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Projeto de anistia do PL é a antessala de uma crise institucional

 Débora do batom serve de biombo para o objetivo de anistiar os oito acusados de liderarem a tentativa de golpe de estado, entre os quais Bolsonaro, três generais e um almirante

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

O líder do PL, deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), protocolou na Câmara dos Deputados o pedido de urgência para o projeto de lei que anistia os presos pelo 8 de Janeiro de 2023. O documento, com 264 assinaturas, foi enviado à Mesa na tarde desta segunda-feira. A decisão de protocolar a proposta foi antecipada para pôr uma saia-justa no presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), e constranger parlamentares que haviam assinado o texto e pretendiam retirar seus nomes, após analisar o teor constitucional da proposta.

A eventual aprovação deste projeto deixaria o país à beira de uma crise institucional. O Congresso não é uma instância revisora das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). É disso que se trata, pois as sentenças que estão sendo adotadas contra os envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro estão dentro dos limites estabelecidos pela legislação penal. A discussão sobre os rigores da dosimetria das punições está se dando no âmbito da própria Corte. É o caso, por exemplo, do julgamento da cabeleireira Débora Rodrigues Santos, que ficou conhecida por pichar com um batom a estátua da Justiça, em frente ao STF.

Ela se tornou uma espécie de símbolo da proposta de anistia, principalmente, após o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pedir sua condenação a 14 anos de prisão. A pena está dentro dos limites previstos na lei, porém, Débora não passaria todo esse tempo encarcerada. Mesmo que venha a ser condenada, por ter permanecido em prisão preventiva por mais de dois anos, terá direito à progressão da pena e ficará em prisão semiaberta ou domiciliar no prazo de um a dois anos.

Além disso, o julgamento foi suspenso pelo ministro Luiz Fux, que pediu vista (mais tempo de análise) do processo e anunciou que pretende examinar cuidadosamente a dosimetria da pena que está sendo proposta. O mesmo tipo de questionamento o magistrado reiterou durante o julgamento de admissibilidade da denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, em contraponto à posição de Moraes.

Na verdade, o caso de Débora serve de biombo para a proposta de anistia para os oito acusados de liderarem a tentativa de golpe, entre os quais Bolsonaro, três generais do Exército e um almirante de esquadra. Nesta segunda-feira, o ministro aposentado do STF Celso de Mello, emérito constitucionalista, foi às redes sociais para tratar do caso, por meio de mensagem intitulada “O caso do batom da golpista”, na qual afirma que é “totalmente falaciosa a afirmação de que a punição se deveu unicamente ao fato da ré haver passado batom em uma estátua”.

Mello enfatiza o rol de crimes cometidos por Débora, entre eles, o de golpe de Estado. “Não, a pichação, no caso, foi apenas um dos inúmeros elementos das múltiplas imputações penais formuladas contra referida condenada”, descreve o ministro sobre a soma das penas. “É sempre importante relembrar que não há perdão para quem atenta contra o regime democrático”, completou.

Maioria é contra

Uma pesquisa divulgada pela Genial/Quaest no fim de semana revelou que 56% dos entrevistados são a favor dos presos seguirem detidos por mais tempo e que devem cumprir suas penas. Por outro lado, 34% são favoráveis à soltura. Dentro do percentual dos que defendem a liberdade, 18% acreditam que os presos devem ser soltos porque nem deveriam ter sido detidos, enquanto outros 16% acham que as prisões já duraram tempo demais. Outros 10% não sabem ou não quiseram responder ao tema.

O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, disse que deu entrada no requerimento devido às notícias recebidas de que o governo estava pressionando os deputados para retirar assinaturas: “Mudei a estratégia e agora está protocolado o documento, é público todos que assinaram”, disse em nota. O êxito do deputado tem muito a ver com o engajamento pessoal de Bolsonaro, antes de ser hospitalizado.

O ex-presidente está internado no Hospital DF Star, onde foi operado de emergência, após sentir-se mal em Natal (RN). A cirurgia abdominal foi bem-sucedida, mas durou 12 horas devido à complexidade do caso. Jair Bolsonaro passa bem, porém não tem previsão de alta. Foi a sétima operação que sofreu em consequência da facada que levou na barriga, durante a campanha eleitoral de 2018.

Os governadores de oposição ao governo, que pressionaram suas respectivas bancadas, entre os quais Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, foram decisivos para alcançar as assinaturas, além do lobby concentrado dos parlamentares bolsonaristas e dos ligados ao agronegócio, aos evangélicos e à chamada “bancada da bala”. Esse poder de pressão focado nos deputados, isoladamente, é muito mais eficiente e forte do que o sentimento difuso da opinião pública contra a anistia.

Mesmo com o pedido de urgência apresentado, no entanto, a votação dependerá do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que tem se mostrado resistente à ideia de colocar o tema em pauta. O protocolo, na avaliação de Sóstenes, dificulta desistências dos signatários. O PL, que tem 92 deputados, foi a sigla com mais adesões: 90. Em seguida, estão o União Brasil (40); o PP (35); o Republicanos (28); o PSD (23) e o MDB (20). Assinaram, ainda, deputados do Avante, Cidadania, Novo, Podemos, PRD e PSDB. Desses, União Brasil, PP, Republicanos, PSD e MDB têm ministros no governo Lula.


Radicalização aumenta e pode paralisar as votações da Câmara

O catalisador de um grande confronto é a cassação do deputado Glauber Braga (PSol-RJ), aprovada pelo Conselho de Ética. O parlamentar resolveu fazer greve de fome

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, está tendo crescentes dificuldades para manter sua agenda, inclusive a pauta prioritária que anunciou no decorrer desta semana: a Proposta de Emenda Constitucional da Segurança Pública. Segundo ele, há uma convergência entre as lideranças de partidos para dar urgência aos debates sobre o tema. Entretanto, as articulações para aprovação de uma anistia aos condenados pelo envolvimento na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 prosseguem, e o clima de radicalização na Casa pode esquentar ainda mais devido à aprovação do pedido de cassação do deputado Glauber Braga (PSol-RJ) pelo Conselho de Ética da Câmara.

Desde quando recebeu o novo projeto da PEC da Segurança Pública, na terça-feira, das mãos dos ministros da Justiça, Ricardo Lewandowski, e da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, Motta vem reiterando que sua prioridade é a questão da violência e do combate à criminalidade. “Daremos total prioridade para a discussão desse texto. Vamos analisar e propor as mudanças necessárias o quanto antes, porque o Brasil tem pressa para avançar com essa pauta”, garantiu.

O problema, porém, é que a bancada do PL está mobilizada para outra agenda: a anistia dos golpistas. Segundo o líder do partido, Sóstenes Cavalcante (RJ), a oposição já está perto de conseguir as 257 assinaturas para fazer o texto tramitar. “Estamos apostando no diálogo com os colegas parlamentares, que vêm se sensibilizando com essa pauta de justiça, de humanidade e de pacificação nacional”, disse Sóstenes em seu perfil no X. Como a agenda da segurança é uma prioridade para a chamada “bancada da bala”, o PL suspendeu a obstrução que fazia em plenário.

Entretanto, o voto dissidente do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira, para absolver todos os 17 réus denunciados por envolvimento nos atos antidemocráticos realizados na capital federal levou água para o moinho dos articuladores da anistia. Indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para a Corte, no julgamento, Mendonça divergiu do voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, que foi seguido pelos ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino e Dias Toffoli. O ministro Nunes Marques acompanhou o voto de Mendonça.

Para Mendonça, o nível de evidência probatória exigida para a condenação difere daquele para “simples recebimento da denúncia” e, no caso dos réus que estão sendo julgados, “não foi atingido”. O ministro votou por absolver os envolvidos de todas as acusações formuladas nas ações em julgamento. Em seu voto, Alexandre de Moraes condenou os acusados a 1 ano de reclusão com prestação de serviços à comunidade e realização de curso sobre Estado e democracia; também proíbe o uso de redes sociais, determina multa, suspende o passaporte e revoga o pedido ou porte de arma dos réus.

Greve de fome

Mas o fato que pode ser o catalisador de um grande confronto na Câmara é a cassação do deputado Glauber Braga, aprovada pelo Conselho de Ética. Em protesto, o parlamentar do PSol resolveu fazer uma greve de fome, que já dura três dias e pode se estender até a próxima semana. Na terça-feira, quando a maioria dos deputados estará de volta a Brasília, Glauber estará completando uma semana de jejum alimentar, uma situação de risco.

Leia ainda: Sob ameaça de cassação, deputado Glauber Braga anuncia greve de fome

O Conselho de Ética aprovou a cassação do mandato na quarta-feira, por 13 votos a 5. A acusação, motivada por uma representação do Partido Novo, refere-se a um incidente ocorrido em abril de 2024, quando Braga teria expulsado, com empurrões e chutes, o integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) Gabriel Costenaro, que participava de uma manifestação na Câmara. O deputado afirma que a iniciativa é uma perseguição política.

O processo ainda permite recurso à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, posteriormente, será submetido ao plenário da Casa. Na comissão, Glauber pode ter alguma chance. Seu novo presidente é o deputado Paulo Azi (União-BA), eleito com 54 votos. Houve apenas um voto em branco. Ao assumir a presidência, Azi anunciou que dará atenção especial às propostas do Poder Executivo, “que tem a obrigação de implantar e propor políticas públicas para as quais foi eleito”. É uma sinalização de que o pedido de cassação de Glauber pode ir para a geladeira.

Não é a primeira vez que deputados realizam greves de fome na Câmara. Em junho de 2010, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) realizou uma greve de fome em protesto contra a decisão do diretório nacional do PT de apoiar a candidatura de Roseana Sarney (PMDB) ao governo do Maranhão. Durante o protesto, ele permaneceu no plenário da Câmara.

Outro caso ocorreu em 2009, quando o ex-deputado José Edmar realizou uma greve de fome em defesa do imposto único. À época, ele era filiado ao PR e utilizou o protesto para chamar atenção para sua proposta tributária. O ex-deputado João Correia (PMDB-AC) também recorreu à greve de fome em 2010, após ser acusado de envolvimento no escândalo dos “sanguessugas”. Foi inocentado pela Conselho de Ética da Câmara.

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Desaprovação do governo Lula está perto do não retorno

 A superexposição de Lula por meio de entrevistas e eventos não neutralizou a percepção negativa que a população tem da economia. A causa é a inflação

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Por onde quer que se olhe, o apoio da população ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva continua em queda livre. Apesar de o governo adotar medidas com o propósito de melhorar a própria imagem, como o empréstimo consignado para assalariados, a bolsa de estudos Pé-de-Meia para jovens adolescentes de baixa renda e a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até cinco salários-mínimos, Lula não consegue estancar a sua queda nas pesquisas.

A Pesquisa Genial/Quaest, divulgada nesta quarta-feira, mostra que a desaprovação do governo Lula subiu de 49% para 56% entre 25 de janeiro e 25 de março, enquanto a aprovação caiu de 47% para 41%. Os números são brutos. O esforço de marketing realizado pelo ministro Sidônio Palmeira (Comunicação Social) até agora não surtiu efeito. A tese de que o problema do governo era sobretudo não se comunicar com a sociedade está sendo posta em xeque pelas pesquisas.

Parece o caso da velha máxima do gerenciamento estratégico: quando um projeto está dando errado, se as mesmas coisas continuarem a ser feitas, continuará dando errado. A quase universalidade dos números negativos reflete um mal-estar generalizado da sociedade com o governo federal.

A queda na aprovação ocorre em todas as regiões do país. No Nordeste, principal reduto eleitoral de Lula, a vantagem que era de 35 pontos percentuais (pp) caiu para 6 pontos entre dezembro e março, e a desaprovação subiu para 23 pp maior que a aprovação. No Sul, a diferença é de 30 pp. Entre as mulheres, é a primeira vez que a desaprovação chega a 53% e supera a aprovação, que está em 43%.

Sem o apoio maciço do Nordeste, da maioria das mulheres e dos brasileiros de baixa renda, o projeto de reeleição do Lula estará irremediavelmente comprometido. A aprovação está em 34% para quem tem renda familiar de mais de 5 salários-mínimos, em 36% para quem tem renda de 2 a 5 SM e chegou a 52% para quem tem renda de até 2 salários. A vantagem estratégica de Lula entre os eleitores de até 2 SM já foi de 43 pp em julho de 2024; agora, está em apenas 7 pp.

A desaprovação ao governo Lula chegou a 26% entre os seus próprios eleitores, ou seja, 25% de sua base de apoio. Isso significa um deslocamento muito além daqueles que votaram em Lula no segundo turno para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. Esse percentual abarca muitos que votaram em Lula no primeiro turno, o que é ainda mais preocupante para o Palácio do Planalto. O nome disso é frustração de expectativas.

Força de inércia

Com esses resultados, é o caso de Lula ir para o divã e avaliar a sustentabilidade de seu projeto de reeleição. É preciso encontrar as causas profundas desse descontentamento, que não está sendo revertido por medidas que o governo julgava capazes de alavancar a sua popularidade. O alcance dos projetos não atingiu a escala que se esperava.

O programa Pé-de-Meia, por exemplo, além das dificuldades de controle sobre a sua execução nos municípios, para que realmente chegue aos que devem ser beneficiados, exibe um aspecto que precisa ser mais bem avaliado pelo governo: ninguém vai convencer os pais dos alunos que não recebem a bolsa de que seus filhos não têm igualmente esse direito, se estudam na mesma escola pública do jovem com Pé-de-Meia.

O crédito consignado, o empréstimo do Lula, é um indiscutível sucesso de bilheteria: até 24 de março de 2025, mais de 5 milhões de assalariados haviam solicitado o consignado CLT, totalizando mais de R$ 50 bilhões. Entretanto, a maioria pega o empréstimo para quitar ou renegociar dívidas com os bancos e operadoras de cartão de crédito. Ou seja, o programa é bem-vindo, mas não impacta de imediato o custo de vida.

Até agora, a proposta de isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil também não surtiu o efeito esperado; como só valerá para o próximo ano, pode ser que ainda traga resultados efetivamente positivos no futuro. A maioria da população tem a percepção de que a economia piorou e o governo caminha na direção errada: são 56% em ambos os quesitos.

A superexposição de Lula por meio de entrevistas e eventos foi alicerçada nesses programas, porém não neutralizou essa percepção negativa que a população tem da economia. A causa principal é a inflação, sobretudo o preço dos alimentos nos supermercados e dos combustíveis nos postos de gasolina. Lula subestima a inflação como fez no Plano Real, em 1994, quando estava na oposição e combatia o ajuste fiscal.

O poder de compra da população decaiu nesses dois quesitos, apesar da redução do desemprego e do aumento da renda média. Isso poderia ser compensado pelos programas sociais do governo, porém, 67% da população de baixa renda identifica esses programas como direito adquirido. É o caso do Bolsa Família.

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Brasil não deve despertar velhos ressentimentos dos paraguaios

 Funcionário da Abin revela que a agência fez invasões de hacker a sistemas do Congresso, da Presidência e de autoridades do Paraguai envolvidas nas negociações de Itaipu

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Segundo volume da coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva, Xadrez, Truco e Outras Guerras, do escritor José Roberto Torero, é inspirado na Guerra do Paraguai (1865-1870), o maior conflito armado em que o Brasil esteve envolvido no continente. Os demais livros, sem spoiler, são Mal Secreto, de Zuenir Ventura (Inveja); O Clube dos Anjos, de Luís Fernando Verissimo (Gula); A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro (Luxúria); Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll (Preguiça); Terapia, de Ariel Dorfman (Avareza); e Voo da Rainha, de Tomás Eloy Martínez (Soberba).

O livro de Torero é uma sátira meio macabra envolvendo pessoas em conflitos durante a Guerra do Paraguai. Seu pecado capital é a ira. O livro narra de forma ficcional a implacável perseguição ao Mariscal (marechal) Francisco Solano López, o ditador do Paraguai, de mando do príncipe francês Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, capitão de cavalaria na Guerra Hispano-Marroquina e comandante-chefe do exército imperial na Guerra do Paraguai, casado com a Princesa Isabel, a herdeira do trono brasileiro. O trauma dessa guerra até hoje alimenta ressentimentos dos paraguaios. Morreram 90% dos homens acima de 20 anos do Paraguai.

Nesta terça-feira, o governo do Paraguai convocou o embaixador do Brasil no país, José Antônio Marcondes, para cobrar explicações sobre o suposto monitoramento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a sistemas do governo paraguaio. Em depoimento à Polícia Federal, um funcionário da Abin informou que a atual gestão da agência teria mantido operações de invasão hacker a sistemas do governo do Paraguai e de autoridades envolvidas nas negociações da usina de Itaipu.

A denúncia é mais uma dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois o governo está em fase de negociações com o Paraguai sobre o Anexo C do acordo de construção da usina de Itaipu, que define as condições de comercialização da energia gerada. O chanceler do Paraguai, Rubén Ramírez, afirmou que as autoridades do país classificam o tema como “delicado” e disseram que o Brasil precisa explicar qual foi o resultado da interferência. O ministro de Indústria e Comércio, Javier Giménez García de Zúñiga, que negocia o acordo, afirmou que os debates sobre o tema estão suspensos até que a questão seja esclarecida.

A Polícia Federal investiga o vazamento de informações no âmbito do inquérito sobre a chamada “Abin paralela”, que teria utilizado ferramentas e serviços da agência para a prática de ações ilícitas. No depoimento, o funcionário da Abin afirmou que a atual gestão da agência manteve operações de invasão hacker a sistemas governamentais do país vizinho, inclusive do Congresso, da Presidência da República e de autoridades envolvidas nas negociações da usina de Itaipu.

A ação foi iniciada ainda no governo Jair Bolsonaro, mas continuou durante o governo Lula, com suposta autorização expressa do atual diretor da Abin, Luiz Fernando Corrêa. Teria como objetivo obter dados sigilosos sobre valores em negociação no Anexo C do Tratado de Itaipu. Uma tremenda trapalhada.

O massacre

Solano López morreu na Batalha de Cerro Corá ou Aquidabanigui, a última da guerra, a 454km ao nordeste de Assunção. Os paraguaios tinham sido derrotados na Batalha de Campo Grande (16 de agosto de 1869), pelas tropas imperiais. O exército paraguaio estava, desde então, reduzido a uns 400 ou 500 combatentes, sobretudo velhos, adolescentes e crianças, famintos, esfarrapados e mal armados.

Em 26 de fevereiro de 1870, o general brasileiro José Antônio Correia da Câmara, no comando de mais de 2 mil homens bem armados e bem alimentados, seguiu em direção ao acampamento paraguaio de Cerro Corá. Na manhã de 1º de março, uma terça-feira, as forças imperiais atacaram em duas frentes. Em 15 minutos, a linha de resistência sucumbiu. Juan Francisco, o Panchito, filho de Solano López, de 15 anos, lutou de sabre na mão, até ser fulminado por tiro.

O presidente paraguaio fugiu a cavalo, acompanhado de três oficiais. A versão oficial conta que López acabou cercado por dois soldados e resistiu, empunhando seu espadim de cerimônia, sendo revidado com um golpe na cabeça. O cabo José Francisco Lacerda, de 22 anos, conhecido como Chico Diabo, transpassou López com a lança, de baixo para cima, atingindo a virilha direita e alcançando as entranhas. O que aconteceu depois tem várias versões, todas tendo o general Correia da Câmara no comando.

López morreu em combate ou foi executado? A hipótese de execução é corroborada pela profanação do seu cadáver, que teve sua orelha esquerda cortada, os dentes quebrados a coronhadas de fuzis, um dedo arrancado e um pedaço do couro cabeludo escalpelado, tudo seguido de um massacre da população civil. Somente em 4 de março, o Conde d’Eu foi informado da morte de Solano López; estava longe dos combates, a bordo de um navio.

A espada do López foi enviada por Correia da Câmara ao imperador D. Pedro II. O general presenteou o visconde de Rio Branco com a condecoração que López portava e ficou com o relógio do Mariscal, que a seguir doaria a um museu. Chico Diabo, o matador de López, tomou para si a faca de prata e ouro, com as iniciais FL (Francisco López).

O canhão “El Cristiano” (o cristão, em português), com 12 toneladas, que está exposto no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, foi feito com o metal dos sinos das igrejas de Assunção, onde ajudou a conter o avanço das tropas brasileiras por dois anos. Até hoje o Paraguai espera sua prometida devolução.

Fonte | Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo


Fernando Santa Cruz | Foto: CEPE / Divulgação

Nas Entrelinhas: Recordações da distensão — o estudante desaparecido

Faculdade de Direito de Niterói concedeu o título de bacharel a Fernando Santa Cruz. E propôs ao Conselho Universitário que lhe agracie com o título de Doutor Honoris Causa

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Eleito deputado federal pelo antigo estado da Guanabara, em 1970 e 1974, o jurista e político carioca Célio Borja passou a representar o novo estado do Rio de Janeiro a partir de 15 de março de 1975, após a fusão dos dois, por força de lei sancionada no governo Ernesto Geisel, cujo objetivo era reequilibrar a balança geopolítica do país com São Paulo. No projeto nacional-desenvolvimentista do então presidente Geisel, o Rio de Janeiro seria a capital do setor produtivo estatal, pois abrigava a sede das mais importantes empresas públicas do país — entre as quais a Petrobras, a então Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Embratel, o BNDE (não tinha o S) e o BNH (antigo Banco Nacional de Habitação).

Enquanto o ministro do Planejamento da época, João Paulo dos Reis Veloso, articulava o tripé do ambicioso II Plano Nacional Desenvolvimento de Geisel — setor estatal, empresários brasileiros e multinacionais —, caberia a Borja liderar a bancada da Arena na Câmara Federal e dar continuidade ao projeto de “distensão lenta, gradual e segura” — que havia sido abalado pela espetacular vitória do MDB, o partido de oposição, nas eleições de 1974.

Mas ou menos nessa época, Borja foi convidado para uma palestra na centenária Faculdade de Direito de Niterói (UFF), que ainda hoje funciona no velho prédio em estilo neoclássico da Avenida Presidente Pedreira, no Ingá, bairro nobre de Niterói. O novo líder da Arena havia sido encarregado por Geisel do operar a “Missão Portela” na Câmara — assim batizada por causa do senador Petrônio Portela (PI), presidente da Arena à época. Borja seria ministro da Justiça de Geisel, mas foi vetado pelos militares “linha dura”. Por muito pouco também não foi impedido de assumir a Presidência da Câmara.

Borja era um político liberal, defendia a abertura política com sinceridade. Mal começou a sua palestra, foi interrompido por um grupo de estudantes que protestava contra o sequestro e desaparecimento de um dos alunos da Faculdade de Direito, Fernando Santa Cruz. Sua mulher, Ana Lúcia Santa Cruz — mãe daquele que mais tarde seria presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que tinha pouco mais de dois anos —, aos prantos gritava: “Vocês sequestraram meu marido. Cadê o pai do meu filho?”

Não foi somente a palestra de Borja que acabou ali. Na verdade, o processo de abertura estava sendo interrompido, em razão da derrota eleitoral de 1974, por violenta repressão à oposição de esquerda ao regime. A pá de cal seria o Pacote de Abril, de 1977, do então ministro da Justiça Armando Falcão. O corpo de Fernando Santa Cruz nunca foi devolvido à família, mas o tempo se encarregou de esclarecer as circunstâncias de seu assassinato.

Em 23 de julho de 2014, a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, recebeu documentos inéditos da Operação Cacau, de 1973, realizada pelo IV Exército, com órgãos e agentes da repressão na Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Todo o material estava guardado no Arquivo Nacional.

Honoris causa

Juliana Dal Piva, repórter do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, ao investigar o destino dos mortos e desaparecidos da Casa da Morte, de Petrópolis, para um mestrado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas, havia encontrado os documentos sobre a operação para desmontar a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), da qual Fernando Santa Cruz fazia parte.

O relatório confirma que Eduardo Collier Filho, Fernando Santa Cruz, Gildo Lacerda, José Carlos da Mata Machado, Paulo Wright e Umberto Câmara Neto, dirigentes da organização, que não havia aderido à luta armada contra o regime, foram mortos pelos militares. Em fitas gravadas em 1983, Gilberto Prata, cunhado de José Carlos, relata detalhes de sua colaboração remunerada com o Centro de Informação do Exército (CIE).

O caso de Fernando Santa Cruz foi motivo de uma polêmica entre seu filho Felipe e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que negava a existência dos documentos. São mais de 300. Um deles, da Aeronáutica, datado de 22 de setembro de 1978, confirma que Fernando foi preso em 22 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro. Ele já integrava uma lista com mais 48 desaparecidos do Comitê Brasileiro de Anistia. No Arquivo do DOPS/SP, na sua ficha consta: “Nascido em 1948, casado, funcionário público, estudante de Direito, preso no RJ em 23/02/74”. Em outro, o antigo Ministério da Marinha informa que “foi preso no RJ em 23/02/74, sendo dado como desaparecido a partir de então”.

Cinco dias antes da fala de Bolsonaro sobre Fernando, em 24 de julho de 2019, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao seu governo, havia emitido uma retificação de atestado de óbito do pai de Felipe Santa Cruz, reconhecendo o desaparecimento “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”. No atestado de óbito, também consta que Fernando morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro.

Ontem, por proposta do seu decano e ex-diretor Manoel Martins Junior, o Colegiado da Faculdade de Direito de Niterói concedeu o título póstumo de bacharel em direito a Fernando Santa Cruz. E propôs ao Conselho Universitário a concessão do título de Doutor Honoris Causa, também post mortem, ao jovem desaparecido, que será homenageado com uma placa no prédio onde estudava e que testemunhou a denúncia de seu sequestro. Detalhe: sua ficha havia desaparecido dos arquivos da faculdade.


Luiz Carlos Azedo: Eleição de Boric pode virar um El Niño político

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A esquerda venceu as eleições no Chile com a eleição do ex-líder estudantil e jovem deputado Gabriel Boric, de 35 anos, o mais jovem político a presidir o país em toda a sua história. Foi uma eleição marcada pela polarização política, na qual o candidato da Convergência Social, apoiado pelo Partido Comunista chileno, derrotou o ultradireitista José Antônio Kast, do Partido Republicano, um fanático admirador do ex-presidente Augusto Pinochet, o ditador sanguinário que liderou o golpe militar de 1973, no qual o presidente Salvador Allende se suicidou, em meio ao bombardeio do Palácio La Moneda por aviões de caça da Força Aérea chilena. A eleição foi de virada: no primeiro turno, Boric havia ficado em segundo lugar.

A nova situação chilena parece retomar o fio da história interrompido com o golpe de 1973, quando Allende representava o sonho de um socialismo democrático. É como se a história tivesse sido “descongelada” após quase 50 anos. Embora o atual presidente Sebastian Piñera e a socialista Michelle Bachelet tenham protagonizado as disputas políticas direita x esquerda dos últimos 16 anos, ambos são políticos moderados, governaram em aliança com os liberais. Boric se apresentou no primeiro turno como uma candidatura de viés muito esquerdista. Entretanto, moderou o discurso no segundo e se aproximou dos socialistas, liberais e democrata-cristãos para derrotar a extrema-direita.

Gosto da expressão “descongelar” por causa de uma entrevista do filósofo alemão Jürgen Habermas, logo após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, que marcaram o colapso do chamado “socialismo real” europeu. Habermas comparou a Europa do fim da Guerra Fria a uma fotografia — como aquela de Roosevelt, Stálin e Churchill, em fevereiro de 1945, na Crimeia —, que foi “descongelada” e virou um filme de longa metragem, como se a história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida.

“Ninguém me convence de que o socialismo de estado seja, do ponto de vista da evolução social, ‘mais avançado’ ou ‘mais progressista’ do que o capitalismo tardio. (…) São senão variantes de uma mesma formação societária. (…) Temos tanto no leste como no oeste modernas sociedades de classe, diferenciadas em Estado e economia”, disse Habermas à época (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989). A história das nações europeias anterior à II Guerra Mundial, de fato, fora “descongelada”, despertando velhos conflitos econômicos e de fronteiras, além de forças políticas muito reacionárias que estavam adormecidas no Leste Europeu, desde a ocupação soviética, principalmente na Hungria, na Ucrânia, na Polônia e na Romênia.

No primeiro turno, Boric foi um duro crítico da democracia chilena pós-Pinochet, que governou com as baionetas de 1973 a 1990. Segundo o novo presidente chileno, a continuidade do modelo liberal deixou as classes média e baixa endividadas, sem condições de arcar com os custos da educação, da saúde e da previdência privada. Sua proposta é um Estado de bem-estar social ao estilo da social-democracia nórdica: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. A nova Constituição em elaboração, de certa forma, cria condições para ultrapassagem do modelo econômico neoliberal de Pinochet herdado pelos governos democráticos. Em contrapartida, no primeiro ano de governo, a inflação fora de controle complica muito a execução do projeto de Boric, que também precisa formar uma nova maioria no Congresso.

Polarização política

Em tempos geopolíticos, a vitória de Boric consolida uma guinada à esquerda no Cone Sul, que já havia sido iniciada com a eleição do justicialista Alberto Fernández na Argentina, hoje o mais importante aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na região. Também aprofunda o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro, crescente desde a eleição do atual presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. Pode virar uma espécie de El Niño político , o fenômeno atmosférico oceânico que aquece as águas superficiais do Pacífico tropical e provoca alterações climáticas na América do Sul, sobretudo no Brasil,  e outras regiões do mundo, com mudanças no regime de ventos e de chuvas.

O principal beneficiado da eleição de Boric é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, favorito absoluto em todas as pesquisas de opinião, que pode até vencer as eleições no primeiro turno. Em termos econômicos, Lula ainda é uma esfinge. Candidato à reeleição, Bolsonaro tem altos índices de rejeição, desmantelou as políticas sociais do governo, perdeu o controle da economia, mas ainda não se sente derrotado estrategicamente. Aposta as fichas na força bruta do próprio governo, como forma mais concentrada de poder, e no Auxílio Brasil, o novo programa de transferência de rendas para 14,5 milhões de famílias, no valor de R$ 400 mensais; mantém coesa a sua base de apoio de extrema-direita e evangélica e aposta na polarização política, para se beneficiar do antipetismo da classe média e do conservadorismo popular. Mas disso vamos tratar na próxima coluna.

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Luiz Carlos Azedo: Txai Suruí é a minha candidata ao Nobel da Paz de 2022

A jovem Walelasoetxeige Suruí tem apenas 24 anos e confirma a quebra do monopólio da política internacional de chefes de Estado, diplomatas e militares

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Criado em 1901, o prêmio Nobel da Paz não foi capaz de impedir as duas grandes guerras mundiais do século passado, mas contribuiu muito para que a política internacional deixasse de ser monopólio dos chefes de Estado, diplomatas e militares, projetando personalidades que efetivamente contribuíram para que a paz se consolidasse como um valor universal. Ironicamente, seu criador, Alfred Nobel, era um industrial, inventor e fabricante de armamentos sueco. Por sua decisão, um comitê de cinco pessoas indicadas pelo Parlamento da Suécia anualmente escolhe aqueles que se destacaram por trabalhar pela fraternidade entre as nações, pela abolição ou redução de exércitos permanentes e pela paz. Polêmico, nos últimos anos, o prêmio vem sendo destinado a pessoas que enfrentam situações limites em seus respectivos países, como os jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov, nas Filipinas e na Rússia, respectivamente, os premiados de 2021.

A jovem Walelasoetxeige Suruí, mais conhecida como Txai Suruí, de 24 anos, filha de Almir Suruí, 47, líder dos Povos Suruí de Rondônia, confirma a quebra do monopólio da política internacional. Até então, era conhecida apenas por ambientalistas e outras jovens lideranças indígenas, mas encantou o mundo ao discursar em inglês na abertura da Conferência da Cúpula do Clima (COP26), em Glasgow, na Escócia, para uma plateia que reunia entre outros o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel. Foi a única brasileira a participar da abertura, num inevitável confronto de imagem e objetivos com o presidente Jair Bolsonaro, que gravou uma mensagem e foi passear pela Itália, desprestigiado. Tornou-se uma personalidade mundial na luta contra o aquecimento global. É minha candidata ao Nobel de 2022.

O veterano líder indígena Marcos Terena, um dos fundadores da Aliança dos Povos da Floresta, com Aírton Krenak e Chico Mendes, não se cansa de me falar que as jovens lideranças indígenas são a grande esperança, e que a causa indígena chegará a um outro patamar. “Nós agora temos índios doutores, médicos, advogados, antropólogos, biólogos, cineastas… São lideranças jovens que mantêm suas ligações com as aldeias e respeitam as lideranças mais velhas, somam os antigos saberes aos novos conhecimentos”. Terena foi o primeiro “índio piloto”, viveu os conflitos da tradução de identidade. Quando jovem, era chamado de “japonês” pelos colegas de escola e por seu próprio instrutor de voo. Mas a consciência indígena falou mais alto: “Indígena é potência de saberes. Seu conhecimento é a universidade do mundo”.

Aquecimento

A jovem Txai ainda está no último semestre do curso de direito, mas já atua no departamento jurídico da Associação de Defesa Etnoambiental (Kanindé), em Rondônia. Em Glasgow, na Escócia, enquanto a jovem ativista sueca Greta Thunberg criticava o blablablá sobre o clima dos líderes mundiais, Txai roubava a cena no plenário, ao falar da importância dos povos indígenas na proteção da Amazônia. Na hora, lembrei-me das conversas com Marcos Terena sobre esse encontro de gerações indígenas: “Meu pai, o grande cacique Almir Suruí, me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a lua, o vento, os animais e as árvores. Hoje, o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando, ela nos diz que não temos mais tempo”, disse Txai.

Os suruís de Rondônia são 2 mil indígenas, mas são articulados, combativos e plugados nas redes sociais. Ao discursar na COP26, Txai relembrou a morte do seu amigo Ari Uru-EU-Wau-Wau, jovem como ela, que trabalhava registrando e denunciando extrações ilegais de madeira dentro da aldeia onde morava. Segundo Txai, ele foi morto por defender a floresta. “Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis, vamos acabar com a poluição de promessas vazias e vamos lutar por um futuro e presente habitáveis”, defendeu. Na extensa pauta da COP26, o eixo da discussão é a necessidade de conter o aquecimento global.

Energia, empoderamento público e da juventude, natureza e uso da terra, ciência e inovação, transporte e cidades, regiões e espaços organizados estão sendo debatidos até o próximo dia 12, por cientistas, ativistas, autoridades governamentais, executivos de empresas da nova economia, mas, nesse debate, a Amazônia tem lugar de destaque. Cerca de 40 lideranças indígenas, de diversos países, estão participando do encontro. O mundo está descobrindo que eles são os verdadeiros guardiões da floresta e têm um papel de destaque na solução dos problemas ambientais. Oficialmente, o Brasil está representado pelo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que apresentou uma nova meta climática, com redução de 50% das emissões de gases do efeito estufa até 2030.

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Luiz Carlos Azedo: Quando o conceito é fatal

De agosto/2020 a junho/2021, registramos os maiores índices de desmatamento. SP, GO, MG e MT registraram mudanças impressionantes

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Houve uma mudança muito significativa na conjuntura política. Em primeiro lugar, a ameaça de um golpe de Estado, que deixou o país à beira de um ataque de nervos, desapareceu do horizonte próximo após o 7 de Setembro. Não houve a adesão militar contra o Supremo Tribunal Federal (STF) que o presidente Jair Bolsonaro esperava, as reações das instituições políticas e da sociedade esvaziaram a mobilização golpista. Desde então, o eixo da vida política nacional se deslocou da crise sanitária, cuja crônica política e criminal está no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre a pandemia da covid-19, para a crise da nossa economia, tendo por pano de fundo a antecipação da disputa eleitoral de 2022.

Especialistas em planejamento sabem que um erro de conceito pode ser fatal. Muitas vezes, o erro decorre de um falso diagnóstico; outras, de um conceito errado. A tempestade perfeita pode ser fabricada quando as duas coisas coincidem com uma concepção equivocada, por exemplo, o negativismo em relação à ciência. No caso da pandemia, o erro de diagnóstico foi considerar a covid-19 uma “gripezinha”; o de conceito, apostar na “imunização de rebanho” para manter a economia aquecida. Com isso, buscou-se toda sorte de atalhos para evitar a recessão, que passou a ser o objetivo do governo, em vez de salvar a vida das pessoas. A cloroquina entra nessa história como uma poção mágica. Havia outra solução simples para um problema tão complexo (acreditem, elas também existem) — a vacinação em massa.

Vejam bem, não estamos falando que a produção da vacina não é simples. Sua fabricação é um processo complexo, mas a pesquisa científica intensa resolveu o problema em pouco mais de um ano após a identificação do vírus e seu sequenciamento genético. Estamos falando do conceito — a imunização em massa — já consagrado mundialmente pelas autoridades sanitárias. A erradicação da poliomielite, que foi a doença infantil mais devastadora do século passado, é um excelente exemplo. A pólio era misteriosa e se expandia no verão, com causas desconhecidas. Nos Estados Unidos, a ignorância levou as pessoas a pôr a culpa nos sorvetes; e o preconceito, nos negros pobres e nos imigrantes, principalmente asiáticos.

Mesmo adultos corriam grande risco. O presidente Franklin Delano Roosevelt foi para a cadeira de rodas aos 39 anos, quando contraiu a doença. Cada surto de pólio deflagrava uma quarentena, como acontece agora com a covid-19. Em 1916, em Nova York, houve 8.990 casos, com 2.400 óbitos; em 1952, 57 mil casos, 3 mil mortes e 21 mil crianças com paralisia permanente. Um paciente com pólio no hospital custava US$ 900, quando o salário médio era de R$ 875.

Sem a vacina criada por Jonas Salk e Albert Sabin, estima-se que os Estados Unidos teriam 250 mil pessoas com paralisia, a um custo de US$ 30 bilhões. Não temos projeções de quanto já estamos economizando com a vacinação em massa da população, mas estima-se que o custo da pandemia no Brasil chegue a R$ 700 bilhões, cerca de 10% do nosso PIB, ou o equivalente a 20 anos de Bolsa Família. Ou seja, dá para ter uma noção do prejuízo causado pelo negativismo do presidente Jair Bolsonaro, que até hoje não tomou a vacina.

Aquecimento

Mais difícil de calcular é o prejuízo do negativismo em relação ao aquecimento global. Alguns números podem ser ilustrativos. Até o fim de setembro, somente 22% das verbas destinadas para o combate ao desmatamento e às queimadas foram utilizados pelo governo federal. O governo resolveu economizar o dinheiro do combate ao desmatamento e às queimadas: de R$ 384,9 milhões em caixa para isso, somente foram gastos R$ 83,5 milhões. De agosto do ano passado a junho deste ano, registramos os maiores índices de desmatamento. São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso registraram mudanças climáticas impressionantes. As mais espetaculares foram as tempestades de poeira. Quanto estamos perdendo de investimentos ao “passar a boiada”?

O Brasil já foi muito respeitado por sua política ambiental, agora é pária internacional. Bolsonaro não vai à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), que começa hoje, em Glasgow, na Escócia, embora tenha participado da reunião do G-20 em Roma, na Itália, ontem. Não teria condições de participar de um fórum como esse sem passar constrangimentos.

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Janio de Freitas: CPI da Covid é exemplo de atuação a Ministério Público e Judiciário

Já Rodrigo Pacheco não emitiu nem uma palavra de apoio aos trabalhos ou de aplauso aos resultados

Janio de Freitas / Folha de S. Paulo

A descrença na punição dos indiciados na CPI da Covid, pelo visto, bem próxima da unanimidade, é um julgamento de tudo o que se junta no sentido comum de "Justiça brasileira".

Também desacreditado por parte volumosa da opinião geral, o desempenho da CPI excedeu até o admitido pelos mais confiantes.

O fundo da realidade volta à tona, porém. A criminalidade constada aliados por covardia ou por patifaria.

CPI traz mais do que a comprovação de um sistema de criminalidade quadrilheira, voltado para o ganho de fortunas e mais poder político com a provocação da doença e de mortes em massa.

Nas entranhas desses crimes comprovados, está a demonstração, também, da responsabilidade precedente dos que criaram as condições institucionais e políticas para a degradação dramática do país e, nela, a tragédia criminal exposta e interrompida pela CPI.

Nada na monstruosidade levada ao poder surgiu do acaso ou não correspondeu à índole do bolsonarismo militar e civil.

Muito dessa propensão foi pressentido e trazido à memória pública com exaustão, lembrados os antecedentes pessoais e factuais.

Também por isso as surpresas com a pandemia não incluíram a conduta do poder bolsonarista, que então prosseguiu, em maior grau, a concepção patológica de país traduzida na liberação de armas, nas restrições à ciência, na voracidade destrutiva.

A CPI proporciona ainda um exemplo ao Ministério Público e ao Judiciário.

Cumpriu um propósito de extrema dificuldade, porque contrário a um poder ameaçador e desatinado, e o fez com respeito aos preceitos legais e direitos. Sem a corrupção institucional própria do lavajatismo.

É necessário não esquecer a contribuição, para o êxito incomum da CPI, de senadores como Omar Aziz, que impôs o bom senso e a determinação com sua simpática informalidade. E Randolfe Rodrigues, autor da proposta de CPI e impulsionador permanente do trabalho produtivo.

Tasso Jereissati foi importante, com o empenho para aprovação e composição promissora da comissão, além de dirimir impasses --tudo isso, apesar da cara de cloroquina do seu PSDB chamado a definir-se contra o poder bolsonarista.

O polêmico Renan Calheiros foi, como sempre, muito decidido e eficiente. Otto Alencar e Humberto Costa, médicos, foram decisivos muitas vezes. E houve vários outros, mesmo não integrantes do grupo efetivo, como Simone Tebet.

Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco não deve ficar esquecido. Filia-se ao PSD com o projeto de candidatar-se à Presidência, de carona no êxito da CPI.

Contrário à investigação da criminalidade do governo e de bolsonaristas na pandemia, sumiu com o projeto aprovado para criação da CPI.

Foi preciso que o Supremo o obrigasse a cumprir as formalidades de instalação. E não emitiu nem uma palavra de apoio aos trabalhos ou de aplauso aos resultados.

A descrença em punições não precisa de explicação. Oferece mais uma desmoralização das afirmações de que "as instituições estão funcionando" no país do governo criminoso e da descrença nos tribunais superiores.

Sem solução

Inesperada, a derrota na Câmara do projeto que passaria ao Congresso atribuições dos promotores e procuradores, sem com isso atacar o essencial, evitou mais uma falsa solução.

Mudar a natureza de procuradores e promotores é impossível, um Dallagnol será sempre o que é. Logo, o necessário é o acompanhamento honesto do que se passa no Ministério Público, e mesmo no Judiciário.

Tarefa básica que os conselhos dessas instituições não fazem, funcionando sobretudo no acobertamento dos faltosos.

Eis uma norma há anos adotada pelo Conselho Nacional do Ministério Público: mesmo que determinada pelas regras penais, a demissão do faltoso só deve ocorrer se há reincidência.

Do contrário, a pena será apenas de suspensão temporária da atividade e dos vencimentos. Uma discreta indecência.

O necessário é fazer com que os conselhos sejam leais às suas finalidades.

O que o Congresso pode conseguir com a criação de um sistema de vigilância público-parlamentar. Até algo assim, os conselhos do Ministério Público e da Magistratura continuam como motivo de descrença extensiva nessas instituições.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/10/conselhos-de-ministerio-publico-e-judiciario-sao-motivo-de-descrenca-extensiva.shtml


Dorrit Harazim: Vísceras expostas

Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento

Dorrit Harazim / O Globo

O simples fato de a CPI da Covid ter existido e resistido, apesar da tropa de choque bolsonarista e da contrariedade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já foi notável. Duplamente admirável foi o empenho da maioria de seus integrantes em trabalhar como gente grande, com decência e benefício claro para a sociedade. Conseguiram dar algum compasso moral a um Brasil que, de resto, está à deriva e expuseram as vísceras de Jair Bolsonaro, cujo método de governo se assenta num amplo leque de tipificações penais.

Nada a festejar, porém. Não pode haver conforto para povo algum que tem na chefia da nação um presidente indiciado por crime contra a humanidade — no caso, contra sua própria gente. É igualmente trevoso para a história de qualquer nação ver seu presidente indiciado por mais outros oito crimes. É tudo de um horror abissal, por ser factual. E por quase ter ficado enterrado nos porões do governo, não fosse o dever cumprido pela maioria na CPI.

Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento. E dar uma resposta adulta para a gargalhada com que o filho Zero Um do presidente, senador Flávio Bolsonaro, pretendeu desdenhar o documento histórico. O aspecto mais chulé da vida nacional anda esquisito — num curto espaço de tempo somos informados de que o presidente chora escondido no banheiro e de que o Marcola do PCC, líder da maior facção criminosa do país, está deprimido na prisão.

Mas são problemas reais que deixam em torvelinho 213 milhões de brasileiros. A fome de comer pelanca, o caos social, a extrema direita sem freios, os solavancos na economia, a emergência ambiental, a incerteza quanto a liberdades, a degradação geral da vida em sociedade — tudo isso entrou em marcha acelerada sob o comando errático de um só homem, Jair Bolsonaro. Que ninguém se engane — armados de fé e, se preciso, munidos de armas, seus seguidores mais extremados nunca lhe faltarão no pacto de morte contra o Estado Democrático de Direito.

Talvez o presidente e o relator da CPI da Covid, senadores Omar Aziz e Renan Calheiros, já tenham se arrependido de ter votado pela recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República. Nos Estados Unidos, o então presidente Donald Trump sobreviveu a dois processos de impeachment porque os senadores do Partido Republicano cerraram fileiras. Acreditaram estar fazendo política. Na realidade, fizeram história trevosa ao deixar o caminho aberto para Trump e sua vertente nacionalista voltarem ao poder — seja na reconquista da maioria na Câmara e no Senado em 2022, seja com Trump de volta à Casa Branca em 2024.

Não se trata de alarmismo. Nesta semana, Steve Bannon, o já notório cérebro de uma internacional fascistoide que inclui o Brasil, desafiou abertamente o Poder Legislativo dos EUA. Simplesmente recusou-se a depor perante a comissão de inquérito que investiga sua atuação na invasão do Capitólio de 6 de janeiro último, quando milicianos trumpistas pretendiam impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden em 2020. Parece pouco? Para padrões da bicentenária democracia americana, não é. Ao deboche público das instituições, arrostado por Bannon, vem somar-se uma acelerada limitação do direito ao voto em vários estados decisivos do país. E esse desmonte é obra de governadores mais leais a Trump que àquilo que os Estados Unidos de melhor deram ao mundo: o voto universal e livre.

Por toda parte, pipocam candidatos a clones de Trump, que Steve Bannon vai arrebanhando e formatando em rede. Alguns ainda são meros aspirantes a um poder menor, como a figura midiática do argentino Javier Milei, candidato a uma vaga no Congresso nas eleições do próximo mês. Admirador declarado de Trump e Bolsonaro, tem fala carismática e propostas de soluções simples para problemas complexos, como manda o manual populista. Outros visam mais alto logo de cara. Na França está em curso a ascensão meteórica e inesperada do polemista Éric Zemmour, apresentador do canal conservador CNews , que parece querer disputar a corrida presidencial. Situado à extrema direita de Marine Le Pen, Zemmour também é admirador declarado de Trump, alerta contra o “declínio da França”, ataca a imigração, o islamismo e o resto da cartilha democrática.

Sem falar no governo a cada dia mais fechado da Polônia, primeiro a desdenhar de peito aberto as convenções democráticas da União Europeia. Na sexta-feira, a ainda chanceler da Alemanha, Angela Merkel, recebeu uma ovação sincera dessa mesma União Europeia. Foi recebida pelo rei Philippe da Bélgica (a sede da EU é em Bruxelas), homenageada com peças de Mozart e Beethoven em concerto de gala e saudada com frases como “a senhora foi um compasso”, “as próximas cúpulas sem Angela Merkel serão como Paris sem a Torre Eiffel”. No caso, não eram exagero — por 16 anos ela foi âncora. Sem ela, a Europa e o mundo com Trumps e Bolsonaros se tornarão ainda mais sombrios.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/visceras-expostas.html


Cristovam Buarque: A gripezinha fiscal do Guedes

O debate atual sobre o financiamento do Auxílio Brasil é mais um exemplo de corrupção da bondade

Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles

As atas das sessões no Parlamento durante os debates da Lei Áurea mostram escravocratas argumentando contra a Abolição, porque os escravos livres ficariam desamparados e morreriam de fome. Isto é corrupção da bondade. Defender aos pobres fazendo mal a eles. Este caso extremo foi repetido ao longo de décadas na política brasileira. Não defenderam a Abolição com distribuição terra aos ex-escravos, defendiam manter a escravidão para proteger aos escravizados.

Esta tem sido uma prática comum da minoria privilegiada brasileira ao defender propostas que lhes interessem, argumentando a favor dos pobres. Além da corrupção no comportamento, que rouba dinheiro público, temos a corrupção da ostentação, a corrupção dos privilégios, a corrupção nas prioridades e corrupção das bondades falsas. O BNH foi criado com o argumento de dar habitação aos pobres, mas serviu para financiar o lucro de empreiteiras, e construir as mansões e apartamentos que caracterizam as moradias das classes médias e altas brasileiras. O sistema nacional de habitação deixou pobres sem água, saneamento e os privilegiados com bons apartamentos financiados com empréstimos subsidiados, construídos por pedreiros recebendo míseros salários e continuarão sem casa, água nem saneamento.

O debate atual sobre o financiamento do Auxílio Brasil é outro exemplo de corrupção da bondade: em nome de atender o povo pobre, que passa fome, e precisa do auxilio, provavelmente vai fazer a maldade de trazer de volta a inflação, que sacrificará sobretudo a população pobre..

Por décadas os dirigente brasileiros aliaram o populismo mais desbragado dos políticos com o keynesianismo de economistas que não souberam adapta-lo às características do Brasil. O resultado foram décadas de uso da inflação para financiar projetos megalomaníacos, mordomias desavergonhadas, privilégios aristocráticos, subsídios à ineficiência, concentração da renda. Além de criar e consolidar a cultura de recursos ilimitados do Tesouro, capaz de financiar o luxo e dar ajudas a quem vive no luxo, tudo financiado pela inflação que aumenta as receitas nominais dos governos fazendo circular moeda desvalorizada, espécie de cheque com quase fundo.

O Auxílio Brasil aos pobres não deve ser adiado, mas deve ser financiado com recursos dos que não são pobres. Sem risco da inflação que paga com uma mão e tira com a outra.

O povo precisa e tem direito a receber uma renda que lhe permita sobreviver com dignidade. Esta renda exige muito mais do que os míseros R$400,00 que estão oferecendo, mas em moeda estável, sem inflação. E o Brasil, com um PIB e uma Receita Pública que permite financiar este auxílio. Desde que se toque no exagerado custo dos subsídios a setores ineficientes, se elimine privilégios financiados com recursos públicos, cancele-se o fundo partidário, as emendas parlamentares, os precatórios, reduzam o custo monumental do Estado, especialmente Legislativo e Judiciário. Mas no lugar de tirar de quem tem para auxiliar quem não tem, prefere-se romper o Teto para repetir as antigas equações populistas e gastar mais do que dispõe, com empréstimos ou emissão de moeda deixando ao povo a conta da inflação.

Bolsonaro aplica para as finanças a mesma visão negacionista com que enfrentou o covid, agora enfrenta o deficit. Para ele, com o apoio do Guedes, furar o teto é um arranhãosinho. A consequência poderá ser muito mais do que uma gripezinha fiscal: um epidemia monetária chamada inflação.

*Cristovam Buarque foi governador, senador e ministro

Fonte:


Luiz Carlos Azedo: A bagunça na economia

Com a inflação descontrolada, ninguém sabe o resultado da equação “injeção de dinheiro no bolso dos mais pobres e elevação dos juros”, em termos de atividade econômica

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Quem quiser que se iluda. A um ano do pleito de 2022, a política econômica do governo Bolsonaro entrou em acelerado modo eleitoral. Quando falou das pressões da ala política e da incompreensão dos jovens integrantes de sua equipe em relação ao teto de gastos, na entrevista coletiva de sexta-feira, no Ministério da Economia, ao lado do presidente da República, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sinalizou que pretende manipular os instrumentos de que o Estado dispõe para intervir na economia no sentido de construir um cenário favorável à reeleição de Jair Bolsonaro.

É disto que se trata: começou uma corrida maluca para ganhar as eleições, na qual o governo pretende reverter os desgastes de Bolsonaro junto à população de mais baixa renda e, com isso, manter o apoio do Centrão. O carro chefe da estratégia é o Auxílio Brasil, o programa de Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, além de outros benefícios, como o vale gás e o subsídio de R$ 400 para os caminhoneiros abastecerem os tanques de seus veículos. O rombo no teto de gastos, estimado em R$ 86 bilhões, pode chegar a R$ 100 bilhões.

O problema é que os R$ 400 anunciados por Paulo Guedes, R$ 100 a mais do que aceitavam os integrantes da equipe econômica que deixaram o governo, liderados pelo secretário de Tesouro Bruno Funchal, dificilmente serão mantidos pelo Congresso. Não para reduzi-los; pelo contrário, para aumentá-los, podendo chegar a R$ 600, como propôs o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa é uma bandeira que a oposição agarrará com as duas mãos, muito provavelmente com o apoio docemente constrangido do Centrão. A conferir!

Cá entre nós, para um governo cujo orçamento é da ordem de R$ 1 trilhão, essa despesa poderia ser feita dentro do Orçamento da União, se o valor equivalente fosse remanejado de outros setores do governo, em vez de obtidos por meio de um calote nas dívidas judiciais, ponto de partida da chamada PEC dos Precatórios, e de uma manobra contábil no cálculo do IPCA, que serve de base para a atualização do teto, que deixou de junho a junho para janeiro a dezembro, ou seja, uma mágica que comprova a teoria de que na política o calendário é relativo. Na economia também, mas o dono do tempo é o mercado.

Estelionato eleitoral
O problema é o “instinto animal” dos agentes econômicos, como diria o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, principalmente de produtores e investidores, porque a manobra não altera positivamente a realidade da economia, da geração de riqueza ao emprego e à renda, pelo contrário. Vejamos:

(1) Dólar – O rombo no teto de gastos pode chegar a R$ 100 bilhões, o que vai provocar mais desvalorização da moeda. O mercado estima que a cotação do dólar chegará a R$ 5,80 em dezembro e ultrapassará R$ 6,20 até as eleições de 2022.

(2) Inflação – No acumulado de 12 meses até setembro, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou a 10,25%. Foi a maior taxa anula desde fevereiro de 2016.

(3) Juros – O Banco Central será obrigado a aumentar ainda mais a taxa básica de juros, atualmente em 6,25% (Selic). Na próxima reunião do COPOM, deve subir 1,25 ponto percentual e chegar a 8,75% ao ano, em dezembro, subindo para 10.5% em 2022.

(4) Crescimento – O crescimento esperado de 1,8% para o PIB de 2022 deu lugar a uma expectativa média de 1%. Há quem fale em 0,5% do PIB.

(5) EUA – O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) pode subir os juros, hoje na faixa entre 0% e 0,25%, em meados do ano que vem.

(6) China – O PIB chinês cresceu 4,9% no terceiro trimestre de 2021, o ritmo mais lento em um ano, em razão da crise de energia, das interrupções na cadeia de abastecimento, do agravamento das dívidas em seu setor imobiliário e dos surtos esporádicos de Covid-19.

Nesse cenário, o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula emulam propostas de caráter populistas, que tendem a deteriorar ainda mais a situação da economia. Tanto na reeleição de Fernando Henrique Cardoso, com o câmbio fixo, como na reeleição do ex-presidente Lula, com o Bolsa Família, foi possível interferir na economia para favorecer quem estava no poder, porém, numa situação de inflação sob controle. Longe da eleição, com a inflação descontrolada, ninguém sabe o resultado da equação “injeção de dinheiro no bolso dos mais pobres e elevação dos juros”, em termos de atividade econômica. Quem ganhar as eleições, ao assumir, terá que fazer um duro ajuste nas contas públicas.

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