golpe

Instituições funcionando

Bernardo Mello Franco / O Globo
Foto: Alan Santos/PR

Millôr Fernandes tinha uma boa frase para ilustrar os perigos do otimismo em excesso. Para ele, o otimista era o sujeito que se atirava do décimo andar e, ao passar pelo oitavo, comemorava: “Até aqui, tudo bem!”. A imagem parece descrever os brasileiros que não veem ou fingem não ver as ameaças de golpe contra a democracia.

Há duas semanas, Jair Bolsonaro deu um ultimato: ou o Congresso ressuscita o voto impresso ou “corremos o risco de não ter eleição no ano que vem”. A chantagem foi tratada com condescendência. Em vez de ser processado por crime de responsabilidade, o capitão foi convidado para um cafezinho no Supremo.

Nesta quinta, o jornal O Estado de S. Paulo informou que o ministro da Defesa aderiu ao complô para tumultuar a sucessão presidencial. Braga Netto mandou dizer ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que só haverá eleição com as regras impostas pelo governo. Usou o coturno de general para intimidar o poder civil.

Seguiram-se negativas pouco convincentes. O deputado Lira desconversou sobre o assunto. “A despeito do que sai ou não sai na imprensa”, disse, vamos todos à urnas em 2022. O general bolsonarista optou pelo cinismo. Tentou desqualificar a reportagem, mas reforçou, em papel timbrado, a pressão indevida pelo voto impresso.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, limitou sua reação a um tuíte. Disse que conversou com os envolvidos, e os dois “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”. O ministro acrescentou que o país tem “instituições funcionando”. Lembrou o otimista de Millôr antes de se esborrachar na calçada.

Desde que assumiu a chefia do Executivo, Bolsonaro submete os outros Poderes a uma rotina de intimidações e chantagens. Até aqui, a tática tem funcionado. O Supremo impede o avanço das investigações sobre o primeiro-filho, acusado de desviar verba de gabinete. A Câmara não toca na pilha de pedidos de impeachment do presidente, recordista de crimes de responsabilidade. Agora a impunidade se estende a Braga Netto, que se comporta como chefe de guarda pretoriana.

O general é reincidente em ameaças golpistas. Há pouco mais de duas semanas, atacou o presidente da CPI da Covid, Omar Aziz. Queria interromper as investigações sobre corrupção na compra de vacinas, que atingem militares aboletados no Ministério da Saúde. Em nota assinada com os comandantes das três armas, o ministro insinuou uma quartelada contra o Senado. Como o arreganho não foi punido, ele se sentiu à vontade para repetir a dose.

Num país com instituições funcionando, militar não intimida o Congresso e não opina sobre o sistema eleitoral. Na hipótese mais branda, quem age dessa forma é afastado do cargo que ocupa. No Brasil de 2021, general que afronta a Constituição só corre o risco de ser promovido. E os otimistas continuam a repetir que tudo está sob controle — pelo menos até a próxima ameaça de ruptura.


Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/instituicoes-funcionando.html


A política da destruição

Merval Pereira / O Globo
Foto: Isac Nóbrega/PR

Ao admitir que sempre fez parte do Centrão nos seus anos de Congresso, o presidente Bolsonaro desnuda mais uma das  muitas manobras políticas que engabelaram boa parte de seus eleitores em 2018, em busca de um salvador contra a corrupção dos hábitos políticos. Muitos outros votaram nele sabendo exatamente de quem se tratava, mas interesses pessoais de toda sorte levaram a que aderissem a uma candidatura que só poderia dar no que deu, um governo disfuncional e absolutamente sem rumo. Que tem o único objetivo de destruir o que foi construído desde a redemocratização do país, transformando-o em uma arena  regressiva guiada pela incitação ao ódio.

Acontece que Bolsonaro não tem outra escolha, a não ser se entregar ao Centrão, e a partir daí, corre o risco de perder boa parte do eleitorado. Ele joga com a possibilidade de que o candidato adversário seja o ex-presidente Lula, que não será o escolhido pelo eleitor arrependido ou decepcionado, e nesse ponto tem razão. Vejo aí um caminho aberto para a terceira via, um candidato que não seja do Centrão, nem um governante que desista de combater a corrupção por causa dos apoios eleitorais e da família.

Bolsonaro pode ganhar apoio no Legislativo, mas não entre os eleitores. É verdade que os políticos do Centrão são profissionais, sabem espalhar prefeitos e vereadores pelo país, fazem uma política eficiente de clientelismo à qual Bolsonaro vai aderir, aumentando a abrangência do Bolsa Família, por exemplo. Temos que ver como o eleitorado irá se comportar diante das outras opções. Acossado pela realidade, pode ser que algum dos candidatos já apresentados, ou um nome que surja no decorrer deste ano, se transforme numa saída de emergência para esse eleitorado que está decepcionado com Bolsonaro, e não quer a volta de Lula.
O fato é que o governo Bolsonaro vem se mostrando tão profundamente regressivo, tem feito com que o país retroceda tanto em termos civilizacionais, que se mostrou mais danoso do que qualquer outra experiência na democracia brasileira. Nascido da democracia, o bolsonarismo representa a destruição da própria democracia, e a aula inaugural do Instituto de Pesquisa de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR), com um ensaio sobre a destruição na era bolsonarista, pelo cientista político Renato Lessa, se debruçou sobre esse fenômeno.

No campo da língua, ele cunha o conceito “palavra podre” para definir a linguagem como espaço de intervenção política. O indizível da véspera “passa a ser a dicção regular e quase obrigatória”. Exemplo execrável dessa intervenção destruidora na língua é a definição de uma bolsonarista nas redes sociais: “Nós não conhecemos limites”. Não é uma frase ofensiva, mas destrói uma premissa fundamental que nos conecta na sociedade. A palavra podre, define Lessa, infecta o espaço semântico, e a República passa a usar essa linguagem. A palavra, lembra Lessa, é premissa do ato.

Daí a destruição dos espaços culturais, do arcabouço da educação brasileira. Segundo Hobbes, citado por Renato Lessa, o reconhecimento da centralidade da vida é a justificativa para a existência do Estado, a vida passa a ser uma figura de direito público. “Mortes violentas e precoces são evitáveis”. O que o leva a falar da performance do governo Bolsonaro no combate à pandemia da COVID-19.

A ideia de que o indivíduo tem o direito de não usar máscara, de contaminar os outros, de se contaminar, é uma ressignificação da ideia de liberdade, denotando a impossibilidade de ver a liberdade como um direito público. “Análogo ao direito de desmatar, de expulsar as populações originárias, de tratar homossexuais, mulheres e negros da maneira “como sempre foram tratados”, naturalmente. Seria a “expressão da alma brasileira expontânea”. A mesma lógica, segundo Renato Lessa, se aplica sobre o direito de território, a possibilidade de lidar com a terra fora do direito público, o desmonte dos regramentos legais existentes. Por último, Renato Lessa destaca como um aspecto grave a desfiguração da democracia na desconstituição dos direitos básicos ao trabalho, à educação e à cultura.


