias de 60 dias. Os deputados ainda devem votar no Plenário destaque sobre a inclusão de membros do Judiciário e do Ministério Público na reforma administrativa.

Arthur Maia justificou que um parecer da Mesa Diretora da Câmara havia entendido que a inclusão só seria possível se a proposta fosse de iniciativa do próprio Judiciário. "O importante é que cada um se manifeste no destaque. Aí vamos nos responsabilizar individualmente. Eu votarei a favor", afirmou.

A reforma administrativa acaba com os seguintes benefícios para administração pública direta e indireta, nos níveis federal, estadual e municipal:

  • férias superiores a 30 dias;
  • adicionais por tempo de serviço;
  • aumento de remuneração ou parcelas indenizatórias com efeitos retroativos;
  • licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença por tempo de serviço;
  • aposentadoria compulsória como punição;
  • adicional ou indenização por substituição;
  • parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e critérios de cálculo definidos em lei;
  • progressão ou promoção baseadas exclusivamente em tempo de serviço.

Desempenho
O relator procurou colocar dispositivos para evitar arbitrariedades na avaliação de servidores. "A avaliação de desempenho terá participação do usuário do serviço público e será feita em plataformas digitais", comentou.

O substitutivo de Arthur Oliveira Maia facilita a abertura de processos administrativos para perda de cargo de servidores com avaliação de desempenho insatisfatório. O servidor será processado depois de duas avaliações insatisfatórias consecutivas ou três intercaladas, no período de cinco anos.

O relator argumenta que o servidor ainda tem direito a defesa. "À luz do fato de que há direito a uma segunda opinião e o desligamento não é automático, não se pode considerar que os parâmetros agora adotados o prejudiquem ou facilitem abusos ou iniquidades."

No entanto, deputados da oposição afirmaram que o texto prejudica o direito ao contraditório e à ampla defesa nos processos administrativos.

O substitutivo ainda estabelece regras para gestão de desempenho, com avaliação periódica e contínua. "Tem que identificar se o serviço público falhou e onde está a falha", analisa o relator.

Cargos obsoletos
O relatório acrescentou novos parâmetros para definir quem perderá a vaga caso haja uma extinção parcial de cargos obsoletos. "Não haverá espaço para o arbítrio e para atitudes indevidas", apontou Maia.

Como primeiro critério, serão afastados servidores de acordo com a média do resultado das três últimas avaliações de desempenho. Se houver empate e não for possível discriminar os alcançados por este caminho, apura-se primeiro o tempo de exercício no cargo e, em seguida, a idade dos servidores.

O substitutivo preserva os cargos ocupados por servidores estáveis admitidos até a data de publicação da emenda constitucional.

Cargos exclusivos
A reforma administrativa define o rol de cargos exclusivos de Estado, que não podem ter convênios com a iniciativa privada e serão protegidos do corte de despesas de pessoal.

São cargos exclusivos de Estado os que exerçam atividades finalísticas da segurança pública, manutenção da ordem tributária e financeira, regulação, fiscalização, gestão governamental, elaboração orçamentária, controle, inteligência de Estado, serviço exterior brasileiro, advocacia pública, defensoria pública e atuação institucional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, incluídas as exercidas pelos oficiais de Justiça, e do Ministério Público.

No entanto, ficaram de fora dos cargos exclusivos as atividades complementares. "Ao excluir atividades complementares, todos poderão ter contratações temporárias", protestou o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ).

Segurança
A lista de cargos exclusivos especifica quais profissionais de segurança estarão incluídos nesta categoria. Foram contemplados guardas municipais, peritos criminais, policiais legislativos, agentes de trânsito, agentes socioeducativos, além de policiais federais, policiais rodoviários federais, policiais ferroviários federais, policiais civis e policiais penais. Ficaram de fora das carreiras exclusivas os policiais militares e bombeiros militares.

Os guardas municipais também foram beneficiados no único destaque aprovado pela comissão, entre 20 analisados. O destaque do bloco Pros-PSC-PTB dá status de polícia às guardas municipais.

O deputado Jones Moura (PSD-RJ) observou que o destaque não cria despesa. "É o clamor de um trabalhador que quer trabalhar melhor. O guarda municipal vive 30 anos em uma insegurança jurídica, por não ter sua atividade de segurança pública clara e transparente no lugar de prender bandidos e estabelecer a paz social. É uma polícia que não é militarizada, uma polícia cidadã e comunitária", declarou.

