golpe

Um Brasil sem futuro

Falta um ano para as eleições presidenciais, e só tem turbulência em volta. Mas, entre disparates golpistas, a Arena renascendo e os generais aloprados, temos outro problema grave. No longo prazo, talvez mais grave. Quem frequenta o circuito dos encontros com pré-candidatos, lê atento os jornais e conversa com políticos de todos os partidos logo percebe o tamanho. Quase nenhum dos principais líderes políticos vive no século XXI. Constroem suas ideologias, à direita ou à esquerda, sobre os alicerces de uma realidade que não mais existe. E isso quer dizer que, como está, não importa que grupo suceda a Bolsonaro. Governará o país sem um diagnóstico da transformação em curso.

Há exceções. Alguns deputados federais e mesmo senadores, um ou outro dirigente partidário, mesmo técnicos e acadêmicos que dão apoio às candidaturas. Mas são exceções e, quase sempre, gente com influência menor nos altos-comandos das legendas.

Isso não tem rigorosamente nada a ver com idade. Joe Biden é um político do tempo da Guerra Fria que já se candidatara à Presidência quando a internet apareceu, já concorrera duas vezes à Casa Branca quando se falou a sério de mudanças climáticas e, quase octogenário, redirecionou o Estado a toda no sentido da era em que vivemos.

Sua visão de EUA se traduz em dois pilares. Uma sociedade e uma economia que sejam digitais e verdes. As frentes para tocar esse projeto, no entanto, são muitas. Uma é dar infraestrutura ao país para que possa crescer nesse caminho. Isso quer dizer redes físicas de banda larga por toda parte. Também quer dizer subsídios, investimentos e incentivos para a conversão de antigos e criação de novos negócios. Mas também é um cuidado pesado com retreinamento de mão de obra. E, principalmente, a compreensão de que, se a operário basta o ensino médio, no século XXI um percentual maior da população precisa ter formação superior. Este é um século em que o PIB está relacionado ao número de cérebros bem-educados. País que não dá universidade a muita gente é país pobre.

Outra perna do trabalho é enfrentar os monopólios do Vale do Silício. Há motivos pontuais — a pandemia de desinformação, que abala democracias e faz morrer gente. Mas, no médio e longo prazos, é mais que isso. Com talentos e recursos financeiros concentrados em poucos grupos fortes demais, como é a natureza dos monopólios, a criação trava, o mercado congela, a inovação desaparece.

Operários em fábricas não voltarão mais. Toda a classe em cima da qual Karl Marx ergueu sua leitura de uma revolução futura deixará de existir. Afinal, “quarta era industrial” é metáfora, não descrição. A Era Industrial acabou. Assim como o tempo do combustível fóssil está terminando — sim, ele resistirá ainda um quê a mais, só que não muito. Bata na porta de uma petroleira, e a moça da recepção logo corrigirá: “Não, aqui somos uma empresa de energia”.

Isso não quer dizer que não exista mais necessidade de esquerda. O digital criou um tipo de precarização de serviços, com Ubers e Rappis, que precisa ser resolvido. Tampouco aponta para a extinção da direita — empresários precisam de mais apoio do que nunca para fazer a transição digital. É um processo complexo, difícil, inevitável — que, no Brasil, não está sendo feito em inúmeros setores. Isso torna o país ainda menos competitivo.

A conta da incompetência de todos os governos passados com educação chegou. Precisaremos resolver a educação pública de qualidade com urgência. Isso e um projeto econômico verde para a Amazônia são as prioridades do próximo Planalto. Só que formar daqui a 20 anos não bastará. Os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski vêm defendendo um programa de importação de cérebros. Estão certos, e é inevitável.

É o básico para qualquer governo pós-pesadelo.


Recibo de estelionato

A ida de Ciro Nogueira para a Casa Civil muda o desenho dos negócios em Brasília. Até aqui, o Centrão se limitava a fazer escambo: alugava apoio parlamentar e sacava sua parte em cargos e benesses. Agora o bloco vai trocar o balcão pela gerência da loja. Passará a mandar sem intermediários.

O chefão do PP se reaproximou do poder em junho de 2020, quando Jair Bolsonaro começou a sentir o cheiro do impeachment. Para socorrê-lo, Nogueira exigiu o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A autarquia cuida de temas que não costumam emocionar os políticos, como a aquisição de livros didáticos e a organização do transporte escolar. Seu segredo está no orçamento, que ultrapassa os R$ 50 bilhões anuais.

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro ajudou outro pepista, Arthur Lira, a se eleger presidente da Câmara. A ascensão do deputado aumentou o poder de barganha do Centrão. O grupo capturou o Ministério da Cidadania, abocanhou a Secretaria de Governo e agora assume a Casa Civil, coração da máquina federal.

No presidencialismo brasileiro, o chefe da Casa Civil acumula poderes próximos aos de um premiê. Coordena os ministérios, comanda investimentos em infraestrutura e filtra o que sai no Diário Oficial. É o cargo dos sonhos para quem gosta de políticas públicas e para quem busca outros tipos de recompensa do poder.

Para acomodar Nogueira, o capitão chutou mais um general: Luiz Eduardo Ramos será rebaixado a secretário-geral da Presidência. O militar se disse “atropelado por um trem”, mas não demorou a recuperar os sentidos. Horas depois da demissão, sorria ao lado do chefe num estádio de futebol.

O novo ministro é um bolsonarista tardio. Há três anos e meio, descrevia o capitão como “um fascista”. Seu modelo de estadista era Lula, “o melhor presidente da história deste país”. A seu favor, ele não é o único a mudar repentinamente de opinião.

Na campanha, Bolsonaro prometeu combater a “velha política” e definiu o Centrão como “a nata do que há de pior no Brasil”. Ontem ele escancarou que o personagem vendido em 2018 era pura ficção. “Eu sou do Centrão”, disse. “Eu nasci de lá.” Ao autografar a nomeação de Nogueira, o presidente assinará mais um recibo de estelionato eleitoral.


O preço e a saúde da democracia brasileira

O Centrão carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar o dinheiro público

Quando o Congresso aprovou uma verba de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral, muitos, como eu, protestaram. É o preço da democracia, falou-se em defesa do assalto ao Tesouro. De fato, as eleições têm um preço para todos, sobretudo depois que se decidiu transitar do financiamento privado para o público. Precisava ser um preço tão alto?

A ideia na transição era a de que os gastos excessivos, as campanhas rocambolescas dariam lugar a um processo de debates, e com custos mais modestos. Reconheço que a expressão custos mais modestos tem um valor subjetivo. No entanto, outro argumento se impõe: já que são gastos públicos, devem ser orçados com transparência.

Não foi o que aconteceu. A transparência desejada deu lugar a uma opacidade calculada. O fundo eleitoral deveria ser votado em destaque separado.

Nessa hipótese, os defensores da proposta deveriam explicar o sentido daquela soma de R$ 5,7 milhões. Por que esta soma e não outra, que cálculos os levaram a concluir por um volume de recursos quase três vezes superior ao que foi votado no passado recente?

Adianta pouco pessoas que conhecem a complexidade e os mistérios da política dizerem pura e simplesmente: o volume é esse e pronto, um custo democrático. O que se espera é uma discussão transparente e realista sobre os custos eleitorais, até porque podem ser feitos ainda num contexto de pandemia. Caem as internações, mas a variante delta avança no Brasil e já é a segunda encontrada entre as novas contaminações.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumentou numa entrevista que os gastos eram apenas um quarto dos custos totais das eleições. Mais uma razão para nos inquietarmos: se isso é verdadeiro, as eleições no Brasil custarão R$ 24 bilhões. As de 2018 teriam custado R$ 21,8 bilhões e não estávamos devastados pela pandemia. Não estou acrescentado a esse custo os R$ 2 bilhões necessários para implantar o voto impresso, uma bandeira de Bolsonaro que já está desbotando na Câmara, embora tenha sua votação apenas adiada.

Há algum tempo os especialistas consideram as eleições brasileiras as mais caras do mundo. Em 2006, o brasilianista David Samuels comparou as eleições brasileiras e americanas: as nossas custaram entre US$ 3,5 bilhões e US$ 4,5 bilhões, ante US$ 3 bilhões nos EUA. Os cálculos de Samuels não incluem o chamado horário eleitoral gratuito, que tem esse nome para atenuar seu impacto nas contas, mas representa custo real para o País.

O ato de orçar as eleições brasileiras não envolve, pois, apenas uma parte do preço da democracia, mas também uma porção considerável de sua saúde, expressa em legitimidade.

Dominado pelo Centrão, o Congresso sente-se forte ante um presidente acossado por mais de uma centena de pedidos de impeachment. E carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar dinheiro público.

Esse movimento perdulário não se esgota no fundo eleitoral. O próprio Estado denunciou uma espécie de orçamento secreto, em que as emendas parlamentares são destinadas sem transparência.

Esse processo foi introduzido por meio de um artifício que intitularam “emendas do relator”. Só neste ano Arthur Lira deverá dispor de R$ 11 bilhões para destinar a deputados e partidos fiéis, dentro dessa rubrica.

O chamado preço da democracia brasileira está influenciando a sua saúde. Todos os ressentimentos que já existem sobre a atuação do Congresso acabam ganhando dimensão maior quando se acrescentam essas variáveis financeiras.

Por essas razões foi necessário protestar contra o fundo eleitoral. Bolsonaro não pode simplesmente vetá-lo. Será necessário buscar uma saída conciliatória, pois não podemos voltar subitamente ao financiamento privado.

Aliás, a situação de Bolsonaro é muito cômoda. Ele é candidato e seus gastos de campanha até o momento não são computados como tal. Eles são bancados pelo governo federal, que financia seus deslocamentos no Brasil para passear de motocicleta e fazer discursos eleitorais, às vezes disfarçados, às vezes não. Os custos da campanha já em curso não se esgotam aí. Seu passeio no Rio custou ao Estado R$ 645 mil na montagem do esquema de segurança. Em São Paulo, esse custo praticamente dobrou e foi a R$ 1,2 milhão.

Bolsonaro venceu as eleições em 2018 surfando a onda da luta contra a corrupção e o desprezo do sistema político pelas preocupações das pessoas comuns. Alguns analistas acham que Bolsonaro venceu por causa de um moralismo primário dos eleitores e de alguns formadores de opinião. Essa acusação de moralismo se volta agora contra quem protesta pelo alto custo do fundo eleitoral. No entanto, nosso protesto pode resultar em economia concreta para os cofres públicos, sem prejuízo da disputa eleitoral.

Esses R$ 5,7 milhões serão de alguma forma reduzidos.

A análise do moralismo é precária se não leva em conta o fato de que o sistema político continua de costas para a sociedade e prepara reformas ainda mais escabrosas que o valor do fundo eleitoral.

O grande perigo para a democracia acontece quando o povo se volta contra ela. É o aprendizado que o processo de redemocratização tem de fazer, para evitar que aventuras autoritárias se tornem viáveis de novo.


Extrema direita mundial estreita laços com Governo Bolsonaro

Após troca de comando nos EUA, Brasil ganha centralidade entre nações que pregam contra o que chamam de comunismo e defendem pautas ultraconservadoras. País emula modelo húngaro de controle

A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) exibiu orgulhosa uma foto com a deputada alemã Beatriz von Storch, do partido de extrema direita AfD. “Hj recebi a deputada Beatrix von Storch, do Partido Alternativa para Alemanha [AfS], o maior partido conservador daquele país. Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”, escreveu a deputada em sua rede social. A foto causou choque, especialmente pelo fato de Storch ser neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do Governo nazista de Adolph Hitler. Nascido em 2013, o partido AfD é alvo de investigação do serviço secreto alemão por conexões com atos extremistas no país.

Não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. No final do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) promoveu uma live com o líder do Vox, Santiago Abascal. Um ano antes, o deputado esteve na Hungria com o premiê Viktor Orbán, do partido Fidesz. Em comum entre a AfD, o Vox e o Fidesz, a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.


MAIS INFORMAÇÕES


O Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora. O papel do Governo brasileiro ficou claro em janeiro de 2021, quando funcionários de alto escalão de Trump enviaram mensagens a outros países informando que projetos que tinham sido conduzidos pela Casa Branca seriam assumido a partir daquele momento por Bolsonaro. Seria do presidente brasileiro a função de liderar a aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da ONU, OMS e outros organismos. A informação faz parte de um e-mail enviado a colaboradores por Valerie Huber, a pessoa escolhida pela Casa Branca no governo Trump para tratar de temas de saúde da mulher. Numa mensagem de 20 de janeiro de 2021 obtida pelo EL PAÍS, Huber anuncia que o Brasil, gentilmente, ofereceu-se para coordenar essa “coalizão histórica”.

A coalizão de cerca de 30 países ganhou o nome de Declaração de Genebra e se transformou numa referência das alas mais radicais em movimentos religiosos. “Países que desejam se unir à Declaração podem fazer isso contatando a embaixada do Brasil nos EUA, por mais detalhes”, explicou. Huber foi a pessoa que arquitetou a coalizão e, ao longo dos últimos meses, costurou uma aproximação importante com a pasta de Damares Alves.

O Governo Bolsonaro não é o único neste movimento de manter viva a agenda de extrema direita no mundo. Mas, tornou-se chave para o fortalecimento desse grupo. De fato, a ausência de Trump não desfez a coordenação internacional. Nos últimos meses e em plena pandemia, membros do Governo brasileiro foram convidados de destaque em encontros fechados com representantes de ONGs cristãs americanas, com grupos de lobby anti-LGBTe antiaborto, além de reuniões com partidos como o Vox e outros grupos de extrema-direita.

Para diplomatas estrangeiros, o que se vê na atuação do Brasil não é nada mais que um roteiro já desenhado e implementado em países menores, mas que tiveram já anos de governos ultraconservadores. Agora, a meta é sua internacionalização. “Há um script e ele é assustador”, afirmou um negociador da UE, na condição de anonimato. O script é a transformação dos governos da Hungria e da Polônia que, ao longo de uma década, conseguiram desmontar uma democracia liberal e instaurar uma nova base ultraconservadora.

A costura dessa aliança começou a ganhar forma já nos primeiros dias do governo Bolsonaro. De forma inédita, o Brasil enviou ao menos seis missões em menos de um ano em 2019, com agendas que incluíam a promessa de uma coordenação na luta contra a perseguição sofrida por cristãos, a defesa da família e a necessidade de proteger a “soberania”. Não faltou ainda um encontro entre o então secretário da Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, com equipes do ministério da Cultura da Hungria. Alvim acabou caindo diante de um polêmico vídeo no qual ele usou referências nazistas.

Longe dos encontros ministeriais, reuniões informais, conferências fechadas e um intercâmbio intenso também foram estabelecidos entre membros do segundo escalão do governo brasileiro e húngaro. Não faltou nem mesmo uma visita de Eduardo Bolsonaro ao primeiro-ministro em Budapeste. A frequência dos encontros se contrasta ainda mais diante da constatação de que, em toda a era republicana, o Brasil jamais havia enviado uma missão com um chanceler para Budapeste.

O primeiro-ministro Húngaro Viktor Orbán, em abril de 2018.
O primeiro-ministro Húngaro Viktor Orbán, em abril de 2018. DARKO VOJINOVIC / AP

Modelo Orbán
As coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil chamam a atenção por sua semelhança em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán. O húngaro assumiu o poder em 2010. Mas, durante uma década, o que ocorreu foi o esvaziamento da democracia e um abalo nos pilares da liberdade. Hoje, Orbán controla a Corte Constitucional, o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.

Com eleições se aproximando em 2022 e com a oposição tentando criar pela primeira vez uma frente única para derrotá-lo, o primeiro-ministro ampliou sua radicalização e o uso da guerra cultural como forma de reagir à pressão. No Parlamento, leis foram aprovadas nas últimas semanas tornando a adoção de crianças por casais homossexuais um ato praticamente impossível. Ele ainda modificou normas que acabaram impedindo que menores de 18 anos tenham acesso a qualquer tipo de material que possa fazer alusão ao movimento LGBT. Livros com tais conteúdos são obrigados a trazer um alerta em suas capas e a publicidade de qualquer empresa terá de seguir regras sobre a divulgação de conteúdo.

Em seu projeto de destruição da democracia num caminho similar ao que adota Bolsonaro hoje, Orbán foi em busca da construção de uma Justiça que fosse leal a ele e sua ideologia. Se uma primeira tentativa de reforma do Judiciário esbarrou em protestos da UE, ele agora modifica de forma mais sutil, transformando o sistema de pontos pelos quais os candidatos são julgados para ganhar vagas de juizes. Quem passou por funções no governo, segundo a nova lei, ganha pontos extras. Resultado: o fim de qualquer investigação sobre corrupção no governo e entre seus aliados e o respaldo legal às mudanças de leis sobre o conceito de família, religião, imigração e do próprio sistema democrático.

Outro foco dos ataques de Orbán tem sido as ONGs, ativistas ou qualquer movimento que questione de forma dura o governo, outra bandeira também adotada pelo governo Bolsonaro. Uma das formas de intimidação em Budapeste sobre os movimentos sociais foi a proliferação de controles de auditoria e de impostos, principalmente entre 2014 e 2016. Além disso, todas as entidades que recebem algum tipo de recursos do exterior passaram a ser registadas por “agentes externos”. Apesar de o país ter cerca de 60.000 ONGs, elas passaram a ser excluídas do processo de elaboração de políticas públicas.

Assim como Bolsonaro argumenta que o único termômetro da representatividade da democracia é a eleição, o governo Orbán usa exatamente esse argumento para justificar que organizações da sociedade civil não têm mandato para atuar na formulação de políticas públicas. As coincidências na forma de agir entre os dois governos também ocorrem no tratamento da imprensa. Tanto em Brasília como em Budapeste, os meios de comunicação são considerados como uma força a ser neutralizada.

Por anos, aliados do governo passaram a comprar jornais locais, rádios e outros canais. Quando praticamente toda a imprensa estava nas mãos desses empresários, eles decidiram doar seus impérios para uma obscura fundação, em 2018. No total, 400 meios de comunicação estariam sob uma só direção. Uma semana depois, Orbán assinou um decreto isentando essa fusão de qualquer controle externo, numa centralização sem precedentes. A coordenação entre jornais regionais, revistas, rádios e TVs passou a ser completa, com títulos parecidos para suas manchetes, mesmas imagens e argumentos.

Enquanto financia quem o apoia, o governo “leva à fome” os meios independentes. Empresas que fazem publicidade em jornais contrários ao governo temem perder contratos públicos e o governo passou a não mais responder aos emails e pedidos de informação por parte desses jornais. Enquanto isso, jornalistas são assediados e a oposição passou a ser praticamente vetada de todos os debates nas televisões.

O mesmo movimento de controle também passou pela academia de ciência, dirigidas por leais seguidores do partido de Orbán. Tais estruturas passaram a concentrar grande parte do dinheiro do Estado, com professores com salários mais elevados, esvaziamento dos cursos de Ciências Humanas, o controle das universidades e, na prática, o fim de suas autonomias.

A guerra cultural ainda teve como objetivo reescrever a história do país e estabelecer o comando de teatros e museus para que a ideologia de extrema direita prevalecesse nas peças escolhidas, nas mostras e até mesmo na programação da Opera Nacional. Com uma diferença de dez anos em relação ao governo Bolsonaro, a Hungria serve de modelo de uma guinada iliberal. E que agora é assumida em parte pelo Brasil para influenciar na agenda internacional.


Vera Magalhães: São todos cúmplices

Não resta espaço para dúvida de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ameaçando caso o voto impresso não fosse aprovado.

Lira trucou a ameaça e, como o governo Jair Bolsonaro tem DNA golpista, mas é eminentemente composto de pessoas despreparadas e algo covardes, o presidente e seu general recolheram as ameaças, ao menos por ora, e o resultado foi que o PP e o Centrão avançaram algumas casas para tomar conta de tudo — se apossando de novo até de espaços dos militares.

Foi o Centrão que tirou o general Eduardo Pazuello da Saúde. Mantendo Roberto Dias, o assessor que o general e seu sub, o coronel Elcio Franco, não conseguiram demitir.

Agora é de novo um alto expoente do PP, seu presidente, Ciro Nogueira, que faz outro general pegar o quepe. Luiz Ramos, assim como Pazuello, verga a espinha e aceita ir para um ministério de menor importância.

O mesmo faz Paulo Guedes, ao bater continência para o capitão e para a ala política que já comanda a maior parte do Orçamento e aceitar perder um naco de seu “superministério” para acomodar outro demitido de luxo.

Para onde esses arranjos por baixo da mesa levam o Brasil? Para a esculhambação institucional e política a cada dia mais absoluta e para a constatação óbvia de que não temos um governo, mas uma bodega tocada à base de muita fisiologia, nenhum trabalho, zero planejamento e uma única ideia fixa: a reeleição cada vez mais difícil de alguém que nunca poderia presidir qualquer país.

Quem ameaçou, Braga Netto, e o aliado de quem foi ameaçado, Ciro Nogueira, dividirão a mesa às reuniões ministeriais como se nada tivesse acontecido. O resto das autoridades, aquelas a quem sempre cobro neste espaço, seguirão fingindo acreditar nos desmentidos frouxos, sem se dar conta de que, de bravata em bravata, vai-se corroendo a democracia a partir de dentro.

Está claro que Braga Netto não fala em nome do conjunto das Forças Armadas. Mas também resta evidente que a quantidade de golpistas que ousam dizer suas ideias em voz alta é maior hoje no meio militar que em 2018. Isso já é altamente nocivo para o ambiente político e institucional brasileiro. E nos cobrará um preço enorme.

Também é evidente que Lira, Nogueira e os demais “progressistas” — ah, as ironias das siglas partidárias — não vão com Bolsonaro para uma tentativa canhestra de invasão do Congresso, à Trump. Mas também é cristalino quanto ganharam poder e dinheiro do Orçamento, em múltiplas frentes, só para blindar o presidente e tentar ajudá-lo a se livrar da CPI da Covid e a emplacar seus nomes no Senado.

Além dos bilhões das emendas do relator, nome oficial do orçamento secreto cujo tesoureiro é Lira, agora há o fundão multiplicado. Será que Bolsonaro, agora que o PP deixou vazar a ameaça de Braga Netto e que Ciro Nogueira está de mudança para o Planalto, vai mesmo vetar a farra? Ainda mais diante da possibilidade de fusão de PSL, PP e DEM, partido que pode ser seu próprio destino numa cara campanha eleitoral no ano que vem? Difícil de acreditar nisso, hein?

Não espanta que Bolsonaro, diante desse cenário, declare seu amor filial ao Centrão. Nem mesmo surpreende que os militares, tirados por ele da caserna, comecem a demonstrar nostalgia da ditadura.

Mas chama muito a atenção o silêncio covarde dos que se diziam democratas, iam às ruas pedir o fim da corrupção — e agora se calam diante da escalada diária de mortes, ruína social e econômica e autoritarismo.

São industriais, integrantes do mercado, profissionais liberais e outros que apertaram 17 e agora não têm a coragem de admitir que elegeram o pior presidente do Brasil. São tão cúmplices quanto os fardados e o Centrão.


Jamil Chade: Brasil vive momento mais perigoso de sua democracia

O palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe

Teremos eleições em 2022? A mera existência de uma pergunta como essa em pleno século 21 é um dos sintomas mais dramáticos da ameaça que a democracia brasileira atravessa.

Ao longo dos últimos meses, governo, milícia digital e cúmplices de um movimento autoritário disseminaram dúvidas sobre a legitimidade das urnas no país, contradizendo auditorias nacionais e internacionais. O objetivo nunca foi o de construir um sistema mais sólido.

Mas, assim como toda a estratégia do bolsonarismo, a meta é a de minar a credibilidade e desmontar a confiança popular sobre as instituições.


MAIS INFORMAÇÕES


O projeto não é novo. A extrema-direita no Brasil iniciou os ataques contra a democracia ao colocar opositores, imprensa e sociedade civil como alvos de uma operação de destruição de reputações, além de borrar as fronteiras entre a Justiça e o Executivo.

Para esse grupo no poder, jamais houve um limite sobre o que era possível fazer para justificar a morte — inclusive no cadastro do SUS — de qualquer um que representasse um questionamento.

Ao disseminar mentiras como política pública, as autoridades buscaram retirar qualquer legitimidade dessas vozes.

Não faltaram ainda ofensivas para rever a história do Brasil, transformando o Golpe de 1964 em um ato a ser comemorado.

Enquanto isso ocorria, um avanço claro era feito para fechar qualquer tipo de canal para permitir a influência da sociedade civil na condução das direções do país. Operações para esvaziar a imprensa também passaram a ser recorrentes, com ataques verbais do presidente Jair Bolsonaro, a opacidade sobre decisões de estado, a lentidão de seus serviços de imprensa em dar respostas aos jornalistas e campanhas declaradas apelando à população para considerar a imprensa como inimigos.

Ao longo de dois anos e meio, o resultado foi a redução do espaço cívico, as dúvidas sobre informações apuradas de maneira profissional e a construção deliberada de um cenário de incertezas.

Agora, o palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe.

Não podemos esperar pelos tanques para agir. Eles talvez nunca virão. Mas a destruição da democracia, por um sistema sofisticado, está em curso.

Em 2022, viveremos a eleição mais importante de nossa jovem democracia. O que estará em jogo não é o destino de um candidato. Mas de uma nação. E, por isso, a luta diária por sua realização se confunde com a própria sobrevivência da liberdade. Não há mais tempo a perder.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Luiz Carlos Azedo: O general linha-dura

Braga Netto assumiu a Defesa para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições. O que consegue, porém, é desgastar as Forças Armadas

Desde que assumiu o Ministério da Defesa, o general Braga Netto tem atuado para alinhar as Forças Armadas aos objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro. Extrapola, porém, as atribuições do cargo, ao se pronunciar sobre temas políticos que não dizem respeito nem demandam o posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Como na desequilibrada nota contra a CPI da Covid, que foi emitida em nome dos comandantes militares, sem que saio menos um deles, com certeza, tenha sido consultado. Mesmo quando nega ter pressionado o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a aprovar a proposta de voto impresso, sob risco de as eleições não serem realizadas, Braga Netto se manifesta sobre o assunto de forma inapropriada, pois é prerrogativa do Congresso decidir a questão sem se submeter a chantagens. Na prática, a nota reverbera de forma ambígua as suspeitas e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao pleito.

Pode ser que Braga Netto esteja confundindo os papéis de antigo ministro da Casa Civil, no qual desempenhava importantes missões políticas, e de ministro da Defesa, que não deve se imiscuir nas relações entre os Poderes. Em vez de se espelhar no figurino dos ex-ministros da Defesa Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a ocupar um cargo criado para ser exercido por civis, e de seu antecessor Fernando Azevedo e Silva, que se recusou a desempenhar esse papel, Braga Netto vestiu a fantasia dos generais linha-dura que pontificaram durante o regime militar — até o presidente Ernesto Geisel demitir o general Sílvio Frota, seu ministro do Exército.

Apesar dos desmentidos à matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de autoria das jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, houve a conversa do interlocutor de Braga Netto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não desmentiu a informação, tergiversou. Nos bastidores do Congresso, comenta-se que o portador do recado fora ninguém menos do que o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que assumirá a Casa Civil no lugar do general Luiz Ramos. Mente-se muito na política, embora a mentira acabe quase sempre desnudada. Mente-se muito mais nos jogos de guerra. Os militares chamam isso de contrainformação, cujo objetivo é impedir ou dificultar o acesso à informação verdadeira, mediante, principalmente, a divulgação de informações diversionistas. O Palácio do Planalto trabalha nessa linha, não preza a transparência nem a informação de interesse público.

Por exemplo, o YouTube acaba de retirar do ar 15 lives do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, por conterem informações falsas. O general Braga Netto, como chefe da Casa Civil e coordenador do governo no combate à pandemia, foi um dos construtores da narrativa negacionista e das desastradas ações do Executivo que defendiam o uso maciço da cloroquina e outros medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus. Essa narrativa, até hoje, está presente nas redes sociais e somente fracassou porque o Brasil já registra 546 mil mortes pela doença. Mais cedo ou mais tarde, Braga Netto será chamado a depor na CPI do Senado, que investiga a atuação do Ministério da Saúde na pandemia, por sua atuação na Casa Civil.

Melar as eleições
A polêmica sobre o voto impresso é um case de contrainformação. A narrativa de Bolsonaro falseia a realidade com objetivo de melar as eleições de 2022, caso seja derrotado, como tentou o ex- presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em quem se espelhou, ano ser derrotado pelo presidente Joe Biden. Quanto maior o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião e a desaprovação do governo, mais recrudescem os ataques de Bolsonaro à urna eletrônica, em que pese nunca ter apresentado provas de fraude na apuração das eleições de 2018, que afirma, fantasiosamente, ter ganhado no primeiro turno.

Braga Netto substituiu o general Fernando Azevedo para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições republicanas. O que vem conseguindo, porém, é desgastar as Forças Armadas, como no episódio da não-punição do exministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado e se manifestando no desfile de motociclistas bolsonaristas no Rio de Janeiro, mesmo estando na ativa. A politização das Forças Armadas e seu envolvimento na política em si é uma ameaça à democracia. O presidente Bolsonaro tenta cooptar militares da ativa para seu projeto autoritário ao requisitá-los para exercer funções civis no governo; de igual maneira, ao estimular pronunciamentos como o do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista.

Entretanto, não existe um ambiente favorável a um golpe de Estado no país, muito pelo contrário, cresce a campanha pelo impeachment. Por isso, a retórica do presidente da República contra a segurança da urna eletrônica e as pressões de Braga Netto para aprovação do voto impresso soam como uma espécie de déjà-vu político. Esse morde-assopra é uma tática conhecida de contrainformação, que os militares utilizam em tempos de guerra, para testar suas cadeias de comando e a capacidade de resistência do inimigo. Por essa razão, tanto o Judiciário quanto Congresso precisam exercer com firmeza suas prerrogativas constitucionais, entre as quais, decidir sobre o sistema de votação e limitar a presença de militares da ativa em cargos civis.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-general-linha-dura/

Folha de S. Paulo: Debate do voto impresso é legítimo, diz Braga Netto

Militar também deu recado indireto a ministros do STF que têm atuado nos bastidores pela manutenção do atual sistema

Daniel Carvalho e Danielle Brant, Folha de S. Paulo

Ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto fez coro com o presidente Jair Bolsonaro e disse em nota nesta quinta-feira (22) que existe no país uma demanda por legitimidade e transparência nas eleições.

Segundo ele, mais uma vez levantando uma bandeira bolsonarista, a discussão sobre o "voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima".

“Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas as instâncias”, afirmou o militar.

“A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima, defendida pelo governo federal, e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema”, afirmou, em um recado indireto a ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta quinta afirma que o ministro teria mandado um recado por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de que, sem a aprovação do voto impresso, não haveria eleições em 2022.

Braga Netto negou. O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que as eleições de 2022 serão realizadas independentemente da aprovação ou não da proposta do voto impresso.

"É lógico que vai ter eleição. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana", disse.

"Lógico [que] não [tem espaço para um regime autoritário]. Que regime autoritário? O Brasil é um país, a sociedade brasileira é complexa. Acontece que tem muita gente ainda na sociedade brasileira que está olhando pelo retrovisor; olha 50, 60 anos atrás sem entender o processo histórico que nós estamos vivendo."

Ministros do Supremo articularam com 11 partidos um movimento contra a mudança na urna eletrônica e botaram em xeque a maioria que Bolsonaro tinha em relação ao tema na Câmara.

Bandeira do bolsonarismo, o voto impresso quase foi derrotado em reunião na sexta-feira (16) em uma comissão especial da Câmara, mas uma manobra de governistas adiou a votação para 5 de agosto, depois do recesso parlamentar, que vai de 18 a 31 de julho.

O tema tem sido usado insistentemente por Bolsonaro para fazer ameaças golpistas contra as eleições de 2022. Ele já afirmou, várias vezes, que, se a mudança não ocorrer, não haverá eleições. Uma reação de 11 partidos, porém, virou o jogo e, até a última sexta, garantia uma maioria para rejeitar a proposta.

Mesmo que avance na comissão especial, para aprovar uma PEC são necessários ao menos 308 votos na Câmara (de um total de 513 deputados) e 49 no Senado (de um total de 81 senadores), em votação em dois turnos. Para valer para as eleições de 2022, a proposta teria que ser promulgada até o início de outubro.

Ou seja, as chances de a proposta prosperar para o próximo pleito eram consideradas remotas mesmo antes da fala de Bolsonaro admitindo a provável derrota.

Nas últimas semanas, Bolsonaro provocou uma crise institucional ao afirmar que as eleições de 2022 podem não ocorrer caso não seja adotada uma modalidade de voto confiável —na visão dele, o impresso.

Sem apresentar provas, Bolsonaro alegou mais uma vez ter indícios de fraude na eleição presidencial de 2014, apesar de o próprio derrotado no segundo turno daquele ano, o hoje deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), ter declarado não acreditar que tenha existido essa irregularidade naquela disputa.

O mandatário também já afirmou —de novo sem provas— que houve fraude na eleição de 2018, quando ele derrotou Fernando Haddad (PT). A alegação de Bolsonaro é que ele teria recebido mais votos do que os que foram computados. Ele nunca apresentou evidências dessa acusação.

Como mostrou a Folha na semana passada, em meio a essa crise, Braga Netto virou o "provocador-chefe da República", na opinião de ministros do Supremo e mesmo de alguns de seus subordinados na cúpula militar.

Na visão dessas autoridades, o general tem sido tão bolsonarista quanto o chefe, estimulando o clima de conflito institucional que o próprio presidente tentou abafar após ter sido admoestado pelos chefes do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e do TSE, ministro Luís Roberto Barroso.

Isso tem incomodado diversos oficiais-generais. Integrantes da cúpula do Exército e da Marinha afirmaram que a polêmica nota em resposta ao senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid que falara sobre o "lado podre" das Forças Armadas, foi uma imposição de Braga Netto aos comandantes militares.

Ainda nesta quinta-feira, na mesma nota em que trata do voto impresso, Braga Netto disse que existe no país uma tentativa de criar “uma narrativa sobre ameaças feitas por interlocutores a presidente de outro Poder” e afirmou não se comunicar com presidentes de outros Poderes por interlocutores.

“O Ministério da Defesa reitera que as Forças Armadas atuam e sempre atuarão dentro dos limites previstos na Constituição”, diz o comunicado.

“A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições nacionais, regulares e permanentes, comprometidas com a sociedade, com a estabilidade institucional do país e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro."

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta quinta afirma que o ministro teria mandado um recado por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de que, sem a aprovação do voto impresso, não haveria eleições em 2022.

De acordo com o jornal, Lira teria dito ao interlocutor que não participaria de nenhuma ruptura institucional. Abordado por jornalistas ao chegar ao Ministério da Defesa, Braga Netto chamou a reportagem de "mentira, invenção".

Também nesta quinta, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, disse ter conversado com Braga Netto e com Lira e afirmou que ambos “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”.

“Temos uma Constituição em vigor, instituições funcionando, imprensa livre e sociedade consciente e mobilizada em favor da democracia”, afirmou.

Questionado pela Folha sobre o teor da reportagem, Lira respondeu "MENTIRA", em letras maiúsculas. Ao tratar do assunto em uma rede social, o presidente da Câmara, no entanto, não desmentiu as ameaças.

"A despeito do que sai ou não na imprensa, o fato é: o brasileiro quer vacina, quer trabalho e vai julgar seus representantes em outubro do ano que vem através do voto popular, secreto e soberano”, escreveu.

“As últimas decisões do governo foram pelo reconhecimento da política e da articulação como único meio de fazer o país avançar."

O deputado se referia à decisão de Bolsonaro de convidar o presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), para ser ministro da Casa Civil, em substituição ao general Luiz Eduardo Ramos.

Com o movimento, Bolsonaro dá mais poder ao centrão, bloco do qual Lira faz parte e que era criticado em discurso pelo presidente da República.

Também nesta quinta-feira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), publicou no Twitter uma mensagem na qual afirma que as decisões sobre o sistema político-eleitoral cabem ao Congresso e que as eleições são inegociáveis.

"Seja qual for o modelo, a realização de eleições periódicas, inclusive em 2022, não está em discussão. Isso é inegociável. Elas irão acontecer, pois são a expressão mais pura da soberania do povo​", escreveu.

Em uma rede social, Gilmar Mendes, ministro do STF, escreveu: "Os representantes das Forças Armadas devem respeitar os meios institucionais do debate sobre a urna eletrônica. Política é feita com argumentos, contraposição de ideias e, sobretudo, respeito à Constituição. Na nossa democracia, não há espaço para coações autoritárias armadas".

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seguiu na mesma linha, também em postagem: "Não serão ameaças golpistas e autoritárias que vencerão a democracia brasileira. Nossas instituições são sólidas. Teremos eleições em 2022".


O Globo: Mourão afirma que é 'lógico' que Brasil terá eleições mesmo sem voto impresso

Vice-presidente afirmou que país não é 'república de banana' e questionou quem iria 'proibir eleição'

Daniel Gullino, O Globo

BRASÍLIA — O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta quinta-feira que é "lógico" que o Brasil terá eleições no ano que vem mesmo sem a aprovação do voto impresso, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Mourão disse que o país não é uma "república de banana" e questionou quem iria "proibir eleição".

Leia mais:Ministro da Defesa nega ameaça às eleições e diz que cabe ao Congresso decidir sobre voto impresso

Há duas semanas, Bolsonaro afirmou que não haverá eleição no ano que vem se a disputa não for "limpa". O presidente não explicou o que ele considera uma eleição "limpa", mas ele tem defendido uma mudança no sistema de votação, apesar de nunca ter apresentado nenhuma prova de fraude no modelo atual.

— É lógico que vai ter eleição (mesmo sem voto impresso), pô. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana — disse Mourão, ao chegar no Palácio do Planalto no início da tarde.

O vice-presidente ressaltou, no entanto, que ele também é favorável à proposta de voto impresso.

Mourão também questionou uma reportagem do jornal "O Estado de S. Paulo" que afirmou que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, teria feito uma ameaça e condicionou as eleições de 2022 ao voto impresso. De acordo com a publicação, Braga Netto enviou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por meio de um interlocutor que não teve o nome revelado.

— Eu conheço o ministro Braga Netto há muito tempo, sei que ele não manda recado e não é, vamos dizer, da forma dele proceder que as coisas ocorressem dessa forma, até porque é um assunto que não diz respeito (a ele).

Veja também: 'Eu sou do Centrão', diz Bolsonaro em aceno ao PP

Braga Netto negou que tenha feito ameaças às eleições e afirmou que a discussão e a decisão acerca do voto impresso cabem exclusivamente ao Congresso Nacional, onde tramita uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.


Igor Gielow: Episódio Braga Netto é primeiro tiro do centrão para desalojar militares

Comandantes em geral defendem voto impresso, mas não endossam suposta ameaça às eleições

Na operação de ocupação do agônico governo Jair Bolsonaro pelas forças do centrão, os militares novamente pagaram o preço de ter apadrinhado o capitão reformado do Exército em 2018 e integrado sua administração de forma ostensiva.

O episódio no qual o ministro Walter Braga Netto (Defesa) foi apontado como mentor de uma ameaça de golpe contra as eleições de 2022 é apenas o primeiro salvo no conflito que se seguirá, com o centrão buscando desalojar os militares da miríade de cargos que amealharam no governo federal.

Foi um movimento ao mesmo tempo sofisticado, por envolver alguns fatos reais, e tosco, pelo explícito de seu objetivo.

Ninguém, seja dentro das Forças Armadas, no governo ou no Congresso, tem dúvida de que Braga Netto é hoje um dos mais bolsonaristas ministros de Bolsonaro.

Que ele defenda o tal voto auditável por impressão, não é novidade. Praticamente toda a cúpula militar brasileira o faz em conversas reservadas.

Fazer dessa defesa, inadequada porque afinal de contas ele é ministro que cuida de militares e não de área política, uma ameaça de suspensão do pleito do ano que vem é outra coisa. Mesmo que o relato apresentado pelo jornal O Estado de S. Paulo seja fidedigno, não haveria tropas disponíveis para tal intento.

Ao menos neste momento, já que no Brasil até o passado é incerto, na frase atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Só o fato de haver a discussão sobre o papel institucional das Forças já diz muito do estado em que o país está e obriga monitoramento atento.

O vazamento da versão traz elementos verdadeiros. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), esteve de fato com Bolsonaro e disse que não toparia aventuras antidemocráticas —esta Folha mesmo o reportou.

Mas o contexto era posterior à fala do presidente ameaçando as eleições, feita em público na semana retrasada. Disse Lira que iria até a uma derrota no ano que vem, mas só isso.

O mundo político caiu em cima de Bolsonaro, que aquiesceu por um momento, acelerando inclusive o processo de mudança no governo em nome de uma sobrevivência mínima visando a campanha de 2022.

Braga Netto não disfarçou seu intento na nota que publicou, onde novamente arrogou às Forças Armadas poderes constitucionais inexistentes, como a tutela sobre a "liberdade dos brasileiros". O ministro é incorrigível, como sua nota ameaçando a CPI da Covid já provara, reforçando a imagem de tigre de papel de seus comandados.

Alguns oficiais-generais ouvidos nesta quinta (22) voltaram a se queixar do ministro, naturalmente sob reserva. Consideram que o texto que editou para negar ter feito ameaças a Lira poderia dispensar a defesa da suposta vontade legítima dos brasileiros pelo voto impresso.

Leite derramado, o substrato da confusão é duplo. Bolsonaro ganhou vapor para sua decadente campanha pela mudança legal que não irá ocorrer, e que muitos temem ser a semente para uma reação anárquica caso seja derrotado nas urnas em 2022.

E o centrão, quem diria, ganha a pecha de defensor da democracia acossada ao mesmo tempo em que arrebenta as porteiras do governo que estaria ameaçando as instituições.

De quebra, o plano supõe que os militares sob fogo irão bater em retirada, deixando sob as ordens do derrotado general Luiz Eduardo Ramos as casamatas (e as mamatas, para ficar na terminologia presidencial) para os novos inquilinos.

Para um governo altamente militarizado, a impressão que fica é que, neste primeiro assalto, os fardados tomaram uma surra do antigo inimigo —que, diga-se de passagem, deixou tal condição desde pelo menos meados do ano passado, quando o namoro ora consumado começou.

Seja como for, foi uma primeira batalha. A guerra continua, com impactos institucionais ainda imprevisíveis, ainda mais com um comandante supremo notável em sua instabilidade.


O Estado de S. Paulo: Partidos querem enterrar ideia do voto impresso

Ideia é que a proposta, uma resposta a Braga Netto, seja votada na volta do recesso legislativo, em agosto

Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Os presidentes do PSDB, DEM, MDB, Solidariedade e PSD articulam a derrubada da proposta de emenda à Constituição (PEC) do voto impresso, defendida pelo governo. O movimento já existia há algumas semanas, mas agora ganhou impulso, após a ameaça do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, de não haver eleições em 2022 caso o Congresso não aprove o voto impresso, conforme revelou o Estadão. Há outros partidos que são contra a PEC, mas esses são os que encabeçam a linha de frente do movimento para adiantar a votação e rejeitar o texto.

A mobilização dos partidos foi informada pela CNN e confirmada pelo Estadão. Na prática, os partidos se mobilizam para evitar qualquer possibilidade de adiamento da comissão formada para analisar o tema. A ideia é que a proposta seja votada logo na volta do recesso legislativo, na primeira semana de agosto.

LEIA TAMBÉM
Ministro da Defesa faz ameaça e condiciona eleições de 2022 ao voto impresso

“O nosso trabalho é para rejeitar esse absurdo”, disse o presidente do DEM, ACM Neto, ao Estadão. “Essa coisa do Braga Netto acaba reforçando a articulação contra (a PEC)”, declarou o ex-prefeito de Salvador. “A gente vai fazer tudo para votar esse negócio do voto impresso e derrubar logo na comissão”, completou o presidente do DEM.

Como mostrou o Estadão, a Comissão Especial da Câmara sobre o tema chegou a ter maioria de votos favoráveis para aprovar voto impresso, mas presidentes de partidos e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) agiram para trocar os integrantes da comissão e deixar o texto sem apoio suficiente. No fim de junho, presidentes de 11 partidos fecharam um posicionamento contra o voto impresso. Os caciques das legendas, incluindo os da base do presidente Jair Bolsonaro no Congresso, decidiram derrubar a proposta discutida na Câmara e patrocinada pelo chefe do Planalto.

Na semana passada, no último dia antes do recesso legislativo, deputados contra a PEC tentaram convocar o colegiado para rejeitar o texto, mas o presidente da comissão, o deputado bolsonarista Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), adiou a votação com uma manobra regimental. “O presidente (da comissão) fez uma manobra e não deixou votar. Se tivesse concluído a votação, a gente tinha derrubado”, disse ACM Neto.

‘Ameaça do Braga Netto aumentou a indisposição com a PEC’, diz deputado

O deputado Fábio Trad (PSD-MS), integrante titular da comissão especial, afirmou que a “orientação do partido é para rejeitar”. De acordo com ele, as ações do ministro reforçam as articulações contra a ideia. “Esta ameaça do Braga Netto aumentou a indisposição com a PEC”, declarou.

A proposta de emenda à Constituição do voto impresso é uma das principais bandeiras políticas do presidente Jair Bolsonaro, que já deu declarações consideradas golpistas ao dizer que “ou fazemos eleições limpas ou não temos eleições”. 

Bolsonaro afirma, seguidamente, que sem esse mecanismo as eleições serão fraudadas. Ele também repete, sem nunca ter apresentado qualquer prova, que teria vencido a eleição de 2018 já no primeiro turno e que o deputado Aécio Neves (PSDB) venceu a disputa de 2014, algo que o próprio tucano disse não acreditar.  

Voto impresso auditável

O voto impresso já foi implantado em caráter experimental nas eleições presidenciais de 2002 — e acabou reprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Naquele ano, para testar o sistema, a medida foi adotada em 150 municípios, atingindo 6,18% do eleitorado.  

“Sua introdução no processo de votação nada agregou em termos de segurança ou transparência. Por outro lado, criou problemas”, apontou um relatório do TSE. 

O tribunal concluiu que, nas seções com voto impresso, foram maiores o tamanho das filas e o percentual das urnas que apresentaram defeitos, além das falhas verificadas apenas nas impressoras.  “Houve incidência de casos de enredamento de papel, possivelmente devido a umidade e dificuldades de manutenção do módulo impressor”, apontou o relatório do TSE.  

No Distrito Federal, que adotou o voto impresso em todas as seções eleitorais em 2002, o índice de quebra de urna eletrônica no primeiro turno foi de 5,30%, enquanto a média nacional foi bem inferior: 1,41%.

NOTÍCIAS RELACIONADAS


Marcelo Godoy: Em dois anos, militares da ativa postaram 3,4 mil tuítes políticos

Pesquisa feita em contas de 115 militares da ativa ligadas ao ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas localizou 3.427 tuítes de caráter político-partidário, entre abril de 2018 e abril de 2020. Eles estavam nas contas mantidas na rede social por 82 integrantes das Forças Armadas, entre os quais 22 oficiais-generais – 19 generais, dois almirantes e dois brigadeiros.

São casos como o do coronel Ricardo. Era 7 de outubro de 2018, dia do primeiro turno da eleição presidencial, quando a conta do militar no Twitter fez propaganda do então candidato Jair Bolsonaro: “É dia de mudar o Brasil. Vote consciente. Brasil acima de tudo! Deus acima de tudo!” Outro oficial – um tenente-coronel de Cavalaria – escreveu: #MitoPrimeiroTurno.

A maioria dos tuítes é de apoio ao governo, mas há exceções. Um general disse sobre o caso das “rachadinhas”, no gabinete de Flávio Bolsonaro quando o hoje senador pelo Republicanos era deputado estadual no Rio: “Ventos novos exigem posturas novas”. Um dia depois da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, um coronel escreveu: “A minha melhor continência a esse patriota!” E repetiu a frase do ex-juiz da Lava Jato: “Faça a coisa certa, sempre”.

Um general chegou a mudar o nome de seu perfil, adotando outra identidade na rede, após a demissão de Moro, e passou a tuitar contra Bolsonaro, criticando-o pela atuação no combate à pandemia de covid-19.

Para o cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, as publicações dos militares demonstram a existência de um “ativismo militar”. As manifestações político-partidárias de integrantes da ativa são proibidas pelo Estatuto dos Militares e pelos regimentos disciplinares e portarias das três Forças Armadas. Na avaliação de Eliezer, é importante controlar esse fenômeno, pois “a aplicação das normas republicanas confronta o partido fardado, ao passo que a impunidade reforça a autonomia militar”.

Punições

O Ministério da Defesa disse que Marinha, Exército e Aeronáutica têm “manuais e cartilhas que normatizam e orientam adequadamente a conduta e o uso de mídias sociais por parte dos militares”. O uso incorreto de redes já levou à punição de militares da ativa. O Exército cita casos de violação da segurança de unidades, mas não revelou o total de punidos.

A Força Aérea informou que registrou “17 procedimentos para apuração de suposta transgressão por ‘mau uso’ de redes sociais, dos quais dez praças foram punidos disciplinarmente” – seis deles em 2019 e quatro em 2020. Nenhum oficial foi punido. Entre os que fizeram postagens políticas está o brigadeiro Carlos Baptista Júnior, com 80 publicações políticas, todas em apoio ao presidente e ao bolsonarismo antes de ser nomeado comandante da Aeronáutica.

A Marinha respondeu que, em 2019, foram determinadas 17 punições a 17 militares pelo uso de redes. Em 2020, esse número subiu para 20 punições a 20 militares. Os dados foram obtidos pelo Estadão por meio de Lei de Acesso à Informação.

Para o Exército, atualmente o problema está sob controle. A reportagem apurou que uma dezena dos perfis de militares que publicavam manifestações políticas apagou os tuítes, fechou suas contas ou abandonou a rede social. A questão foi disciplinada pela portaria de 2019 feita pelo ex-comandante da Força, general Edson Leal Pujol. Ela criou critérios para a manutenção de contas nas redes sociais pelos militares, proibindo sua vinculação delas com perfis institucionais, à exceção dos integrantes do Alto Comando.

O uso do Twitter por militares voltou a ser debatido após o novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira, congelar sua conta para priorizar a comunicação institucional no YouTube. Ele criara o perfil em abril de 2018, depois dos tuítes de Villas Bôas às vésperas do julgamento de Luiz Inácio Lula da Silva, então preso na Lava Jato. Além dele, outros 30 generais e coronéis abriram contas de abril de 2018 a abril de 2020, período abrangido pela pesquisa, publicada no livro Os Militares e a Crise Brasileira. Entre os tuiteiros, um quinto dos posts políticos critica a oposição e a imprensa e 35% traz mensagens de apoio ao governo ou reproduz opiniões de bolsonaristas, como as deputadas Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP).

Especialistas apontam a volta do ‘partido fardado’

A presença de militares no governo Jair Bolsonaro e o comportamento deles reanimaram o interesse na atuação política dos militares e sobre obras como as dos antropólogos Celso Castro e Piero Leirner e as de cientistas políticos como José Murilo de Carvalho e Oliveiros S. Ferreira, autor de Vida e Morte do Partido Fardado e Elos Partidos. Um dos centros do debate atual é o conceito de “partido fardado”, usado por Oliveiros e pelo cientista político francês Alain Rouquié.

Oliveiros pensava que as reformas do presidente Castelo Branco, limitando o tempo de permanência de generais na ativa, teriam levado ao fim do partido fardado, deixando-o acéfalo. Generais se candidatavam, exerciam cargo político e depois voltavam aos quartéis. Eles simbolizavam o fenômeno. Para o cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, que prepara um livro sobre o tema, o governo Bolsonaro mostra que o partido fardado não havia morrido, só estava hibernando, sobretudo no Exército. “Estamos diante de um ativismo militar, de um partido verde-oliva.”

Segundo a pesquisadora Ana Penido, do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), para Oliveiros, o partido fardado não é algo formal para disputar eleições, mas uma organização temporária, que só se evidencia em momentos de tensão interna nas Forças Armadas ou de desencontro entre a instituição e o governo, precisando de situação favorável à politização militar.

Tuítes têm cunho político; manifestações são vetadas pelas Forças.  Foto: Twitter/Reprodução

A pesquisadora adota, porém, o termo “partido militar” para designar o fenômeno. “Pertencem ao partido aqueles militares que se julgam no direito de interpretar a Constituição e, na condição de defensores da lei e da ordem, estabelecem, por si mesmos, como e quando agirão. Integram o estabelecimento militar aqueles que agem subordinados às leis e regulamentos, pautados pela hierarquia e disciplina.”

Para o coronel da reserva Marcelo Pimentel, que analisa o fenômeno no livro Os Militares e a Crise Brasileira, o atual processo de politização dos militares começou em meados da última década. “A politização dos militares não se confunde com a mera expressão pessoal de opiniões políticas.” O partido militar se coloca em um dos polos da política e cria o risco de divisões nas Forças, com a volta ao estado de indisciplina crônica, vivido nos quartéis antes de 1964. “O que preocupa é a atual geração de tenentes em razão do exemplo dos chefes. O mau uso de redes sociais é um meio de politização do Exército.”

NOTÍCIAS RELACIONADAS

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,em-dois-anos-militares-da-ativa-postaram-3-4-mil-tuites-politicos,70003701887