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De olho em 2022, Bolsonaro e Lula jogam na confusão com preço de combustíveis

Lula e Bolsonaro voltam seus discursos para os preços dos combustíveis 

Malu Gaspar / O Globo

Enquanto parte do país oscilava entre o estarrecimento com as revelações do caso Prevent Senior e a irritação com as cenas patéticas do depoimento de Luciano Hang, os dois principais postulantes à Presidência da República em 2022 passaram bem longe da CPI da Covid e voltaram suas baterias para a alta dos combustíveis.

Jair Bolsonaro põe a culpa no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e quer que o Congresso aprove uma lei estabelecendo alíquota fixa e uniforme em todo o país para o imposto, que hoje varia de estado para estado.

"Peço a Deus para que ilumine os parlamentares durante a semana para que aprovem esse projeto na Câmara e depois no Senado. Esse é o problema do dia", afirmou o presidente num palanque do Nordeste.

Estava com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que fez coro. "O Brasil não pode tolerar gasolina a quase R$ 7 e o gás a R$ 120".

Lula recorreu à parábola do gringo que leva as nossas riquezas. "O que está acontecendo é que a Petrobras está acumulando verba para pagar acionista americano", disse a uma rádio de Cuiabá.

Para o petista, “só teria explicação subordinar o preço nacional ao internacional se o Brasil fosse importador de petróleo, mas o Brasil é autossuficiente”.

Tanto Lula quanto Bolsonaro sabem estar oferecendo soluções simplistas para um problema complexo. O presidente da República vem há meses tentando emplacar a narrativa de que, por estar ligada a um imposto estadual, a alta dos combustíveis é culpa dos governadores. Não tem tido sucesso. Primeiro porque, embora o ICMS realmente seja pesado (varia em torno dos 30%), ele não aumenta há anos.

Além disso, o imposto é parte do valor do produto e varia de acordo com ele. Portanto, mesmo que fosse reduzido a zero, o que é virtualmente impossível, os preços continuariam aumentando de acordo com a cotação do barril de petróleo e com o câmbio.

Lula, como ex-presidente, está cansado de saber que 57,8% dos dividendos da Petrobras ficam com brasileiros, incluindo pequenos poupadores que usaram seu Fundo de Garantia para investir na empresa. E que, do total, 36,7% vão para os cofres da própria União. Lula sabe também que há diversas razões para que a fórmula de preços da Petrobras seja ancorada no dólar.

Uma é que a moeda americana é a referência para todas as transações do mercado de petróleo no mundo. Outra: embora seja autossuficiente em volumes, a empresa ainda importa grandes quantidades de petróleo leve e outros derivados do petróleo para produzir os combustíveis entregues ao consumidor final, pagando o preço internacional, em dólar. Sempre que vende abaixo do valor de mercado, toma prejuízo.

Da última vez que ignorou essa equação, no governo Dilma Rousseff, a Petrobras acumulou um rombo de US$ 40 bilhões — uma das razões por que teve de ir tomando empréstimos até chegar à maior dívida corporativa do planeta e ao status de companhia à beira da falência. Quem pagou a conta, obviamente, fomos nós, contribuintes e maiores acionistas da empresa.

Lula e Bolsonaro decidiram falar do assunto porque suas sondagens indicaram que esse é o tema que mais afeta o debate eleitoral no momento. Pesquisas internas de consultorias privadas mostram que a aprovação de Bolsonaro vem caindo significativamente em regiões onde ele costumava ter bases firmes, como Sul e Centro-Oeste, justamente por causa da inflação dos combustíveis e da energia.

Soluções de palanque e fórmulas gastas não resolverão o problema. Lembremos que o próprio Bolsonaro trocou o presidente da Petrobras no início do ano, zerou os impostos federais sobre o diesel e o gás e prometeu outras tantas providências — como uma bolsa-caminhoneiro — que nunca foram adotadas.

Se voltamos ao mesmo ponto, agora, é porque esse nó, assim como tantos outros que precisamos desatar, demanda políticas públicas consequentes e de longo prazo, que certamente trarão algum sacrifício e que, por isso mesmo, têm de ser fruto de um debate amplo e responsável. Mudanças profundas nos modais de transporte e na configuração das grandes cidades, investimento em transporte de massa e em tecnologia são planos possíveis.

Mas nada disso tem feito parte do debate público. Estamos presos a um longo dia da marmota, com políticos que repetem sempre as mesmas propostas inócuas, enquanto problemas cruciais se arrastam indefinidamente. Nada está tão ruim que não possa piorar, disse outro dia o presidente Bolsonaro. Vendo a forma como os dois principais candidatos à Presidência da República tratam questões vitais para o país, só é possível concordar.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/de-olho-em-2022-bolsonaro-e-lula-jogam-na-confusao-com-preco-de-combustiveis.html


Ascânio Seleme: O poder político é civil

Ideia de reunião com os chefes das três Forças Armadas é oferecer poder político a quem por direito constitucional não o tem

Ascanio Seleme / O Globo

Não se deve oferecer poder político a quem por direito constitucional não o tem. A ideia dos governadores de se reunirem com os chefes das três Forças Armadas para medir a temperatura e tratar das manifestações do dia 7 de setembro é exatamente isso, dar força e poder político aos militares. O Brasil não precisa disso numa hora como esta. Conversar com os chefes militares pode até ocorrer, mas informalmente e nunca de maneira concertada e coletiva. No caso, os militares têm um dever constitucional e a ele devem se ater. Se ocorrer um badernaço de policiais militares armados no dia 7, caberá às Forças Armadas intervir para manter a lei e a ordem, como manda a Constituição. E ponto.

Generais só devem ser ouvidos sobre questões militares ou que envolvam atividades fora das definições constitucionais em que as Forças Armadas possam ser empregadas. Se um governador precisar da ajuda do Exército para abrir uma estrada ou construir uma ponte, por exemplo. Ou se um ministro precisar do serviço da Aeronáutica para transportar vacinas para um local que não é servido por linhas aéreas comerciais. Conversar com militares sobre suas atribuições constitucionais é chover no molhado. Sabem o que o general Paulo Sérgio, comandante do Exército, responderia aos governadores se estes lhes perguntassem como agiria em caso de baderna no 7 de setembro? Que agiria de acordo com o que determina a Constituição.

Aliás, o general Paulo Sérgio disse esta semana que o Exército respeitará sempre seus limites constitucionais. Falou isso no discurso que fez no dia do soldado. Foi claro diante do presidente da República, que ouviu calado. Mesmo que Jair Bolsonaro tente dar um golpe (e vai tentar), não será no dia 7 de setembro deste ano. E no momento em que tentar, pelo que se ouviu no dia do soldado, será rechaçado pelo Exército. Poderá ter o apoio de policiais militares? Sim. Mas estes nada podem sozinhos, não são organizados nem disciplinados. Sua reputação é péssima em todas as unidades da federação, ao contrário das Forças Armadas, uma das instituições mais respeitadas do país.

Exército, Marinha e Aeronáutica jamais se subordinarão a um golpe engendrado pela PM que, embora seja uma força de segurança pública, também em muitos casos é sinônimo de violência e terror. Tampouco as Forças Armadas se aliarão às milícias, quase todas formadas por ex-oficiais e ex-praças das PMs e dos Bombeiros. O que resta a estes agitadores que pretendem se manifestar armados no dia 7 é a baderna.

Usar a arma da corporação para se manifestar em vias públicas e ameaçar a democracia é crime. PMs armados em ato civil são declaradamente covardes. Qualquer ato de violência que vier a ocorrer será de responsabilidade destes que desrespeitam as leis e a Constituição. E devem ser punidos. É importante que os opositores de Jair Bolsonaro entendam isso e não insistam em se manifestar no mesmo dia. Podem dar o argumento que os extremistas precisam para iniciar a baderna e responsabilizar o outro lado.

Embora o Congresso estude uma quarentena de cinco anos para militares disputarem eleição, ninguém tem medo de medir forças com eles. Mas que venham desarmados, sem as fardas, reformados, e pelo voto. Em 2018, arrastados pelo fenômeno que elegeu Jair Bolsonaro, 72 militares foram eleitos para exercer mandatos nas câmaras estaduais e federal e no Senado. Menos de 5% dos 1626 parlamentares eleitos naquele ano excepcional. Dos 27 governadores eleitos, dois são militares reformados.

Todos os militares foram eleitos depois de se reformarem. Embora muitos usem seus antigos cargos antes do nome, como o ex-senador major Olímpio, nenhum deles é mais militar. São todos civis e só por isso foram habilitados para disputar um cargo eletivo. O poder político é civil no Brasil, manda a Constituição. Quer usar farda e armas pagas pelo Estado? Então fique no quartel. A beleza da democracia é que o eleito será sempre aquele que o povo escolher. Pode ter sido coronel, sargento, professor ou advogado, pode nem ser o melhor, mas sempre será um civil escolhido pelos eleitores de maneira livre e secreta.

Negociar o quê?

Os governadores, liderados por João Doria, erram ao tentar negociar com o presidente Jair Bolsonaro. Não há o que negociar. Não há mais diálogo possível com o chefe do Executivo. Os entendimentos têm que ser feitos com os Poderes Legislativo e Judiciário, com os setores organizados da economia, o agronegócio incluído, com sindicatos patronais e profissionais, com a comunidade acadêmica e com a sociedade civil. É impossível pacificar o país convencendo Bolsonaro que o caminho moralmente aceito e constitucionalmente possível não é o dele.

Não chamem os bombeiros

Neste momento, bombeiros apenas atrapalham o percurso que o Brasil terá de seguir até se ver livre de Bolsonaro. O ministro Luiz Fux já tirou o uniforme e o capacete e voltou a usar a toga.

Cabeça de bozo

Os brasileiros lotaram as praias e os parques no fim de semana passado. Ipanema, vista de quem andava do outro lado da calçada, parecia viver um veranico normal, como se estivéssemos em agosto de 2019. Havia de tudo naquela orla, menos máscaras. Ah, sim, faltaram também as bandeiras do Brasil.

Beija mão 1

O presidente parece mesmo disposto a destruir a candidatura de André Mendonça para o Supremo. Jogou Mendonça aos lobos ao informar aos apoiadores do seu curralzinho no Alvorada que o candidato a juiz se comprometeu de rezar na primeira sessão de cada semana da Corte e com ele almoçar uma vez por semana.

Beija mão 2

Quem notou o gesto e já fez um rápido movimento para ocupar o vácuo involuntário deixado por André Mendonça foi o ministro do STJ João Otávio Noronha.

Beija mão 3

O apoio do pastor Silas Malafaia ajuda ou atrapalha a candidatura de Mendonça? Se desse para agradecer e dizer “não, obrigado”, essa era a hora.

Nosso Rio

Muito bom o Instagram da Prefeitura do Rio. Moderno, ágil, didático, bem humorado. Vale como uma aula de comunicação.

Melhor calar

Lula é mesmo muito corajoso. Podia ficar na dele, calado sobre assuntos polêmicos em que o PT está do lado errado da corda esticada. No caso da censura à imprensa, apelidada de regulação da mídia pela sua turma, Lula disse que será prioridade em seu governo. Por falar demais, deixou escapar sua real motivação: “Eu vi como a imprensa destruía o Chávez”. Significa que é melhor calar a imprensa antes de ouvir dela denúncias contra o seu governo. Na Venezuela, aliás, a imprensa foi dizimada por Chávez e Maduro.

Respeitem os índios

Não é de hoje que os índios brasileiros são desrespeitados e vilipendiados por seus conterrâneos não originários. Quase todos os ataques que sofrem têm natureza econômica em razão da ocupação e exploração de terras. Mas eles também sofrem preconceitos racistas facilmente identificados. O que os índios brasileiros querem é viver em paz nas suas terras. E querem também, se entenderem ser este o caso, ter o direito de eles próprios explorarem seus recursos naturais e suas áreas agricultáveis. Deve-se respeitar o índio como nosso mais rico patrimônio antropológico.

Pobre Minas

Quem achava que Minas Gerais não poderia chegar mais fundo no poço em que se meteu, surpreendeu-se com a aparição de Romeu Zuma, na cola do meteoro Bolsonaro de 2018. O governador causa mais vergonha aos mineiros do que um de seus mais célebres antecessores. Minas está cada vez mais parecida com o Rio. Acha o governador atual ruim? Corrupto? Espere o próximo.

Chora mais

Fabio Rigo, herdeiro da empresa que produz o arroz Prato Fino, atacou o SUS no seu Twitter, disse que teve Covid sem sentir cócegas, que não vai se vacinar e concluiu com a frase imortal dos abusados: “Quem pode mais, chora menos”. O tweet foi postado 16 horas depois de o Grêmio, seu time de coração, levar de 4 X 0 do Flamengo. Com todo respeito aos demais gremistas, chora mais, Rigo.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/o-poder-politico-civil-25174643


Especialistas defendem punições para conter politização das PMs nos estados

João Doria afastou coronel que convocou militantes para manifestação a favor de Bolsonaro. Coronel Aleksander Lacerda também atacou o Supremo

Bianca Gomes / O Globo

SÃO PAULO — Conter uma possível politização das Polícias Militares passa por fortalecer mecanismos de supervisão, controle e auditoria dentro dos quartéis. Mas não só. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, é importante que manifestações de cunho político-partidários, vedadas na corporação, sejam punidas, como ocorreu nesta segunda-feira, quando o governador João Doria (PSDB) decidiu suspender o coronel Polícia Militar Aleksander Lacerda por ter atacado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e convocado militantes às ruas em apoio a Jair Bolsonaro.

Lacerda ocupava uma função política e seu afastamento do cargo não significa uma demissão. Para ser demitido, é preciso que o comando da PM instaure um inquérito policial militar e apure possível cometimento de crime, o que aí sim pode resultar em uma perda de patente ou mesmo prisão.

Nos estados: Atuação de bolsonaristas nas PMs preocupa governadores

Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima afirma que Doria agiu com rapidez e da maneira correta ao destituir o coronel na manhã desta segunda-feira. Segundo ele, manifestações como a de Lacerda têm ocorrido de maneira aberta e sem nenhum constrangimento, muito em função da mensagem passada pelas Forças Armadas ao não punir a participação do ex-ministro Eduardo Pazuello em uma manifestação política.

— A não punição de Pazuello abriu uma porteira e deixou os demais oficiais à vontade para se manifestar politicamente. Nesse cenário, não podemos simplesmente acreditar na solidez das instituições. Precisamos proteger e garantir que as normas sejam respeitadas. É preciso também fortalecer os mecanismos de supervisão, controle de auditoria — disse Lima, que é professor da FGV EAESP.

Para o presidente do Fórum, o processo de "contaminação político-partidária" das PMs não ocorreu só por parte do coronel Lacerda.

Merval PereiraAfastamento de coronel da PM de SP foi importante

— Não é um problema de hoje ou ontem. É um problema que vem se repetindo e as instituições não estavam preparadas para responder à gravidade desses atos — disse o especialista.

A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, diz que os governadores têm sido obrigados a agir diante de episódios como o de São Paulo e Pernambuco, onde policiais militares agrediram uma vereadora que participava de um protesto contra o Bolsonaro.

— É muito melhor quando o próprio comandante da PM lida com isso, mas nem sempre é simples. Avaliamos que, sim, é positiva (a decisão de Doria), porque o coronel que foi afastado era um coronel da ativa, em posto de comando, com um papel importante em relação à tropa, e nós precisamos segurar esses tipo de politização. Por outro lado, a gente sabe também que esse afastamento gera uma outra consequência. O policial acaba sendo visto com mártir e o próprio governador acaba sendo mais questionado por parte da tropa. De forma nenhuma é positiva essa situação, mas é importante que haja uma medida nesse sentido — disse ela ao GLOBO.

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Coronel da reserva da PM de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva disse que Lacerda cometeu uma infração grave, principalmente ao ofender Doria, que é quem tem o comando da tropa. Nas publicações, o coronel chamou o governador de São Paulo de “cepa indiana”.

— Foi absolutamente correta a decisão do governador. Imagino que até o Coronel Lacerda estava imaginando, já que ofendeu a principal autoridade a quem se reporta. Como um mal exemplo, teria de ser removido, justamente como foi. E a partir de agora, o comando da PM irá verificar as possibilidade de infração disciplinar e qual a gravidade e o tamanho da punição — disse o coronel.

Ao contrário do que diz Lima, o coronel da reserva não acredita que há uma politização da PM. Ele diz que os policiais são “simpáticos” a Bolsonaro e não há nenhum tipo de coordenação nacional em jogo.

Para ele, casos como o de Lacerda, apesar de "lobos solitários", não podem passar despercebidos pelos governadores:

— Os governadores precisam assumir definitivamente a governança de suas polícias. Não podem deixar passar as coisas. Além disso, é preciso estar atento aos locais onde as polícias estão descuidadas, já que a insatisfação profunda pode, sim, facilitar a manipulação política. Nesse sentido, não é preciso ver apenas o rigor da disciplina, mas o ânimo das polícias — disse José Vicente da Silva.

Outros estados passaram por turbulências da PM

Ceará

Em fevereiro de 2020, policiais militares do Ceará entraram em greve. Durante o motim, a crise de violência culminou com 241 pessoas assassinadas em nove dias no estado. A Constituição proíbe a paralisação da PM, mas o movimento teve como uma das lideranças o deputado Soldado Noélio (PROS), membro da base bolsonarista no estado. Cem PMs foram afastados da corporação.

Bahia

Insuflados pelas redes sociais bolsonaristas, PMs da Bahia protestaram contra o comando da corporação após o soldado Wesley Góes ser morto por agentes do Bope depois sofrer surto psicótico e disparar seu fuzil, em março, em Salvador. O deputado Soldado Prisco (PSC) quis associar decretos do governo de restrição à pandemia à morte do PM — antes de atirar na direção do Bope, ele gritou não querer “prender trabalhador”.

Pernambuco

No dia 29 de julho, durante protestos contra o presidente Jair Bolsonaro que ocorreu em todo o país, PMs do Recife agiram por conta própria contra manifestantes. Dois transeuntes que sequer participavam dos atos foram atingidos por balas de borracha, perdendo parte da visão. O comandante-geral da corporação pediu exoneração e outros dois oficiais foram afastados, assim como os cinco agentes envolvidos na ação.

Goiás

Em 31 de julho, um policial goiano parou um professor petista que exibia em seu carro uma faixa chamando o presidente Jair Bolsonaro de genocida, numa associação às mortes por Covid-19. O militar, que foi afastado das ruas para responder processo interno, usou como argumento para prender o professor a Lei de Segurança Nacional, criada na época da ditadura e revogada este mês pelo Congresso.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/especialistas-defendem-punicoes-para-conter-politizacao-das-pms-nos-estados-25167513


Governadores de 13 estados e do DF assinam nota em apoio ao Supremo

Gestores estaduais e distrital divulgaram nota pública “em face de constantes ameaças e agressões aos ministros do STF e suas famílias”

Flávia Said / Metrópoles

Governadores de 13 estados e do Distrito Federal divulgaram, nesta segunda-feira (16/8), uma nota pública em solidariedade ao Supremo Tribunal Federal (STF), aos ministros e às famílias, citando “constantes ameaças e agressões” à Corte.

“O Estado Democrático de Direito só existe com Judiciário independente, livre para decidir de acordo com a Constituição e com as leis. No âmbito dos nossos estados, tudo faremos para ajudar a preservar a dignidade e a integridade do Poder Judiciário”, diz a nota, que também pede serenidade e paz ao país.

Assinam o documento os governadores do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB); da Bahia, Rui Costa (PT); do Maranhão, Flávio Dino (PSB); de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB); de São Paulo, João Doria (PSDB); do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB); do Ceará, Camilo Santana (PT); da Paraíba, João Azevêdo (Cidadania); do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB); do Piauí, Wellington Dias (PT); do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT); de Alagoas, Renan Filho (MDB); de Sergipe, Belivaldo Chagas (PSD); e do Amapá, Waldez Goés (PDT).

A nota não faz menção explícita a qualquer autoridade, mas os governadores que a assinam são críticos da postura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem subido o tom nas declarações em desaprovação à Corte.PUBLICIDADE  

Mais sobre o assunto

No sábado (14/8), Bolsonaro disse que pedirá abertura de processo contra os ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O anúncio do mandatário da República foi publicado nas redes sociais e causou reações negativas de políticos.

Segundo Bolsonaro, o pedido será encaminhado esta semana ao presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

A afirmação do titular do Executivo federal veio um dia após o ministro Alexandre de Moraes determinar a prisão do ex-deputado e dirigente nacional do PTB, Roberto Jefferson, por suposta participação em uma organização criminosa digital montada para atacar a democracia.

“Na próxima semana, levarei ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pedido para que instaure processo sobre ambos, de acordo com o art. 52 da Constituição Federal”, tuitou Bolsonaro no sábado.

O artigo 52 da Constituição dá ao Senado Federal poder para “processar e julgar os ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o procurador-geral da República e o advogado-geral da União, nos crimes de responsabilidade”.

O clima entre Bolsonaro, o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) esquentou nos últimos dias, após ataques do presidente da República às urnas eletrônicas. Esta semana, Moraes abriu investigação contra o chefe do Executivo nacional por ele ter divulgado nas redes sociais inquérito sigiloso da Polícia Federal sobre a invasão de um hacker ao sistema de computadores da Corte eleitoral.

Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/governadores-de-13-estados-e-do-df-assinam-nota-em-apoio-ao-supremo


Miguel Reale Júnior: Quem fala pelo Brasil

Tem sido crescente o papel internacional dos entes da Federação no campo internacional. A iniciativa é oriunda do governo Pedro Simon no Rio Grande do Sul, em 1987 (http://contextointernacional.iri.puc-rio.br/media/salomon_vol29n1), seguido pelo do Rio de Janeiro, no mesmo ano.

A inserção no campo externo também coube a municípios, a principiar pelo de Porto Alegre. Sob a denominação de paradiplomacia, os entes subnacionais, em face da globalização, passaram a promover parcerias no exterior, criando secretarias de relacionamento internacional. A atividade passou a ser acompanhada a partir de meados dos anos 1990 pelo Itamaraty, por meio da Subchefia de Assuntos Federativos.

Como assinalam Marcovitch e Dallari (em Relações Internacionais de Âmbito Subnacional: a Experiência de Estados e Municípios no Brasil, IRI-USP), todos as Unidades da Federação têm órgãos encarregados de promover atividades internacionais, até com escritórios no exterior.

Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, destaca que a cooperação internacional entre entes subnacionais e outros países pode-se dar, como ação subsidiária, na captação de recursos; na promoção comercial e de turismo; no favorecimento de investimento e parcerias público-privadas e de cunho cultural (Diplomacia subnacional no Brasil – desafios do seu enquadramento jurídico), constituindo-se, assim, uma “diplomacia federativa”.

Mas o que acontece agora é fenômeno diverso. Não se trata de atuação isolada de ente da Federação agindo em seu nome em favor de interesse próprio, mas, sim, de ação conjunta dos Estados da Federação, que atuam solidariamente em favor do País, em nome do Brasil, vista a ausência do poder central em temas de absoluta prioridade na pauta interna e externa: combate à pandemia e proteção ao meio ambiente.

Decreta-se a destituição do governo central no plano internacional, dada sua omissão grave e a falta de legitimidade pelas atitudes negacionistas. Governadores de 23 Estados, representantes de 90% da população brasileira, tomam a iniciativa de clamar por ajuda no campo sanitário em prol do País, além de assumirem responsabilidades, com compromissos definidos, no âmbito da promoção concreta da recuperação e preservação do meio ambiente.

Bolsonaro perdeu respeitabilidade em razão da contínua omissão ante as desgraças evidentes que nos assolam. Não mais representa a Nação na órbita mundial, papel assumido pelos governadores. Estes, na esfera interna, são, ainda por cima, ameaçados com uso do Exército por tomarem benéficas medidas sanitárias.

No mês de abril houve duas relevantes manifestações de governadores a entidades internacionais e a governo estrangeiro. Em carta à ONU e à OMS, os governadores, na qualidade de líderes subnacionais de Estado-membro fundador da ONU, e ciosos do princípio da solidariedade, pedem ao mundo que se sensibilize com o atual estágio da crise sanitária que acomete o País.

Para tanto fazem cinco pedidos:

1) ajuda humanitária para obter mais imunizantes;

2) negociação entre Brasil e China para antecipar entrega de insumos farmacêuticos;

3) entrega das doses previstas pelo consórcio Covax Facility;

4) auxílio para obter insumos para a Fiocruz, no âmbito do contrato com a Astrazeneca; e

5) mediação junto aos EUA para obter vacinas que não serão aplicadas imediatamente.

Com o dramatismo que a mortandade exige, solicitam, para “assegurar a capacidade de atendimento dos hospitais da rede de saúde nacional, o auxílio para a obtenção de insumos hospitalares, a exemplo de oxigênio (…)”.

No âmbito da proteção ambiental, na semana da reunião sobre o clima promovida pelo presidente Joe Biden, os governadores enviaram-lhe missiva propondo cooperação entre os Estados Unidos e os governos estaduais brasileiros. “A cooperação visa à redução dos gases de efeito estufa, à promoção de energias renováveis, ao combate ao desmatamento e à conservação das florestas“.

Dizem que seus Estados podem contribuir com a captura de emissões globais e possuem fundos e mecanismos para responder à emergência climática, garantindo resultados para a proteção de biomas nativos e a restauração de áreas degradadas.

Por fim, demonstrando junção em torno de objetivo maior, acentuam que “a Coalizão Governadores Pelo Clima, ampla e diversa, envolvendo progressistas, moderados e conservadores, de situação e de oposição, sinaliza o desejo do Brasil por união e construção colaborativa de soluções em defesa da humanidade”.

Os governadores passaram a falar pelo País, diante da imagem negativa do Brasil, a se ver pelo manifesto de 200 cientistas de todos os países: “Nos preocupamos com o agravamento da crise sanitária no Brasil, com os ataques à ciência e nós, acadêmico(a)s de todo o mundo, demonstramos nossa solidariedade com os/as colegas no Brasil”.

Nem Bolsonaro, nem o superministro Guedes, com suas “frases infelizes”, são levados a sério. Com a palavra os governadores: falem em uma só voz pelo Brasil, para que sejamos ouvidos.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,quem-fala-pelo-brasil,70003699925


Míriam Leitão: Bolsonaro e ministros usam sucesso do leilão da Cedae para melhorar semana desastrosa

Antes de melhorar a água e ampliar a oferta de saneamento no Rio, a privatização da Cedae foi usada pelo presidente Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes, o ministro Eduardo Ramos, o senador Flávio Bolsonaro para tentar pular nas águas de uma notícia boa. Foi uma semana desastrosa para todos eles. A CPI começando, as derrotas no Senado, as declarações catastróficas de Guedes e do general Ramos, o fiasco de Flávio. A semana foi uma sucessão de fotos ruins para todos eles. Mas voaram todos para São Paulo, para sair na foto do leilão bem-sucedido.

O governador Claudio Castro tinha dito, num telefonema para o blog, que era um erro politizar um assunto que é técnico. “Não se pode resumir tudo a uma disputa entre Bolsonaro x Lula”. Mas sua afirmação de que não seria politizada não prevaleceu. O próprio governador aproveitou para, num dia emblemático do impeachment do ex-governador Wilson Witzel, tentar se alavancar. O presidente do BNDES, Gustavo Montezano, acentuou o ar politizado do evento. “Fluminenses avante”, disse e repetiu, chamou o governador de “herói” e outras grandiloquências. Depois dele, veio Paulo Guedes falando em “remover da miséria milhões de brasileiros”. O mesmo Guedes que se aborrece com o curso universitário do filho do porteiro.

Após Guedes, adivinha quem veio para martelar? O ministro Rogério Marinho, que se tornou o arqui-inimigo de Paulo Guedes. Para chamar também todos de “heróis”. E deixou claro que estava ali para fazer propaganda de Bolsonaro. Aproveitou para creditar ao presidente a transposição do Rio São Francisco. Bolsonaro, antes de também bater o martelo, aproveitou para mais uma vez tentar usar a figura divina em discurso político.

– Devo a Deus a minha segunda vida, devo a Deus o meu mandato.

Foi um show de demagogia. De fato, o leilão foi um sucesso, apesar de ter ficado um bloco sem comprador. A venda da Cedae teve até direito à emoção da disputa de viva voz pelo bloco 4, que teve 20 lances. No fim, o governo do Rio vai embolsar R$ 22 bilhões. O governador tinha falado que seria de 50% a 150% de ágio, e ficou em 114%. O consórcio Aegea arrematou dois blocos, e o consórcio, Iguá, outro. A dúvida é como ficarão os seis municípios do bloco 3, que permanecerão sob o serviço da estatal.

A venda da Cedae é um marco sim, mas é preciso martelar muito a realidade para dizer que tudo se deve aos que apareceram na foto. O projeto do marco regulatório do saneamento foi enviado pelo ex-presidente Michel Temer, foi salvo no Congresso pelo senador Tasso Jereissati, a modelagem da venda vem sendo feita há quatro anos pelos servidores do BNDES, como admitiu Montezano.

As privatizações às vezes parecem bem-sucedidas e depois dão errado, quando o comprador não faz o investimento, o governo usa mal o dinheiro arrecadado e o regulador não fiscaliza. O Rio sonha há muito tempo com um bom serviço de água e a universalização do saneamento. Que agora o governo do Rio fale sério e saia do palanque. Será preciso fortalecer a agência reguladora, será preciso fazer o investimento na Cedae que continuará sendo a produtora da água. Portanto, a nascente desse serviço. Se ela não melhorar a qualidade dos seus serviços, teremos apenas a geosmina.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/bolsonaro-e-ministros-usam-sucesso-do-leilao-da-cedae-para-melhorar-semana-desastrosa.html


Pablo Ortellado: Anvisa mostra independência

A não aprovação da importação da vacina russa Sputnik V mostrou que a agência brasileira mantém sua integridade e autonomia institucional, a despeito das pressões políticas que vêm de todos os lados: da opinião pública, que exige mais vacinas; dos governadores —muitos deles de esquerda —, que compraram milhões de doses; de setores do bolsonarismo que querem fazer da Sputnik “a vacina do Bolsonaro”, para se contrapor à “vacina do Doria”; além da própria Rússia.

Em seu parecer, a Anvisa apontou deficiências técnicas nos estudos clínicos, entraves para inspecionar a fabricação da vacina e, o mais grave, a presença de vírus replicante nas vacinas, o que poderia colocar em risco a saúde de quem as toma.

A decisão da Anvisa foi amplamente respaldada pela comunidade científica brasileira. O perfil da Sputnik no Twitter alegou, porém, que a vacina já foi aprovada em 61 países. O diretor da Anvisa Alex Campos respondeu que se trata de “países sem tradição de maturidade e robustez regulatória”. A Anvisa repassou seu parecer com observações sobre os vírus replicantes à OMS, que também está analisando a aprovação da vacina.

O atropelo no desenvolvimento da Sputnik tem sido alvo de críticas da comunidade científica desde o ano passado. A vacina foi registrada na Rússia antes da conclusão dos estudos clínicos da fase 1 e 2, e sua aprovação em outros países —como a Argentina — foi feita antes da conclusão da fase 3. Um estudo publicado na prestigiosa revista “The Lancet”, posterior ao registro, mostrou, no entanto, a eficácia da vacina.

A adoção da vacina na América Latina foi objeto de uma reportagem do jornal espanhol “El País”, que mostrou como a Argentina, depois de uma aprovação atropelada, promoveu a vacina junto a países ideologicamente alinhados, como México e Bolívia. O jornal “The New York Times” também fez uma reportagem sobre como a Rússia tem usado a vacina como instrumento de diplomacia, priorizando parceiros estratégicos à custa de sua própria população. Documentário recente de Álvaro Pereira Jr. mostrou a maneira agressiva como o governo russo restringe o acesso a informações sobre a Sputnik V.

Críticos da decisão da Anvisa têm alegado que a não aprovação da importação da Sputnik é resultado de pressão dos Estados Unidos. Em documento oficial da era Trump, o Departamento de Saúde americano relata que mandou um enviado ao Brasil para persuadir as autoridades brasileiras a rejeitar a vacina russa. A decisão recente da Anvisa, segundo esses críticos, seria fruto dessa pressão.

A suspeita, no entanto, não é apoiada por outros fatos. Em primeiro lugar, os argumentos da Anvisa para rejeitar a importação foram fortemente respaldados por especialistas. Além disso, se houvesse viés político nas decisões da Anvisa, ela jamais teria aprovado a CoronaVac, desenvolvida na China em parceria com o Instituto Butantan, ligado ao Estado de São Paulo, governado por João Doria. Ambos, China e Doria, são adversários declarados do presidente Bolsonaro.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/anvisa-mostra-independencia.html


Roberto Romano: Federação, municípios, morticínio. Tragédia nacional

Temos um povo dizimado pelo poder, que age como conquistador em terra arrasada

Jair Bolsonaro ataca Estados e municípios como inimigos a serem destruídos. Para ele, não existem cidadãos merecedores de respeito nas unidades federativas. Em vez de lutar contra a pandemia, o presidente gera batalhas contra as bases administrativas e políticas do País. Surgem os frutos assustadores: mais de 350 mil brasileiros entregues à tortura da morte sem ar, o que revolta quem sente misericórdia ou segue a ética e a moral.

O ignaro governante reitera – em cena macabra – uma guerra antiga das culturas políticas humanas. Trata-se do choque entre poderes centrais e municípios. Estes últimos eram desconhecidos na Grécia e na Roma primitiva. Ali existiam soberanas cidades-Estado. Na Itália as urbes eram livres para organizar suas práticas internas. Vencidas por Roma e ela ligadas em federação (foedus) dela recebiam em especial a justiça. O prefectus, agente romano, resolvia os casos urgentes, mas o júri reunia habitantes locais, cujas instituições eram mantidas.

Os elos entre municípios e Roma se retraíam e se estendiam conforme as vicissitudes políticas, econômicas, sociais. Ora o poder se concentrava, ora se espraiava pelas bases federadas. Os municípios conservavam independência na sua organização, a assembleia do povo elegia os dirigentes. “Os magistrados municipais têm sobre os cidadãos o imperium. Todos obedecem à lei votada pelo povo e se inclinam diante dos administradores nas taxas ou nos trabalhos públicos. Em casos extremos o município cede aos poderes centrais e a lei de Roma toma a dianteira” (Mommsen). “Em casos extremos”, sublinhemos.

Após a chamada “guerra social”, quando as cidades italianas exigiram tratamento similar ao concedido a Roma, os municípios se generalizaram. Cito novamente o grande historiador Mommsen: “O município, constituído no interior do Estado e a ele se subordinando, é uma das mais notáveis manifestações políticas e das mais fecundas da era comandada por Sylla. As reformas constitucionais de Sylla definem um Estado cuja base é múltipla, a das comunas locais”. Dentre os municípios do Estado romano temos Olissipo, Lisboa. Aquelas unidades começaram a ruir por causa dos abusos das autoridades locais, abusos agravados pelo aumento sem freios do fisco em vantagem do poder central.

Os esqueletos municipais serviram às cidades europeias na resistência ao moderno absolutismo, cuja tarefa era unificar os Estados monárquicos. Nos século 16 e 17 tudo fizeram as Cortes para arrancar finanças e poderes dos municípios. Hobbes pensa as urbes como ameaça ao poder absoluto e vê como doença “a desmesurada grandeza de uma cidade, quando ela é apta a fornecer para além de seu próprio domínio os números e o pagamento de um grande exército” (Leviatã). A história da centralização estatal passa pela beligerância entre a Corte e os municípios. Tocqueville (O Antigo Regime e a Revolução) revela as táticas do rei: ele arranca das cidades as suas prerrogativas, como a de eleger os próprios magistrados, para revendê-las com lucro aos mesmos municípios. O prefeito assim escolhido, acrescenta Tocqueville, tem poder menor do que o fiscal do Reino. Daí ser possível aquilatar o grau de corrupção do Antigo Regime. Nele tudo se vende, tudo se compra. O Antigo Regime é um imenso Centrão.

Não citei Lisboa por acaso. Quando surge o Brasil os reis europeus – incluído o português – controlam os países, os municípios perdem força. Em nossa terra os municípios existem, mas não há foedus com a Corte, apenas subordinação. Líderes locais são desprovidos de real autonomia, como seus colegas da Europa absolutista. Tal realidade vigora no Império e na República. Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) analisa o controle e o parasitismo do poder central em relação às cidades. Impostos são retirados dos cofres municipais e para eles quase nunca retornam. Tal regime faz dos poderes subordinados fontes de recursos para o Executivo do País, sem retorno em obras públicas dignas do nome.

Com documentos a autora mostra aí a fonte brasileira da indistinção entre público e privado, o compadrio político e outras mazelas. Para obter verbas surgem as oligarquias regionais. No Congresso elas vendem apoio ao presidente/monarca. Tal é a gênese do perene Centrão.

As ditaduras do século 20 reforçam o Executivo nacional. Temos uma enganosa Federação a jungir Estados e municípios. Se na Presidência há uma pessoa despótica e desprovida de saberes – jurídicos, políticos, científicos, históricos –, o combate pátrio vira carnificina. Temos um povo dizimado pela virulência do poder, que age, em relação aos municípios, como conquistador em terra arrasada. Os mortos, hoje aos milhares, são enterrados sem justiça.

Se a Federação brasileira não deixar de ser apenas farsa, seguiremos sob o guante de dirigentes que violam os direitos de Estados e municípios, espaço onde vivemos ou morremos. Quem não respeita tal fato da vida pública não merece governar.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da Razão’ (Perspectiva)


Elio Gaspari: Vinte e quatro governadores numa impertinência

Governadores que entregaram carta a Biden praticaram uma marquetagem imprópria, incompetente e inútil.

Os 24 governadores que entregaram ao embaixador americano Todd Chapman uma carta ao presidente Joe Biden oferecendo o “desenvolvimento de parcerias e de estratégias de financiamento” para a proteção do meio ambiente praticaram uma marquetagem imprópria, incompetente e inútil. (Os governadores de Santa Catarina, Rondônia e Roraima não assinaram a carta.)

Foi uma iniciativa imprópria, porque não compete a governadores propor “estratégias” a governos estrangeiros. Na carta, os doutores falam em nome dos “governos subnacionais brasileiros”. Ganha um fim de semana num garimpo ilegal, quem souber o que é isso.

É incompetente, porque uma colaboração internacional para defender o meio ambiente (leia-se proteger a Amazônia dos agrotrogloditas aninhados no bolsonarismo) não precisa ser buscada na Casa Branca. Até o ano passado, ela era ocupada por um tatarana. Existem organizações credenciadas para negociar essas “parcerias”.

À incompetência e à impertinência junta-se um fator de inutilidade historicamente documentada. Os Estados Unidos, como qualquer outra nação, tem interesses. Os amigos são asteriscos. Governadores “amigos” acabam virando massa de manobra.

Em 1961, o presidente John Kennedy lançou um programa chamado Aliança para o Progresso. Tratava-se de barrar a influência do comunismo cubano promovendo reformas sociais na América Latina. Coisa fina, mobilizando quadros da elite que trabalhara nas transformações dos Estados Unidos durante os mandatos de Franklin Roosevelt e na Europa do pós-guerra. Nesse grupo, estava o professor americano Lincoln Gordon, com seu currículo de Harvard e Oxford, mais a experiência adquirida durante o Plano Marshall .

Kennedy nomeou Gordon para a embaixada no Brasil, e ele fez parcerias com governadores amigos, como Carlos Lacerda, no Rio, Ney Braga, no Paraná, e Aluízio Alves, no Rio Grande do Norte. O que havia sido uma ideia de reformas sociais para o continente transformou-se aos poucos num instrumento de interferência política. Em menos de um ano, Gordon estava no Salão Oval da Casa Branca, discutindo também a possibilidade de um golpe militar no Brasil. Trabalhava-se com os “bons governadores” e estimulavam-se projetos que impedissem avanços de candidatos de esquerda.

No final de 1962, Gordon percebeu que a essência reformista da Aliança para o Progresso tinha morrido. Sua embaixada, e ele, estavam noutra.

Em 1964, deposto João Goulart, os governadores Ney Braga, Carlos Lacerda e Aluízio Alves tornaram-se joias da coroa da Aliança para o Progresso e da nova ordem. Quatro anos depois, Lacerda e Aluízio Alves foram banidos da política pela ditadura.

Em 1971, o diretor do programa de segurança pública da USAID, filha da Aliança para o Progresso, foi perguntado por um senador que pretendia denunciar a ação dos torturadores brasileiros:

— Uma dura declaração de nosso governo ou de sua embaixada talvez os inibisse? (...) O senhor não concorda ?

— Eu não acredito, senador, e estou habilitado a responder assim.

(O doutor disse aos senadores que não sabia o que era a Operação Bandeirantes. Era a mãe do DOI.)

A essa altura, Gordon estava desencantado com os rumos do regime brasileiro, e a embaixada em Brasília informava que seria inútil aconselhar os empresários americanos a se afastarem da caixinha de colaborações para as agências de repressão política.

Vila Kennedy, um sonho americano

No mesmo depoimento aos senadores americanos, o burocrata da USAID disse que à noite se sentiria “mais seguro no Rio” do que em Washington. Em 1971, a capital americana estava mal das pernas, e o Rio tinha o Esquadrão da Morte. Passou o tempo e deu no que deu.

Um dos projetos mais vistosos da Aliança para o Progresso foi a construção da Vila Kennedy, no Rio de Janeiro. O projeto fazia a alegria do andar de cima. Havia uma favela no Morro do Pasmado, entre Botafogo e Copacabana. Tratava-se de tirar os moradores dos barracos, levando-os para um subúrbio da cidade. Construíram-se casas populares, instalou-se uma pequena réplica da estátua da Liberdade numa pracinha. A USAID botou US$ 25 milhões em dinheiro de hoje.

Passou o tempo, e no entorno da Vila surgiram mais de dez comunidades e as narcomilícias. Em 2018, a demofobia entrou na região com a cloroquina da ocasião: a intervenção do Exército, com a utilização de 1.400 soldados. Militares distribuíram flores no Dia da Mulher, e a Vila Kennedy deveria ter sido a vitrine das operações militares. Virou resort do Comando Vermelho, e dois anos depois drogas eram vendidas no pedaço em regime de drive-thru.

Madame Natasha

Madame Natasha faz qualquer coisa pelo meio ambiente, mas não participa de queimadas do idioma. Na quinta-feira, não houve reunião de cúpula de chefes de Estado. Houve, quando muito, um vídeo muito chato.

Desde sempre, as reuniões de cúpula reúnem governantes que às vezes discursam, mas sempre conversam reservadamente. Essa é a parte útil dos encontros. Na cúpula de Biden, houve só a parte inútil.

No mesmo dia, houve muito mais interesse e emoção com a plenária virtual do Supremo Tribunal Federal confirmando a suspeição do então juiz Sergio Moro.

Rascunho perdido

No rascunho que Ricardo Salles preparou para o discurso de Bolsonaro de quinta-feira, alguns países europeus seriam atacados

Os parágrafos foram para o arquivo.

A Europa livrou-se de uma boa.

Receio real

Jair Bolsonaro e seu pelotão palaciano estão convencidos de que há uma articulação para tirá-lo da cadeira.

Quando esse temor entra no palácio, o governo deixa de ter projeto.

Só isso explica que Bolsonaro tenha sido capaz de dizer que “o Brasil está na vanguarda dos esforços de parar o aquecimento global”.

Salles na mira

O ministro Ricardo Salles haverá de se dar conta de que a mais letal das encrencas em que se meteu foi a da joelhada que deu na Polícia Federal, com a demissão do delegado Alexandre Saraiva.

Para a corporação, Salles solidarizou-se com delinquentes. Nenhuma polícia do mundo deixa isso barato.

Braga Netto em 22

O general da reserva Walter Braga Netto, ministro da Defesa, defendeu o governo dizendo que “é preciso respeitar” o “projeto escolhido pela maioria dos brasileiros” para dirigir o país.

Fica combinado que ele continuará na mesma posição em novembro 2022 quando terminar a contagem dos votos da eleição presidencial.

Isolamento no ócio

Nos próximos quatro domingos, o signatário cumprirá um programa de isolamento com ócio.


Ricardo Noblat: O paradoxo Bolsonaro – entre a pandemia e a CPI da Covid

O presidente colhe o que plantou

Quatro ministros da Saúde depois e com a estagnação do ritmo de vacinas aplicadas porque não as comprou a tempo, o máximo que fez até aqui o governo Bolsonaro contra a pandemia da Covid foi montar um comitê especial para cuidar do assunto formado por representantes dos três poderes da República e sob o comando de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado.

Nos últimos 30 dias, o comitê instalado com toda pompa reuniu-se duas vezes e só produziu abobrinhas. Bolsonaro faz questão de manter-se diante dele. Não quer ouvir falar de máscara, lavar as mãos com álcool gel, e respeitar medidas de isolamento. Atrapalharia suas pregações diárias e passeios semanais, todos na direção contrária do que aconselha o comitê.

Prefere continuar insistindo com o uso da cloroquina e de outras drogas sem eficácia para combater o vírus – o tal do tratamento precoce que ele agora não chama pelo nome para não ter seus vídeos suspensos nas redes sociais. Ultimamente, deu para acenar com a intervenção do Exército contra qualquer tentativa de lockdown nacional ou de saques ao comércio.

De fato, o espantoso é que até agora, dado ao crescente número de desempregados e de pessoas que retornaram à condição de miseráveis, não se tenha notícia de atentados à ordem pública. Ao que tudo indica, Bolsonaro torce para que isso aconteça com a esperança de angariar novos poderes a pretexto de restabelecer o império da ordem e da lei. É o seu sonho.

Na outra ponta das preocupações do presidente está a CPI da Covid no Senado que será instalada na próxima terça-feira. Dos 11 membros da CPI, 6 são independentes e de oposição ao governo, e 5 mais ou menos governistas, a depender do andar da carruagem. Na verdade, a um ano das eleições gerais de 2022, ninguém ali está disposto a se imolar para salvar o mandato de Bolsonaro.

Cuide-se, Bolsonaro, portanto – e é o que ele passou a fazer mobilizando todos os recursos ao seu alcance. Deu ordem ao general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, para que montasse uma força tarefa, composta por representantes de todos os ministérios, encarregada de coletar documentos e informações que possam ser usadas a favor do governo na CPI.

Estão sendo mapeados os funcionários e ex-funcionários do governo que poderão ser convocados a depor. E a eles será oferecido treinamento sobre como comportar-se e o que dizer em depoimentos e acareações. Dos ex-funcionários, o que inspira maior cuidados à força tarefa é o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, desempregado e um pote de mágoas.

Uma marca indelével do governo Bolsonaro é a de estar sempre correndo atrás do prejuízo semeado por ele mesmo. Dito de outra maneira e bem ao gosto dos nordestinos: o presidente está como um vira-lata sem dono e perdido em meio à festa do santo padroeiro de uma cidade, a pular assustado daqui para acolá a cada vez que uma bomba estoura perto dele.


Eliane Cantanhêde: O nosso Exército, sem aspas

Objetivo não é usar Exército contra o caos, mas contra a CPI, o STF e a candidatura Lula

O ex-presidente Lula coleciona vitórias no Supremo e o presidente Jair Bolsonaro reage com medo a Lula e à CPI da Covid, ameaçando os governadores – e o País – com o Exército nas ruas. Está apoiado no GSI, no novo ministro da Defesa, general Braga Neto, no novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, e em todos os seus ministros? Isso não é brincadeira.

O Supremo já tem maioria pela suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá, que levou Lula à prisão por 580 dias. O grande vitorioso é Lula, já em campanha para 2022. Os maiores derrotados são Moro e a Lava Jato. E perde também o relator Edson Fachin, que tentou favorecer Lula e a Lava Jato ao mesmo tempo. Não rolou.

Bolsonaro está em pé de guerra. Já não se refere ao “meu Exército”, mas ao “nosso Exército”, e embrulha seus propósitos com legalidade ao dizer que vai usar os militares para “fazer valer o artigo 5.º da Constituição”, sobre o direito de ir e vir, a liberdade de trabalho e culto. Mero pretexto, porque ele nunca esteve preocupado com direitos e não vê a hora, isso sim, de dar um golpe branco, dentro da lei.

Por que ele inviabilizou o Censo pelo segundo ano seguido? Pelo medo da terrível realidade que o IBGE divulgaria às vésperas da eleição. É justamente por causa dessa realidade, de desemprego, fome, drama social, que o presidente acena com Exército nas ruas.

O que evitaria esse caos? Liberar geral? Deixar o vírus tomar conta do País de vez? Não. É o oposto. Uma política nacional para restringir com rigor a circulação de pessoas e garantir rápida e maciçamente as vacinas é o que seguraria o vírus, aliviaria o sistema de saúde, garantiria a volta à normalidade e a reação da economia mais rapidamente.

Depois de exibir os generais Braga Neto e Eduardo Pazzuelo num ato de campanha em Goianópolis (GO), sem máscara e distanciamento social, Bolsonaro arranjou um cargo para Pazzuelo, pôs o general debaixo do braço e foi com ele a Manaus, síntese dos erros na pandemia. E há a primeira manifestação do novo comandante do Exército.

O general Paulo Sérgio tirou 10 ao praticar no Exército tudo o que Bolsonaro não praticou no País contra a pandemia. Não foi nomeado por isso, obviamente, mas entrou em sintonia com o presidente ao dizer que o Exército é 1) “vigoroso vetor de estabilidade e de garantia da ordem e da paz social” e 2) “esteve e estará sempre junto ao povo brasileiro”. Isso reforça a dúvida desta coluna em 18/4: que povo? A Nação brasileira ou o “povo” do Bolsonaro?

Excepcionalidade exige medidas excepcionais. Estados e municípios decretam restrições à circulação, a cultos e compras, não por serem sádicos, contra a Constituição e queiram destruir a economia, mas pelo oposto: porque têm de salvar vidas e recuperar o quanto antes a economia. Com a incerteza das vacinas, a arma é isolamento. Mas o presidente ataca pelos dois lados: é o grande culpado pela falta de vacinas e guerreia também contra os paliativos.

Bolsonaro é um prato cheio para a CPI e a entrevista do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten à Veja, apesar da dubiedade, põe mais pimenta ao acusar o Ministério da Saúde de Pazzuelo pelo fracasso na compra da Pfizer em 2020 e relatar que a questão foi tratada – e as chances desperdiçadas – dentro do gabinete presidencial.

Bolsonaro fez tudo errado desde o primeiro momento, deu no que deu. Agora, quer manipular o Exército, atacar os governadores e prefeitos e convencer o “povo” de que a culpa do caos é do combate à pandemia, não da sua total incompetência no combate à pandemia. Seu real objetivo é usar as Forças Armadas, não contra o caos que ele criou e alimenta, mas contra a CPI, o STF e a candidatura Lula.


Gil Alessi: Governadores preparam carta a Biden para driblar protagonismo negativo de Bolsonaro

Com presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de críticas pelo aumento do desmatamento no país, chefes dos executivos estaduais querem acesso aos recursos dos EUA

Em meio à lentidão do processo de imunização contra a covid-19 no Brasil, e com o pedido feito por ONGs para que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não negocie “a portas fechadas” questões ambientais com Jair Bolsonaro, governadores brasileiros lançarão nos próximos dias iniciativas nestas duas frentes em busca de protagonismo —e de resultados concretos. Chefes de 23 Executivos estaduais formaram um bloco chamado “Coalizão Governadores Pelo Clima”, que assina uma carta endereçada ao mandatário americano.

O documento será entregue ainda este mês ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem de três páginas eles divergem de Bolsonaro ao defender o Acordo de Paris —que o presidente já falou em abandonar— e “o cumprimento do Código Florestal para a conservação das florestas e da vegetação nativa” —outro contraste com o Planalto, cujo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defende a flexibilização das leis para “passar a boiada”.

A carta é assinada por governadores de oposição a Bolsonaro, como João Doria (SP), Flávio Dino (MA) e Fátima Bezerra (RN), mas também por simpatizantes do presidente, como Romeu Zema (MG) e Cláudio Castro (RJ). Na mensagem eles se dizem preocupados com a situação e “conscientes da emergência climática global”. Também se colocam como atores capazes de contribuir com a solução caso tenham acesso aos recursos necessários, preenchendo um certo vácuo diplomático deixado pelo Governo Federal. “Nossos Estados possuem fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação segura e transparente de recursos internacionais, garantindo resultados rápidos e verificáveis”, diz o texto.

A articulação acontece às vésperas da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, que será realizada de forma virtual em 22 e 23 de abril e para qual o Governo Joe Biden convidou Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral em 2020 Biden chegou a dizer que poderia aplicar sanções contra o Brasil caso o país não controlasse o desmatamento. Depois de eleito, o tom de ameaça foi suavizado apesar dos recordes de devastação da floresta, e o enviado especial do Clima da Casa Branca, John Kerry, chegou a realizar uma videoconferência com o ministro Ricardo Salles e o então chanceler Ernesto Araújo para tratar do tema.

Todo o interesse não é em vão. A proteção dos biomas brasileiros é um negócio que movimenta bilhões de dólares. Desde o início do Governo Bolsonaro diversos fundos europeus ameaçaram suspender repasses destinados à preservação da floresta até que o Brasil mostrasse comprometimento com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e também em outros biomas. Noruega e Alemanha, por exemplo, bloquearam no final de 2019 o envio de recursos para o Fundo Amazônia, um dos principais do setor. Até o acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, assinado em junho de 2019, tem sua implementação arrastada à medida em que países como França e Áustria resistem a que ele saia do papel alegando preocupações ambientais.

O anúncio do contato dos governadores com Biden também ocorre uma semana após um grupo com mais de 200 ONGs ligadas a questões ambientais ter enviado ao presidente americano uma carta na qual criticam eventuais negociações “a portas fechadas” feitas entre os dois mandatários sobre a Amazônia sem a inclusão da sociedade civil. “Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo [Bolsonaro]”, afirmam em um trecho da mensagem, que também defende a participação dos Estados e comunidades locais nas tratativas. “Bolsonaro (...) compromete os Acordos de Paris ao retroceder na ambição da meta climática brasileira. Negacionista da pandemia, transformou seu país num berçário de variantes do coronavírus, condenando à morte parte da própria população”, conclui o texto.

Novos focos de atrito entre governadores e Planalto

A iniciativa dos governadores de contactar diretamente Biden tem potencial para provocar ainda mais atrito entre eles e o presidente. Ambas as partes já vivem uma relação bastante conturbada, erodida desde o início da pandemia quando Bolsonaro passou a atacar os executivos estaduais por tentarem controlar a crise sanitária com isolamento e restrições. Posteriormente, acusou os governadores de fazerem uso político da covid-19 e desviar recursos do Governo Federal destinados à Saúde.

Indagado sobre a possibilidade de conflitos com o Planalto, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), um dos signatários da carta, é taxativo: “Não estamos defendendo uma posição política individualista, e sim a posição do Brasil. Ela não foi alterada, apesar de verbalização [de Bolsonaro] no sentido diferente, as regras continuam as mesmas, não houve alteração da Constituição ou no Legislativo e Judiciário com relação à necessidade de proteger o Meio Ambiente”. Segundo ele, a ideia é que “Biden atente ao fato de que a posição no Brasil precisa ser uma posição que envolva os três poderes, e não apenas um”.

A carta dos Governadores pelo Clima não é a única iniciativa destes políticos que pode afrontar Bolsonaro. Nesta sexta-feira integrantes do Fórum Nacional de Governadores irá realizar por videoconferência uma reunião com a secretária-geral adjunta da Organização das Nações Unidas, Amina Mohammed. Na pauta, o pedido por “ajuda humanitária ao Brasil” em função da situação de descontrole da pandemia do novo coronavírus no país. “Queremos a sensibilização da ONU para que a Organização Mundial da Saúde agilize a entrega de vacinas para o Brasil”, afirmou Dias, referindo-se às doses do consórcio capitaneado pela entidade.

O protagonismo dos governadores na pandemia é uma questão crucial para Bolsonaro. Até o momento o Planalto ficou a reboque de iniciativas estaduais quando o assunto é imunização: boa parte das doses aplicadas nos mais de 23 milhões e brasileiros até esta terça-feira foi produzida no Instituto Butantan, em uma iniciativa do Governo paulista. Desde fevereiro outros governadores já iniciaram tratativas com laboratórios estrangeiros em busca de mais vacinas —algumas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como é o caso do imunizante russo Sputnik V, adquirido por Camilo Santana (CE) e Flávio Dino (MA).