Fonte:

O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/


Quem tem medo do impeachment?

Engrossa a adesão de centro-esquerda e centro-direita à tese do afastamento de Bolsonaro, mas, em contrapartida, cresce a resistência da esquerda tradicional 

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Existe uma explicação para a surpreendente troca de ministros na Casa Civil, com a entrada do senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, no lugar do general Luiz Ramos, transferido para a Secretaria-Geral da Presidência: Bolsonaro está com medo do impeachment, já não confia na liderança e na capacidade política do grupo de generais que o cerca e teme a deriva das Forças Armadas em apoio ao vice, Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas escanteado pelo presidente da República. Entregar o coração do governo ao Partido Progressista — herdeiro da antiga Arena e do PDS, partidos que apoiaram o regime militar — foi a maneira que encontrou para evitar que a legenda governista embarque no impeachment, diante do desgaste de Bolsonaro e da pressão das ruas a favor do afastamento.

Os generais palacianos que mandavam e desmandavam no Palácio do Planalto levaram um baile dos políticos do Centrão, que se aproveitam do enfraquecimento do governo para abocanhar fatias maiores de poder e do Orçamento da União. O último lance dessa disputa de bastidor foi o vazamento da suposta ameaça feita pelo ministro da Defesa, Braga Netto, de que não haveria eleição sem voto impresso. O novo ministro da Casa Civil teria sido o portador do recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que vazaria a informação para as jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, do jornal O Estado de S. Paulo.

A dúvida é se o vazamento foi combinado entre os dois políticos ou não. Resultado: o general acabou na berlinda, mesmo tendo desmentido a informação, porque insistiu em defender a tese de que as urnas eletrônicas não são seguras, o que é uma forma de tumultuar o processo eleitoral, além de uma atitude inadequada para quem ocupa o cargo de ministro da Defesa. Nos bastidores da política de Brasília, todos sabem que Braga Netto põe pilha na radicalização de Bolsonaro e, para agradá-lo, constrange os comandantes militares, com exceção do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, bolsonarista convicto. A disputa entre os militares e os políticos do Centrão pelo controle político dos ministérios será a grande contradição interna do governo até as eleições.

A mudança coincide com o crescimento das manifestações de protesto contra o governo em todo o país, em parte, porque o avanço da vacinação permite que as pessoas se sintam mais seguras nas ruas, mas principalmente por causa dos quase 550 mil mortos por covid- 19 e do desmonte das políticas públicas. Esses protestos passaram por três estágios: no primeiro momento, foram manifestações convocadas pela esquerda mais radical e alguns sindicatos; depois, entraram em cena os partidos de esquerda tradicional e as centrais sindicais; agora, está se ampliando, com maior participação dos partidos de centro-esquerda, como PSDB e Cidadania, e os movimentos cívicos Vem Pra Rua, MBL, Agora,Acontece, Livres etc. Mas há contradições também na oposição.

Polarização eleitoral
O que une os protestos de rua é o “Fora Bolsonaro”, ou seja, a oposição ao governo; o impeachment de Bolsonaro empolga o senso comum oposicionista, mas não é unanimidade. Há setores que não concordam com a tese, porque afastar Bolsonaro significa entregar o governo ao general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, e abrir espaço para a consolidação da hegemonia militar, além de facilitar o surgimento de uma candidatura conservadora competitiva, que pode ser a dele próprio e/ou de outro candidato. Esse posicionamento parte sobretudo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de opinião sobre as eleições de 2022.

Esse favoritismo do petista engrossa a adesão de setores de centro-esquerda e centro-direita à tese do impeachment, mas, em contrapartida, aumenta a resistência da esquerda tradicional ao afastamento, pois prefere um embate eleitoral com Bolsonaro. Há uma espécie de “me engana que eu gosto”. Uns fingem que querem o impeachment e só jogam para a arquibancada; outros dizem que são contra, mas, se houver necessidade de se livrar de Bolsonaro para permanecer no poder, não hesitarão em entrar na conspiração no Congresso, como já aconteceu antes com os presidentes Collor de Mello e Dilma Rousseff.

No terceiro ano de mandato, o governo Bolsonaro fracassa em três frentes: a econômica, a social e a sanitária. Até agora, não tem volume de entregas administrativas para garantir a própria reeleição. Bolsonaro confia o governo aos aliados do Centrão para sobreviver e chegar às eleições como alternativa de poder, na polarização com Lula. Para isso, precisa evitar o surgimento de um candidato competitivo de centro. Isso coincide com os interesses eleitorais de Lula, que também não quer uma “terceira via” que possa ameaçá-lo no segundo turno. Na velha dialética, essa é a lei da “unidade dos contrários”.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-quem-tem-medo-do-impeachment/

Vitórias parciais e novos desafios ao sistema político

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Prossigo, como fiz na semana passada, batendo na tecla de que, ao reverso do que ocorreu em 2018, dessa vez a caravana da política precisa passar. A defesa do sistema político que temos é das mais elementares condições para que se produza um desfecho democrático da crise de múltiplas faces que a política brasileira vem enfrentando há quase uma década e se exorcize os fantasmas de metástase que passaram a ameaçar nossa república, desde que, naquele ano, um autocrata extremado chegou, pelas urnas, à sua presidência.

Essa reflexão é institucional e, também, política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos, pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue, com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então, aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada indulgente com as segundas.

Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.

Por outro lado, é por esse mesmo Congresso – mais exatamente pela Câmara dos Deputados – que tem encontrado passagem uma boiada reacionária, subversiva de direitos, que emana da agenda do governo. A operação passa graças a espaços pródigos abertos a partidos e parlamentares fisiológicos na composição ministerial, sendo dessa mesma natureza a mudança em curso, nessa composição, cujo sentido é fazer prevalecer, no Senado Federal, a mesma atitude de prevaricação política. Que é do jogo, não se pode negar. Mas não se pode deixar de apontar que, nesses casos, os efeitos são nefastos.

O reconhecimento concomitante das virtudes e das mazelas é indispensável para se avaliar com realismo e a devida ponderação a presente conduta de diferentes facções da elite política no âmbito dos partidos e dos poderes Executivo e Legislativo. Os limites que a política real tem mostrado, no enfrentamento das ameaças à democracia, por omissão ou por ações na contramão da república, precisam ser investigados e iluminados, assim como é necessário considerar como ameaças poderiam ter sucesso se estivesse ausente o muro de contenção que, com seu barro impuro, a política institucional tem erguido à barbárie.  

Essa complexidade exige condução cuidadosa. Daí precisar ser tratada de modo sério e responsável por quem faz e por quem toca a agenda de partidos e de poderes da República. É mesmo uma orientação, digamos, metodológica inescapável da ordem do dia de atores institucionalmente poderosos. Frequentemente a afinação dos instrumentos da orquestra sistêmica soa mal aos ouvidos de uma sociedade que não tem gosto pela partitura da política. Gera-se um contencioso entre estado e sociedade que, se não se contiver em limites razoáveis, por ambas as partes, compromete pacto e consensos que são necessários, entre elas, para defender a república e a democracia dos inimigos comuns.