O relator alertou para o impacto da medida na previdência dos municípios. "Os municípios têm previdências próprias. A consequência imediata é que a aposentadoria dos guardas municipais vai ser igual à dos demais policiais. Isso trará um impacto importante para as previdências próprias dos municípios."

Trocas e interrupções
Deputados da oposição se queixaram da troca de oito deputados titulares da comissão antes da votação da proposta. O presidente da comissão, deputado Fernando Monteiro (PP-PE), explicou que os líderes partidários têm a prerrogativa de substituir ou indicar membros a qualquer momento. "Esta comissão era para ser composta por 34 membros. Entendendo que precisava de mais debate, conseguimos que fossem 47 membros, para que todos os partidos ficassem atendidos. Esta presidência mostra o que é democracia", defendeu.

A oposição também se irritou com as seis mudanças feitas pelo relator, Arthur Oliveira Maia, no seu parecer na última semana. Fernando Monteiro insistiu que, de acordo com o Regimento Interno, o relator pode mudar o parecer até o momento da votação.

Já os deputados favoráveis à reforma administrativa reclamaram das interrupções da oposição em sua estratégia de obstrução. "Mesmo depois de os senhores terem dito que fecharam questão contra a PEC, procurei dialogar com muito respeito e cordialidade. É uma regra da convivência humana retribuir gentileza com gentileza. Não abri minha boca para interromper ninguém", indignou-se Arthur Oliveira Maia.

O deputado Darci de Matos apontou para a necessidade de ouvir o contraditório. "Não há razão de permitir que fiquem gritando, interferindo, interrompendo. Isto é baixaria, denigre a imagem da comissão", comentou. "Em alguns momentos, vergonhosamente, aí eu falo da oposição e da situação, o nível da reunião da PEC 32 está abaixo da Câmara do menor município do Brasil, de Serra da Saudade (MG)."

Rogério Correia reclamou da menção a Serra da Saudade. "É um município mineiro e merece respeito", pediu.

Saiba mais sobre a tramitação de propostas de emenda à Constituição

Reportagem – Francisco Brandão
Edição – Pierre Triboli

Fonte: Agência Câmara de Notícias
https://www.camara.leg.br/noticias/809694-apos-mais-de-13-horas-de-reuniao-comissao-conclui-votacao-da-reforma-administrativa/


Luiz Carlos Azedo: Queiroga, o ministro da covid-19

Queiroga resolveu entrar na onda de Bolsonaro e desacreditar a CoronaVac, a vacina do Butantã, que salva as vidas de milhões de brasileiros na pandemia de Covid-19

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Tem coisas que realmente só acontecem no governo de Jair Bolsonaro. Por exemplo: ministros e outras autoridades descobriram que a melhor maneira de se manter no cargo, apesar de fracassarem por incompetência, é atacar a imprensa, defender as teses mais estapafúrdias e apoiar as atitudes negacionista do presidente da República. A fórmula foi adotada logo no começo do governo pelo então ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, que já assumira o cargo enrolado por causa de denúncias de crimes eleitorais — porém, logo virou um padrão de comportamento, toda vez que alguém começa a colecionar desgastes no cargo. Nem sempre o expediente garante a posição, mas, ao menos, prolonga a permanência no posto e permite uma retirada em ordem, como no caso de Marcelo Álvaro.

Quem agora se supera com esse estratagema é o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que está com covid-19 e teve contato com várias autoridades na viagem que fez a Nova York, integrando a delegação brasileira à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Bolsonaro foi a grande atração do evento internacional, depois do presidente norte-americano Joe Biden, não por causa de seu discurso na abertura da assembleia, mas devido ao fato de não ter se vacinado e não poder fazer as refeições nos restaurantes da cidade, conforme as normas sanitárias adotadas pela Prefeitura de Nova York. Além de mostrar os dedos médios das duas mãos para manifestantes, pela janela da van que transportava a comitiva presidencial, Queiroga voltou às manchetes porque testou positivo e terá que ficar 14 dias de quarentena na cidade.

Mas a superação de Queiroga veio por uma patacoada inacreditável para quem ocupa o cargo de ministro da Saúde, nas redes sociais, ao compartilhar um post bolsonarista, no qual uma mulher achincalha a vacina produzida pelo Butantan, a CoronaVac: “Que ironia! Ministro Marcelo Queiroga seguiu todos os protocolos, vacinou com a CoronaVac, usa máscara o tempo inteiro e foi contaminado. O presidente (Jair Bolsonaro) não se vacinou, não usa máscara, estava ao lado dele e não pegou”, ela escreveu no Instagram. O ministro sabe que a vacina não impede que uma pessoa pegue a doença, mas sim o desenvolvimento de quadros graves da enfermidade. Com essa postagem, passou a figurar no pódio dos ministros mais bajuladores do presidente, além de se desmoralizar de vez como responsável por liderar o Sistema Único de Saúde (SUS).

O ministro muito provavelmente será reconvocado pela CPI da Covid, que o ouviu quando estava ainda no começo da gestão e a conta das mortes em decorrência da pandemia estava no colo de seu antecessor, general Eduardo Pazuello. O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), classifica o trabalho de Queiroga como um “fracasso” e o chama de “Pazuello de jaleco”. Desde a semana passada, um requerimento do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) aguarda aprovação para reconvocar o ministro. A CPI investiga os casos de corrupção na compra de vacinas e insumos pelo Ministério da Saúde, além da responsabilidade do governo Bolsonaro pelo grande número de óbitos.

Quarentena
Em vez de aproveitar a quarentena em Nova York para mergulhar, Queiroga resolveu ir para o olho do furacão. Entrou no redemoinho e pode não conseguir sair. O número de mortes por covid-19 deve chegar a 600 mil, apesar de estar caindo bastante devido à vacinação. Na semana passada, o ministro da Saúde deixou todas as autoridades sanitárias perplexas ao tentar proibir a vacinação de adolescentes entre 12 e 17 anos sem comorbidades, decisão que não foi acatada pela maioria dos governadores e prefeitos. Com a tuitada de ontem, resolveu entrar na onda de Bolsonaro e desacreditar a vacina do Butantã, que foi a salvação para milhões de brasileiros vacinados com o imunizante de origem chinesa, produzido pela instituição paulista.

Ainda como desdobramento da viagem a Nova York, Bolsonaro suspendeu os compromissos que teria hoje no Paraná, uma soleni- dade em Ponta Grossa e um encontro com empresários, em Castro. Uma motociata também estava sendo programada para Piraí. O cancelamento foi uma recomendação da Anvisa, em razão do caso Queiroga. Até agora, não há nenhuma outra confirmação de covid- 19 na comitiva presidencial, mas todos estão de quarentena, inclusive Bolsonaro, que faz parte do grupo de risco: não tomou vacina, tem 66 anos e várias comorbidades. O presidente da República continua fazendo apologia do tratamento precoce, inclusive defendeu-o na assembleia da ONU, e se recusa a se imunizar.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/ministro-da-covid-19

Cercado pelo agronegócio, território Xavante tem alta letalidade pela covid-19

Pressão sobre territórios, poluição de rios por agrotóxicos e avanço de doenças crônicas deixam população vulnerável à pandemia

Fábio Zuker / Tatiana Merlino / InfoAmazônia / El País

Sob o sol do Planalto Central, com corpos pintados de tintas preta e vermelha —feitas de urucum e carvão— e adornados com brincos e pulseiras, indígenas Xavante carregam faixas. “Povo xavante não é agronegócio. Terra livre”, “Povo Xavante é contra o PL 490 e marco temporal”, são algumas das frases escritas nos cartazes.

Nem a pandemia da covid-19, que impactou os Xavante de maneira devastadora, nem os cerca de 800 quilômetros que separam a Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, um dos dez territórios reconhecidos pela União onde vive o povo Xavante, no Mato Grosso, intimidaram os indígenas de irem protestar, em agosto, na capital do país. A cacica Carolina Rewaptu, que vive na Marãiwatsédé, e a liderança xavante Hiparidi Top’tiro, morador da TI Sangradouro, estavam entre os indígenas que participaram do acampamento “Luta Pela Vida”, em Brasília, organizado em oposição à tese do marco temporal —que tenta condicionar a demarcação das terras indígenas do país ao momento de promulgação da Constituição de 1988.

Eles também foram manifestar oposição ao projeto Agro Xavante, de iniciativa de fazendeiros do Sindicato Rural de Primavera do Leste em parceria com o governo do Mato Grosso e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Intitulado de “independência indígena”, o projeto prevê a exploração agrícola nas terras indígenas e afirma que irá “levar desenvolvimento, segurança alimentar e qualidade de vida” aos Xavante. A escolha pelo uso de urucum e carvão para pintar a pele tem um motivo, relata Hiparidi. “Urucum e carvão eram usados para a guerra. Estamos em guerra com o Governo. Essa é a explicação”, afirma, referindo-se ao Governo de Jair Bolsonaro.


Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Nas últimas décadas, com o agronegócio cercando as terras Xavante, houve uma diminuição das áreas para cultivo, pesca e caça. Hoje, o território corresponde a pequenas ilhas verdes, rodeadas de soja e gado e, em especial, soja. O projeto Agro Xavante representaria uma ameaça a mais à existência destes pequenos pontos verdes. “Com essa entrada do agro no nosso território, piorou de vez. Muita gente fala que é exagero, mas onde tinha refúgio dos animais, está sendo derrubado. E vamos perder os conhecimentos tradicionais milenares das ervas medicinais. Eles vão desaparecer”, preocupa-se Hiparidi.

De acordo com a cacica Carolina Rewaptu, com a intensificação dos plantios de soja no entorno das terras indígenas, hoje não há mais recursos naturais para se fazer artesanato, tampouco raízes medicinais para tratamentos de saúde. “Antes, a paisagem era mais fechada. Agora mudou muita coisa. Vimos essas mudanças”, explica Carolina, que nasceu em 1960 – década em que a tomada de terras por fazendeiros se intensifica, no âmbito do projeto de colonização incentivado pelo Estado brasileiro e que recebeu amplo apoio da ditadura militar.

O estrangulamento do território afetou também a alimentação tradicional dos Xavante, que foi sendo substituída por produtos industrializados. A vulnerabilidade alimentar e de saúde causadas pela degradação ambiental que acompanha o agronegócio ficou particularmente visível durante a pandemia de covid-19. A população Xavante foi uma das etnias que mais sofreu e perdeu vidas para o vírus.

Destruição territorial e alta taxa de letalidade

Um dado acerca da elevada taxa de mortalidade entre os Xavante chamou a atenção de pesquisadores da área da saúde. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xavante apresentou uma taxa de 341 mortes por cem mil habitantes, entre a nona e a quadragésima semana epidemiológica —ou seja, no intervalo entre os dias 23 de fevereiro e 3 de outubro de 2020.

A título de comparação, neste mesmo período, a taxa de letalidade para a população geral brasileira foi de 69.5 mortes por cem mil habitantes. Isso significa que a mortalidade do novo coronavírus na população Xavante foi quase cinco vezes maior do que na população em geral. Essas informações constam em um estudo publicado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outras instituições de pesquisa, que utilizou dados compilados pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O estudo aponta também para uma enorme discrepância entre as mortes registradas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, e os dados compilados pela Coiab, o que indica uma elevada subnotificação nos dados oficiais sobre casos e mortes pela covid-19 entre indígenas. Enquanto a Sesai aponta que 330 indígenas morreram no período analisado, para a Coiab foram 670 mortes. Entre os fatores que explicam essa diferença, o estudo ressalta a negação da identidade dos indígenas mortos pela covid-19, que, principalmente quando se contaminam e vêm a óbito na cidade, são registrados como pardos.

Mas o estudo vai além de indicar as subnotificações dos dados do Ministério da Saúde. Para Paulo Basta, médico sanitarista especializado em epidemiologia e em saúde indígena e um dos responsáveis pelo trabalho, “conseguimos mostrar uma associação direta entre a devastação (de determinados territórios indígenas) e as taxas de incidência nos territórios avaliados”.

Para Basta, um dos pontos centrais do estudo é apontar “como ameaças externas podem contribuir para o espalhamento da pandemia nas terras indígenas”. Por ameaças externas o epidemiologista se refere a atividades madeireiras e garimpeiras ilegais, grilagem de territórios indígenas, mas também aos efeitos de queimadas e do próprio agronegócio.

Para ilustrar seu ponto, Paulo Basta explica como características específicas vivenciadas pelos territórios indígenas em quatro DSEIs influenciam a alta mortalidade identificada pelo estudo.


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Para o médico, no DSEI Alto Solimões, o fator que explica a alta letalidade é a precária infraestrutura hospitalar, que é dependente da cidade de Manaus. De Tabatinga (AM) para a capital do Amazonas, a distância é de 1.100 quilômetros, que levam 1h45 de voo para serem percorridos, ou, com valor muito mais acessível para a população, quatro dias de barco. Já nos DSEIs Xavante, Cuiabá e Kayapó do Pará, Paulo Basta ressalta que, além da também precária infraestrutura, “uma grande presença de comorbidades, como hipertensão e diabetes, estão associadas ao desfecho negativo da contaminação pela covid-19”.

O médico sanitarista explica que essas comorbidades teriam origem num fenômeno que ele considera chave: transição nutricional. “Essas populações, à medida que foi se estabelecendo o contato com a sociedade não indígena, marcado pela destruição do território e diminuição de disponibilidade de recursos naturais e disponibilidade de alimentos tradicionais (pesca, caça, roça ficam mais escassos), os indígenas passam a comer comida industrializada, de baixo valor nutricional, rica em açúcar, sal e gordura”, explica.

A transição nutricional a que Paulo Basta se refere está relacionada a transformações culturais, nas formas tradicionais de alimentação, um processo algo inevitável, que acompanha a intensificação do contato com a sociedade não indígena. Só que este contato, histórica e atualmente, está longe de ser pacífico. E, como ressalta, é um processo que vem acompanhado de uma série de destruições, que permitem a transformação da floresta e do Cerrado em locais aptos para gado e soja.

Pela ampla degradação ambiental causada, tanto indígenas que vivem essa situação na pele —e no prato— quanto epidemiologistas especializados em saúde indígena encontram no avanço do agronegócio uma chave de raciocínio para a alta letalidade de indígenas Xavante durante a pandemia de covid-19. O argumento é que a diminuição das áreas de caça e de roçado, e o impacto dos agrotóxicos nos rios que acompanha a intensificação do plantio de monocultivos nos últimos 36 anos criaram condições ambientais que aumentam a situação de vulnerabilidade dos Xavante.


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Com maior insegurança alimentar, alimentação de baixa qualidade e assistência médica precária, doenças circulam mais e têm maior letalidade entre os Xavante. E a covid-19 seguiu este padrão. Essa é a avaliação de Aline Alves Ferreira, epidemiologista especialista em nutrição, que realizou sua pesquisa de doutorado pela Fiocruz entre os Xavante. “A gente já tem indicadores de saúde e de alimentação que são muito piores quando comparados aos não indígenas no Brasil, e que se acentuaram no cenário do coronavírus.”

Ferreira coloca menos ênfase na pré-existência de comorbidades, e mais na baixa atenção médica, na falta de saneamento e nas condições ambientais criadas pelo agronegócio, que afetam, diretamente, as formas de alimentação. A descrição que ela faz do território Xavante é avassaladora: “Tem aqueles pastos, ali: soja, soja, soja, soja. Aí, de repente, quando começa a terra indígena, a vegetação muda completamente.”

A epidemiologista explica que, com um ambiente cada vez mais reduzido, com um ecossistema cada vez mais afetado, cresce a busca por alimentos ultraprocessados (o que significa uma piora na qualidade da alimentação). Mas há também uma piora na própria regularidade de acesso ao alimento.


Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Comida de ontem, comida de hoje

De sua casa na TI Marãiwatsédé, a cacica Carolina Rewaptu conta que, à época em que era criança, cabia às mulheres a responsabilidade por coletar frutas do Cerrado, como pequi e buritizal. E também raízes, como batata, inhame, batata nativa, abóbora, mandioca.

“Era bom para nós”, diz a indígena, em entrevista por telefone, sobre a alimentação dos Xavante. “Esses alimentos de antigamente eram mais saudáveis. Era comida da roça. Era importante para a saúde das crianças, dos jovens, e das mães jovens na gravidez.” Carolina conta que eram as mais velhas que ensinavam esses costumes de alimentação, de como cuidar das crianças e preparar os alimentos e os rituais.

Nas últimas décadas, no entanto, o cenário mudou. “Hoje, colocam açúcar, sal e óleo em tudo. A gente não comia esses alimentos com açúcar”, explica a cacica da aldeia Madzabdzé. “No meu tempo”, as crianças eram muito sadias, com corpo físico estruturado. “Hoje, a gente vê as crianças muito gordas. Com essas mudanças, muitas pessoas estão com diabetes e obesidade com esse alimento que vem da cidade. Há muita preocupação com o povo Xavante”.


Cristovam Buarque: O rumo para o país está na escola

História de outros países mostra que a educação não ficou boa porque eles ficaram ricos, mas que ficaram ricos porque a educação era boa

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

Em coluna no Correio Brasiliense, Luiz Carlos Azedo, além da honra de colocar-me ao lado de Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, me provocou com o título “Onde perdemos o rumo”, na véspera do bicentenário da Independência: estancados na economia, com pobreza e violência nas ruas e democracia fragilizada.

Nascemos sob o rumo insustentável da economia baseada no trabalho escravo para produção agrícola e mineradora, voltada para exportação. Atravessamos assim 350 dos 500 anos da história, e até hoje temos a economia semi-primária e semi-escravocrata. Fomos governados por populismo ou ditadura, com sistemático desrespeito ao equilíbrio fiscal, insensibilidade às necessidades sociais e urbanas, permanente concentração de renda, depredação ambiental. Tentamos rumo baseado em fazendas, minas, lojas, indústrias, estradas, hidrelétricas, uma nova capital, nunca em escolas.

Perdemos o rumo quando o quase Imperador gritou “Independência ou Morte” em vez de “Independência e Escola”; ou por esperarmos 350 anos para erradicar o escravismo e a Princesa assinar a Lei Áurea com o único artigo abolindo a escravidão, sem estes outros: “a terra pertence a quem nela produz” e “fica estabelecido um sistema nacional de educação para todos”. A bandeira republicana adotou o lema escrito “Ordem e Progresso”, em vez de “Educação é Progresso”, e até hoje não abolimos o analfabetismo: 12 milhões de adultos não reconhecem a própria bandeira.

Perdemos o rumo ao demorarmos 420 anos para criar nossa primeira universidade; ao implantarmos industrialização ineficiente, que tirou recursos da infraestrutura social e provocou inflação para cobrir custos do protecionismo; ao adotarmos o desenvolvimento sem sustentabilidade monetária, ecológica, fiscal, urbana, cultural ou política; e por até hoje não montarmos um Estado eficiente, democrático e republicano. Mas a causa principal do nosso descaminho tem sido o desprezo endêmico à educação em geral e a aceitação da desigualdade, conforme a renda e o endereço do aluno.

Chegamos ao terceiro centenário da independência, na Era do Conhecimento, sem uma população que leia e escreva bem português, fale outros idiomas, saiba matemática e ciências, conheça os problemas do mundo, use modernas ferramentas digitais e domine um ofício profissional. Perdemos o rumo ao imaginar que a boa educação é consequência do crescimento e da democracia, em vez de entendermos que crescimento sustentável e democracia sólida são consequências da educação.

A história de outros países mostra que a educação não ficou boa porque eles ficaram ricos, mas que ficaram ricos porque a educação era boa. Foi assim na Europa Ocidental e na América do Norte, desde o século XIX; na Irlanda, Coréia do Sul e Finlândia, desde meados do século XX. Foi a educação de qualidade que lhes deu base para elevar a renda social e distribuí-la com justiça, ainda que também graças à abertura comercial, finanças públicas equilibradas e instituições democráticas sólidas, capazes de liberar o talento das pessoas educadas. Cada vez mais a educação será o vetor do progresso econômico, a plataforma da distribuição de renda e da justiça social, a argamassa do regime democrático e o enlace para a sustentabilidade. Sem levar isso em conta, não encontraremos o rumo para o futuro que desejamos e para o qual temos potencial.

A educação é tão importante que, por falta dela, ainda não conseguimos perceber sua importância; agimos como pessoa perdida que não sabe para que serve o mapa que tem em mãos. Os traficantes usavam força para não deixar os escravos saltarem ao mar, porque os viam como mercadoria de valor, mas nós não damos condições para nossas crianças permanecerem em escola com qualidade até o fim do ensino médio, porque não as vemos como principal instrumento da criação de riqueza para o país.

Por isso, não aceitamos que o rumo está em escola de máxima qualidade para todos: não acreditamos que o Brasil pode ter uma educação das melhores do mundo, nem que seja possível no Brasil a educação ter a mesma qualidade para todos, independentemente da renda e do endereço da criança.

Temos recursos para implantar um Sistema Único de Educação de Base com qualidade. Não podemos adiar este rumo. É possível financeira e tecnicamente, também politicamente se entendermos que educação é o vetor do progresso, e moralmente, se percebermos a indecência e estupidez de não garantir que a qualidade seja a mesma para todos.

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/09/4950612-cristovam-buarque-o-rumo-esta-na-escola.html