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Bolsonaro tem reprovação de 55%, diz Ipespe
A avaliação negativa do governo Jair Bolsonaro chegou ao pior índice desde o início do mandato
Cristiane Agostine / Valor Econômico
A avaliação negativa do governo Jair Bolsonaro chegou ao pior índice desde o início do mandato e 55% consideram a gestão como ruim ou péssima, segundo pesquisa Ipespe, encomendada pela XP e divulgada ontem.
O governo Bolsonaro é visto como bom ou ótimo por 23% dos entrevistados e regular por 18%.
A desaprovação ao governo também bateu novo recorde, de 64%. Na pesquisa anterior, de agosto, era de 63%. A aprovação, que era de 29%, oscilou para 30% e 6% não responderam.
O levantamento do Ipespe mostra um quadro semelhante ao registrado pelo Datafolha entre os dias 13 e 15, com a reprovação recorde de Bolsonaro, de 53%.
Na pesquisa divulgada ontem, a maioria da população apoia o impeachment do presidente neste momento: 51% são a favor e 45% contra. Dos entrevistados, 4% não responderam.
A população tem uma confiança maior nas Forças Armadas (58%), na Igreja Católica (57%) e na imprensa (38%) do que no presidente da República (33%). A instituição com melhor avaliação é a ONU, com a confiança de 59%. Em último lugar na escala estão os partidos políticos, com apenas 9% da população declarando confiança.
O Supremo Tribunal Federal (STF), um dos alvos preferenciais dos ataques do presidente Bolsonaro, registrou uma avaliação negativa maior do que positiva. Dos entrevistados, 37% consideram a atuação dos ministros do STF como ruim ou péssima, 28% como regular e 30% como ótima ou boa, e 5% não responderam. A imagem piorou desde maio de 2019, quando 32% avaliaram como ruim ou péssima, 39% como regular e 21%, ótima ou boa.
A pesquisa foi realizada por telefone entre os dias 22 e 24 de setembro, com mil pessoas acima de 16 anos. A margem de erro é de 3,2 pontos percentuais, para mais ou para menos, com um intervalo de confiança de 95,5%.
O Ipespe questionou também os entrevistados sobre a disputa presidencial de 2022.
A um ano da eleição, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera nos dois cenários testados pelo instituto no primeiro turno, e venceria o presidente Jair Bolsonaro no segundo turno por 50% a 31%.
No primeiro turno, Lula está à frente, com folga em relação aos demais candidatos, nos dois cenários eleitorais da pesquisa. No primeiro cenário, com menos candidatos da centro-direita, o ex-presidente petista tem 43%, seguido por Bolsonaro, com 28% e pelo ex-ministro Ciro Gomes (PDT), com 11%. O governador João Doria (PSDB) tem 5%, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, (DEM), 4%, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), 2%. Votos em branco, nulo ou em nenhum dos pré-candidatos somam 7%.
No segundo cenário, mais pulverizado, Lula tem 42% e Bolsonaro, 25%. Ciro aparece com 9% e o ex-ministro Sergio Moro tem 7%. Mandetta, o apresentador Datena (PSL) e o governador Eduardo Leite (PSDB) têm 3% cada. Os senadores Simone Tebet (MDB-MS) e Rodrigo Pacheco registram 1% cada. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) não pontuou. Votos em branco, nulo ou em nenhum desses nomes somam 5% e 1% não respondeu.
Apesar de bater recorde de desaprovação de seu governo, Bolsonaro ampliou suas intenções de voto de 24% para 28%, na comparação com a pesquisa anterior, de agosto. Lula também aumentou suas intenções de voto, oscilando de 40% para 43%.
Em maio, Lula e Bolsonaro estavam empatados com 29% de intenção de voto cada. Desde então, o petista só aumentou até chegar aos 43% registrados neste mês. Bolsonaro caiu em junho e julho e só agora se recuperou na disputa do primeiro turno.
O cenário de disputa pelo segundo turno mostra que Lula tem conseguido ampliar sua diferença em relação a Bolsonaro desde maio, quando o petista tinha 42% e o presidente, 40%. O petista só aumentou e chegou agora a 50%, enquanto as intenções de voto de Bolsonaro caíram mês a mês e agora estão em 31%.
A atuação de Bolsonaro para enfrentar a pandemia é reprovada pela maioria da população e chega a 58% de ruim ou péssimo. Dos entrevistados, 22% consideram ótima ou boa e 18% regular.
A maioria da população teme o racionamento de energia nos próximos meses e 69% acreditam que “com certeza” ou “provavelmente” enfrentarão o problema.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/10/01/bolsonaro-tem-reprovacao-de-55percent-diz-ipespe.ghtml
Com Lula como favorito para derrotar Bolsonaro, o PT de fato quer o impeachment?
Partidos e movimentos predominantemente de esquerda convocaram novos protestos pelo impeachment neste sábado (02/10)
Mariana Schreiber / BBC News Brasil
Desconfianças de ambos os lados têm dificultado unificar as mobilizações em uma frente ampla contra o presidente, o que, na leitura de alguns analistas políticos, acaba reduzindo a capacidade desses atos de pressionar o Congresso Nacional — a decisão de iniciar um processo depende do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que hoje lidera uma ampla base de deputados da centro-direita avessa ao impeachment de Bolsonaro, já que tem sido beneficiada por cargos e verbas federais para seus redutos eleitorais.
Assim como o PT e movimentos historicamente ligados ao partido, a exemplo da Central Única de Trabalhadores (CUT), não aderiram aos atos de setembro, os grupos de direita que lideraram aquela mobilização, como Movimento Brasil Livre (MBL) e Livres, decidiram não ir às ruas nesse sábado.
Um dos motivos é a desconfiança de parte destes grupos sobre o real compromisso do PT com a luta pelo impeachment. Como as pesquisas de intenção de voto indicam hoje Lula como favorito para vencer a eleição de 2022 em uma disputa direta contra Bolsonaro, críticos do partido dizem de que a preferência dos petistas pode ser por manter o presidente na corrida eleitoral para evitar que outro candidato potencialmente mais agregador se cacife para chegar ao segundo turno contra Lula. Petistas refutam essas acusações.
Outra justificativa dos grupos de direita para não participar dos protestos é um suposto risco de agressão a seus apoiadores por parte de manifestantes da esquerda — a mesma preocupação foi levantada pela esquerda em relação aos grupos de direita nos atos de setembro.
"Eu não coloco o impeachment à frente da segurança de quem nos segue. E tb não acho que atos orquestrados pelo PT sejam favoráveis ao impeachment", escreveu no Twitter o líder do MBL Renan dos Santos, ao justificar a ausência do grupo nos atos desse sábado.
Pesquisa Ipespe divulgada na quinta-feira (30/09) indica que, se a eleição fosse hoje, Lula e Bolsonaro disputariam o segundo turno, sendo que o petista venceria com 50% dos votos contra 31% do atual presidente. A pesquisa ouviu mil pessoas por telefone e tem margem de erro de 3,2 pontos percentuais.
O resultado vai na mesma linha da última pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada duas semanas antes, que entrevistou 3.667 presencialmente e tem margem de erro de 2 pontos percentuais. Esse levantamento indica que, mantidas as condições atuais, o petista derrotaria Bolsonaro no segundo turno com 56% contra 31% dos votos.
Por outro lado, essas pesquisas também indicam que Lula venceria com larga vantagem outros possíveis candidatos, como João Dória (PSDB) e Ciro Gomes (PDT).
Lideranças do PT ouvidas pela BBC News Brasil refutam as acusações de que o partido não esteja empenhado pelo impeachment, embora nos bastidores há quem reconheça que a disputa contra Bolsonaro seria hoje o cenário mais confortável para Lula voltar ao Palácio do Planalto.
Parlamentares ou lideranças petistas já assinaram ao menos dez pedidos de impeachment ou aditamentos (acréscimos a pedidos anteriores), o primeiro deles apresentado em maio de 2020 pelo ex-prefeito de São Paulo e candidato presidencial derrotado em 2018 Fernando Haddad.
Ao lado do deputado Rui Falcão (PT-SP), Haddad também apresentou um mandado de segurança em julho deste ano ao Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando que a Corte obrigue Arthur Lira a apreciar os mais de cem pedidos de impeachment que aguardam sua análise. A ação ainda será julgada.
"O PT nunca tergiversou com esse assunto. Nós sempre achamos que para o Brasil é melhor o Bolsonaro sair. E nós não escolhemos adversário (para a eleição presidencial de 2022), não nos preocupamos com isso. Nosso foco é com o programa e o projeto de país que nós temos a oferecer para o Brasil", disse a presidente do partido, deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), em maio de 2020.
Ela ressalta que o PT, ao lado de PCdoB e PSOL, já participou da convocação de outros quatro atos pelo impeachment, desde março. Esses protestos têm sido liderados pela Frente Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular e a Coalizão Negra por Direitos — as três reúnem centenas de sindicatos, movimentos sociais e coletivos negros e de periferia, como Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a UNEAfro.
Gradualmente, outros partidos aderiram, como PDT, PSB, Rede e Cidadania. Todos eles estão apoiando os protestos deste sábado também, assim como Solidariedade e PV. São aguardadas ainda lideranças de PSL, MDB, PSDB, DEM e Novo, embora essas siglas não estejam institucionalmente convocando para a mobilização.
Considerando os pré-candidatos presidenciais, Ciro Gomes (PDT) confirmou que participará das manifestações no Rio de Janeiro, pela manhã, e em São Paulo, na parte da tarde.
Já Lula não deve comparecer para evitar dar uma conotação eleitoral aos atos, disse Hoffmann. Segundo ela, há também preocupação com a saúde do ex-presidente e dos manifestantes devido à pandemia de covid-19, já que sua presença poderia causar focos aglomerações.
'Bolsonaro combalido até a eleição'
Apesar da movimentação do PT pelo impeachment, dentro do partido existe uma leitura de que enfrentar Bolsonaro nas urnas tende a ser o cenário mais confortável para Lula, contou à BBC News Brasil o assessor parlamentar de um senador petista.
A compreensão interna, diz, é que o presidente terá dificuldades de se recuperar até a eleição porque as perspectivas para a economia têm piorado muito.
"Com a atual política econômica, os preços dos combustíveis não vão parar de subir, os empregos não vão voltar. A ideia é que ele chegue combalido na eleição", afirma.
Segundo esse assessor parlamentar, o partido reconhece que Bolsonaro segue tendo uma base fiel relevante, capaz de colocá-lo no segundo turno, mas "não tem apoio suficiente para vencer". Ele ressalta ainda que ninguém no PT espera que seja uma eleição fácil.
"Todo mundo sabe que Lula vai ser confrontado com muita coisa de corrupção, de cadeia (período em que ficou preso condenado em processos da Lava Jato posteriormente anulados), de governo Dilma, vão dizer que ela destruiu o Brasil. Aquele velho discurso do antipetismo vai voltar forte", afirma.
"Mas projetam que um cenário de Bolsonaro acabado, e sem se viabilizar uma terceira via, seja menos difícil para Lula articular uma grande aliança e chegar lá", acrescenta.
Por outro lado, parlamentares petistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que a campanha pelo impeachment não é contraditória com os interesses eleitorais.
"Vamos admitir que se consiga fazer o impeachment do Bolsonaro. Você acha que o PT entraria mais fraco ou mais forte o ano que vem? A liderança que mais mobiliza gente nesse país é o Lula. Então, amanhã, acontecendo o impeachment, é o Ciro que vai ser o porta voz do impeachment? Claro que não", argumenta o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP).
"Então, mesmo para quem tem o raciocínio pequeno da conveniência (eleitoral), se a gente derruba o Bolsonaro, a oposição entra muito mais forte ano que vem", disse ainda.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS) tem visão semelhante: "É uma avaliação equivocada e simplória (dizer que o PT não quer o impeachment). O PT sabe que quanto mais força existir na luta pelo impeachment, mais claro vai estar para a população que Bolsonaro não pode continuar", afirma.
Para ela, Bolsonaro continua sendo um adversário perigoso em 2022 e deve ser derrubado antes porque representa "uma ameaça à democracia".
"O PT não vai para a eleição achando que já ganhou de ninguém. Vamos ter que trabalhar muito, mesmo o Lula nesse momento sendo o favorito. Não avaliamos que Bolsonaro é o candidato mais fraco, nem que é invencível. É um candidato que, se não for totalmente desmascarado até a eleição, continua sendo o candidato mais perigoso, porque mobiliza uma turba de fanáticos, porque a direita internacional estará mobilizada pelo Brasil, porque o fascismo tem métodos que podem sempre atacar um processo democrático", disse ainda.
Críticos de Bolsonaro consideram que ele seria uma ameaça para a democracia devido a suas declarações contestando a legitimidade das eleições de 2022 sem adoção de um registro físico do voto. O presidente alega que sem esse mecanismo as eleições podem ser fraudadas, o que é contestado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na visão de adversários de Bolsonaro, o presidente pretende usar essa argumentação para não aceitar o resultado das urnas em 2022, caso não consiga se reeleger.
No feriado de 7 de setembro, ele mobilizou dezenas de milhares de apoiadores em Brasília e São Paulo para pressionar o Poder Judiciário, no que foi visto como um escalada autoritária por parte do presidente. Depois, porém, Bolsonaro divulgou uma carta recuando de seus ataques e ameaças ao STF.
Em entrevista recente à revista Veja, ele disse que não vai "melar" as eleições e elogiou o convite do TSE para que as Forças Armadas participem da uma comissão externa para fiscalizar o processo eleitoral. Bolsonaro afirmou ainda que "a chance de um golpe (de sua parte) é zero". Para ele, a oposição que quer lhe dar um golpe com o processo de impeachment. Seu argumento é que não há denúncias de corrupção que permitam cassá-lo.
Nos mais de cem pedidos de impeachment já apresentados, os denunciantes acusam o presidente de cometer crimes de responsabilidade na condução da pandemia de coronavírus (ao promover aglomerações e demorar a comprar vacinas, por exemplo), assim como por ter participado em 2020 de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), ou ao supostamente interferir em instituições de investigação, como a Polícia Federal (PF).
Pedidos recentes também defendem a cassação do presidente devido à denúncias de possível superfaturamento e corrupção envolvendo compra de vacinas no Ministério da Saúde.
Muito perto de 2022
Para o cientista político Sérgio Praça, professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, não é uma boa estratégia política para o PT apostar em um impeachment que "já é uma possibilidade tirada da mesa" por estarmos muito próximos das eleições de 2022".
"O impeachment não vai acontecer independentemente do que o PT faça. É um processo que demora, não faz sentido articular por isso hoje. Teria feito sentido antes, mas não aconteceu e agora ninguém vai lutar sério por isso. A campanha presidencial já começou", afirma Praça.
Segundo ele, os protestos contra Bolsonaro devem ir perdendo força pelo mesmo motivo.
"Na medida em que as eleições se aproximam, eles têm total irrelevância. Para que eu vou sair pra rua se daqui a pouco eu já vou votar?", afirma.
Sem frente ampla
Se esforçar por um impeachment não é a única ideia que vai ficando para trás conforme as eleições se aproximam, segundo analistas políticos.
A ideia, levantada por parte da oposição, de que seria necessário esquerda e direita se unirem em uma frente ampla contra Bolsonaro também é algo "que não tem a menor chance de acontecer", diz Praça.
Praça diz que as ameaças de Bolsonaro contra a democracia não se concretizaram até agora de forma a fazer a esquerda e direita acreditarem que há necessidade de se unir.
"A única chance de haver essa união é se o presidente tentar dar um golpe de fato, caso perca a eleição. Porque ninguém quer uma ditadura de Bolsonaro. Mas no momento está claro que ele não tem apoio estratégico para isso", afirma o professor da FGV.
Para o cientista político Claudio Couto, a vantagem de Lula nas pesquisas faz com que não faça sentido para o PT tentar uma chapa única de oposição com a direita, que também não tem interesse nisso.
"Nunca acreditei em uma frente ampla no sentido de uma chapa única com objetivo de derrubar Bolsonaro nas eleições. Para o Lula não tem sentido, estando na frente, abrir mão da sua candidatura ou do seu programa. E para os outros partidos, mesmo que uma chamada "terceira via" não se viabilize, vale mais a pena lançar sua própria candidatura do que se unir ao Lula", diz Couto.
A exceção, diz ele, são os partidos como o MBD e os partidos do centrão que não costumam mesmo ter candidatura própria para a presidência e acabam se alinhando ao governo do momento.
Couto também diz que o fato de que uma chapa única não deva acontecer não impede que nomes como Lula, Eduardo Leite ou João Dória façam uma aliança em prol da democracia caso haja um movimento de natureza autoritária, mesma hipótese apontada por Praça.
Isso seria possível, segundo ele, porque até o momento os candidatos de oposição têm jogado limpo já pré-campanha, apesar das críticas eventuais que fazem uns aos outros.
"As críticas dentro da lógica da competição democrática. Tem havido um fair play entre esses vários candidatos. Quem está com atitude muito agressiva ao PT é o Ciro Gomes, mas isso é particular dele, que tenta pegar um público de direita ao ver que perdeu espaço na esquerda", diz Couto.
*Colaborou Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58769735
Fernando Gabeira: Governo Bolsonaro, mil dias rumo ao isolamento
Dias que restam devem confirmar marcha de Bolsonaro para sua real estatura política
Fernando Gabeira / O Estado de S. Paulo
No momento em que o governo comemora mil dias e nós lamentamos a morte de 600 mil pessoas na pandemia, creio que a expressão isolamento define a trajetória de Bolsonaro.
Pode parecer inadequado falar de solidão nestes mil dias, sobretudo quando se mobiliza tanta gente como ele. Mas, se consideramos o percurso de um presidente que se elegeu com 57 milhões de votos e hoje é rejeitado pela maioria, vemos como ele perdeu terreno, o que é pior, supondo que estava avançando.
Quando Bolsonaro se elegeu, havia uma visão crítica internacional baseada nas suas declarações sobre violência e suas posições machista e homofóbica. O tempo encarregou de transformar essa desconfiança numa certeza mundial. Em primeiro lugar, as posições negacionistas na pandemia e, logo em seguida, também com grande peso, uma política devastadora no meio ambiente.
A última performance internacional de Bolsonaro serviu para transformá-lo numa espécie de líder exótico, destes que figuram apenas nas piadas de apresentadores de tevê. Ele quebrou o código de honra da ONU que previa um encontro de líderes vacinados.
Quando Bolsonaro disse que sua vida era uma desgraça, que não podia sair nas ruas para tomar um caldo de cana, já expressava de certa forma o desconforto que marca seu percurso na Presidência.
Muitos analistas afirmam que Bolsonaro fala apenas para seu público e que não se importa com a maioria. Na verdade, seu público hoje é formado pela extrema-direita e grupos de seguidores fiéis que não têm condições de avaliar criticamente sua performance. Nesse sentido, podese dizer que Bolsonaro se isolou de seus eleitores, uma vez que foi vitorioso numa eleição majoritária.
Mas existe um tipo de isolamento não estudado em detalhes, exceto por pesquisadores mais voltados para a questão militar, como o antropólogo Celso Castro, autor do livro O Espírito Militar. Trata-se de uma pesquisa entre cadetes na Academia das Agulhas Negras e revela que existe entre os militares uma tendência a dividir o País entre fardados e paisanos. Os militares mais disciplinados, idealistas, tendem a ver os paisanos como individualistas e pouco confiáveis. Bolsonaro parece ter herdado esse espírito ao determinar que os militares ocupassem o governo e escolher um grupo de oficiais de alta patente para seus assessores mais próximos.
Grande parte de sua agenda é voltada para solenidades militares, mas o principal exemplo que revela essa tendência discriminatória é seu argumento para aceitar as urnas eletrônicas.
Como se sabe, Bolsonaro afirmou várias vezes que as eleições no Brasil são fraudadas, embora tenha sido vitorioso em inúmeras proporcionais e na majoritária, para presidente, em 2018.
Ele só aceitaria eleições limpas com a presença do voto impresso e auditável – como se as urnas eletrônicas não fossem auditáveis.
Derrotado no Congresso, Bolsonaro ainda resistiu na sua campanha contra as urnas eletrônicas. Só depois de algum tempo admitiu as eleições tal como serão realizadas, mas argumentou assim: agora confio porque as Forças Armadas vão fiscalizar.
As Forças Armadas sempre conheceram o processo eleitoral, a porta nunca esteve fechada para sua fiscalização. Bolsonaro usou sua presença como uma desculpa para racionalizar o recuo.
Mas é um tipo de desculpa que merece análise, pois ela pressupõe que, para Bolsonaro, a única instituição confiável são as Forças Armadas.
Nesse simples movimento, o processo de isolamento, que já é ululante em termos internacionais, aparece com toda a clareza na dimensão nacional: ao longo de todo este período, Bolsonaro preocupou-se apenas com a aproximação com os militares e com aqueles setores da sociedade que os acham os únicos capazes de dirigir o Brasil, de preferência com um viés ditatorial.
Candidato, Bolsonaro desfrutou de uma configuração favorável, inclusive com atentado a faca, que permitiu envolver a maioria da população.
Como candidato, Bolsonaro aproxima-se rapidamente daqueles grupos que fazem manifestação em porta de quartel, usam camisa amarela e acreditam que fazem história antes da macarronada de domingo.
Com urnas eletrônicas ou voto impresso, não importa que tipo de mecanismo, uma posição como esta de Bolsonaro e seus fiéis nunca será majoritária no Brasil.
As condições de 2018 não estão mais presentes. Desde quando assumiu o governo, Bolsonaro caminha decisivamente, inclusive estimulado pelos filhos, rumo à sua posição mais autêntica, mais inequivocamente minoritária. É um líder da extrema-direita e possivelmente seguirá assim, até que a própria corrente que representa chegar à conclusão de que pode dispor de alguém melhor que ele.
Nunca é possível fazer uma previsão política com exatidão. Mas os dias que restam de governo devem confirmar esta marcha de Bolsonaro para sua verdadeira estatura política.
Ao afirmar que sua vida era uma desgraça, estava próximo de uma descrição real, pois cair em desgraça, em termos políticos, é um sinônimo de isolamento.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,mil-dias-rumo-ao-isolamento,70003856111
Maria Hermínia Tavares: Anatomia de um desastre na pós-graduação brasileira
Os meandros da crise na Capes podem ser obscuros, mas as suas causas são claras
Maria Hermínia Tavares / Folha de S. Paulo
Completados mil dias no Planalto, Jair Bolsonaro não conseguiu fazer o que mais queria: destruir a democracia. No mínimo, seu fracasso dá a esperança de que tenha perdido de vez o bonde que imaginava conduzir pela contramão da história.
Isso não apequena o desastre que seu desgoverno vem provocando com a mistura tóxica de ignorância, incompetência e má-fé. Os exemplos são muitos, nem todos visíveis a olho nu. É o caso do progressivo desmanche da Capes, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Subordinada ao Ministério da Educação, é peça central daquilo que o estudioso americano Jonathan Rauch chama “Constituição do conhecimento” —por fixar as instituições e normas da ciência.
Trata-se de um complexo sistema de criação de procedimentos compartilhados; avaliação e reconhecimento de credenciais acadêmicas; definição de agendas e distribuição de recursos; treinamento de novas gerações de profissionais da ciência.
Fundada há 70 anos, a Capes moldou a pós-graduação brasileira, estabelecendo suas regras, procedimentos de avaliação definidos pela comunidade acadêmica, incentivos na forma de bolsas de estudos e apoio a programas de formação pós-graduada. Hoje é responsável pela elaboração do Plano Nacional de Pós-Graduação e pela avaliação periódica e suporte permanente a 4.600 programas que oferecem 7.000 cursos de mestrado e doutorado em todas as áreas do conhecimento. Em parte graças à Capes, o Brasil dispõe de um respeitável sistema de produção de conhecimentos.
Nada disso, naturalmente, tem algum valor para um governo que despreza a ciência e promove o charlatanismo —vide o vexame da cloroquina. O orçamento da Capes, em queda livre desde 2016, encolheu cerca de 30% a partir de 2019.
A epidemia de mudanças no Ministério da Educação privou a agência de estabilidade e coerência na condução da reforma dos critérios da avaliação dos cursos, ora contestada na Justiça pelo Ministério Público Federal. Seu Conselho Superior, dissolvido no fim do ano passado, ainda não foi refeito. O mesmo ocorreu recentemente com o conselho que preside a avaliação (o CTC).
Mergulhada na sua pior crise, a Capes é hoje chefiada pela doutora Cláudia Toledo, formada em direito por um certo Instituto Toledo de Ensino, do qual foi reitora quando este virou Centro Universitário de Bauru. Também têm diploma Toledo de direito o ministro da Educação, Milton Ribeiro, e seu colega da Justiça, André Mendonça, que Bolsonaro quer emplacar no STF. Em suma, os meandros da crise na Capes podem ser obscuros, mas as suas causas são claras –e o resultado, desastroso para o país.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/09/anatomia-de-um-desastre-na-pos-graduacao-brasileira.shtml
Merval Pereira: Jair Bolsonaro, um governo ‘pato manco’
Acordo feito pelo presidente com o Centrão tirou-lhe o controle do Congresso
Merval Pereira / O Globo
O presidente Bolsonaro já não governa mais. Os vetos derrubados nos últimos dias o consolidam na posição de presidente mais derrotado pelo Congresso nos últimos 20 anos. Na questão dos preços da Petrobras para gasolina, óleo diesel e gás, Bolsonaro tenta há meses encontrar uma maneira de reduzir os aumentos constantes. E agora tem de enfrentar o general Silva e Luna, colocado por ele na presidência da estatal no lugar de Roberto Castello Branco justamente para estancar a alta dos preços.
O general interventor assumiu completamente a tese técnica da Petrobras e, apesar das reclamações de Bolsonaro, anunciou nos últimos dias mais aumentos, na mesma direção da diretoria anterior. A autonomia do Banco Central foi outra “derrota” do governo, embora tenha sido dele a proposta. O presidente Roberto Campos Neto, usando a liberdade que lhe deu a legislação, ficou mais à vontade para criticar a política econômica do governo. Como quando, recentemente, disse que se percebe “o aumento da incerteza do momento presente”, referindo-se à crise deflagrada pelo presidente nos atos de 7 de setembro.
O acordo feito pelo presidente Bolsonaro com o Centrão, se lhe trouxe a segurança de que os pedidos de impeachment continuarão na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira, também tirou-lhe o controle do Congresso, que passou integralmente para os partidos que formam a maioria. A base governista está disposta a superar a impopularidade crescente de Bolsonaro em ano eleitoral aprovando medidas que desarranjam o equilíbrio fiscal ou o jogo eleitoral. O valor e a abrangência do novo Bolsa Família deverão ser bem maiores do que o equilíbrio fiscal recomenda, mas os efeitos eleitorais serão grandes.
Não há ideologia predominante na derrubada de vetos, tanto quando os congressistas votam a seu favor, como no caso das federações partidárias que preservarão pequenos partidos diante da cláusula de barreiras, quanto no caso da Lei de Abuso de Autoridade, em que o Congresso recuperou medidas importantes que haviam sido cortadas pelo presidente, como “constranger presos a produzir provas contrárias a si mesmo” ou “negar acesso aos autos da investigação ou ao inquérito”.
Nos dois casos, houve ideologia por parte do presidente Bolsonaro, que vetou as federações “para derrotar os comunistas”, como explicou o deputado Eduardo Bolsonaro, e trechos da Lei de Abuso de Autoridade a pedido de policiais.
A indicação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para a vaga de Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) é outro exemplo de como Bolsonaro está enfraquecido no Congresso. Apenas um senador, Davi Alcolumbre, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, trava a sabatina há meses, fazendo campanha aberta contra o nomeado.
A tentativa é fazer com que Bolsonaro retire a indicação de Mendonça para escolher outro nome, do agrado de seu grupo político, como o procurador-geral da República, Augusto Aras — cuja sabatina Alcolumbre foi rápido em marcar —, ou o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, que, aliás, é evangélico. Ao afirmar, dias atrás, que nomearia outro evangélico se Mendonça fosse recusado, o presidente fortaleceu a esperança de que possa nomear Martins para a vaga, o que só reforçou a manobra de Alcolumbre.
Além das dificuldades normais da indicação, Martins tem uma que pode ser definitiva: teria de ser indicado e sabatinado até 7 de outubro, quando faz 65 anos, idade-limite para assumir o cargo. Alcolumbre, aliás, está sofrendo um desgaste pessoal grande por não ter nenhum motivo relevante para adiar a sabatina, apenas seu desejo pessoal.
A situação está tão confusa que um dos argumentos mais usados contra André Mendonça é que ele levará de volta ao plenário do Supremo a maioria de apoiadores da Operação Lava-Jato, pois teria boa relação com os procuradores de Curitiba. Bolsonaro, que é mais de falar que de trabalhar, tornou-se um “pato manco” em exercício, como se chama, em linguagem política, quem tem a expectativa cada vez menor de poder futuro.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/o-pato-manco.html
William Waack: Nunca foi tão bom
É com Bolsonaro que o Brasil passou a ter um governo do e para o Centrão
William Waack / O Estado de S. Paulo
Em 2005 o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (1930-2020), insistia com a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, para que ela realizasse uma promessa feita pelo presidente Lula. “O que o presidente me ofereceu foi aquela diretoria que fura poço e acha petróleo. É essa que eu quero”, foi a célebre frase de Severino, empenhado em colocar um afilhado na Petrobras.
Para os herdeiros políticos de Severino Cavalcanti o mundo melhorou muito nesses últimos 16 anos. Depois de um mensalão, uma Lava Jato, um impeachment e uma onda disruptiva (com a promessa de que tudo ia mudar), o cargo de presidente da Câmara que ele ocupou equivale hoje ao de um primeiro-ministro. Com poderes para vociferar, ao mesmo tempo, contra a Petrobras, os governadores e mantendo a faca no pescoço do presidente da República.
Foi o caso no “show” armado pelo atual presidente da Câmara, Arthur Lira, em torno da política de preços da Petrobras. Não se tratou apenas do costumeiro espetáculo eleitoreiro de políticos preocupados com o efeito corrosivo do formidável aumento dos preços de combustíveis sobre a popularidade de quem disputa votos. Foi uma manifestação eloquente de como as forças unidas do Centrão ditam hoje a agenda política, além de mandar no Orçamento.
No caso da estatal do petróleo, Lira fala por uma espécie de “consenso” de amplo espectro, nacional-desenvolvimentista/varguista/petista ou o que seja, segundo o qual empresas públicas devem refrescar a vida de consumidores, servir de “ferramentas de desenvolvimento” (não importa a definição), “garantir a soberania” nacional (outro conceito elástico) e proporcionar empregos diretos e indiretos. Só pode ser piada a promessa de Paulo Guedes de privatizar a Petrobras nos próximos dez anos.
Lira, como herdeiro de Severino, fala também por um consenso político amplo quando comemora a aprovação da reforma administrativa e da mexida no IR. Afinal, privilégios de corporações existem para serem mantidos – objetivo atingido na reforma administrativa. E renúncias fiscais para serem preservadas, missão cumprida em relação ao cipoal tributário, que ficou ainda mais intrincado, mas garantiu muitos interesses setoriais.
Seria uma injustiça, porém, designar Lira e o Centrão como “forças do atraso”. Recente levantamento das elites parlamentares feito pela consultoria Arko Advice menciona um total de 124 deputados e senadores. A maioria dessas lideranças vem do Sul e Sudeste (juntos, superam o Nordeste) e mais da sua metade está dividida entre partidos “grandes”: PT, PSD, MDB e DEM – embora seja relevante notar que outros 20 partidos ostentam integrantes nessa “elite parlamentar”.
São personalidades políticas em parte muito diversas, comandando blocos fracionados de votos em função de serem articuladores, ou detentores de cargos formais, ou representando setores, ou grupos religiosos, ou de pressão, ou tudo junto. Note-se que nessa “tipologia de liderança” não surgem categorias políticas “clássicas”, como a afiliação ideológica ou programática do integrante da elite do Congresso.
Governar com o Centrão foi imperativo para todos os presidentes até aqui, dadas as perversas características do sistema de governo brasileiro, mas é com Bolsonaro que o Brasil passou a ter um governo do e para o Centrão. Tem suas inegáveis vantagens imediatas, considerando os acontecimentos em torno do último 7 de setembro: o Centrão, ao qual bagunça é o que pouco interessa, foi uma das forças eficazes em frear a maluquice presidencial.
Visto de forma mais abrangente, porém, o governo do Centrão da era Bolsonaro é a expressão da paralisia política, da falta de projeto de país, da estagnação da produtividade, da incapacidade de se combater desigualdade e injustiça sociais. Essas forças diversas ocuparam o natural espaço deixado pela falta de lideranças políticas abrangentes e com visão. Não estão interessadas em grandes alterações, apenas em equilibrar seus interesses.
Para quem está preocupado em conseguir diretorias que furam poço, nunca foi tão bom.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nunca-foi-tao-bom,70003855076
Rosângela Bittar: Mil noites obscuras marcam governo Bolsonaro
Não se trata do que Bolsonaro fez ou deixou de fazer, mas do que simplesmente destruiu
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
A tentativa de se aplicar a régua dos mil dias para celebrações demonstrou o que se esperava. O governo Jair Bolsonaro nada tem a festejar. Não há fatos, inspiração relevante ou oscilação dos gráficos que não sejam lamentáveis.
Os historiadores, um dia, se ocuparão do legado de Bolsonaro, suas ações e omissões. Os brasileiros, hoje, se ocupam de sobreviver entre os escombros a que o País está sendo reduzido.
Bolsonaro provocou a deterioração de setores e atividades que até então resistiam ao pessimismo. A começar pela política externa, reduzida a improvisações circenses.
Sua visão reacionária caracteriza a política ambiental, renega os conceitos científicos da saúde, desestabiliza o sistema educacional e inibe as manifestações da cultura.
Não se trata do que fez ou deixou de fazer nestas áreas, mas do que simplesmente destruiu. As sucessivas trocas de ministros demonstraram a ausência de compromisso com ideias: foram dois das Relações Exteriores, dois do Meio Ambiente, quatro da Saúde, quatro da Educação, quatro da Cultura. Todos esquecíveis.
A recente declaração brasileira na 76.ª Assembleia-geral da ONU mostrou a incoerência e o primarismo da visão do mundo que o governo pratica. Bolsonaro não quer saber se a China é o maior parceiro comercial ou se a França exprime conquistas civilizatórias. Despreza o laboratório americano Pfizer tanto quanto achincalha os chineses do Sinovac. A desestabilização das relações internacionais repete-se em cada decisão. Com a mesma ignorância, sem considerar os interesses nacionais.
O caos em que transformou a política ambiental despertou, às vésperas da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em Glasgow, a reação do empresariado. Até a economia se deu conta do risco do isolacionismo e da contaminação do meio ambiente aos seus fundamentos. O governo promete um programa de desenvolvimento verde para se recuperar da imagem de destruidor, desmatador e incendiário que construiu. A conferir se ainda terá crédito.
Na Saúde, a negação da ciência acentuou o obscurantismo. Bolsonaro viveu a pandemia como quem sai a passeio. São 600 mil vidas perdidas e o presidente ironizando os que obedecem a medidas de proteção universais. Transferiu a subalternos responsabilidade de liderança que devia exercer. Agravou a doença com a charlatanice de remédios letais. Contestou as vacinas.
O presidente nem sequer imaginou a gravidade da desmontagem que promoveu no Ministério da Saúde, cortando a influência de suas equipes técnicas. Entregou a um grupo de militares, pelo maior tempo da sua milhagem, a gestão para a qual não estavam preparados. Além do amadorismo, permitiu que ali se instalasse uma rede criminosa de corrupção.
Na Educação, em que se experimentaram saudáveis propostas – no governo Fernando Henrique, com Paulo Renato, e no governo Lula, com Cristovam Buarque –, ocorreu um esvaziamento cruel. Brasileiros de todas as idades foram prejudicados na sua progressão escolar. O MEC foi reduzido a salão de treinamento dos preceitos obsoletos da indigente seita olavista, alternativa que evoluiu para o obscurantismo religioso.
A ausência do governo nas difíceis tentativas de solução para garantir a educação de todos durante a pandemia é um dos fracassos mais terríveis, com um desfecho recente inacreditável: a imposição de propaganda do governo na rede da internet que finalmente fará chegar às escolas. Professores, estudantes, famílias ficaram abandonados à própria sorte.
Na área da Cultura, deu-se a destruição moral, ética, ideológica e funcional dos órgãos culturais e a obstrução da criatividade artística. O moralismo e os sentimentos de vingança dominaram a ação dos que geriram o incentivo do governo às artes em todas as suas expressões.
Bolsonaro transformou o Brasil em um lugar inseguro para todos, notadamente para os que pensam.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,mil-noites-obscuras,70003853925
Eliane Catanhede: Desvantagem de Eduardo Leite pode se tornar virtude para 2022
O fato de ser jovem para um empreendimento tão audacioso pode ser vantajoso para viabilizar sua candidatura à Presidência em 2022
Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
O maior empenho do governador Eduardo Leite (RS) para vencer as prévias do PSDB em novembro e viabilizar sua candidatura à Presidência da República em 2022 é transformar sua grande desvantagem na sua principal vantagem: o fato de ser jovem, uma novidade e inusitado para um empreendimento tão audacioso.
Quando lhe perguntam se não é cedo para disputar a Presidência, depois de ter passado apenas pela prefeitura de Pelotas e estar no primeiro mandato no governo do Rio Grande do Sul, Leite sorri: “Bem... É mais do que o Jair Bolsonaro, a Dilma Rousseff, o Lula e o próprio Fernando Henrique tinham quando viraram presidentes”.
E não é que ele tem razão? Apesar dos 28 anos de Parlamento de Bolsonaro, de um ministério e uma secretária estadual de Dilma, da liderança política e sindical de Lula e da sólida carreira acadêmica de FHC, nenhum dos ex-presidentes teve experiência administrativa numa prefeitura ou num governo estadual, muito menos num governo relevante como o que Leite ocupa.
E a idade? Aos 36 anos, lá vem ele com outra comparação: Jacinda Ardern, a bem-sucedida primeira-ministra da Nova Zelândia, e Emmanuel Macron, presidente da França, também assumiram antes dos 40 anos. Sem contar Justin Trudeau, primeiro ministro do Canadá, que tomou posse aos 43. E deram muito certo, como frisa o governador. Seu problema, pelas pesquisas, não é a idade, mas o desconhecimento nacional. Por enquanto...
Sempre que alguém anunciava uma candidatura a posto importante, a então poderosa assessora de FHC, Ana Tavares, ironizava: “Ele (ou ela) conhece os códigos de Brasília?” Feita esta pergunta a Leite, ele responde que, depois de passar por Pelotas e pelo Palácio Piratini, em momento de pandemia, crise financeira e tantas dificuldades, está craque em negociação política.
“É fundamental fazer política para sustentar sua agenda”, diz ele, que, aliás, tem uma fórmula interessante para parlamentares aprovarem temas por vezes indigestos e impopulares: “Dar conforto para eles votarem”. Como? Negociando, participando, explicando para a população por que tal medida, ruim à primeira vista, é importante para todos.
O obstáculo mais imediato de Eduardo Leite, porém, é outro: o governador João Doria (SP), que tem o grande trunfo de ter sido pioneiro ao trazer vacinas anticovid para o Brasil e ter aplicado a primeira dose, mas também um grande entrave: alta rejeição mesmo no seu Estado.
Na avaliação da equipe de Leite, Doria teria de desfazer sua imagem para construir uma nova, o que é muito mais difícil do que simplesmente construir ou consolidar uma imagem positiva – que é o que Leite trata de fazer, circulando no PSDB, entre governadores, prefeitos e políticos de vários partidos, particularmente MDB, DEM/PSL e PSD e, claro, buscando mais exposição popular.
Com as prévias, dê Leite, dê Dória, a guerra estará só começando e não será fácil, diante da polarização entre o “fica Bolsonaro” e o “volta Lula”. Para furar essa bolha, ele já entra no jogo anunciando que não disputaria a reeleição. Por que? Quem ganhar a eleição ficará num fogo cruzado infernal entre os dois lados, a não ser que não seja ameaça para a volta deles quatro anos depois.
“Desanuvia o ambiente”, diz Leite, que tem uma característica curiosa: não é belicoso, briguento, como é da tradição dos políticos gaúchos, inclusive seus antecessores no governo estadual. Segundo ele, é uma questão de temperamento e também de racionalidade: “Não adianta ficar na paixão do debate e não resolver os problemas. O que importa é resolver os problemas.” Vamos combinar que não serão poucos, seja quem for o futuro presidente.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,desvantagem-de-eduardo-leite-pode-se-tornar-virtude-para-2022-leia-analise,70003853910
Senadores dos EUA alertam para ameaças à democracia no Brasil
Departamento de Estado deve condicionar apoio ao país à preservação da democracia, defendem parlamentares
DW Brasil
Membros da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano alertaram nesta terça-feira (29/09) que o relacionamento dos Estados Unidos com o Brasil estará em risco, caso o presidente Jair Bolsonaro desrespeite as regras democráticas nas eleições de 2022.
Eles temem que alegações infundadas de fraude eleitoral por parte de Bolsonaro possam gerar atos de violência semelhantes à invasão à sede do Congresso americano, no dia 6 de janeiro, quando centenas de apoiadores do ex-presidente Donald Trump tentaram impedir a formalização da vitória democrata nas eleições americanas.
Na carta, endereçada ao secretário de Estado, Antony Blinken, senadores do Partido Democrata afirmam que perturbação da ordem democrática no Brasil poderia colocar em risco a fundação das relações entre as duas nações mais populosas do Hemisfério Ocidental.
"Pedimos que o senhor deixe claro que os Estados Unidos apoiam as instituições democráticas do Brasil e que um rompimento antidemocrático da atual ordem constitucional terá graves consequências”, afirma o documento assinado pelo presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, Bob Menendez, juntamente com os senadores Dick Durbin, Ben Cardin e Sherrod Brown.
A preocupação dos senadores diz respeito aos questionamentos feitos pelo presidente brasileiro ao sistema de votação do país, que resultaram na tentativa frustrada de impor uma reforma eleitoral, barrada no Congresso.
Bolsonaro sinalizou em várias ocasiões que poderá, inclusive, não aceitar uma virtual derrota nas urnas no ano que vem, o que também seria uma espécie de manobra para insuflar sua base de apoio.
"Linguagem irresponsável"
"Esse tipo de linguagem irresponsável é perigosa para qualquer democracia, mas é especialmente imerecida em uma democracia de um calibre como a do Brasil, que por décadas se demostrou capaz de viabilizar transições pacíficas de poder”, afirmam os senadores. "A deterioração da democracia brasileira teria implicações no hemisfério e além.”
As preocupações dos senadores se justificam, uma vez que Bolsonaro vem se envolvendo em constantes atritos com as instituições democráticas brasileiras. Além da controvérsia envolvendo o sistema eleitoral, o presidente costuma lançar fortes ataques ao Supremo Tribunal Federal, além de ter criticado diversas vezes a atuação do Congresso.
Os senadores pediram ao secretário de Estado para tornar o apoio à democracia brasileira "uma prioridade diplomática, inclusive em discussões bilaterais relacionadas à participação do Brasil em organizações como a OCDE e a Otan".
Sem o apoio americano, o Brasil não teria chances de atingir sua ambição de se tornar membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, chamada de o "clube dos países ricos”.
O governo do presidente Joe Biden adota uma postura cautelosa e evita entrar em confronto direto com Bolsonaro. Na ocasião da Assembleia-Geral da ONU, na semana passada, Blinken se reuniu com o ministro brasileiro do Exterior, Carlos França.
Uma fonte do Departamento de Estado disse que o objetivo principal do encontro era tentar encorajar o governo brasileiro a aumentar suas ambições climáticas, antes da Conferência do Clima da ONU em novembro, em Glasgow. O Brasil é considerado um ator fundamental na defesa do meio ambiente, em meio à crescente preocupação internacional com a preservação a Amazônia e outros biomas.
A passagem de Bolsonaro por Nova York, durante a Assembleia-Geral, atraiu bastante atenção nos EUA, mas não do modo como desejavam os aliados do governo. Ele reforçou a imagem de negacionista, por ser o único líder dos países do G20 a não estar vacinado contra a covid-19, e por não utilizar máscaras em várias ocasiões.
Em seu discurso na ONU, ele criticou medidas preventivas adotadas por vários países para conter as transmissões do coronavírus, e ainda defendeu o tratamento precoce, que se baseia em medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/senadores-dos-eua-alertam-para-amea%C3%A7as-%C3%A0-democracia-no-brasil/a-59345917
Luciano Hang presta depoimento à CPI da Pandemia
Investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento a Bolsonaro durante a pandemia
Victor Fuzeira e Marcelo Montanini / Metrópoles
Com foco na ação do “gabinete paralelo”, a CPI da Covid-19 ouve, na manhã desta quarta-feira (29/9), o empresário Luciano Hang. As investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19.
A ida de Hang ao colegiado também faz parte do esforço concentrado dos senadores para apurar irregularidades que envolvem a operadora de saúde Prevent Senior.
Hang chegou ao Senado pouco depois das 10h e falou com a imprensa. Ele afirmou que, ao contrário de outros depoentes, chega ao colegiado sem um habeas corpus que lhe concede o direito de não responder perguntas durante a oitiva.
“Hoje aqui estou sozinho, como um brasileiro normal, um comerciante. Tenho a certeza que estou com Deus e com milhões de brasileiros que querem um Brasil melhor e é por isso que eu luto”, disse.
Aliado de Bolsonaro, o empresário, que assumiu a alcunha de Veio da Havan dada por críticos, é suspeito de ter financiado a disseminação de fake news em blogs bolsonaristas e o grupo de consultores informais do presidente Jair Bolsonaro.
Outra situação que envolve Hang e a operadora de saúde é o caso da possível alteração na certidão de óbito da mãe dele, Regina Hang, supostamente a pedido do próprio empresário. A advogada Bruna Morato, que representa ex-médicos da Prevent Senior, confirmou, nessa terça-feira (28/9), em depoimento à CPI, que a mãe do empresário usou medicamentos sem comprovação de eficácia para a Covid-19 e teve a certidão de óbito alterada.
Profissionais de saúde da Prevent Senior, representados por Bruna Morato, elaboraram um dossiê entregue à comissão com denúncias de uso indiscriminado, nos hospitais da empresa, de medicamentos sem comprovação de eficácia para o tratamento da Covid-19 e coação de médicos para adotarem esse protocolo.
Outra acusação que pesa sobre a empresa é a de alterar atestados de óbitos para ocultar morte de pacientes por Covid-19, com orientação para os médicos mudarem os prontuários.
Às vésperas do depoimento, o empresário divulgou vídeo, nas redes sociais, algemado, provocando a comissão. Hang disse que vai depor com “o coração aberto”. “Se não aceitarem o que vou falar, já comprei uma algema para não gastarem dinheiro. Vou entregar uma chave para cada senador. E que me prendam”, ironizou.
Há uma expectativa de depoimento tenso. Contudo, o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), contemporizou: “Ele é um depoente como qualquer outro e nós já tivemos um triste espetáculo de depoente que se utilizou das prerrogativas de parlamentar, que é o caso do deputado Ricardo Barros [líder do governo Bolsonaro na Câmara], para tentar tumultuar, [mas] o senhor Hang não tem imunidade parlamentar. Então, eu espero que ele se comporte conforme reza o Código de Processo Penal”, afirmou o parlamentar.
“As algemas, a mim não me incomodaram. Se ele está tão obcecado pelo uso assim, é uma escolha dele”, alfinetou.
Fake news
Além do “gabinete paralelo” e da Prevent Senior, outro assunto que os senadores querem apurar é a disseminação de fake news relativas à pandemia, e Hang é um dos alvos. Documentos obtidos pela CPI, e divulgados pela TV Globo na semana passada, relevam que o empresário teria financiado o blogueiro Allan dos Santos por intermédio do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro.
Allan dos Santos é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos inquéritos que apuram disseminação de fake news e atos antidemocráticos.
Seguindo a linha de investigação sobre a disseminação de fake news e a ligação com o governo federal, a comissão ouvirá outro empresário bolsonarista, Otávio Fakhoury, que é vice-presidente do Instituto Força Brasil. Ele também é investigado pelo STF no inquérito das fake news.
Assista:
Fonte: Metrópoles / Agência Senado
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/cpi-da-covid-luciano-hang-depoimento
Rubens Barbosa: Os novos desafios globais e o Itamaraty
Nos últimos anos o País não soube interpretar, segundo seus interesses, o sentido das mudanças
Rubens Barbosa / O Estado de S. Paulo
O discurso do presidente Bolsonaro na ONU recoloca em pauta a função e as atribuições do Itamaraty. A competência e o conselho informado para responder aos desafios que o Brasil está enfrentando foram deixados de lado. O Ministério das Relações Exteriores (MRE) perdeu o lugar que sempre teve como principal auxiliar do presidente na formulação e execução da política externa e de efetivo coordenador dos temas de interesse do Brasil na área externa.
O mundo atravessa um momento de grandes transformações nas áreas política, econômica e social. A geopolítica e a geoeconomia, que foram se modificando na última década, vão passar por uma série de ajustes com a saída dos EUA do Afeganistão. Qual o lugar dos EUA no mundo? Como a China, a nova superpotência comercial, tecnológica e militar, evoluirá? Como se desenvolverá o novo polo dinâmico de crescimento econômico e de comércio exterior? Qual o impacto dos rápidos avanços tecnológicos (5G e Inteligência Artificial)? Como a preocupação global sobre meio ambiente e mudança de clima será traduzida em medidas comerciais restritivas? Como o acirramento da competição global entre China e EUA pela hegemonia política no século 21 afetará os países? Qual o efeito sobre a globalização do reordenamento produtivo, das cadeias de produção, protecionismo, autonomia soberana, revolução energética, crise no multilateralismo? Como a regionalização afetará a geopolítica e a geoeconomia global (fortalecimento das potências regionais e dos acordos regionais)? Qual o futuro papel da América do Sul – continuará na periferia? Quais os riscos criados pelas novas ameaças (terrorismo, ataques cibernéticos, guerra no espaço)?
O Brasil, nos últimos dois anos, não soube interpretar corretamente, segundo seus interesses, o sentido dessas mudanças. Qual será o lugar do Brasil neste mundo que emerge? Como
as grandes transformações econômica, comerciais, tecnológicas e geopolíticas e geoeconômicas poderão afetar o interesse nacional? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deverá reagir com a ampliação da confrontação entre China e EUA? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação às negociações em fóruns multilaterais (o Brasil assume em 2023 lugar no Conselho de Segurança da ONU)? Como implementar os objetivos estratégicos e os interesses do Brasil nas áreas onde pretende ter influência, como América do Sul, Antártica e o Oceano Atlântico até a costa ocidental da África, como definido na Política Nacional de Defesa (quais as implicações militares e políticas do oferecimento de parceria global com a Otan)?
Nossos interesses imediatos do ponto de vista da projeção externa incluem, em especial, a mudança da percepção externa negativa sobre o País, a volta do protagonismo nas negociações sobre meio ambiente e mudança de clima, com uma nova política em relação à proteção da Amazônia, a definição de uma política proativa para a América do Sul, o aperfeiçoamento da inteligência e da promoção no comércio exterior, a reativação da participação do Brasil nos organismos multilaterais (políticos e econômicocomerciais) e posição equidistante no confronto Eua-china, definindo, em cada caso, o interesse nacional acima de considerações ideológicas ou geopolíticas).
O Itamaraty – instituição de Estado, dedicada ao serviço dos interesses permanentes do País – terá de adequar a política externa aos novos desafios internos e externos com dinamismo e inovação. Para operar neste novo cenário, o Itamaraty precisa mais uma vez se renovar, pois nos últimos dois anos deixou de gozar da unanimidade nacional, em razão de interferências indevidas em seu trabalho analítico e em seus processos decisórios. Internamente, terá de promover uma reforma estrutural para corrigir as distorções das mudanças ocorridas em 2019 e fortalecer com pessoal os departamentos e secretarias em Brasília e as embaixadas, onde se concentrarão muitos dos interesses comerciais brasileiros, como a Ásia, o Sudeste da Ásia, a América do Sul e os Brics. A nova gestão à frente do MRE – que busca restabelecer a normalidade e as prioridades nas atividades da Casa – formalizou na presidência da Asean o interesse do Brasil em tornar-se parceiro de diálogo setorial desta associação asiática, em razão do grande interesse comercial para o agronegócio nacional. A criação de mais postos no exterior deveria estar subordinada a essas prioridades.
Os desafios que o Brasil terá de enfrentar nos próximos anos forçarão uma mudança de atitude dos funcionários diplomáticos e do governo como um todo para atender às demandas dos novos tempos. A presença mais ativa e visível do Itamaraty será importante para a recuperação de seu papel de coordenação nas matérias relacionadas com a área externa. Será imperativo dialogar com a academia e a sociedade civil em geral, e, em especial, abandonar posturas defensivas e tendências partidárias e ideológicas que contribuíram para a perda de sua influência e para o isolamento do Brasil num mundo em crescente transformação.
A reconstrução do Itamaraty e da política externa deveria ser uma das prioridades para um novo governo em janeiro de 2023.
*Membro da Academia Paulista de Letras, é presidente do IRICE
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,os-novos-desafios-globais-e-o-itamaraty,70003852533
Merval Pereira: Dilemas legais e bom mocismo de Bolsonaro
Presidente da CPI, senador Omar Aziz, acha que o procurador-geral da República não pode simplesmente “matar no peito” e não agir
Merval Pereira / O Globo
O bom-mocismo do presidente Jair Bolsonaro tem a ver, sobretudo, com a proximidade do julgamento de alguns dos processos que podem atingi-lo e do encerramento da CPI da Covid, que discute internamente como encaminhar o relatório final de maneira que tenha consequências práticas. Há questões técnicas que podem obrigar a CPI a fazer dois ou três relatórios, cada um endereçado a um órgão próprio, como sugere o professor e jurista Aurélio Wander Bastos, que alertou a comissão de que não cabe ao Ministério Público Federal dar seguimento a acusações de crime de responsabilidade.
O presidente da CPI, senador Omar Aziz, acha que o procurador-geral da República, Augusto Aras, não pode simplesmente “matar no peito” e não dar seguimento ao relatório, mas a legislação pode ajudá-lo a não acusar o presidente da República, como temem os membros da CPI. A Constituição brasileira, ao definir as competências da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), estabelece que ela tem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, devendo suas conclusões, se for o caso, ser encaminhadas ao Ministério Público para que promova a responsabilidade civil ou criminal.
Ocorre, porém, como lembra Wander Bastos, que não cabe ao procurador-geral da República denunciar junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) crime de responsabilidade do presidente da República, como também, por força da Constituição, fazer a denúncia desse, ou de qualquer outro crime, junto à Câmara dos Deputados ou ao Senado Federal.
Ao Supremo, cabe apenas processar e julgar, nas infrações penais comuns, os crimes do presidente da República. Esse é, diz Wander Bastos, o dilema colocado para a CPI, porque, encaminhadas as conclusões ao Ministério Público, a Constituição não esclarece o destino dos crimes de responsabilidade apurados.
A denúncia da Procuradoria-Geral da República, nos casos de crime de responsabilidade do presidente da República, deveria ser enviada ao STF, mas a Constituição não prevê explicitamente a competência do Supremo para julgar crime de responsabilidade do presidente, admitindo apenas para julgamento seus crimes comuns.
A Constituição, ressalta Wander Bastos, também não reconhece a competência do Senado para julgar crimes de responsabilidade do presidente da República, até porque a acusação não terá sido admitida por dois terços da Câmara dos Deputados, como requer o texto constitucional. Wander Bastos analisa que a CPI está efetivamente diante de uma dificuldade legal, tendo em vista que a Lei de Impeachment fala em denúncia de crime de responsabilidade enquanto direito do cidadão, mas a Constituição não abre essa competência para comissões ou órgãos de direito coletivo, exceto se a denúncia na Câmara dos Deputados for promovida por cidadão presidente de órgão ou comissão. A denúncia teria de ser individualizada no senador Omar Aziz, presidente da CPI.
Por isso, o jurista Wander Bastos sugere que seja feito um relatório específico para o caso de crime de responsabilidade do presidente da República e outros dois, um sobre crimes comuns, que poderiam ser julgados pelo STF, e outro sobre crimes contra os direitos humanos. Em outra ponta, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está disposto a julgar em outubro a chapa Bolsonaro-Mourão no processo que se refere aos disparos em massa pelo WhatsApp na campanha eleitoral de 2018.
Com as provas conexas do processo das fake news que corre no STF, a acusação será muito contundente. Não há, porém, expectativa de que o TSE casse a chapa. Todos os julgamentos de políticos e presidentes da República, assim como o impeachment, são políticos. Caso Bolsonaro se contenha até lá, não haverá clima político para que a chapa seja impugnada, nem para que fique inelegível. As revelações que sairão do julgamento, mesmo que o resultado final não seja a cassação, serão muito significativas da maneira como ele governa e de como chegou ao poder. E, politicamente, será muito ruim para ele.
Fonte: O Globo