Veja-se, por exemplo, a questão do fundo financiador da atividade eleitoral dos partidos.   Essa questão é mais complexa e delicada do que parece. A opinião pública reage a todo dispêndio público com partidos e eleições. Mas não podemos esquecer que desde 2018 proibiu-se o financiamento empresarial e por demais pessoas jurídicas, por conta do clima de escândalo reinante sob a operação Lava-Jato. De fato, o financiamento empresarial gerava custos de campanha absurdos e elitizavam a representação. Era preciso conter a farra, parteira de uma promiscuidade entre setor público e empresas privadas. Mas se o STF foi aplaudido quando resolveu dar freio radical naquilo (poderia ter havido fixação de limites, mas sob pressão do clima de faxina, optou-se pela proibição) de algum lugar haverá de sair o dinheiro. Para haver competição democrática não apenas é necessário, mas também desejável, que advenha de recursos públicos. Senão, será candidato com chance real de competir apenas quem tiver recursos próprios para financiar sua campanha, ou – ao se vedar também, ou limitar fortemente, o uso desse tipo de recurso - quem possa dispor de apoiadores individuais abastados, ou quem já tenha mandato e, através dele, acesso privilegiado a meios de comunicação. Seria uma oligarquização ainda maior do que aquela, propiciada pelo financiamento empresarial.   Portanto, é preciso ter como premissa que o fundo público para financiar eleições via partidos não tem nada de espúrio. É legitimo, necessário, democrático, o que se pode e deve discutir é seu montante.

Chega-se aí a outro ponto: é intuitivo e, também, induzido pela experiência da sociedade brasileira em lidar com a ambição e ousadia de interesses corporativos (inclusive, mas não apenas, de agentes estatais e da elite política), que o montante previsto é exagerado. Isso tem de ser avaliado e comprovado com critérios objetivos e comparativos com a eleição de 2018, que foi a mais recente eleição do porte da próxima, que envolverá Presidência da República, Senado, Câmara dos Deputados, governos estaduais e assembleias legislativas. É razoável tomar aquela eleição como parâmetro e fazer naquele valor correções mínimas, tendo em conta o contexto crítico que se atravessa. Mas não é razoável dizer que o fundo é ilegítimo, nem que deva ser depreciado, pois é do financiamento da democracia que se trata. De uma democracia ameaçada, sob fogo cerrado. Se a sociedade não quiser financiar eleições e o setor privado está proibido de fazê-lo legalmente, o dinheiro virá de alguma fonte do submundo. O preço a pagar será maior.

Em resumo: democracia não sai grátis, nem barato. Ela é vital para tudo o mais e o discurso de opor gastos com eleições a, por exemplo, com o auxílio emergencial é de um populismo politicamente esperto, porém, raso e vizinho da demagogia. As duas coisas são essenciais nesse momento. O que falta para o auxílio emergencial e outras políticas sociais inadiáveis precisa ser buscado em rubricas que alimentam posições plutocráticas e não nas que financiam a democracia, desde que estejam razoavelmente dimensionadas.

Enquanto os olhares da sociedade são desfocados para uma cruzada contra o fundo de financiamento das eleições, nova boiada – essa sim, espúria - está prestes a passar no Congresso sem que até mesmo os canais de comunicação estejam lhe dando o merecido destaque. Políticos individuais (negam-se como elite política pela simples razão de que operam para destruí-la) sem outro mister senão a contemplação grosseira e politicamente malsã do auto-interesse, organizam-se para liquidar, de um só golpe, o sistema eleitoral e o sistema partidário, através de o chamado “distritão”, pelo qual se consagra o candidato de si mesmo, mandando às favas o sentido institucional da política.

Os pormenores desse projeto e seus previsíveis efeitos requerem nova coluna.  Mas o mais evidente deles será imediato (os de longo prazo ainda são incomensuráveis) Anulará, na prática, os efeitos do fim das coligações partidárias em eleições proporcionais (para deputados e vereadores), a melhor medida de reforma política que o Congresso anterior aprovou, em 2017. Em vez de fortalecer os partidos e dar consistência maior ao sistema partidário – possibilidades que não são quimeras, como mostraram os resultados eleitorais de 2020, já sob efeito da reforma anterior - a destruição institucional de agora, autonomeada de reforma, pode converter os partidos em entidades fantasma e revogar qualquer traço de sistema partidário digno desse nome, no Brasil.

A aprovação dessa matéria, tida como provável, dá uma medida das sequelas da eleição de 2018, do retrocesso político que o seu resultado causou, ao alterar de modo radical a composição das Casas legislativas entronizando ali contingentes expressivos de pregadores e praticantes de antipolítica. Convém recordar que o Congresso anterior recebeu as críticas moralistas de sempre, de ter aprovado a reforma de 2017 exclusivamente movido pelo interesse de reeleição dos então parlamentares. Essa obviedade foi guindada à condição de descoberta e assim denunciada, sem se considerar que, naquele momento, auto-interesse e aperfeiçoamento do sistema estavam sendo, simultaneamente, contemplados.

Mas havia uma cobrança de dimensão eleitoralmente relevante por parte de um sentimento público, alimentado por uma direita voluntarista, que clamava por "renovação", eufemismo que traduzia o desejo de exterminar a classe política, suposta responsável pelas mazelas da hora e pelas de sempre. A força desse senso comum de inspiração demagógica cegava a maioria das análises para os fatores institucionais e a isso se somava o ressentimento da esquerda para com o então Congresso, que havia votado o impeachment de Dilma Rousseff.  Então, tome pedras, vindas de todos os lados. Mas, na verdade, aquela reforma preservava e aperfeiçoava o sistema no mérito e no modo incremental que, há anos, vinham sendo cobrados pelas mesmas consciências críticas que seguiam, naquele contexto perigoso, apontando o dedo acusador para o "corporativismo" de uma elite parlamentar que apenas lutava para não ser varrida do mapa, a jatos de demagogia. Aí está agora, para que comparemos com a reforma de 2017, essa mixórdia do distritão, que reforçará, exponencialmente, tudo contra o que se batia a lógica da faxina.  Se passar, será a mais nova cria com digitais e DNA da "nova política" vencedora em 2018.

O sistema político brasileiro - em sua ambiguidade tradutora da ambiguidade da própria política que processa - tem diante de si duas possibilidades de afirmação permitidas pela pauta atual do Congresso. A de revisar, sem capitular, os termos em que está posto o fundo eleitoral e a de se recusar a cometer, com o distritão, um haraquiri político num instante em que a democracia da Carta de 88 precisa que seu hardware político sobreviva íntegro a essa crise, para retomar, com reformulações incrementais típicas de democracia em modo gerúndio, a trajetória ascendente e socialmente inclusiva de suas duas primeiras décadas.

*Cientista político e professor da UFBa.


Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo

https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/07/paulo-fabio-dantas-neto-vitorias.html


Golpe? Que golpe?

Demorou, mas finalmente as instituições se mexeram e foi criada a CPI da Covid

Vai ter golpe? Não. Já teve. Não sei se você lembra, mas foi em 2016, contra Dilma Rousseff. Como o espaço é curto, eu vou resumir. Teve o tuíte golpista do general Villas Bôas ao Supremo, Lula foi preso, não pôde participar da eleição e Bolsonaro foi eleito, enquanto as instituições, claro, funcionavam normalmente. Sim, teve o Moro, hoje, sabe-se, um juiz suspeito.

Tudo ia muito bem para essa gente. Mas, no meio do caminho tinha uma pandemia. Demorou, demorou, mas, ufa, finalmente, as instituições se mexeram e foi criada a CPI da Covid. Eis que os senadores descobrem fortes indícios de corrupção na negociação para comprar vacinas! As suspeitas envolvem coronéis e o general da ativa que foi ministro --e também encostam em Bolsonaro.

Ele despenca nas pesquisas. O que faz, então, o presidente enfraquecido? O arauto do caos intensificou a pregação golpista contra a urna eletrônica e as eleições, contando, agora, com o reforço escancarado do ministro da Defesa, Braga Netto, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo. A ameaça do general foi direcionada ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o mesmo que com seus poderes hipertrofiados se recusa a analisar os pedidos de impeachment contra o presidente.

Ocorre que Bolsonaro foi buscar apoio justamente no centrão de Lira. Na rapina do dinheiro público, a turma de Lira faz assim: escalpela, dilacera as vísceras e termina o repasto triturando os ossos até o tutano. O híbrido de governo miliciano, centrão, liberais defensores do Estado esquelético e militares saudosos da ditadura ainda vai produzir muitos sobressaltos.

Mas o Brasil que irá às urnas em 2022 é muito diferente daquele que votou com ódio em 2018. E tudo o que os generais herdeiros de Ustra conseguirão com seus arreganhos é se parecer cada vez mais com um bando de "maria fofoca", metidos num disse me disse de golpe. Generais, vistam o pijama e devolvam-nos o país que vocês destruíram. Não estão satisfeitos com 550 mil mortos?


Está só começando o assalto do Centrão ao governo Bolsonaro

Para pelo menos completar o mandato, o presidente entrega os anéis, os dedos e o que mais for necessário

Fosse bem o governo, o presidente Jair Bolsonaro não precisaria abrir a porta para a entrada do Centrão, o que ele sempre negou que faria. Como o governo vai mal e o sonho da reeleição cada vez mais distante, restou-lhe dar o dito pelo não dito.

Não foi o Centrão que meteu o pé na porta, foi o presidente que lhe estendeu o tapete vermelho e pediu que entrasse. Nada tem a ver com um lance de ocasião do tipo ceder os anéis e preservar os dedos. Haverá de ceder os dedos e muito mais.

Consentido por Bolsonaro, o assalto do Centrão ao governo está só começando. Uns tantos quintos colunas ali já estavam instalados, mas perdiam de longe para os militares em matéria de influência. Em breve, o placar deste jogo será invertido.

A chefia da Casa Civil não é um cargo qualquer, é o mais importante do governo depois do cargo de presidente. Foi por isso que do México, onde ainda se encontra de férias, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) apressou-se a dizer sim ao convite para ocupá-lo.

Nogueira não é simplesmente um senador, é presidente do seu partido, um dos maiores, e um dos líderes do Centrão. Em 2006, indicou a senadora Ana Amélia para vice de Geraldo Alckmin, candidato do PSDB a presidente contra Dilma Rousseff (PT).

Antes da eleição, abandonou Alckmin, Ana Amélia e apoiou Dilma. Ele e a mãe posaram para fotos com adesivos da campanha de Dilma. Em vídeo gravado em 2017, chamou Bolsonaro de fascista e Lula de o maior presidente da história do país.

Bolsonaro está sendo obrigado a explicar aos seus devotos por que convidou para ser o seu segundo não só um nome do Centrão como justamente o daquele que o tinha como má companhia. E tem respondido que no passado disse coisas que hoje não repetiria.

Seria o caso de perguntar-lhe que coisas foram essas que hoje não mais diria. E de perguntar a Nogueira por que há três anos e meio ele considerava Bolsonaro um fascista. É de supor que não considere mais. Foi Bolsonaro quem mudou ou foi Nogueira?

Os militares sempre serão o maior contingente de quadros do governo Bolsonaro – algo entre 6 mil e 8 mil, da reserva e da ativa, distribuídos por todos os escalões. Mas a entrada de Nogueira os afetará, bem como a Paulo Guedes, ministro da Economia.

Sob o seu comando, Guedes reuniu meia dúzia de antigos ministérios rebaixados à condição de secretarias. Acaba de perder Trabalho e Previdência Social e corre o risco de perder o Planejamento. Por mais que negue, está em declínio.

Em time que vence não se mexe. Bolsonaro conformou-se em mexer no seu para não perder a última e decisiva batalha, a de completar o mandato.

PP de Nogueira, chefe da Casa Civil, recusa o passe de Bolsonaro

Além de ser um fardo pesado, o presidente atrapalharia alianças do partido nos Estados

O convite para que Ciro Nogueira (PI) ocupe a chefia da Casa Civil do governo está sendo celebrado por deputados federais e senadores do Progressistas (PP), mas a possibilidade de que o presidente Jair Bolsonaro se filie ao partido, não.

“Tentei e estou tentando um partido que eu possa chamar de meu e possa, realmente, se for disputar a Presidência, ter o domínio do partido. Está difícil, quase impossível”, disse, ontem, Bolsonaro em uma entrevista à rádio Grande FM, de Mato Grosso do Sul.

Por ora, a resposta do PP ao presidente é: “Aproxime-se para lá, me inclua fora dessa”. Foi a mesma resposta que lhe deram o Patriotas e outras siglas. Há mais desvantagens do que vantagens em abrigar Bolsonaro e toda a sua trupe, onde se incluem os filhos.

Vão querer mandar no partido onde entrarem, e todos os partidos já têm donos. A empreitada de Bolsonaro para criar um partido só dele fracassou. Ele ficou sem nenhum e não sabe qual será o seu destino a 14 meses das eleições do ano que vem.

Além de donos, os partidos ambicionados por Bolsonaro preferem não ter candidato próprio a presidente da República para se dedicarem à eleição de deputados e senadores, e isso passa por alianças diversas nos Estados, à direita e à esquerda.

O PT governa a Bahia junto com o PP. Bolsonaro admitiria que, ali, o PP apoiasse Lula ao invés dele? De Nogueira, tão logo assuma a Casa Civil, seus liderados esperam que os ajude a se reeleger, e não o contrário; e que os deixe sem amarras para isso.


Esquerda auxilia Bolsonaro sempre que apoia ditaduras

Militantes de esquerda ficam muito irritados quando seus políticos são questionados por jornalistas sobre Cuba ou Venezuela. Acreditam que esse tipo de pergunta é capciosa, uma espécie de espantalho que busca amedrontar o eleitorado e desviar a atenção dos temas substantivos de políticas públicas.

O antigo mal-estar foi reavivado agora quando diversos políticos de esquerda, entre eles o ex-presidente Lula, deram declarações apoiando a ditadura cubana, que enfrenta uma onda de protestos.

A esquerda não gosta de ser comparada a Bolsonaro em sua falta de compromisso com a democracia. Em parte tem razão: nos 13 anos de governos petistas não houve nenhum movimento relevante de esmorecimento da ordem democrática. Apesar de declarações criticando a imprensa ou ataques a movimentos de protesto, não houve nenhuma ação dos governos de esquerda que minimamente se aproximasse das rotineiras ameaças de Bolsonaro à integridade das eleições, à independência dos Poderes ou à liberdade de imprensa.

Por isso mesmo, é bastante surpreendente a incapacidade das maiores lideranças de esquerda de marcar distância dos regimes autoritários em Cuba ou na Venezuela. Essa recusa em condenar ditaduras alimenta o medo de setores da direita, e mesmo do centro, que pode empurrá-los outra vez para Bolsonaro na busca do mal menor.

A esquerda precisa escapar da lógica binária segundo a qual o injusto e excessivo embargo americano contra Cuba autoriza ações repressivas como a que vimos na semana passada, com a prisão em massa de dissidentes e a suspensão da internet. A ditadura de um só partido, a limitação da liberdade sindical e a restrição da liberdade de imprensa não podem ser defendidas como o preço a pagar pelas boas políticas de saúde e educação cubanas.

O mesmo vale para a Venezuela. A perseguição à oposição e o cerceamento à liberdade de imprensa, de um lado; e, de outro, a falta de independência entre os Poderes, com o estrito controle do Executivo sobre a Corte constitucional e o redesenho de distritos eleitorais para manter o controle do Legislativo, não pode ser defendida porque a oposição tentou dar golpes de Estado ou porque o governo americano ameaça intervir no país.

No caso da Venezuela, para além das questões democráticas, é preciso uma reflexão profunda sobre os graves equívocos da política econômica, que levaram o país a uma inflação anual de 3.000% e a uma queda no PIB de 30% em 2020 —esse desastre todo não se explica apenas pelas sanções americanas e por um suposto locaute do empresariado.

A esquerda, se quer se apresentar como contraponto ao autoritarismo de Bolsonaro, precisa melhorar muito suas credenciais democráticas. Não pode tomar posições que sugiram que, se a oportunidade surgir, poderá sacrificar a democracia na busca pela justiça social. Sempre que a oportunidade surgir, é mais do que pertinente que o jornalista pergunte ao candidato da esquerda: “E a Venezuela?”.


O cheiro do golpista

Braga Netto tem sotaque de golpista, cacoete de golpista e é amigo e subordinado do golpista-mor da República. Só por um milagre ele próprio não seria um golpista potencial

Pode não ser verdade, mas é bem provável que seja. O episódio golpista que envolveu o general Braga Netto, ministro da Defesa, tem traços genuínos e cheiro de verdade. Só o “Estadão”, que publicou a matéria em que conta a ameaça às eleições feita pelo general, pode garantir a veracidade da informação. E o jornal não só garantiu como reafirmou sua convicção na correção da matéria. Todos os demais podem afirmar que ela é bem provável, ou muito provável, ou mais do que provável. O general tem sotaque de golpista, cacoete de golpista e é amigo e subordinado do golpista-mor da República. Só por um milagre ele próprio não seria um golpista potencial.

Braga Netto é também subserviente ao presidente de maneira absoluta. Parece um cão de guarda, com a diferença que o militar age por vezes por imitação. O cachorro só se manifesta se ordenado pelo dono. A ameaça do general teria ocorrido depois de inúmeras declarações de Bolsonaro no mesmo sentido. No dia 8 deste mês, o presidente reafirmou que poderia não haver eleição se ela não fosse auditável (que na linguagem golpista significa voto impresso). Bolsonaro falou no cercadinho do Alvorada ao grupo de cegos apoiadores que aplaudem e riem de todas as suas tolices. No mesmo dia, Braga teria mandado alguém avisar o presidente da Câmara que se a eleição não for com voto impresso e auditável não haverá eleição em 2022. Alguma dúvida?

Um acinte. Um abuso. Uma violência típica de generaleco de republiqueta. Pode não ter ocorrido, mas Braga já deu outras demonstrações de seu afeto ao golpismo. Na posse do comandante do Exército, no dia seguinte à sua própria posse na Defesa, o general disse que as Forças Armadas estariam prontas para garantir a manutenção do projeto escolhido nas urnas pelos brasileiros. Seria o mesmo se dissesse que os militares não aceitariam um revés que ameaçasse o mandato de Bolsonaro, o presidente que cometeu mais de 30 crimes de responsabilidade pelos quais poderia ser legalmente afastado. Sob qualquer ângulo que se veja, aquela declaração só poderia ser feita por um general golpista, querendo entrar com o seu coturno pesado num jogo para o qual não foi convidado.

Mais adiante, há duas semanas, publicou nota intimidando o presidente da CPI da Covid. Omar Aziz, para quem não se lembra, disse que a banda podre das Forças Armadas envergonham os bons militares. A nota, assinada por Braga e pelos comandantes militares, afirmou que Exército, Marinha e Aeronáutica “não vão aceitar ataques levianos”. Parecia querer dizer que militar ladrão não incomoda militar honesto, poderia ter acrescentado “somos todos companheiros de farda”. Francamente. Braga Netto terá que se entender ele mesmo com a CPI, afinal era chefe da Casa Civil e coordenador do grupo de combate à Covid quando ocorreram todos os equívocos que vêm sendo relatados na comissão. E que resultaram em milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.

O desmentido do general à reportagem do “Estadão” foi solene, mas não definitivo. Ele deveria ter dito o que disse o vice Hamilton Mourão: “É lógico que vai ter eleição (mesmo sem o voto impresso). Quem é que vai impedir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos uma república de banana”. Não, Braga preferiu manter-se general menor e voltou ao velho lenga-lenga de que as Forças Armadas estão “comprometidas com a estabilidade institucional do país e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”, embora essas não sejam atribuições conferidas a elas pela Constituição. Até porque, sabe-se lá o que ele entende por liberdade do povo. Em nome dessa liberdade, outros generais já cometeram inúmeras atrocidades registradas pela História.

Azeitar, operar, negociar

O Congresso reagiu com euforia ao anúncio da nomeação do senador Ciro Nogueira para a Casa Civil no lugar de Luiz Eduardo Ramos, outro general que caminha um passo a mais em direção à rua. Deputados e senadores disseram que o habilidoso Ciro vai azeitar a engrenagem que liga Executivo e Legislativo, que ele sabe negociar melhor do que ninguém, e que vai ser um operador do governo no Congresso. Eufemismos, eufemismos, eufemismos. Azeitar, na linguagem parlamentar, é dar cargos para os aliados. Negociar é distribuir verbas públicas em troca de apoio ou, em bom português, fazer negócios. E operar é a arte de oferecer favores e agrados e atender pedidos, tudo com dinheiro do contribuinte, claro.

Loteamento

Bolsonaro dizia na campanha que governaria com 15 ministérios, tomou posse com 21 e na semana que vem serão 23, com a recriação do Ministério do Trabalho para abrigar o irrelevante Onyx Lorenzoni. Se continuar disparando contra o próprio pé com a mesma pontaria de hoje, chegará ao fim do mandato com uns 40, como Dilma. A conta daquele inchaço, segundo cálculo das repórteres Luiza Damé e Catarina Alencastro feito para O GLOBO em maio de 2013, chegou a R$ 58 bilhões.

O engraçado

Paulo Guedes é mesmo muito gozado. Ao anunciar mais um fatiamento em seu latifúndio ministerial, disse: “Vamos criar empregos, inclusive com uma reestruturação nossa… (trata-se de) uma mudança na direção do emprego e da renda”. Fala sério, ministro, os únicos empregos que Onyx vai criar no Ministério do Trabalho serão os dele e os da sua turma.

Rancho Queimado

Nem toda a turma do interior que apoia Bolsonaro sabe distinguir com clareza um político de esquerda de um de direita. Como são conservadores nos costumes, acabam elegendo políticos de direita, conservadores como eles. Muitos não sabem quanto dura um mandato, como funciona o princípio da reeleição, para que servem o Congresso e o Supremo, ou o que significa um golpe militar. Não se trata de burrice, mas de alienação e desinformação. Os eleitores de Rancho Queimado, citado por Luis Carlos Heinze como a meca da cloroquina, querem que seus negócios prosperem, querem manter seus empregos, querem criar seus filhos adequadamente. O que eles mais precisam, mas não sabem, é de educação política. Se entendessem a gravidade desses dias, o presidente não teria mais do que 5% de apoio. Ficaria apenas com os trogloditas como ele.

Clube do bolinha

A Fiesp divulgou esta semana a lista de membros da sua nova diretoria, do seu Conselho Fiscal e dos delegados da entidade junto à CNI. Foram eleitas 133 pessoas: o presidente, 25 vice-presidentes e mais 108 diretores, conselheiros e delegados. Destes, 131 são homens. Apenas duas mulheres participam do comando da entidade, Mariana Falcão Dalla Vecchia e Silvia Ribeiro de Aquino. Sobra gravata e falta saia na Fiesp.

Castigo

Para não deixar dúvida, sou torcedor do Flamengo, dos chatos, que vê todos os jogos e fica irritado nos dois dias seguintes a uma derrota do mais querido. Mesmo assim, não há como não anotar com satisfação o baixo número de ingressos vendidos para o jogo de Brasília, na quarta-feira passada. Menos de um terço da carga oferecida foi comprada. O preço atrapalhou, mas é claro que o brasiliense aproveitou para dar uma banana ao negacionismo renitente da diretoria do clube.

Barraquinhas

Imaginem como seria a cena proposta por médico do Ministério da Saúde para o laboratório a céu aberto de Manaus no auge da crise de oxigênio. Tendas, ou barraquinhas, seriam montadas em frente aos hospitais da cidade e ofereceriam cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros medicamentos ineficazes aos pacientes que chegassem procurando socorro. “Cloroquina aqui, cliente”. “Mulher bonita não paga, ivermectina de graça é aqui”. “Na barraquinha da doutora Mayra você pede uma azitromicina e leva o kit completo”. “Aqui, dona Iolanda, pegue seu kit e leve uma banda”.

Olímpica 1

Excelente exemplo da delegação brasileira que desfilou na abertura dos Jogos de Tóquio com apenas quatro integrantes. Fazer bonito de vez em quando não custa nada e ajuda a diminuir a antipatia global causada pelo capitão. O número reduzido de desfilantes era para mostrar preocupação com a pandemia de coronavírus. No Brasil, os atletas devem ter sido vaiados por você sabe quem.

Olímpica 2

Pelo menos 142 atletas publicamente LGBTQ estão nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Esse número é duas vezes maior do que o registrado no Rio, em 2016, segundo a Outsports.com.

Correção

Nota publicada na semana passada dizia que as TVs tinham dado enxurrada de matérias e plantões ao vivo da porta do hospital depois da facada no então candidato Jair Bolsonaro, permanecendo assim depois da recuperação do paciente. A direção de jornalismo da Globo, responsável pelos telejornais da TV Globo e da GloboNews, enviou arquivos de vídeo mostrando que a informação estava errada. O noticiário da TV Globo só alterou o padrão na quinta (6/9), dia do atentado, e nos três dias seguintes. Da segunda (10/9) em diante, a saúde do candidato voltou a ser noticiada dentro do minuto a que tinha direito (como os demais candidatos), com exceção do dia em que sofreu nova cirurgia e do dia em que recebeu alta do hospital. A GloboNews adotou a mesma linha, com tempos maiores nos dias subsequentes ao atentado, e cobertura total de não mais que quatro minutos até o fim da campanha, e nas duas mesmas datas (nova cirurgia e alta médica) como exceção, com tempo de pouco mais de meia hora no total do dia. Com a correção, acrescento meu pedido de desculpas aos leitores.


O poder, os tiranos e os piores. Não há quem escape de seu fascínio

O poderoso tirânico cerca-se de cópias de si mesmo, incompetentes, ignorantes, vulgares

Seja no Estado, no mercado ou na sociedade civil, o poder arrebata. Ele oferece vantagens e recompensas, mesmo que também traga sacrifício e sobrecarga.

São as recompensas que seduzem. Ver-se obedecido, admirado e elogiado faz brilhar os olhos de muita gente. É o que leva a que se cometam excessos e estripulias, cresçam as ilusões e os autoenganos. O poderoso nunca está sozinho. Seu círculo mais próximo é fonte permanente de intrigas, inveja e cobiça, o que provoca atritos e colisões. O poder não pode tudo. Numa democracia, tem de se haver com o povo livre, a sociedade civil, o sistema de controles, os demais poderes.

O poder fascina anjos e demônios, pessoas com vocação para o bem público e pessoas mesquinhas, agarradas aos próprios interesses. Quando um anjo se deixa seduzir pelo poder, ele perde integridade e pujança reformadora. Seus planos e projetos deixam de ser factíveis e se tornam dependentes de acordos espúrios, batendo às portas da corrupção. Quando um demônio chega ao poder, ele se realiza como excrescência perversa. Exala maldade por todos os poros e trafega pelos becos escuros da sociedade, onde vicejam a boçalidade, a ignorância, a violência, o desregramento. Alia-se a quadrilhas e redes corruptas, na ilusão de conseguir com elas uma base sólida de apoio e financiamento. Apela para manobras populistas para chegar ao povo, mas o seu é um populismo regressista, malévolo, mais nefasto que qualquer outro.

O poderoso tirânico acredita que ser autoritário e impositivo é a principal ferramenta para intimidar subalternos e aliados. É por isso que ele se cerca de cópias de si próprio, pessoas incompetentes, ignorantes e vulgares, dispostas a todo tipo de serviços. A “kakistocracia”, o governo dos piores, é seu modelo de atuação. Ele o faz valer destruindo a política, os partidos, as instituições. Abre os portões para que a mediocridade se imponha em todos os lugares.

A poliarquia confunde e desafia o poderoso. Faz que fique acuado e enverede pelas trilhas obtusas do destempero e da agressão verbal. Quanto mais tosco o poderoso, mais a tirania o atrai, pois não sabe conviver com a diferença, com quem o contrasta e desafia.

Nenhum tirano é democrata. Sempre tende a fugir da realidade. Parafraseando Macbeth, sua desgraça são as loucuras paranoicas da imaginação, mais que os temores do presente. Num Estado democrático, o tirano se dissimula. Diz que segue as regras constitucionais, mas age sistematicamente para burlá-las. Aceita eleições desde que sejam moldadas para referendá-lo. Quando não consegue, passa a atacá-las e ameaça suspendê-las. Boicota o controle entre os Poderes, procura interferir em todos eles. Invade o Congresso e as Cortes judiciárias com atos bombásticos e tropas de ataque. Enxerta amigos nos espaços institucionais para impedi-los de funcionar com independência. Deseja-se absoluto. Seu orgasmo é o exercício coreográfico do poder.

Como em seus antepassados, o poder do tirano moderno pede exibição, na glória e na dor. Ele necessita expor, calculadamente, até mesmo suas entranhas. Mostra-se em trajes de gala ou escrachado, forte e saudável ou estropiado numa maca hospitalar. Tudo para ele é produção de imagem, com a qual pretende chamar a atenção para sua condição de escolhido, vítima, sobrevivente, mito. O objetivo é enfeitiçar os que o seguem. Quer que seu corpo seja visto como imune aos males que afetam as pessoas comuns. Ele é atlético e dinâmico mesmo quando mostra apatia e fragilidade.

Tiranos discretos não são usuais. A marca distintiva deles – sobretudo em nossos tempos de redes hiperativas, identitarismo exacerbado, velocidade tecnológica e informacional – é a estridência, a conduta espalhafatosa: discursos inflamados, frases grosseiras, atos espetaculosos, ameaças. Sua meta é controlar as fontes de informação, calar a imprensa, espalhar boatos. O fermento que os move é o ódio e o ressentimento. Eles adulam os poderosos da economia para alcançarem o poder ideológico.

O poder constrói, mas também destrói. Quando compartilhado democraticamente, é uma alavanca em prol do progresso econômico e social. Mas seu uso abusivo e torpe violenta populações inteiras, desativa direitos adquiridos, amplia a desigualdade e degrada arranjos institucionais consolidados.

Para ser construtivo o poder precisa ser controlado. A democracia representativa madura é a principal invenção para conter o poder, regulá-lo, impedi-lo de transgredir e violentar. O tirano só a aceita quando consegue parceiros que concordem em fazer seu jogo. Ele é inimigo da educação e da escola, pois sabe que cidadãos educados ajudam a que a democracia funcione de modo pleno.

Épocas de política titubeante, de partidos flácidos e sem coerência, de crise permanente, são um convite para que o poder político fique ao alcance não somente dos piores, mas de candidatos a tiranos. Quanto antes acordarmos para isso, melhor.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Os dentes e os espaços: As forças armadas e a política partidária

Alon Feuerwerker

Quando você age sobre a realidade, necessariamente a transforma. Mas aí ela também acaba transformando você. Ação e reação. Parece inevitável que a participação cada vez maior, e institucional, das Forças Armadas na política partidária termine abrindo espaço para a explicitação de debates político-partidários no interior mesmo da corporação.

Aliás o vice-presidente Hamilton Mourão já advertiu sobre isso.

Digo “explicitação”, e não “introdução”, pois seria ingenuidade, a qualquer momento, interpretar como apoliticismo a falta de manifestações explícitas de partidarismos no estamento militar.

Dois dos presidentes do período 1964-85 cuidaram com esmero de prevenir esse jogo recíproco, em que as Forças politizam e ao mesmo tempo são politizadas, ou partidarizadas: Humberto de Alencar Castelo Branco e Ernesto Beckmann Geisel. O primeiro operou uma reforma militar também com esse objetivo, e o segundo decapitou a resistência à distensão.

Ações que contribuíram de maneira importante para fechar o ciclo da anarquia militar no Brasil do século 20, cujo marco inaugural havia sido a eclosão do tenentismo. Ter deixado isso para trás era apontado até outro dia como conquista da Nova República. Não parece estar sobrando muito das conquistas da Nova República.

Em parte, os militares têm sido puxados para a política nos anos recentes pelo vácuo nascido da desmoralização e do desgaste das demais instituições nacionais. Isso ganhou nova dimensão quando Jair Bolsonaro, sem um partido para chamar de seu, acabou recorrendo aos fardados, da ativa e da reserva, como estoque de quadros e de doutrinas para tocar o governo.

A realidade é implacável, e o poder não se resume às delícias dele, carrega também os riscos decorrentes das delícias. E aí o noticiário começa a trazer confusões ligando duas coisas: militares e verbas orçamentárias. E agora com números de alto impacto vindos dos recursos destinados pelo governo e pelo Congresso ao combate da Covid-19.

Na falta de eventos de ruptura, a vida segue, e nela sempre chega a hora de ter de dar alguma explicação. Na escalada da politização, as recentes manifestações do Ministério da Defesa e dos comandantes militares vêm reiterando: as Forças estão aí para defender a liberdade e a democracia. Ecoam palavras do próprio presidente da República. Falta, até o momento, dizer se ambas estão sob ameaça.

E falta também, nesse caso, a explicação mais importante: quem ameaça.

Enquanto tal detalhe não fica claro, ao menos segue o baile. No terreno por eles pouco conhecido da política, até agora os militares estão levando uma certa canseira dos políticos. Os lprimeiros andam ocupados em mostrar os dentes, estes últimos preferem concentrar-se em tomar espaços de poder daqueles.

E nem Jair Bolsonaro pode ajudar muito, já que depende dos políticos para se manter na cadeira, inclusive depois de 2022, se se reeleger. O que pelo jeito vai ser decidido mesmo na urna eletrônica, apesar das dúvidas e arranca-rabos. Se bem que neste ponto é sempre adequado contar com novas emoções. 

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Seria o semipresidencialismo uma boa alternativa?

O Brasil é um país jovem. Em 2022, comemoraremos 200 anos da nossa Independência, após três séculos marcados pelo escravismo colonial. A República fará 133 anos de existência. Até 1930, tivemos um período dominado pelas oligarquias regionais, onde analfabetos e mulheres não tinham direito a voto e as eleições eram visivelmente manipuladas. Mesmo a Revolução de 30 foi liderada por elites excluídas do pacto do poder. Logo à frente, Vargas decretaria o Estado Novo, iniciando seu período ditatorial.

Períodos democráticos foram poucos. De 1945 a 1964, tivemos a primeira experiência democrática. Ainda assim, os analfabetos não votavam, o Partido Comunista foi colocado na ilegalidade, tivemos o traumático suicídio de Getúlio Vargas, sucessivas tentativas de derrubar JK, a renúncia de Jânio Quadros, o arranjo parlamentarista de 1962 e a queda de João Goulart. Experimentamos 21 anos de governos autoritários.

Derivado da histórica campanha das Diretas-Já, assistimos o reestabelecimento da democracia com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985, e a nova Constituição democrática de 1988. Esse ciclo sobrevive até hoje, representando os 36 anos mais livres e democráticos de nossa história. Ainda assim, tivemos diversas crises econômicas desestabilizadoras e dois impeachments, com o afastamento de Collor e Dilma. Agora, novamente o Congresso analisa a possibilidade de um processo de impeachment.

Até quando viveremos uma verdadeira montanha russa política entre golpes e impeachments? O parlamentarismo, vigente na maioria dos países de democracia avançada, foi derrotado nos plebiscitos de 1963 e 1993. A cultura política predominante no Brasil é personalista, caudilhesca, centrada em personagens e não em partidos políticos e programas.

Recentemente, instalou-se a discussão sobre o semipresidencialismo correlato às exitosas experiências da França e Portugal. Diferente dos parlamentarismos da Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha, entre outros, onde a dinâmica política é dada pelo Parlamento, o semipresidencialismo reserva ao Presidente da República um forte papel, com o comando das Forças Armadas e da política externa, capacidade de vetar e propor iniciativas legais, indicar o primeiro-ministro, decidir por eleições ou por um novo primeiro ministro no caso de queda do gabinete. O primeiro-ministro e a maioria parlamentar seriam responsáveis pela gestão das políticas públicas de governo.

Obviamente, se adotado, só poderá sê-lo em 2027. Serão mais 4 anos de emoções fortes. As eleições de 2022 já seriam realizadas sob as novas regras. Há méritos na proposta. Delinearia claramente situação e oposição no Congresso, responsabilizaria o Parlamento em relação à condução do país e evitaria as sucessivas crises turbulentas dos impeachments.

Mas para isso algumas pré-condições são necessárias: i. existência de um quadro partidário mais nítido e sólido; ii. fortalecimento da burocracia estatal, no sentido weberiano, para assegurar a continuidade das políticas públicas; e, mudança do sistema eleitoral na direção da lista partidária ou do voto distrital, para permitir eleições rápidas em caso de queda do gabinete sem formação de nova maioria congressual.

Sou parlamentarista de carteirinha. Mas, certamente, o semipresidencialismo proposto seria um enorme avanço.         

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Toque de retirada

Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão da vulnerabilidade a que está exposta a condução da política econômica

Salta aos olhos a escalada de dificuldades que vêm sendo enfrentadas pela condução da política econômica nos últimos meses, em decorrência da perda de ascendência do governo sobre o Congresso. Basta ter em conta episódios recentes mais marcantes para discernir os contornos de um processo, cada vez mais claro, de avanço do Centrão sobre a condução da política econômica.

Não é que o governo tenha perdido o controle do Congresso para a oposição. Longe disso. O que se observa é algo bem distinto. Fragilizado como está, o governo perdeu ascendência sobre o bloco parlamentar que supostamente lhe dá apoio. Matérias de seu interesse acabam, sim, sendo aprovadas pelo Congresso. Mas sempre à moda do Centrão. O governo já não tem como impedir que sejam brutalmente desfiguradas.

É o que fica claro quando se tem em conta os episódios do orçamento secreto, da pilhagem da privatização da Eletrobrás e, agora, da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com amplo espaço para reedição do orçamento secreto, em 2022, e triplicação do financiamento público de partidos políticos nas eleições do ano que vem.

Já era tempo de o Ministério da Economia ter-se dado conta da extensão dessa vulnerabilidade tão séria a que está claramente exposta a condução da política econômica. E, dessa perspectiva, é fácil perceber quão temerária foi a decisão do governo de enviar ao Congresso, justo agora, um projeto tão complexo de reforma da tributação direta no País.

Mesmo que se tratasse de projeto cuidadosamente concebido e bem articulado, sobre o qual o governo tivesse inabalável convicção, ainda teria sido decisão imprudente, tendo em conta o alto risco de que, nas atuais circunstâncias, as medidas propostas acabassem desfiguradas no Congresso. Tendo em vista, contudo, que não se trata em absoluto de um projeto bem concebido e que, sobre ele, nem mesmo o Ministério da Economia se mostra convicto, a decisão já não pode ser considerada meramente imprudente. Só pode ser percebida como deplorável temeridade.

Constatados os furos, as inconsistências e as desarticulações do projeto, o que agora se vê é o complexo sistema de tributação de renda pessoal, lucros e aplicações financeiras no País sendo drasticamente reconcebido pelo Centrão, ao sabor de uma pororoca de lobbies de todo tipo. No Congresso, brinca-se com dispositivos e parâmetros tributários com a mesma leveza com que uma criança encaixa peças de um jogo de armar, ao acaso, sem maiores preocupações com o que está sendo montado. Não é excesso de pessimismo temer que disso dificilmente sairá um sistema de tributação direta melhor do que o que hoje se tem.

Vendo-se agora relegado a mero coadjuvante na tramitação da reforma no Congresso, o ministro da Economia tem razões de sobra para estar alarmado com o desfecho que poderão ter as negociações no Legislativo quando, afinal, o projeto for votado em plenário, na Câmara e no Senado.

Tudo indica que o presidente, devidamente alertado, já compartilha dessa apreensão. Há poucos dias, Bolsonaro achou oportuno esclarecer que, a seu ver: “Houve um exagero por parte da Economia na reforma tributária, já está sendo acertado com o relator. Realmente, a Receita, no meu entender, como é muito conservadora, foi com muita sede ao pote”. E acrescentou: “Mesmo sendo projeto meu, se passar no Congresso e chegar para mim aumentando a carga tributária, eu veto” (O Globo e Estadão, 21/7).

A ameaça de veto é uma solução descabida. Mas ainda há tempo de evitar o pior. Não é a primeira vez que o governo constata que submeteu ao Congresso um projeto equivocado e impensado. Quando isso ocorre, a solução natural é a simples retirada do projeto. É inegável que há muito o que aprimorar na legislação de Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas. Mas, nas atuais circunstâncias, o que de melhor o governo poderia fazer é retirar o projeto do Congresso e deixar a reforma que faria sentido para momento mais oportuno. Se o Centrão consentir, é claro.

*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO