golpe

Merval Pereira: Uso político das Forças Armadas

A tentativa do presidente Bolsonaro - um tenente sindicalista que acabou saindo do Exército por questões disciplinares, promovido a capitão - de politizar sua relação com as Forças Armadas gerou uma nova crise interna. Ele reduziu, através de decreto, o critério para a promoção do último posto das Armas - coronéis do Exército e da Aeronáutica, e Capitães de Mar e Guerra. Em vez de promoção também no Quadro de Acesso por antiguidade (QAA), as promoções passariam a ser apenas por merecimento (QAM - Quadro de Acesso por Merecimento).

Houve reações internas, pois a promoção apenas por merecimento poderia ensejar uma decisão política do presidente da República, que é quem dá a última palavra. Três dias depois o decreto foi cancelado, voltando tudo ao que era antes. O presidente Bolsonaro cultiva desde sempre o relacionamento com os militares, primeiro para ganhar votos especialmente das patentes inferiores, pois defendia os interesses da classe no Congresso, o que lhe garantiu sete mandatos de deputado federal seguidos.

Na presidência da República, aparelhou seu ministério e os demais órgãos do governo com militares de diversas patentes, da ativa e da reserva. Boa parte sem qualificação para os cargos que ocupam, como o ministro da Saúde, General da ativa. E passou a prestigiar qualquer cerimônia militar, especialmente nas escolas de formação de oficiais.

No tempo em que acalentava abertamente ideias golpistas, vivia repetindo que contava com o apoio das Forças Armadas. Recentemente, houve um atrito diante das repetidas tentativas de politizar a questão militar. O comandante do Exército, General Pujol, aproveitou uma solenidade para deixar clara sua posição: “Nosso assunto é militar, preparo e emprego. As questões políticas? Não nos metemos em áreas que não nos dizem respeito. Não queremos fazer parte da política governamental ou do Congresso Nacional e muito menos queremos que a política entre em nossos quartéis.”

O incômodo foi tão grande, com Bolsonaro fazendo questão de repisar que era o Comandante em Chefe das Forças Armadas, que o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva viu-se obrigado a soltar uma nota oficial afirmando que o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado "apreço pelas Forças Armadas" e que esse sentimento "tem sido correspondido".

Curiosamente, essa tentativa de interferir na estrutura interna das Forças Armadas para tirar proveito político, pois Bolsonaro teria condições de nomear oficiais-generais das três Armas mais alinhados à sua visão política, foi feita também pelo PT no governo Dilma.

Um decreto assinado por ela transferia para o Ministério da Defesa poderes dos comandantes militares, entre esses a promoção aos postos de oficiais superiores; designação e dispensa de militares para missão de caráter eventual ou transitória no exterior; nomeação e exoneração de militares, exceto oficiais-generais, para cargos e comissões no exterior criados por ato do presidente da República; poder de transferir para reserva remunerada oficiais superiores, intermediários e subalternos, bem como a reforma de oficiais da ativa e da reserva e de oficial- general da ativa, após sua exoneração ou dispensa de cargo ou comissão pelo presidente da República.

Na ocasião, o então deputado federal Jair Bolsonaro denunciou da tribuna que o objetivo real do decreto era interferir na formação dos oficiais das três Armas. Isso porque o art. 4 º do texto revogava o decreto n º 62.104, de 11 de janeiro de 1968, que delegava “competência aos ministros de Estado da Marinha, do Exército e da Aeronáutica para aprovar, em caráter final, os regulamentos das escolas e centros de formação e aperfeiçoamento respectivamente da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica militar”.

Ao revogar o decreto de 1968, essa função passaria automaticamente para o Ministério da Defesa, que teria em suas mãos um poder de controle sobre a formação e a promoção de oficiais-generais. Como agora, o decreto foi cancelado por outro.

Mas, um documento oficial do PT após a vitória de Bolsonaro para a presidência da República afirmava abertamente que um dos erros do partido quando esteve no poder foi não interferir no currículo das escolas de formação dos militares.


‘Trump aposta em pauta sensível ao eleitor de direita’, afirma Marcos Sorrilha

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, professor da Unesp diz que os dois candidatos ‘coincidem em que a China é um problema para a América’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem acrescentado pauta própria e muito sensível ao eleitor de direita do país, de acordo com o historiador e professor professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Marcos Sorrilha Pinheiro. “A ênfase na lei e na ordem, sua plataforma preferida na tentativa de alertar a população do país contra os efeitos da campanha de Biden, de maior aproximação com as minorias étnicas”, explica ele, em artigo que publicou na 23ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.

Clique aqui e acesse a 23ª edição da revista Política Democrática Online!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com Pinheiro, dos temas centrais que norteiam a escolha do próximo presidente, cinco despontam com particular importância: pauta étnica, economia, relações com a China, coronavírus e questão climática.

Biden, na avaliação do historiador, parece ter dois pontos seguros a seu favor, ao passo que Trump luta para consolidar seu posicionamento em ao menos dois deles também. Apenas a China está em aberto. “Ambos os candidatos coincidem em que a China é um problema para a América”, analisa o professor da Unesp.

Neste exato momento, segundo Pinheiro, a corrida eleitoral ganha contornos de indecisão. “Após três meses de muitos tumultos em torno da figura de Donald Trump – causados pela derrubada do PIB, pelas mortes causadas pela Covid-19 e pelas manifestações antirracistas –, em que uma vitória esmagadora de Biden parecia se desenhar, o atual presidente se recuperou nas pesquisas, aumentando sua vantagem em Estados ameaçados, como o Texas, e aproximando-se de seu opositor em dois campos de batalha: Flórida e Pensilvânia”, escreve o autor do artigo.

De certa maneira, avalia o professor da Unesp, a economia começa a dar sinais de recuperação e isso pode ser bom para Trump. “Além disso, o aumento das tensões em torno das manifestações étnicas é uma carta que ele mobiliza com frequência, tentando plantar o medo, vendendo a imagem de Biden como se fora a marionete da ala radical do partido, atrelada àqueles movimentos”, diz, para continuar: “Por outro lado, o candidato democrata sai-se bem em temas que são tidos como muito importantes entre os eleitores independentes – a questão climática e a crise do coronavírus – com as quais, estimam, Biden saberá lidar com mais competência”.

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Marcus Vinicius Oliveira analisa desafios da esquerda com base na via chilena

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, historiador toma como base livro de Alberto Aggio

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, conforme analisa o doutor em história Marcus Vinicius Oliveira, em artigo que produziu para a 23ª edição da revista Política Democrática Online. “Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários”, afirma.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos com acesso gratuito em seu site. Em seu artigo, Oliveira analisa, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

“Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder, “ escreve o doutor em história, para continuar: “Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático”.

De acordo com o autor do artigo, é preciso refletir em torno dos significados da experiência para a política contemporânea. “Não revisitamos a ‘experiência chilena’ para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI”, afirma.

Distante de qualquer perspectiva socialista, segundo Oliveira, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

“Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence”, afirma o doutor em história. Para o presente, conforme acrescenta, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

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Arquivos do jornal Voz da Unidade registram luta pela democracia no Brasil

Arquivos do jornal Voz da Unidade registram luta pela democracia no Brasil

Produzido pelo PCB, semanário circulou de 1980 a 1991 e reforçou busca por unidade das forças democráticas no país

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Era 1979. Com o Brasil comandado pelo presidente João Figueiredo, cujo governo marca o último período da ditadura militar no país, intelectuais comunistas apostaram na informação como estratégia de fortalecimento da unidade das forças democráticas contra o regime. Começaram a organizar um semanário, ligado ao então PCB (Partido Comunista Brasileiro), protagonista da intensa luta pela redemocratização. No ano seguinte, nasceu a Voz da Unidade, que foi além das fronteiras partidárias para dialogar diretamente com a imensa população de trabalhadores.

Para acessar os arquivos do jornal Voz da Unidade, clique no link

Confira aqui o tutorial para acessar os arquivos do jornal Voz da Unidade (veja também o tutorial no final desta reportagem)

“Voz da Unidade surge para ser expressão e veículo de uma corrente de pensamento, cuja linha de ação está orientada para ajudar a classe operária e todas as forças democráticas do país a conseguirem que a solução dos problemas políticos, econômicos e sociais que afligem a nação se dê em benefício das grandes massas do nosso povo, rompendo com os privilégios dos monopólios, banqueiros e latifundiários”. É o que diz um trecho publicado na capa da primeira edição do jornal, em março de 1980. Todas as edições digitalizadas do semanário, que circulou até 1991, estão disponíveis para o público, a partir desta segunda-feira (21/09), no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

O jornal, que circulava legalmente, mantinha acesos os valores democráticos e republicanos defendidos, na época, pelo então PCB, e deu mais combustível à luta pela legalização do partido. A sigla só ficou legal por um breve período até 1947. A partir de então, ficou clandestina até 1985. Voz da Unidade também representa uma continuidade da linha do jornal mensal Voz Operária, que, em 1975, passou a ser editado na Europa por líderes que se tornaram perseguidos políticos e distribuído, até 1979, clandestinamente, no Brasil, que estava sob forte repressão política do regime ditatorial.

Luiz Carlos Azedo trabalhou no semanário por dois períodos: de 1980 a 1982, em equipe liderada pelo jornalista Noé Gertel

Com a publicação da Lei da Anistia, em 1979, que permitiu o retorno de exilados ao Brasil, os intelectuais encontraram mais uma força para rearticulação e defesa das frentes democráticas. “O partido, reconhecidamente, teve papel importante na formulação da estratégia da oposição para derrotar o regime militar e a Voz da Unidade, assim como a Voz Operária, registra como o processo político avançou na direção da unidade das forças democráticas para derrotar o regime”, afirma o jornalista Luiz Carlos Azedo (foto acima). Ele trabalhou no semanário por dois períodos: de 1980 a 1982, em equipe liderada pelo jornalista Noé Gertel, com a direção da redação ocupada por João Batista Aveline, e, de 1987 até a última edição, em 1991, quando foi diretor responsável do jornal.

A Voz da Unidade era pautada por assuntos de interesse público, relevantes e atuais, como política nacional e internacional, economia, cultura e meio ambiente. Em texto publicado em seu site e com o título “O PCB e o jornal Voz da Unidade”, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), faz uma análise desde a primeira publicação do semanário.

Marco Aurélio Nogueira foi editor-chefe do jornal durante um ano, entre 1981 e 1982

“Eu estava entre os editores, em um Conselho de Orientação Editorial, de que participavam Gildo Marçal Brandão, Armênio Guedes e representantes do Comitê Central do partido. Na festa de lançamento do jornal, fui encarregado de fazer o discurso principal, em nome da redação, diante de milhares de pessoas que foram patrocinar o evento”, escreve Nogueira. Ele foi editor-chefe do jornal durante um ano, entre 1981 e 1982.

Atentado e tensão nas ruas

No início de década de 1980, ainda havia muita tensão nas ruas, e atentados assustavam a população, numa tentativa da ditadura militar de enfraquecer a redemocratização. Em um dos episódios, em agosto daquele ano, uma carta-bomba foi enviada à OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro), onde também funcionava o Conselho Federal da instituição. A chefe da secretaria, Lydia Monteiro da Silva, de 59 anos, morreu ao abrir o documento.

“Terroristas de direita passaram a explodir bombas em bancas de jornais, pressionando os jornaleiros a não venderem os jornais da chamada ‘imprensa alternativa’, que éramos nós. Uma covardia que gerou muita tensão. Fazer o jornal, distribuí-o e vendê-lo passou a ser muito arriscado”, conta o jornalista Marco Damiani, que começou como repórter-estagiário na Voz da Unidade e ressalta a correção do respeito aos direitos trabalhistas na publicação.

De acordo com Damiani, o PCB sempre foi muito sério no apoio à Voz da Unidade. “Todos trabalhávamos com muito entusiasmo. Minha primeira reportagem importante foi a cobertura das greves operárias do ABC, em 1980”, afirma. “Acompanhei as assembleias histórias no estádio de Vila Euclides, em São Bernardo, com helicópteros do Exército fazendo pressão com sobrevoos, Lula discursando e 100 mil trabalhadores em luta”, lembra ele, ressaltando o período de grande efervescência operária.

Das diversas reportagens que produziu para o semanário, Damiani destaca uma em que ouviu dirigentes dos demais jornais de esquerda, que igualmente eram atingidos pelas bombas nas bancas e sofriam a pressão brutal contra a liberdade de imprensa e circulação dos jornais. “Os camaradas da redação tiveram a consciência de criar uma pauta ampla, em que todas as outras linhas da esquerda se manifestavam. Para aquela época de radicalização, foi uma matéria muito avançada. Mais uma que enfrentava diretamente a ditadura”, diz ele.

“O jornal era rodado no começo numa gráfica do aeroporto. A Polícia Federal passava lá para pegar exemplares. Tinha sempre essa linha de patrulhamento, de monitoramento, da ditadura militar”, afirma o administrador Carlos Fernandes, que, na década de 1980, era bastante engajado na organização de festas e eventos do partido. Depois, passou a participar da produção e pré-impressão do semanário.

Martin Cezar Feijó também atuou como editor de Cultura da Voz da Unidade a partir de 1985

A parte de cultura também teve a colaboração de grandes nomes, como o do historiador e doutor em comunicação pela USP (Universidade de São Paulo) Martin Cezar Feijó. Na época, seu primeiro artigo na Voz da Unidade abordou documentos brasileiros sobre a guerra do Paraguai, um dos maiores conflitos armados da América do Sul na segunda metade do século XIX. “O jornal era uma resistência cultural”, diz ele.

Feijó voltou à Voz da Unidade como editor de cultura, em 1985, no mesmo ano em que o partido retornou à legalidade. Nesse cargo, seu primeiro trabalho publicado foi uma entrevista com o então ministro da Cultura do governo de José Sarney, Celso Furtado, autor de diversos livros, entre os quais Formação Econômica do Brasil. “Me chamou atenção a visão conceitual dele. Era um homem de letras, de literatura, conhecia muito a parte cultural. Tinha visão muito ampla da relação entre cultura e democracia no sentido de valorizar espaços públicos e, principalmente, a liberdade”, lembra o historiador.

Política e história do país de perto

Um ano depois de Feijó se tornar editor de cultura, o jornalista e analista político Alon Feuerwerker deixou a Voz da Unidade, onde entrou em 1981 e foi editor de política, para ir trabalhar na Folha de S. Paulo. Ele lembra que, no final de 1982, a Polícia Federal invadiu a sede do jornal, onde seria realizado o congresso do PCB, em São Paulo. “Foi todo mundo preso. O ato da prisão em si foi uma violência política”, afirma ele, que foi preso de manhã e solto à noite. O caso lhe rendeu processo na Justiça militar, que só foi extinto com o fim da ditadura militar.

Alon Feuerwerker: "A Voz da Unidade é uma narrativa da história do Brasil"

Feuerwerker conta que, naquela época, o volume de trabalho era muito grande em razão das intensas discussões políticas no Brasil e no mundo, o que, segundo ele, permitia aos colaboradores do semanário acompanhar a história do país bem de perto. “É um documento importante porque, mesmo que expresse o ponto de vista do PCB naquela época e esteja concentrado nisso, a Voz da Unidade é uma narrativa da história do Brasil. Pode concordar com foco da narrativa, ou não, mas é documento histórico”, destaca ele.

Com a saída de Feuerwerker para outro jornal, o jornalista Luiz Carlos Azedo foi convidado pelo dirigente Salomão Malina a voltar para a Voz da Unidade como editor de política em São Paulo. Depois, Azedo, que era membro da executiva do PCB, tornou-se diretor responsável do semanário, sendo editor-chefe o jornalista Antônio Romane. “Eu me remetia diretamente ao Malina, que, aliás, nunca me pediu para ler um editorial antes de ser publicado”, diz o jornalista.

Na época, o jornal vivia uma contradição entre a discussão das mudanças que estavam no mundo – e, posteriormente, levaram ao fim da União Soviética, em 1991 – e sobre o nome do Partido Comunista Brasileiro. “Havia a ortodoxia da direção e a pressão pela mudança. Era uma tensão que se refletia no jornal”, explica Azedo. Segundo ele, a falta de recursos financeiros impediu a sobrevivência da Voz da Unidade.

A última edição do jornal circulou em junho de 1991, dedicada especialmente às resoluções políticas do 9ª Congresso do PCB no Rio de Janeiro, onde também o então deputado federal Roberto Freire foi eleito o novo presidente nacional do partido, com a promessa de promover a radical renovação da sigla. Em 1992, no congresso realizado no Teatro Zaccaro, em São Paulo, o PCB abandonou o símbolo da foice e do martelo e mudou de nome para PPS (Partido Popular Socialista), que, por sua vez, em 2019, passou a se chamar Cidadania, incorporando segmentos importantes ligados aos chamados movimentos cívicos.

A Voz da Unidade foi um pilar essencial para a construção da unidade das forças democráticas que derrotaram o regime militar. Foi um veículo corajoso, comprometido com as lutas sociais e a democratização do país.

Leia também:

FAP publica arquivo de edições digitalizadas do jornal Voz Operária

Para acessar as edições do jornal Voz da Unidade, siga os seguintes passos:

1 – Acesse o Terminal – Shophia Bliblioteca Web por meio do link https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/7828

2 – Na caixa de pesquisa, digite Voz da Unidade. Clique em pesquisar. Em seguida, você visualizará as imagens das edições disponíveis.

3 – Clique em uma das imagens para visualizar o conteúdo disponível na Biblioteca e as informações da publicação.

4 – Após clicar na imagem, você acessará a página da publicação, contendo as informações sobre ela e os links disponíveis para download dos arquivos no formato .PDF. Para acessar o conteúdo, clique em um dos links disponíveis.

5 – Após o download do arquivo no formato .PDF, basta clicar no mesmo, na barra inferior do seu navegador, para que o mesmo seja visualizado.


Celso Rocha de Barros: Bolsonaro merece ser preso

Durante a pandemia, presidente tentou autogolpe e aparelhar a Polícia Federal

A edição da revista piauí deste mês traz uma matéria, assinada por Monica Gugliano, com o título “Vou Intervir!”. Ela conta a história de uma reunião de 22 de maio, no Palácio do Planalto, em que Bolsonaro teria decidido mandar tropas para fechar o STF.

O plano seria substituir os 11 ministros por 11 puxa-sacos de Bolsonaro, por tempo indeterminado. Uma quartelada vagabunda raiz, nada dessas sutilezas de lenta corrosão democrática “Steven Levitsky” de que eu vivo falando aqui. O presidente teria sido dissuadido pelo general Heleno, que, para apaziguá-lo, soltou uma nota ameaçando o STF.

A princípio, o governo poderia ter desmentido a matéria, que é baseada em depoimentos concedidos off the record. Nessa situação, cabe ao leitor decidir se confia na reputação da revista —que, no caso da piauí, é impecável.

Entretanto, entre os bolsonaristas a desconfiança com relação à imprensa é generalizada. Se o governo quisesse desmentir a matéria, poderia tê-lo feito e considerado o assunto encerrado dentro da bolha que o elegeu.

Não desmentiu.

Houve quem interpretasse que o conteúdo da reunião vazou por interesse do governo, para avisar que o golpismo ainda está vivo. Se for, foi desnecessário: era só mandar o pessoal ler minha coluna, sempre digo isso.

Houve quem suspeitasse que o general Heleno vazou para parecer moderado. Houve ainda uma suspeita de que o governo teria vazado o conteúdo da reunião de propósito, para depois desmoralizar a imprensa com um desmentido (uma gravação, por exemplo). É triste viver em um país em que essa suspeita não é absurda.

De qualquer forma, a revelação da piauí não teve repercussão política nenhuma. E a explicação é simples: em geral, só se admite em voz alta aquilo de cujas consequências práticas se está disposto a arcar.

Muito antes da matéria da piauí, todo mundo já tinha visto Bolsonaro tentar o autogolpe em 2020. Mas, se você disser em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe, a solução é impeachment e cadeia. Se você não puder e/ou não quiser fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe.

Ainda não parece haver correlação de forças para impeachment e cadeia: o centrão está no bolso do governo, o auxílio emergencial ainda deve durar alguns meses. Enquanto for assim, a turma vai fingir que não viu o golpe, os 100 mil mortos, o aparelhamento na Polícia Federal.

Talvez essa correlação de forças não mude nunca. Nesse caso, a fraqueza natural humana fará com que muita gente racionalize que não foi tão ruim assim, “olha só como ele era democrata, até comprou o Roberto Jefferson, todos nós aqui sempre dissemos que isso era a marca do democrata, ninguém aqui nunca reclamou de quem comprava o Roberto Jefferson”.

Eu, aqui, não vou racionalizar isso, não.

O dia de trabalho de Bolsonaro durante a pandemia de 2020 se dividiu entre organizar um golpe de manhã, aparelhar a Polícia Federal de tarde e demitir o ministro da Saúde no telejornal da noite.

Se esses crimes ficarem impunes, prefiro viver com o incômodo dessa injustiça e esperar a maré virar. Se não virar, levo o incômodo comigo até o fim. Não tenho como fazer acontecer, mas deixo registrado para os leitores do futuro: em 2020, nós sabíamos que Bolsonaro merecia ser preso. Todos nós sabíamos.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)


Merval Pereira: O pós-Bolsonaro

Diante da polêmica sobre o papel das Forças Armadas num regime democrático, o que deve um presidente de origem civil fazer com a questão militar? Esse é o tema sobre o qual se debruça o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio Octavio Amorim Neto, num artigo para o boletim do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre). Ele leva em conta o pós-Bolsonaro, seja com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE, ou com a derrota de Bolsonaro, ou Mourão ( em caso de impeachment) em 2022.

Como até hoje não houve força política para retirar da definição do papel das Forças Armadas a responsabilidade pelas “garantias dos poderes constitucionais”, como sugere o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras, Octavio Amorim Neto vislumbra outras possibilidades "de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional”.

O cientista político lembra que na Estratégia Nacional de Defesa havia a promessa de realizar “estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se numa força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”.

Passados doze anos, o país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa, critica Octavio Amorim Neto, que no longo prazo, “permitiriam democratizar as relações civis- militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa”.

Haverá certamente, admite Octavio Amorim Neto, muita resistência ao quadro de especialistas civis por parte das Forças Armadas, “uma vez que o Ministério da Defesa deixará de ser quase que completamente mobiliado por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea, tal qual se verifica hoje". Para aplacar essa resistência, o cientista político da FGV-Rio diz que um novo presidente de origem civil não deverá contingenciar o orçamento de investimento da Defesa, “de modo que as Forças Armadas possam ter a garantia de que conseguirão concluir seus principais projetos dentro dos prazos planejados”: aquisição de caças pela FAB – Projeto FX-2; programas de desenvolvimento de submarinos e o programa nuclear da Marinha – Pro-sub e PNM; despesas com a aquisição de cargueiros táticos de 10 a 20 toneladas e o programa de desenvolvimento de cargueiro tático de 10 a 20 toneladas – Projetos KC e KC-X; despesas com o programa de implantação do sistema de defesa estratégico – Astros 2020; despesa com a aquisição de blindados Guarani pelo Exército; e as referentes à implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – Sisfron.

“Será uma conta salgada, sobretudo para um país que estará em profunda crise econômica e social, mas pagá-la é condição necessária para que a Forças Armadas possam se concentrar em suas funções precípuas”, ressalta Amorim Neto, que recorda uma afirmação recente de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa, segundo quem cabe ao poder político definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas.

Mas, ressaltou Jungmann, “o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e voto simbólico”.

Octavio Amorim Neto afirma em seu trabalho que os líderes do Congresso deverão imprimir plena chancela parlamentar ao emprego das Forças Armadas em atividades intimamente relacionadas à defesa nacional. Para ele, “é absolutamente vital” que as lideranças democráticas do país comecem a pensar seriamente sobre a questão militar no pós-Bolsonaro, sob pena de termos que conviver com os fantasmas do pretorianismo por um longo tempo. “É ingenuidade ou desconhecimento da história achar que o encerramento dos mandatos de Bolsonaro e Mourão resolverá o problema”.


Reinaldo Azevedo: Inquérito aberto pelo STF é legal; ilegal é o golpismo de Bolsonaro

Não use, ó moralista da isenção, a investigação como desculpa para sua covardia

Havendo quem queira usar a suposta irregularidade do inquérito 4.781 para flertar com o golpismo de Jair Bolsonaro ou, diante dele, omitir-se, decretando um empate moral entre as partes, fique à vontade. Mas é falso. Quando no exercício das competências penais originárias, previstas no artigo 102, inciso I, alínea "b", da Constituição, o STF preside o inquérito e exerce a supervisão judicial. Qual a novidade?

Também o artigo 2º da lei 8.038 e os artigos 230 a 234 do regimento interno do STF, que tem força de lei, disciplinam a questão. Essa conversa de ilegalidade do inquérito é papo furado. De resto, está, claro: Alexandre de Moraes não vai oferecer a denúncia. O conteúdo do inquérito será remetido ao Ministério Público, que continua titular da ação penal.

"Ah, não poderia ter sido aberto de ofício, e o relator não poderia ter sido escolhido pelo presidente do STF". Poderia, como dispõe o artigo 43 do regimento interno do tribunal. "Mas se fala ali em 'infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal'". É o mais ridículo de todos os óbices.

Como bem lembrou André Mendonça, atual ministro da Justiça quando advogado-geral da União, "os fatos que atingem essa Corte Suprema e seus Ministros são preponderantemente praticados pela internet (espacialidade delitiva não prevista na literalidade da norma, dada a data de sua edição: 27/10/1980). Ou seja, a abrangência da previsão regimental ora sob análise equivale à jurisdição da Corte, que, nos termos do artigo 92, § 2º, da Constituição Federal, alcança todo o território nacional."
Ignorância se corrige, má-fé, não.

A verdade é que as origens da pregação golpista, parte investigada no inquérito, estão sendo exumadas. E, como quer o apóstolo Paulo, muitos estão se vendo face a face. Não é por acaso que Augusto Aras, procurador-geral da República Bolsonarista, recorre a uma ADPF que saiu da pena do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para, diz ele, delimitar o alcance do inquérito.

Randolfe é ou era da turma "Muda Senado", que saía por aí a se esgoelar, junto com a tropa golpista, em favor da "CPI da Lava Toga". A serviço da Lava Jato e do sergio-morismo, os valentes elegeram o Supremo como inimigo. Cadê os Dallagnois e Pozzobons que, a exemplo de blogueirinhas buliçosas, faziam tutoriais de como difamar a corte em nome do combate à corrupção?

Sim, é uma vergonha sem par que o STF tenha de ter aberto um inquérito de ofício. O Ministério Público Federal deveria tê-lo solicitado. Mas como o faria se era parte ativa da cultura da difamação? Como agir se muitos de seus próceres estavam na origem da campanha contra o tribunal, na qual, agora, Bolsonaro pega carona na sua aventura golpista?

E, ora vejam, o MPF, que não apenas se omitiu diante da escalada autoritária como a alimentou, continua a exercer a sua força destrutiva. Reaparece explorando a fissura dos viciados na cloroquina do combate à corrupção. Ressurge a maximização de uma obrigação moral e administrativa como norte da democracia e como ponto de chegada, não como meio, da virtude.

Eis a PGR a servir de pátio de manobra da sanha de Bolsonaro contra os governadores. A Lava Jato destruidora de instituições --que morreu como projeto de poder de Sergio Moro e dos "white blocs" do MPF-- renasce em espírito com Aras, agora sob os auspícios do bolsonarismo.

E, desta feita, os valorosos moralistas contribuirão para esconder a montanha de mortos com uma montanha de acusações. A campanha eleitoral de 2022 já começou. Por ora, o único adversário de Bolsonaro são as instituições. As investigações da PGR tendem a ser o crematório de milhares de pretos de tão pobres e pobres de tão pretos anônimos.

Sim, os ladrões estão aí. Sempre estiveram e têm de ser combatidos. A questão é definir o que preservar nessa luta. Até agora, temos destruído instituições e valores democráticos.
Não use, ó moralista da isenção, o inquérito 4.781 como desculpa para a sua covardia ou omissão. Não há nada de errado com ele. Quanto a você…


Bernardo Mello Franco: Golpismo no sangue

Na família Bolsonaro, o golpismo passa de pai para filho. Ontem Jair saiu em defesa do descumprimento de decisões judiciais. Eduardo sugeriu uma ação militar para “zerar o jogo”

Na família presidencial, o golpismo passa de pai para filho. Está no sangue. Na noite de quarta, Eduardo disse que Jair pensa em tomar “medidas enérgicas” contra o Supremo Tribunal Federal. Ao lado de dois investigados no inquérito das fake news, o deputado afirmou que o país se aproxima de um “momento de ruptura”. “Não é mais uma opinião de ‘se’, mas de ‘quando’ isso vai ocorrer”, sentenciou o Bananinha.

“A hora da medida enérgica já passou”, retificou o guru do clã. De seu posto avançado na Virgínia, o ideólogo do bolsonarismo passou a atacar dois ministros do Supremo. Segundo ele, ambos deveriam ser “removidos da vida pública”. “Esse seu Alexandre de Moraes tem que ser posto na cadeia e não ter o direito de falar. Eu sou a favor da pena de morte”, acrescentou, depois de se referir ao ministro Celso de Mello com palavrões.

Ontem Jair reforçou a pregação autoritária do herdeiro. “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou!”, vociferou, na porta do Alvorada. O capitão se queixava da operação policial da véspera, autorizada pelo Supremo. “Chega! Chegamos no limite. Estou com as armas da democracia na mão!”, esbravejou.

Inflamado, o presidente defendeu o descumprimento de decisões judiciais que o desagradem. “Ordens absurdas não se cumprem. E nós temos que botar um limite!”, esbravejou. Para ilustrar a ameaça, usava uma gravata azul estampada com pequenos fuzis amarelos.

Depois do destampatório paterno, Eduardo esclareceu que seu plano de ruptura envolve o uso de tanques e baionetas. “O poder moderador para restabelecer a harmonia entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas”, disse, inventando uma regra inexistente na Constituição. “Eles vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e depois volta o jogo democrático”, prosseguiu.

No reino dos Bolsonaro, o golpismo também corre em veias de apaniguados. Na sexta passada, o general Augusto Heleno fez outra ameaça ao Supremo. Afirmou que uma eventual decisão contrária ao presidente teria “consequências imprevisíveis”. Ontem ele disse que “intervenção militar não resolve nada, ninguém está pensando nisso”. Imagine se estivesse.


Eliane Brum: Brasil sofre de fetiche da farda

Sem superar os traumas da ditadura, parte das instituições e da imprensa se comporta como refém diante do Governo militar liderado por Bolsonaro, demonstrando subserviência e alienação dos fatos

O bolsonarismo revelou em todo o seu estupor um fenômeno cujos sintomas podiam ser percebidos durante a democracia, mas que foram apenas timidamente diagnosticados. Vou chamá-lo de “fetiche da farda”. Trata-se de uma construção mental sem lastro na realidade que faz com que algo se torne o seu oposto no funcionamento individual ou coletivo de uma pessoa, um grupo ou mesmo de um povo. O mecanismo psicológico guarda semelhanças com o que é chamado de “Síndrome de Estocolmo”, quando a vítima se alia ao sequestrador como forma de suportar a terrível pressão de estar subjugada a um outro que claramente é um perverso, seguidamente imprevisível, do qual depende a sua vida na condição de refém. O fetiche da farda tem se mostrado em toda a sua gravidade desde o início do Governo de Jair Bolsonaro e, durante o mês de maio, tornou-se assustador: mesmo à esquerda e ao centro, os militares são descritos como aquilo que os fatos provam que não são ― nem foram nas últimas décadas ―, e tratados com uma solenidade que suas ações ― e suas omissões ― não justificam.

O fetiche da farda não é uma curiosidade a mais na crônica política do Brasil, já repleta de bizarrices. O fenômeno molda a própria democracia e está determinando o presente do país. Criou-se uma narrativa fantasiosa de que, no Governo Bolsonaro, os militares são uma “reserva moral”, uma “fonte de equilíbrio” em meio ao “descontrole” de Bolsonaro. O debate se dá em torno de o quanto os generais seriam capazes de conter ou não o maníaco que ajudaram ― e muito ― a botar no Planalto.

Categorizou-se o Governo em “alas”, em que existiria a “ideológica”, composta pelo chanceler Ernesto Araújo e outros pupilos do guru Olavo de Carvalho, e a “ala militar”, entre outras, forjando assim uma fantasmagoria de que os militares no Governo não tivessem ideologia e que a palavra “militar” já estivesse qualificada em si mesma e por si mesma. A cada flatulência do antipresidente, a imprensa espera ansiosamente a manifestação da “ala militar”. Não pelo que efetivamente são e representam os militares, mas porque seriam uma espécie de “oráculo” do presente e do futuro.

Colunistas por quem tenho grande respeito, ao se referir às Forças Armadas, penduram nelas adjetivos como “honrosas” e “respeitáveis”. Quando algum dos generais diz algo ainda mais truculento do que o habitual afirmam que está destoando da tropa, porque as Forças Armadas supostamente se pautariam pela “honra” e pela “verdade”. Ao longo do Governo desenhou-se uma imagem dos militares como algo próximo dos “pais da nação” ou “guardiões da ordem”, e tudo isso confundido com a ideia de que seriam também uma espécie de pais do incorrigível garoto Bolsonaro.

Como é possível? Qual é o mecanismo psicológico que produz essa mistificação em tempos tão agudos? O fenômeno é fascinante, não estivesse nos empurrando para um nível ainda mais fundo do poço sem fundo.

Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, mas sim seu fiel produto

Tenho escrito desde o início do Governo, e mesmo antes, que Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, algo que deu errado e que nega a sua origem. Ao contrário. Desde sua gênese, ele é tanto o produto quanto a expressão daquilo que os militares representam no Brasil das últimas décadas ― ou possivelmente em toda a história republicana do país. Bolsonaro contém toda a deformação do papel e do lugar dos militares numa democracia. (Leia em Mourão, o Moderado).

Bolsonaro é o garoto de classe média baixa que adorava fardas e viu no Exército uma possibilidade de ganhar posição e importância. Como a história mostrou, entendeu tudo certinho. Sua trajetória é muito bem contada no livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel (Todavia), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, morto por câncer em 16 de maio. Na obra, o repórter mostra, a partir de rigorosa pesquisa nos autos, como o julgamento de Bolsonaro por planejar colocar bombas em quartéis ignorou provas inequívocas. O Superior Tribunal Militar absolveu-o num julgamento constrangedor, desde que ele deixasse a corporação. Bolsonaro assim o fez, já eleito vereador do Rio de Janeiro com o voto de seus colegas, que depois o reelegeriam também como deputado federal durante os quase 30 anos que passou no Congresso. (Leia em Por que Bolsonaro tem problemas com furos).

Bolsonaro existe politicamente e está no poder porque a cúpula militar absolveu um membro da corporação que trabalhava na execução de um plano terrorista para chamar a atenção para uma reivindicação salarial. Tivesse sido condenado pelo que de fato era e fez, a história seria outra. Foi a impunidade que os militares seguiram autorizados a cultivar, em função de seus interesses corporativos, mesmo após a redemocratização, que gestou o personagem Bolsonaro.

Ele, que tanto fala em impunidade, é produto da impunidade que supostamente critica. Já está mais do que claro que, para Bolsonaro, seus filhos e seus amigos, a impunidade é a própria razão de ser do poder. Responsabilização é para os outros. Não tenho informação para afirmar que aprendeu essa lição com seus pais, mas há informação suficiente para afirmar que a aprimorou com seus superiores. Se um plano terrorista não é motivo suficiente para condenar alguém, então nada é.

Durante todos os seus anos como parlamentar, Bolsonaro sempre defendeu a ditadura (1964-1985), não só normalizando o sequestro, a tortura e a morte de civis, mas defendendo que os militares deveriam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando o único torturador reconhecido pela Justiça como torturador, o coronel facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra. E naquele momento lançou simbolicamente a sua candidatura ― e mais uma vez foi beneficiado pela impunidade garantida tanto pelos seus pares como pelo judiciário brasileiro.

A candidatura de Bolsonaro tinha por vice um general, Hamilton Mourão, que em várias ocasiões expressou sua vocação golpista, inclusive durante a campanha. Não é possível afirmar ou não que Bolsonaro foi eleito devido ao apoio de uma parcela estrelada de militares à sua campanha, mas é possível afirmar que esse apoio foi importante e deu legitimidade a Bolsonaro. Em troca, ele militarizou o Governo, que hoje tem nove ministros militares e quase 3 mil militares ocupando o segundo escalão. E crescendo. Bolsonaro tornou possível que os militares voltassem ao poder num país em que ainda há mais de duas centenas de corpos de pessoas desaparecidas pela ação criminosa do Governo dos generais durante o regime de exceção.

Bolsonaro e os generais que o sustentam não são feitos de matéria diferente. Não há uma e outra coisa. É a mesma coisa e o mesmo projeto de poder. Por que razão foi feita essa dissociação mental é tema para historiadores e sociólogos. Talvez mais ainda para a psiquiatria e para a psicanálise. Bolsonaro é criatura do militarismo brasileiro. E não como o monstro de Frankenstein, que na obra de ficção de Mary Shelley foi renegado pelo criador. Não. Bolsonaro é o rebento bem sucedido que foi estimulado e apoiado para virar o presidente do Brasil e então redimir seus pais inconformados, que queriam não só voltar ao poder, mas também eliminar a mancha histórica de assassinos e ditadores.

A perigosa operação mental que dissocia a imagem dos militares de seus atos

Mais grave que a dissociação entre Bolsonaro e os generais de sua entourage, porém, é a dissociação entre o que os militares efetivamente fizeram e fazem no poder ― e a forma como essa ação é descrita e convertida em imagem pública. Não é necessário analisar todo o período republicano, desde 1889. Se olharmos apenas para as últimas décadas, em 1964 os militares deram um golpe na democracia. Tiraram do poder um presidente eleito democraticamente. João Goulart era vice-presidente até 1961. Com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu a presidência. E então veio o golpe. Jango, como era chamado, viveu no exílio até a sua controvertida morte.

Os militares tomaram o poder pela força, num golpe clássico, e permaneceram no poder pela força por 21 anos, com o apoio de parte do empresariado nacional. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5, hoje amplamente revivido como ameaça explícita nos discursos dos bolsonaristas, o Governo de exceção endureceu. O AI-5 eliminou o que ainda restava dos instrumentos democráticos e inaugurou a época mais violenta do regime, tornando o sequestro, a tortura e a morte de opositores instrumentos de Estado, executados por agentes do Estado.

Durante esse período tenebroso, há amplas provas e depoimentos mostrando que, além dos milhares de adultos, vários deles mulheres grávidas, pelo menos 44 crianças foram torturadas (leia em Aos que defendem a volta da ditadura). Uma delas, Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, torturado quando tinha 1 ano e oito meses de vida, não suportou as marcas psicológicas e se suicidou em 2013, depois de uma existência muito penosa. Há famílias de brasileiros que ainda não conseguiram encontrar os cadáveres dos mais de 200 desaparecidos pela ditadura. São pais, mães, irmãos e filhos que há décadas procuram um corpo para sepultar. “A Ponta da Praia”, para onde Bolsonaro ameaçou mandar os opositores em discurso durante a campanha de 2018, era um desses lugares de tortura e de desova de civis no Rio de Janeiro.

Durante a ditadura militar, a imprensa foi censurada; filmes, livros e peças de teatro foram proibidos; as universidades sofreram intervenções; milhares de brasileiros foram obrigados a viver no exílio para não serem mortos pelo Estado. Durante a ditadura, houve ampla corrupção nas obras públicas, como há farta bibliografia para comprovar. Foi também durante a ditadura que as grandes empreiteiras, que mais tarde estariam nas manchetes pelo esquema de corrupção conhecido como “mensalão”, cresceram, multiplicam-se e locupletaram-se em obras megalômanas do “Brasil Grande” e em seus esquemas nos Governos militares.

A ditadura torturou e matou milhares de indígenas. As “grandes obras” na Amazônia, que mais tarde seriam conhecidas como “elefantes brancos” do regime, foram construídas por essas empreiteiras sobre cadáveres da floresta e sangue de seres humanos. A ditadura militar inaugurou o desmatamento como projeto de Estado e tornou o extermínio dos indígenas uma política ao ignorar sua existência na propaganda oficial da Amazônia, como no slogan “terra sem homens para homens sem terra”. O Exército promoveu alguns dos mais cruéis massacres da história, como o dos Waimiri Atroari, que quase foram dizimados nos anos 1970.

Como é possível que alguém que viveu ou estudou esse período possa tratar a crescente ocupação militar do Governo Bolsonaro como algo remotamente semelhante a uma “reserva moral” ou a uma “fonte de equilíbrio” ou a um “exemplo de honradez”? Sério? Além do fetiche da farda devemos investigar um possível estresse pós-traumático no fenômeno. Ou talvez uma parcela dos brasileiros tenha tanto medo que o horror se repita que distorça o que enxerga porque a realidade alcançou o nível da insuportabilidade.

Alguns vão afirmar, como têm afirmado, que os militares hoje no poder, diferentemente de seus antecessores e mestres, são amantes da democracia. Qual é o lastro nos fatos para fazer tal afirmação? Há inúmeros exemplos de comportamentos golpistas por vários dos personagens do militarismo, começando pelo general Eduardo Villas Bôas, uma mistura de conselheiro e fiador do atual Governo, e terminando no vilão de quadrinhos chamado Augusto Heleno, que se houver justiça um dia responderá pelo que as tropas brasileiras comandadas por ele fizeram no Haiti. Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, é um nome que provoca tremores ao ser pronunciado em alguns círculos. Mourão, por sua vez, antes de se tornar vice-presidente, já era uma metralhadora giratória de declarações golpistas.

Em qual momento do Governo Bolsonaro os militares deram um exemplo de respeito à democracia? Basta examinar um episódio seguido do outro. A relação entre crescimento dos militares e aumento das manifestações golpistas é diretamente proporcional. O número de militares só aumenta e o Governo só piora seu nível de boçalidade, de autoritarismo e também de incompetência. Tudo isso culmina no momento atual, no qual Jair Bolsonaro se tornou o vilão número um da pandemia e os brasileiros passaram a ser recusados até nos Estados Unidos de Donald Trump. E o que temos hoje? A militarização da Saúde. Dois ministros civis, médicos, recusaram-se a ceder à pressão de Bolsonaro para usar cloroquina, medicamento sem eficácia científica comprovada para tratar de covid-19. Deixaram o Governo. Bolsonaro colocou então um militar como ministro da Saúde e conseguiu empurrar a cloroquina, jogando com a saúde de 210 milhões de pessoas. Em vez de quadros técnicos, com experiência na área, na crise sanitária mais séria em um século, o Brasil transforma o Ministério da Saúde num quartel do Exército.

Antes da pandemia, o Governo militar de Bolsonaro provocava o horror do mundo pela destruição acelerada da Amazônia. Com a covid-19, os alertas apontam que o desmatamento explodiu. É visível que os grileiros se aproveitam da necessidade de isolamento daqueles que sempre combateram suas ações, seus pistoleiros e suas motosserras colocando seus corpos na linha de frente.

E o que temos hoje? A militarização das ações de fiscalização ambiental na Amazônia. O Ibama e o ICMBio passaram a ser subordinados ao Exército, como numa ditadura clássica. Na primeira investida, segundo relatório obtido pela Folha de S. Paulo, mais de 90 agentes em dois helicópteros e várias viaturas foram mobilizados para uma operação no Mato Grosso contra madeireiras e serrarias que terminou sem multas, prisões ou apreensões. O Ibama havia sugerido outro alvo na região que, segundo fiscais, contava com fortes evidências de ilegalidades. Foi ignorado. O recém-criado Conselho Nacional da Amazônia, comandado por Mourão, tem 19 integrantes: todos militares.

A realidade mostra os grileiros atuando com desenvoltura só vista na ditadura, todos eles apoiadores entusiásticos de Bolsonaro e dos militares no poder. Invadem, destroem e pressionam pela legalização do roubo de áreas públicas de floresta, legalização anunciada pela MP da grilagem de Bolsonaro, no final de 2019, e agora pelo PL da grilagem em discussão no Congresso. O projeto dos militares para a Amazônia é o mesmo da ditadura e todos nós já sabemos como acaba. Ou, no caso, como continua.

Se alguém ainda pudesse ter alguma dúvida sobre o caráter dos militares no governo, o show de horrores exposto na reunião ministerial de 22 de abril escancarou o nível do generalato que lá está. O vídeo da reunião, apresentado por Sergio Moro como prova de que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal, teve o sigilo retirado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Só ser conivente com aquela atmosfera e com aqueles pronunciamentos já seria uma overdose de desonra capaz de fazer uma pessoa com níveis medianos de honestidade pessoal vomitar por dias. Mas, não. Os militares são patrocinadores da meleca toda de baixíssimo nível intelectual e moralidade abaixo de zero. A reunião ministerial expõe um cotidiano de desrespeito à democracia em ritmo de boçalidade máxima. Não daria para aturar o nível de estupidez daqueles caras nem no boteco mais sórdido.

A deformação da democracia instalada nas últimas três décadas tem as digitais dos militares

A qualidade da democracia que o Brasil obteve entre o final dos anos 1980 e o impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, é resultado das negociações que costuraram o fim da ditadura e a redemocratização do país. Diferentemente de outros países que amargaram ditaduras militares, como a Argentina, o Brasil não julgou os crimes do regime de exceção. Assim, assassinos, torturadores e sequestradores a serviço do Estado seguiram impunes, ocupando funções públicas e ganhando salários públicos. Suas vítimas podiam encontrá-los tanto no elevador como na padaria da esquina como na escola dos filhos, e encontros macabros como estes aconteceram mais de uma vez.

Mesmo após a redemocratização, o Brasil seguiu também tolerando a anomalia que é uma polícia militar. Hoje, parte dela se transformou em milícia, controlando e explorando comunidades pobres, nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro, onde as milícias e o Estado se confundem, Bolsonaro e sua família já provaram ter relações íntimas com alguns milicianos famosos, uma das razões pelas quais o presidente tanto quer controlar a Polícia Federal. O assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro, segue não solucionado há mais de 800 dias, com indícios de envolvimento de milícias próximas de Bolsonaro e seus filhos.

Outra parte dos policiais militares tem se tornado cada vez mais autônoma, respondendo apenas a si mesma. A recente greve de PMs no Ceará revelou a gravidade desse fenômeno. Em 2017, o cenário já tinha ficado evidente na greve dos PMs do Espírito Santo, quando a população se tornou refém das forças de segurança do Estado.

A polícia militar tem seu DNA cravado no genocídio da juventude negra e pobre das favelas, em massacres de presos como o do Carandiru, em 1992, e em chacinas de camponeses como o de Eldorado dos Carajás, em 1996. Nos protestos de junho de 2013, a ação violenta da polícia militar contra os manifestantes tornou-se visível também para uma parcela da classe média brasileira.

É claro que há policiais militares honestos, competentes e bem intencionados. Mas não é uma questão apenas da qualidade dos indivíduos ― e sim da incompatibilidade entre um regime democrático e uma polícia militarizada atuando junto aos cidadãos.

A democracia instalada no Brasil sempre tolerou tanto os abusos das polícias, civil incluída, quanto o genocídio do negros e dos indígenas, e isso mesmo durante os Governos de centro-esquerda de Lula e de Dilma Rousseff (PT). Essa mesma democracia pós-ditadura convive com as torturas nas prisões e as condições torturantes das prisões superlotadas de jovens negros, hoje morrendo também por covid-19.

Em parte, a democracia brasileira é deformada porque não foi capaz de julgar os crimes da ditadura e eliminar as excrescências da ditadura, mantendo uma relação de temerosa subserviência com os militares. A mesma que hoje faz o país inteiro esperar a manifestação desses generais no poder, como se dependesse do humor deles cumprir a lei ou não, apoiar ou não o golpismo, manter ou não a democracia. Claramente as elites, uma parcela da imprensa incluída, se comporta como se fosse normal que os militares tivessem a última palavra sobre o destino da democracia no Brasil, como se fosse natural um tipo de manchete como as que têm destacado os humores verde-oliva como se fossem o oráculo de Delfos.

É subserviência embrulhada em liturgia e travestida de respeito. Não são os militares que precisam “enquadrar” Bolsonaro, algo que já ficou provado que não podem nem querem fazer. São as instituições democráticas que precisam enquadrar os militares e botá-los no seu lugar. E todas as instâncias de poder, imprensa incluída, têm de parar de se curvar como se fosse levar uma botinada na testa a qualquer momento. Vejo camponeses pobres e desamparados na Amazônia enfrentarem os fardados com muito mais firmeza. No final do ano passado testemunhei uma liderança comunitária enfrentar de peito aberto um coronel armado de fuzil que queria censurar seus cartazes durante uma audiência pública em Altamira. Ele disse que não admitia uma cena como aquela porque o Brasil ainda era uma democracia. E não admitiu. Isso é dignidade.

Em artigo na Folha de S. Paulo de 24 de maio, o cientista político Jorge Zaverucha mostrou o quanto “a forte presença militar no Estado reflete a fragilidade da democracia no Brasil”. Mesmo a Constituição de 1988, a carta-magna que marcou a retomada do processo democrático depois da ditadura, foi solapada pela subserviência aos militares, determinada pelo entendimento de líderes constituintes como Ulysses Guimarães de que não seria possível retomar a democracia sem tais concessões. Ainda que seja possível eventualmente concordar com as dificuldades do momento, houve mais de três décadas para que os autoritarismos sobreviventes fossem deletados, como foi feito em países vizinhos, mas nada disso foi levado adiante no Brasil. Nesse sentido, em alguns momentos a democracia pareceu uma concessão dos generais ― e não uma conquista da sociedade civil, o que é péssimo para a cidadania.

artigo 142 da Constituição determina que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Como é possível, questiona o pesquisador Jorge Zaverucha, se submeter e garantir algo simultaneamente? E, citando o filósofo italiano Giorgio Agamben: “O soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”.

Para pesquisadores do período, como Jorge Zaverucha, a elite brasileira “não possui um ethos democrático”. Ela aposta, desde o princípio, em um governo democrático eleitoral, mas não em um regime democrático. “No Brasil, as Forças Armadas deixaram o Governo, mas não o poder”, afirma o cientista político. E, hoje, como qualquer um é capaz de constatar, voltaram também ao Governo.

E agora?

A ambiguidade do artigo 142 da Constituição resulta nesses dias em ambiguidade alguma. Claramente gente demais se comporta no país como se os militares não apenas estivessem fora da lei, mas teriam o direito de estar fora da lei. A ambiguidade da Constituição, no que se refere ao papel das Forças Armadas, se desfez na prática dos dias. Guardadas as exceções, o cotidiano mostra que em todas as instituições e também em uma parcela da imprensa há predominância de lambe-botas de generais, como se a ditadura nunca tivesse acabado. Se faz obrigatória a pergunta: a democracia então começou? Votar a cada eleição é suficiente para fazer um país ser considerado democrático?

O fetiche da farda pode nos levar a muitos caminhos de investigação. Tem qualquer coisa mais prosaica, também, de homenzinhos que gostam da mística da masculinidade, a estética da testosterona pelo uso de armas e pelo monopólio do uso da força costuma ficar em alta em momentos de grande insegurança. Quando leio a carta dos militares de pantufa em solidariedade a Augusto Heleno, o ameaçador-mor da República, parece mesmo que eles acreditam serem, como arrotam, os guardiões da honra. Que se ponham no seu lugar. “Chega” dizemos nós.

Nosso dinheiro paga suas aposentadorias e a reforma da Previdência deles foi de filho para pai. Quem esses homens pensam que são para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, a instituição? São funcionários públicos aposentados e não ungidos por nenhum deus para decidir o destino de ninguém, muito menos de um país. Tampouco foram formados por “SAGRADA CASA” nenhuma, como ostentam em caixa alta, confundindo conceitos básicos. Se depois de mais de 30 anos de democracia temos que aguentar esse tipo de declaração golpista daqueles que deveriam estar servindo à democracia é porque a democracia que o Brasil conseguiu fazer derrete.

Ao apoiar Bolsonaro, os generais queriam muito fraudar a história do golpe de 1964, garantir que a lei de anistia, de 1979, nunca fosse reformada, e se assegurar de que os crimes cometidos durante a ditadura seguissem impunes. Quando Bolsonaro tentou festejar o 31 de março, data do golpe militar, como efeméride patriótica, no primeiro ano do seu mandato, houve protestos de diferentes áreas da sociedade. O problema, porém, era muito mais grave. E o risco, muito maior.

fraude da história está se dando na prática, na subjetividade que constitui cada um, na naturalização dos militares determinando destinos, proferindo ameaças e colocando-se acima da lei. Essa é a pior fraude, porque se infiltra nas mentes, altera os comportamentos e se converte em verdade. Fica cada vez mais evidente que a ditadura nunca saiu de nós, porque ao deixarmos os assassinos impunes, seguimos reféns dos criminosos que nos subjugaram por 21 anos.

Não vejo no mundo um país mais desafiado que o Brasil. Precisa lutar contra uma pandemia com um perverso no poder que contraria todas as leis sanitárias, que está levando o país ao pódio em número de casos e de mortes por covid-19, que está destruindo a Amazônia, da qual depende o futuro de todo o planeta, como se realmente não houvesse amanhã, e que está convertendo os brasileiros em párias globais. Ao mesmo tempo, o Brasil tem que restaurar a democracia que nunca se completou e, em plena crise, vestir as pantufas nos generais que foram infectados pela febre messiânica do poder e do autoritarismo.

Na penúltima vez que os generais estivaram no poder, deixaram um rastro de desaparecidos, torturados e mortos por assassinato. Isso sem contar a inflação explodindo e a corrupção vicejando. Na atual, deixarão um rastro de dezenas de milhares de mortos por covid-19, um número que poderia ser consideravelmente reduzido tivesse o governo seguido as normas sanitárias da Organização Mundial da Saúde, mantivesse no Ministério da Saúde um quadro técnico composto por profissionais experientes em saúde pública e epidemiologia e estivesse concentrando todos os seus melhores esforços para construir um plano consistente para enfrentar a pandemia. Poderão ainda, caso se mantenha o atual ritmo de destruição, levar a floresta amazônica ao ponto de não retorno. Abraçados, claro, com os vendilhões do Centrão, no que já é chamado de Centrão Verde-Oliva.

Lamento. Mas ou desdobramos a espinha agora ou peçam desculpas aos seus filhos porque seus pais são, como diria elegantemente Bolsonaro, uns bostas.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: Bolsonaro invoca “intervenção militar” contra o STF e flerta com golpe

Enquanto ataca Corte, presidente se aproxima do Congresso e oferece vaga no Supremo ao PGR, que o investiga. “É a interpretação de quem conspira contra a democracia", diz Oscar Vilhena

Afonso Benites e Carla Jiménez, do El País

Em conflito aberto com o Supremo Tribunal Federal e diante de inquéritos que acossam a ele e parte de seus mais fieis militantes, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) invocou por meio de suas redes sociais uma “intervenção militar pontual”, ou seja, um golpe contra outros poderes constituídos. Na tarde desta quinta-feira, quando em suas contas no Twitter e no Facebook, o mandatário compartilhou uma entrevista concedida pelo advogado constitucionalista Ives Gandra Martins, na qual ele defendeu que o artigo 142 da Constituição permite uma intervenção das Forças Armadas em outros poderes para a garantia da lei e da ordem. “Live com Ives Gandra: A politização no STF e a aplicação pontual da 142”, escreveu o presidente.

Nessa entrevista, o advogado disse que, em casos extremos, quando começasse a haver um choque entre poderes, os militares exerceriam um “poder moderador” e interviriam em outra instituição. “Caso contrário, o que teríamos seria um superpoder. Existe um poder máximo que é Supremo, o Judiciário, e existem poderes menores, subpoderes, que seriam o Legislativo e o Executivo. E cada vez que houvesse um conflito, mesmo que parte do conflito fosse o poder Judiciário, seria o próprio poder Judiciário era quem decidiria em causa própria”.

O EL PAÍS consultou dez juristas, três deles que preferiram não ter seus nomes revelados pelos cargos que ocupam, e todos afirmaram, unânimes, que não há a figura de “intervenção militar” que não seja um golpe. Parte deles opina, inclusive, que o presidente, que já havia participado de manifestações golpistas, incorreu no crime de incitar um golpe de Estado.

Pela manhã, Bolsonaro, que usava uma gravata azul com desenhos de pequenos fuzis enfileirados, já havia demonstrado inconformismo com uma decisão de quarta-feira do ministro Alexandre de Moraes, da Suprema Corte, no âmbito do polêmico inquérito das fake news. Era uma ordem de apreensão de computadores, celulares e tablets de 29 bolsonaristas, além da quebra de sigilos bancário e fiscal de quatro deles, parte da apuração sobre uma rede de disseminação de boatos contra o STF. “Ontem foi o último dia. Eu peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar melhor e mais poderosos que os outros que se coloquem no seu devido lugar, que nós respeitamos”, disse. E seguiu exaltado: “Não podemos falar em democracia sem um Judiciário independente, sem um Legislativo independente, para que possam tomar decisões não monocraticamente, por vezes, mas as questões que interessam ao povo que tomem, de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra”.

Em entrevista à rádio Bandeirantes, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, opinou na mesma linha. “Vou me valer de novo das palavras de Ives Gandra Martins: o poder moderador para restabelecer a harmonia entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas (...) Eles [militares] vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o jogo democrático. É simplesmente isso”.

Todos os discursos ocorrem seis dias depois de o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, emitir uma nota à República para advertir das consequências “imprevisíveis” para a “estabilidade nacional” caso o Supremo decidisse requisitar o celular do presidente no curso de uma investigação contra o presidente —há um pedido em análise na Procuradoria-Geral da República. A nota foi endossada pelo Ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, num inusual participação do chefe das Forças Armadas em questões de política interna.

O presidente “conspira contra a democracia”

Para Oscar Vilhena, professor da FGV Direito em São Paulo, Bolsonaro e seu clã, ao invocar o artigo 142 da Carta, usam a “interpretação de quem conspira contra a democracia e não é capaz de interpretar um artigo dentro do quadro geral da Constituição”. “Trata-se de uma interpretação enviesada de que seriam as Forças Armadas, e não o Supremo, que têm a última palavra sobre a defesa da Constituição”, diz Vilhena.

“Ele está claramente incitando golpe, ele e o filho [Eduardo]”, disse o advogado especializado em direito público Marco Aurélio de Carvalho. A mesma opinião tem Cezar Britto, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. “Em nenhuma hipótese as Forças Armadas podem atuar a pedido dos poderes. Elas podem atuar para garantir a democracia, mas nunca contra a democracia”.

O advogado constitucionalista Guilherme Amorim Campos da Silva concorda que “não existe intervenção militar constitucional, como tem pregado o presidente”. Ele acredita que o mandatário está incorrendo em crime de responsabilidade ao quebrar o juramento de defender a Constituição. “As Forças Armadas entram em ação a pedido de algum dos poderes constituídos, para garantir a institucionalidade do país, e não para atuar como força autônoma ou soberana sobre os demais”.

Na opinião do criminalista José Carlos Abissamra Filho, diretor do Instituto em Defesa do Direito de Defesa, o presidente tem ficado sozinho politicamente e vem tentando se vincular à instituições que gozam de prestígio social, como Polícia Federal e Forças Armadas. “Ele vem pedindo esse apoio das Forças Armadas há algumas semanas já. Essa é mais uma tentativa. Está esperando para ver se as Forças Armadas vão dar. Eu não vejo clima para que isso ocorra”.

O constitucionalista Erick Pereira segue na mesma linha. Para ele, Bolsonaro faz um discurso “intimidador, mas inexequível”. “Não tem espaço constitucional para isso. Apenas se for ato de violência ditatorial e este não precisa da Constituição”. Outro especialista em direito público, Cristiano Vilela diz que o presidente tem andado no limite da incitação a um golpe. “Ele tem feito isso regularmente. Tem dado declarações que deixam a entender, mas sem dizer literalmente”.

Supremo e promessa a Aras

A aposta de Bolsonaro na tensão máxima com o Supremo acontece em meio à expectativa de que o plenário da Corte julgue, na próxima semana, a legalidade do inquérito das fake news, instaurado pelo próprio tribunal e objeto de debate no mundo jurídico. O relator do caso, Edson Fachin, pediu celeridade nessa análise, já que o procurador-geral, Augusto Aras, pediu a sua suspensão na quarta-feira. No ano passado, Aras, indicado por Bolsonaro, entendia que a apuração era legítima, agora, mudou de ideia.

Aras é uma figura central no xadrez político-jurídico não só por causa desta atuação no inquérito relatado por Moraes, mas também porque é ele quem decidirá se Bolsonaro deve ou não ser denunciado por suposta interferência na Polícia Federal. Depois de visitá-lo pessoalmente nesta semana, Bolsonaro resolveu, nesta quinta, oferecer a ele, em público, uma possível vaga no Supremo Tribunal Federal.

Em sua tradicional live de quinta-feira no Facebook, na qual abriu espaço para comentaristas da rádio Jovem Pan lhe fazerem perguntas, Bolsonaro teceu elogios a Aras. O mandatário disse que o procurador está fazendo um excelente trabalho, principalmente na área econômica e que, se ele pudesse indicar um terceiro ministro para o STF, o nome seria o de Aras. “Se aparecer uma terceira vaga, espero que ninguém ali desapareça, o Augusto Aras entra fortemente para essa vaga aí”. Até 2022 estão previstas duas aposentadorias de ministros da Corte a de Celso de Mello em novembro deste ano e a de Marco Aurélio Mello, em 2021.

Enquanto atacava na redes sociais o Supremo por um lado, por outro, o presidente recebia o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que tenta atuar como bombeiro na crise. Em um relato feito a senadores, Alcolumbre disse seu objetivo é pedir calma ao presidente enquanto o país enfrenta a pandemia de coronavírus.

O gesto do presidente do Senado é importante porque a estratégia de Bolsonaro parece ser por água na fervura do conflito, mas sem perder a retaguarda no Congresso. Para tanto, tem forjado aliança com o Centrão, grupo de partidos de direita que aceitou apoiá-lo em troca de cargos e acesso a fundos públicos, e com parte da cúpula do Parlamento. Com os acordos já feitos, em tese, Bolsonaro consegue evitar o andamento de processos de impeachment ou de denúncias criminais na Câmara – já que as legendas do Centrão somam cerca de 200 deputados, 28 a mais do que o mínimo necessário para barrar os intentos. “Atendemos, sim, alguns interesses desses partidos”, disse o presidente sobre o Centrão nesta quinta-feira. Na campanha eleitoral, era comum ouvir do então candidato e de seus aliados mais próximos a afirmação de que o mal do Brasil estava nesse grupo partidário, que representava “a velha política”.

Por causa desta blindagem no Congresso, a oposição usa todas as armas jurídicas disponíveis contra o Planalto e ministros diz que a expectativa é que qualquer atitude contra o Governo venha ou do Supremo ou uma mobilização da sociedade no segundo semestre. “A panela de pressão vai estourar depois de julho, quando a economia degringolar por causa da pandemia”, ponderou o líder da minoria na Câmara, José Guimarães (PT-CE).


Eliane Brum: O golpe de Bolsonaro está em curso

Já está acontecendo: a hora de lutar pela democracia é agora

Só não vê quem não quer. E o problema, ou pelo menos um deles, é que muita gente não quer ver. O amotinamento de uma parcela da Polícia Militar do Ceará e os dois tiros disparados contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT), em 19 de fevereiro, é a cena explícita de um golpe que já está sendo gestado dentro da anormalidade. Há dois movimentos articulados. Num deles, Jair Bolsonaro se cerca de generais e outros oficiais das Forças Armadas nos ministérios, substituindo progressivamente os políticos e técnicos civis no Governo por fardados – ou subordinando os civis aos homens de farda nas estruturas governamentais. Entre eles, o influente general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, segue na ativa, e não dá sinais de desejar antecipar seu desembarque na reserva. O brutal general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chamou o Congresso de “chantagista” dias atrás. Nas redes, vídeos com a imagem de Bolsonaro conclamam os brasileiros a protestar contra o Congresso em 15 de março. “Por que esperar pelo futuro se não tomamos de volta o nosso Brasil?”, diz um deles. Bolsonaro, o antipresidente em pessoa, está divulgando pelas suas redes de WhatsApp os chamados para protestar contra o Congresso. Este é o primeiro movimento. No outro, uma parcela significativa das PMs dos estados proclama sua autonomia, transformando governadores e população em reféns de uma força armada que passa a aterrorizar as comunidades usando a estrutura do Estado. Como os fatos já deixaram claro, essas parcelas das PMs não respondem aos Governos estaduais nem obedecem a Constituição. Tudo indica que veem Bolsonaro como seu único líder. Os generais são a vitrine lustrada por holofotes, as PMs são as forças populares que, ao mesmo tempo, sustentam o bolsonarismo e são parte essencial dele. Para as baixas patentes do Exército e dos quartéis da PM, Bolsonaro é o homem.

É verdade que as instituições estão tentando reagir. Também é verdade que há dúvidas robustas se as instituições, que já mostraram várias e abissais fragilidades, ainda são capazes de reagir às forças que já perdem os últimos resquícios de pudor de se mostrarem. E perdem o pudor justamente porque todos os abusos cometidos por Bolsonaro, sua família e sua corte ficaram impunes. De nada adianta autoridades encherem a boca para “lamentar os excessos”. Neste momento, apenas lamentar é sinal de fraqueza, é conversinha de sala de jantar ilustrada enquanto o barulho da preparação das armas já atravessa a porta. Bolsonaro nunca foi barrado: nem pela Justiça Militar nem pela Justiça Civil. É também por isso que estamos neste ponto da história.

Essas forças perdem os últimos resquícios de pudor também porque parte do empresariado nacional não se importa com a democracia e a proteção dos direitos básicos desde que seus negócios, que chamam de “economia”, sigam dando lucro. Esta mesma parcela do empresariado nacional é diretamente responsável pela eleição de um homem como Bolsonaro, cujas declarações brutais no Congresso já expunham os sinais de perversão patológica. Estes empresários são os herdeiros morais daqueles empresários que apoiaram e se beneficiaram da ditadura militar (1964-1985), quando não os mesmos.

Uma das tragédias do Brasil é a falta de um mínimo de espírito público por parte de suas elites financeiras. Elas não estão nem aí com os cartazes de papelão onde está escrita a palavra “Fome”, que se multiplicam pelas ruas de cidades como São Paulo. Como jamais se importaram com o genocídio dos jovens negros nas periferias urbanas do Brasil, parte deles mortos pelas PMs e suas “tropas de elite”. Adriano da Nóbrega – aquele que, caso não tivesse sido morto, poderia dizer qual era a profundidade da relação da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e também quem mandou assassinar Marielle Franco – pertencia ao BOPE, um destes grupos de elite.

Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o Governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela. Desde a redemocratização do país, na segunda metade dos anos 1980, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade” e de projetos eleitorais com interesses comuns. Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado.

A política perversa da “guerra às drogas”, um massacre em que só morrem pobres enquanto os negócios dos ricos aumentam e se diversificam, foi mantida mesmo por governos de esquerda e contra todas as conclusões dos pesquisadores e pesquisas sérias que não faltam no Brasil. E seguiu sustentando a violência de uma polícia que chega nos morros atirando para matar, inclusive em crianças, com a habitual desculpa de “confronto” com traficantes. Se atingem um estudante na escola ou uma criança brincando, é “efeito colateral”.

Desde os massivos protestos de 2013, governadores de diferentes estados acharam bastante conveniente que as PMs batessem em manifestantes. E como ela bateu. Era totalmente inconstitucional, mas em todas as esferas, poucos se importaram com esse comportamento: uma força pública agindo contra o cidadão. Os números de mortes cometidas por policiais, a maior parte delas vitimando pretos e pobres, segue aumentando e isso também segue sendo tolerado por uns e estimulado por outros. É quase patológica, para não dizer estúpida, a forma como parte das elites acredita que vai controlar descontrolados. Parecem nem desconfiar de que, em algum momento, eles vão trabalhar apenas para si mesmos e fazer os ex-chefes também de reféns.

Bolsonaro compreende essa lógica muito bem. Ele é um deles. Foi eleito defendendo explicitamente a violência policial durante os 30 anos como político profissional. Ele nunca escondeu o que defendia e sempre soube a quem agradecer pelos votos. Sergio Moro, o ministro que interditou a possibilidade de justiça, fez um projeto que permitia que os policiais fossem absolvidos em caso de assassinarem “sob violenta emoção”. Na prática é o que acontece, mas seria oficializado, e oficializar faz diferença. Essa parte do projeto foi vetada pelo Congresso, mas os policiais seguem pressionando com cada vez mais força. Neste momento, Bolsonaro acena com uma antiga reivindicação dos policiais: a unificação nacional da PM. Isso também interessa – e muito – a Bolsonaro.

Se uma parcela das polícias já não obedece aos governadores, a quem ela obedecerá? Se já não obedece a Constituição, a qual lei seguirá obedecendo? Bolsonaro é o seu líder moral. O que as polícias militares têm feito nos últimos anos, ao se amotinarem e tocarem o terror na população é o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes: tocar o terror, colocando bombas nos quartéis, para pressionar por melhores salários. É ele o precursor, o homem da vanguarda.

O que aconteceu com Bolsonaro então? Virou um pária? Uma pessoa em que ninguém poderia confiar porque totalmente fora de controle? Um homem visto como perigoso porque é capaz de qualquer loucura em nome de interesses corporativos? Não. Ao contrário. Foi eleito e reeleito deputado por quase três décadas. E, em 2018, virou presidente da República. Este é o exemplo. E aqui estamos nós. Vale a pergunta: se os policiais amotinados são apoiados pelo presidente da República e por seus filhos no Congresso, continua sendo motim?

Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. Quando a classe média se calou diante do cotidiano de horror nas favelas e periferias é porque pensou que estaria a salvo. Quando políticos de esquerda tergiversaram, recuaram e não enfrentaram as milícias é porque pensaram que seria possível contornar. E aqui estamos nós. Ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos. Ninguém controla os violentos.

Há ainda o capítulo especial da degradação moral das cúpulas fardadas. Os estrelados das Forças Armadas absolveram Bolsonaro lá atrás e hoje fazem ainda pior: compõem sua entourage no Governo. Até o general Ernesto Geisel, um dos presidentes militares da ditadura, dizia que não dava para confiar em Bolsonaro. Mas aí está ele, cercado por peitos medalhados. Os generais descobriram uma forma de voltar ao Planalto e parecem não se importar com o custo. Exatamente porque quem vai pagar são os outros.

As polícias são a base eleitoral mais fiel de Bolsonaro. Quando essas polícias se tornam autônomas, o que acontece? Convém jamais esquecer que Eduardo Bolsonaro disse antes da eleição que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”. Um senador é atingido por balas disparadas a partir de um grupo de policiais amotinados e o mesmo filho zerotrês, um deputado federal, um homem público, vai às redes sociais defender os policiais. Não adianta gritar que é um absurdo, é totalmente lógico. Os Bolsonaros têm projeto de poder e sabem o que estão fazendo. Para quem vive da insegurança e do medo promovidos pelo caos, o que pode gerar mais caos e medo do que policiais amotinados?

É possível fazer muitas críticas justas a Cid Gomes. É possível enxergar a dose de cálculo em qualquer ação num ano eleitoral. Mas é preciso reconhecer que ele compreendeu o que está em curso e foi para a rua enfrentar com o peito aberto um grupo de funcionários públicos que usavam a estrutura do Estado para aterrorizar a população, multiplicando o número de mortes diárias no Ceará.

A ação que envergonha, ao contrário, é a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que, num estado em dificuldades, se submete à chantagem dos policiais e dá um aumento de quase 42% à categoria, enquanto outras estão em situação pior. É inaceitável que um homem público, responsável por tantos milhões de vidas de cidadãos, acredite que a chantagem vai parar depois que se aceita a primeira. Quem já foi ameaçado por policiais sabe que não há maior terror do que este, porque além de terem o Estado na mão, não há para quem pedir socorro.

Quando Bolsonaro tenta responsabilizar o governador Rui Costa (PT), da Bahia, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ele sabe muito bem a quem a polícia baiana obedece. Possivelmente não ao governador. A pergunta a se fazer é sempre quem são os maiores beneficiados pelo silenciamento do chefe do Escritório do Crime, um grupo de matadores profissionais a quem o filho do presidente, senador Flavio Bolsonaro, homenageou duas vezes e teria ido visitar na cadeia outras duas. Além, claro, de ter empregado parte da sua família no gabinete parlamentar.

Não sei se pegar uma retroescavadeira como fez o senador Cid Gomes é o melhor método, mas era necessário que alguém acordasse as pessoas lúcidas deste país para enfrentar o que está acontecendo antes que seja demasiado tarde. Longe de mim ser uma fã de Ciro Gomes, mas ele falou bem ao dizer: “Se você não tem a coragem de lutar, ao menos tenha a decência de respeitar quem luta”.

A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa, e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem ninguém.

Bolsonaro têm sua imagem estampada nos vídeos que conclamam a população a protestar contra o Congresso em 15 de março e que ele mesmo passou a divulgar por WhatsApp. Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de RuínasColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Roberto Macedo: O golpe dos cursos sobre o ‘golpe’

É um atentado contra o pluralismo que deve pautar as discussões nas universidades 

Algumas universidades passaram a oferecer cursos que questionam a legitimidade do impeachment, em 2016, da então presidente da República, Dilma Rousseff. O assunto segue no noticiário na forma de matérias e artigos de opinião. Recentemente, chamou-me a atenção uma reportagem no site de O Globo (24/4) intitulada UFRJ oferece curso sobre ‘o golpe de 2016 e o futuro da democracia’. UFRJ é a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A matéria traz um bom histórico do assunto. Em resumo, ele começou em fevereiro, quando a Universidade de Brasília (UnB) anunciou a criação de disciplina sobre “o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”. Na sequência, o Ministério da Educação acionou vários órgãos, entre eles a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal (MPF), para apurar eventual improbidade administrativa dos responsáveis pela disciplina.

Entendo que tal improbidade estaria na criação de um curso cujo título evidencia proselitismo político, numa universidade pública e com seus recursos. A iniciativa da UnB foi replicada noutras universidades, as estaduais de Campinas (SP) e da Paraíba, e as federais da Bahia, do Amazonas, de Goiás e do Ceará. Estes dois últimos casos também passaram a receber atenção do MPF.

Na UFRJ o curso, com título que repete o da UnB, surgiu no seu Instituto de Economia (IE), na forma de 11 seminários sobre o assunto em dias diferentes, todos ministrados por professores do instituto, exceto um. Pela primeira vez vi um instituto de economia tomando iniciativa semelhante à da UnB, o que me despertou interesse ainda maior, e formei minha opinião.

Entendo que o ambiente universitário deve pautar-se pelo pluralismo de opiniões, o que também atua como estímulo à busca do conhecimento. Nada teria contra debates, disciplinas, cursos e programas de seminários sobre o impeachment de Dilma desde que respeitado esse pluralismo. O título de um deles poderia ser, por exemplo, “O impeachment de Dilma foi golpe?”. Esse ponto de interrogação vem sendo omitido, o que é um golpe contra o pluralismo que deve pautar as discussões nas universidades.

“Certezas” desse tipo são comuns em universidades brasileiras, em particular nas públicas e nas ciências humanas. Há professores que ao lecionar pregam suas convicções ideológicas, tratando suas hipóteses como teses. E na pesquisa focam em evidências seletivas que sustentam tais hipóteses, havendo também “evidências” apenas discursivas. Vertente importante dessa pregação é conhecida como marxismo gramsciano. Não tenho espaço para descrevê-la aqui, mas quanto a isso o leitor poderá consultar texto muito esclarecedor de outro articulista desta página, Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em www.ecsbdefesa.com.br/fts/MGPFIREP.PDF.

Diante do tema - e insisto, com ponto de interrogação - minha resposta seria não, fundamentada na análise dos fatos que sustentaram o impeachment e na pertinência do processo jurídico então seguido. Como economista, observei muito as questões de finanças públicas envolvidas no caso. Estão muito bem esclarecidas no parecer do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), documento que sustentou a decisão do Senado que afastou Dilma. Anastasia discutiu argumentos pró e contra no processo de que era o relator e o texto pode ser encontrado no Google digitando “impeachment Dilma parecer do senador Anastasia”. A referência que virá em primeiro lugar remete ao site do Senado, que dá acesso ao documento, de 126 páginas. Sua leitura pode servir como terapia para quem fala em golpe.

Em resumo, o parecer conclui pela demissão de Dilma pelas seguintes e justas causas: “a) ofensa aos art. 85, VI e art. 167, V da Constituição Federal, e aos art. 10, item 4, e art. 11, item 2 da Lei no 1.079, de 1950 (a chamada Lei do Impeachment, acrescento), pela abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional; e b) ofensa aos art. 85, VI e art. 11, item 3 da Lei nº 1.079, de 1950, pela contratação ilegal de operações de crédito com instituição financeira controlada pela União”.

Essas operações de crédito envolveram várias instituições, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, e ficaram conhecidas como pedaladas fiscais. O parecer contém vários gráficos mostrando que no governo Dilma elas cresceram abruptamente nessas instituições. Da mesma forma caíram em dezembro de 2015, quando expressivo valor delas, R$ 56 bilhões (!), foi quitado pelo Tesouro Nacional, mas só depois de o Tribunal de Contas da União apontar que eram ilegais.

Uma decisão do Senado é sempre política, mas o impeachment seria improvável se Dilma não estivesse na situação vulnerável em que ficou por seus próprios atos. Punida por questões de finanças públicas federais, entrou na história pelo golpe com que prostrou o equilíbrio dessas finanças.

Voltando ao IE da UFRJ, ao buscar seu site no Google, ele é informado seguido da missão desse instituto: “O IE-UFRJ desenvolve atividades de ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão na área de Economia. Seu principal compromisso é apresentar e discutir, de forma aprofundada e crítica, as principais vertentes do pensamento econômico, sempre cultivando a pluralidade de visões e abordagens.” Muito bem!

Quem organizou o citado seminário talvez argumentasse, para justificar a ausência dessa pluralidade, que ele trata do pensamento político. Mas, aberto o site (www.ie.ufrj.br), logo no início é dito com destaque: “Singular porque plural” - sem nenhuma restrição.

Ignoro se o Instituto de Economia já organizou ou pretende realizar outros eventos sobre o assunto, em linha com sua missão pluralista. Se não, estaria em dívida com ela.

*ROBERTO MACEDO - ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR