golpe de estado
DW Brasil: Esquerda e independentes dominam Constituinte do Chile
Direita, que governa o país e concorreu com chapa única, sai como a grande perdedora da eleição para representantes que redigirão a nova Constituição e deve ter pouca influência no processo
A esquerda e chapas independentes, formadas por cidadãos que não são ligados a partidos políticos, devem garantir a maioria dos 155 assentos na Assembleia Constituinte, que irá redigir uma nova Carta Magna para substituir a atual, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.
Com mais de 96,2% dos votos apurados até a madrugada desta segunda-feira (17/05), os atuais resultados mostram que as duas listas que aglutinam os candidatos da esquerda devem ficar com 52 assentos, seguida pelos candidatos independentes, que alcançaram, juntos, 48 cadeiras. Já a lista unificada da direita obteve 38. Há ainda 17 assentos reservados a representantes de povos indígenas.
Analistas disseram que os partidos políticos tradicionais foram os grandes derrotados da eleição. Ao contrário do que as pesquisas previam e com um sistema de contagem proporcional que privilegia as grandes siglas políticas, os independentes alcançaram um resultado inédito.
Os independentes são sobretudo pessoas ligadas a diversas áreas sociais, como educação, justiça social, meio ambiente e feminismo. São figuras de fora da política que buscam canalizar as exigências dos cidadãos na crise social de 2019, e seu surgimento é visto por muitos especialistas como o início de um novo modelo de política cidadã e a certidão de óbito dos desacreditados partidos tradicionais. Muitos deles deverão se unir à esquerda para aprovar as leis da nova Constituição.
Essa foi a primeira vez que candidatos independentes puderam concorrer em eleições no Chile ao lado de partidos tradicionais. A votação da Constituinte também foi alvo inédito no país: em 200 anos de independência, o Chile teve três Cartas Magnas (1833, 1925 e 1980), mas nenhuma foi redigida por uma convenção de pessoas eleitas pelo voto popular.
“O desempenho das chapas independentes em termos de votos e cadeiras é uma grande surpresa, embora a maior surpresa seja o colapso absoluto da direita que, apesar de passar por uma chapa única, não chegaria nem a um terço das cadeiras”
Julieta Suárez-Cao, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Chile
Derrota da direita
A direita, que se apresentava na chapa única “Chile Vamos” formada pelos partidos governistas, foi a grande perdedora nesta eleição ao conquistar menos de um terço das cadeiras, percentual necessário para influenciar o conteúdo da nova Carta Magna e vetar artigos.
“Nestas eleições, os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e também a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizados adequadamente com as demandas e desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças”, afirmou o presidente do Chile, Sebastián Piñera, na reta final da contagem dos votos.
Apesar de possivelmente ditarem o tom da nova Carta Magna, os independentes precisarão fazer acordos para passar suas propostas, que necessitam de dois terços dos votos para serem aprovadas. Como a maioria delas está alinhada a posições progressistas, especialistas acreditam que haverá uma união entre o bloco e a esquerda, o que poderá promover mudanças profundas no país.
A assembleia constituinte será ainda composta por igual número de homens e mulheres. Isso é algo inédito no mundo e, em poucos meses, fará do Chile o primeiro país a ter um texto fundamental escrito com paridade de gênero.
A participação eleitoral no pleito que decidiu a composição da constituinte, no entanto, ficou bem abaixo dos quase 80% alcançados no plesbicito em outubro de 2020, que decidiu a substituição da atual Constituição. Apenas cerca de 37% dos 14,9 milhões de eleitores chilenos foram às urnas no final de semana.
A nova Constituição
A constituinte foi convocada pelo Congresso chileno para esfriar os protestos que tomaram as ruas do Chile por quase um ano no final de 2019.
A assembleia constituinte, a primeira paritária do mundo e composta exclusivamente por membros eleitos, terá nove meses para redigir a nova Carta Magna, a primeira a nascer de um processo plenamente democrático e participativo em toda a história do país.
O prazo para a conclusão da nova Constituição é prorrogável apenas uma vez por mais três meses, e em 2022 deve ser aprovada ou rejeitada em referendo com voto obrigatório.
A Constituinte será o processo político mais importante em 31 anos da democracia chilena e abre um novo capítulo na história do país, que terá a oportunidade de estabelecer também as bases de um novo modelo socioeconômico.
O processo de elaboração da nova Constituição será concluído com um plebiscito para aprovar o texto que substituirá a atual Constituição, herdada do regime Pinochet (1973-1990) e criticada por parte da sociedade chilena por sua origem ditatorial e por privatizar alguns serviços básicos como água e aposentadorias.
Fonte:
DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/esquerda-e-independentes-dominam-constituinte-do-chile/a-57553680
DW Brasil: Esquerda e independentes dominam Constituinte do Chile
Direita, que governa o país e concorreu com chapa única, sai como a grande perdedora da eleição para representantes que redigirão a nova Constituição e deve ter pouca influência no processo
A esquerda e chapas independentes, formadas por cidadãos que não são ligados a partidos políticos, devem garantir a maioria dos 155 assentos na Assembleia Constituinte, que irá redigir uma nova Carta Magna para substituir a atual, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.
Com mais de 96,2% dos votos apurados até a madrugada desta segunda-feira (17/05), os atuais resultados mostram que as duas listas que aglutinam os candidatos da esquerda devem ficar com 52 assentos, seguida pelos candidatos independentes, que alcançaram, juntos, 48 cadeiras. Já a lista unificada da direita obteve 38. Há ainda 17 assentos reservados a representantes de povos indígenas.
Analistas disseram que os partidos políticos tradicionais foram os grandes derrotados da eleição. Ao contrário do que as pesquisas previam e com um sistema de contagem proporcional que privilegia as grandes siglas políticas, os independentes alcançaram um resultado inédito.
Os independentes são sobretudo pessoas ligadas a diversas áreas sociais, como educação, justiça social, meio ambiente e feminismo. São figuras de fora da política que buscam canalizar as exigências dos cidadãos na crise social de 2019, e seu surgimento é visto por muitos especialistas como o início de um novo modelo de política cidadã e a certidão de óbito dos desacreditados partidos tradicionais. Muitos deles deverão se unir à esquerda para aprovar as leis da nova Constituição.
Essa foi a primeira vez que candidatos independentes puderam concorrer em eleições no Chile ao lado de partidos tradicionais. A votação da Constituinte também foi alvo inédito no país: em 200 anos de independência, o Chile teve três Cartas Magnas (1833, 1925 e 1980), mas nenhuma foi redigida por uma convenção de pessoas eleitas pelo voto popular.
“O desempenho das chapas independentes em termos de votos e cadeiras é uma grande surpresa, embora a maior surpresa seja o colapso absoluto da direita que, apesar de passar por uma chapa única, não chegaria nem a um terço das cadeiras”, disse à agência de notícias Efe Julieta Suárez-Cao, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Chile.
Derrota da direita
A direita, que se apresentava na chapa única “Chile Vamos” formada pelos partidos governistas, foi a grande perdedora nesta eleição ao conquistar menos de um terço das cadeiras, percentual necessário para influenciar o conteúdo da nova Carta Magna e vetar artigos.
“Nestas eleições, os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e também a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizados adequadamente com as demandas e desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças”, afirmou o presidente do Chile, Sebastián Piñera, na reta final da contagem dos votos.
Apesar de possivelmente ditarem o tom da nova Carta Magna, os independentes precisarão fazer acordos para passar suas propostas, que necessitam de dois terços dos votos para serem aprovadas. Como a maioria delas está alinhada a posições progressistas, especialistas acreditam que haverá uma união entre o bloco e a esquerda, o que poderá promover mudanças profundas no país.
A assembleia constituinte será ainda composta por igual número de homens e mulheres. Isso é algo inédito no mundo e, em poucos meses, fará do Chile o primeiro país a ter um texto fundamental escrito com paridade de gênero.
A participação eleitoral no pleito que decidiu a composição da constituinte, no entanto, ficou bem abaixo dos quase 80% alcançados no plesbicito em outubro de 2020, que decidiu a substituição da atual Constituição. Apenas cerca de 37% dos 14,9 milhões de eleitores chilenos foram às urnas no final de semana.
A nova Constituição
A constituinte foi convocada pelo Congresso chileno para esfriar os protestos que tomaram as ruas do Chile por quase um ano no final de 2019.
A assembleia constituinte, a primeira paritária do mundo e composta exclusivamente por membros eleitos, terá nove meses para redigir a nova Carta Magna, a primeira a nascer de um processo plenamente democrático e participativo em toda a história do país.
O prazo para a conclusão da nova Constituição é prorrogável apenas uma vez por mais três meses, e em 2022 deve ser aprovada ou rejeitada em referendo com voto obrigatório.
A Constituinte será o processo político mais importante em 31 anos da democracia chilena e abre um novo capítulo na história do país, que terá a oportunidade de estabelecer também as bases de um novo modelo socioeconômico.
O processo de elaboração da nova Constituição será concluído com um plebiscito para aprovar o texto que substituirá a atual Constituição, herdada do regime Pinochet (1973-1990) e criticada por parte da sociedade chilena por sua origem ditatorial e por privatizar alguns serviços básicos como água e aposentadorias.
Fonte:
DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/esquerda-e-independentes-dominam-constituinte-do-chile/a-57553680
Vladimir Safatle: A segunda fase do regime militar
O Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenções, a saber, um regime militar sem golpe. Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário
O Brasil tem certa vocação para a invenção. Fomos um país criado a partir de um experimento econômico: o latifúndio escravocrata primário exportador. Em nenhum outro lugar do globo tal experimento foi desenvolvido em tão larga escala. 35% de todos os sujeitos escravizados na África e direcionados às Américas aportaram aqui. Fomos também os responsáveis, no século XIX, pela junção singular entre escravismo e economia integrada ao “liberalismo concorrencial”. Mais próximo, conseguimos criar uma ditadura militar primorosa na arte de durar. A mais longa ditadura militar da América no ciclo que começa nos anos 60, capaz de entender que só duraria se preservasse algum nível de pantomima democrática. Tínhamos eleições, partido de oposição, Congresso em funcionamento na maior parte do tempo, tortura, livros de Marx vendidos nas bancas, corpos desaparecidos, estupros de opositoras, censura. Tudo ao mesmo tempo.
Há de se admirar essa engenharia brasileira do terror de Estado. Ela conseguiu preservar todas as peças do dispositivo empresarial-militar, mesmo durante trinta anos de período pós-ditadura. Ela conseguiu ainda preservar toda a força de terror administrada pelas polícias e suas milícias contra as populações vulneráveis em sua guerra civil cotidiana. Elementos fundamentais do aparato jurídico institucional criado sob ditadura continuaram vigentes. O Brasil mostra como nenhum outro país que desenvolvimento capitalista é outro nome para guerra de espoliação máxima, de medo e de depredação contra uma natureza que não se submete facilmente à condição de propriedade privada.
Dentro dessa tecnologia de poder, o Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenção, a saber, um regime militar sem golpe militar. O que temos atualmente é algo muito próximo a um regime militar que não usou golpes militares clássicos para ser implementado. Entenda-se por “clássico” nesse contexto, ocupações de poder feitas através do deslocamento de tropas e uso explícito da violência.
Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário. Por mais que a narrativa vendida seja outra, Jair Bolsonaro é a encarnação direta do ideário militar nacional. Para além dos mais de 7.000 militares na gestão do Estado, desde o Ministério da Saúde, até as Comunicações e a Petrobrás, temos o deslocamento das Forças Armadas para o centro do poder com o intuito de garantir as condições para um processo brutalizado de acumulação primitiva, de espoliação de terras e concentração de renda.
O Brasil assiste a uma nova fase de concentração de renda, e a ameaça de sublevação popular que normalmente acompanha tais momentos, exige das Forças Armadas sua presença direta no Estado, a fim de intensificar a guerra civil contra populações vulneráveis. Essa concentração volta em seus moldes tradicionais, como o colonialismo interno que leva a predação da natureza, escondida sob a capa do desenvolvimento, para espaços cada vez mais amplos. Colonialismo que intensifica os incêndios contra povos originários e florestas.
Processo que, por sua vez, exige a mobilização contínua da perseguição e pressão de setores com potencial de sublevação, no que vemos a utilidade da eterna luta contra o comunismo (o único inimigo que, no século XX, efetivamente foi capaz de usar a guerra contra quem gerencia a guerra civil social). Por fim, as Forças Armadas ocupam o Estado tendo em vista a militarização da vida social, seja através da generalização extensiva de “formações militares” (segundo o projeto de paulatinamente transformar escolas públicas em escolas militares), seja através da organização armada e generalizada de grupos paramilitares de apoio.
Mas isso que nos anos sessenta obrigou a organização de um golpe clássico de Estado foi imposto agora através de uma lógica extremamente astuta de “custo menor”. São sucessões de operações relativamente regionais que, paulatinamente, deslocam o poder para o horizonte gerencial militar, fazendo com que ele avance mesmo que pareça não estar lá. Como já se disse mais de uma vez, uma das maiores astúcias do diabo é levar-nos a acreditar que ele não existe.
Primeiro, era necessário impedir que a eleição de 2018 ocorresse. O custo de uma simples suspensão de eleições presidenciais seria enorme, arcaico, desnecessário. Mas havia algo mais astuto: um tuíte, um simples tuíte das Forças Armadas ameaçando o Poder Judiciário caso o candidato indesejável pudesse concorrer. Além do tuíte, um processo jurídico “contra a corrupção” capaz até mesmo de anexar depoimentos de pessoas que nunca deram depoimento algum. Um processo incensado por setores hegemônicos da imprensa e seus interesses inconfessos pela radicalização do processo de acumulação primitiva da classe trabalhadora espoliada. Assim, a eleição estaria assegurada no bom e velho modelo da República Velha onde os embates já estavam decididos de antemão. Afinal, para que um golpe clássico se a possibilidade de preparar resultados favoráveis está à mão?
Mas a ocupação do Estado exigiria o abandono dos aliados que acreditavam que seriam convidados para sentar à mesa principal da gestão do poder. Como na ditadura militar, quando os civis descobriram que haviam se tornados atores secundários através do veto a Pedro Aleixo ocupar a presidência da República, todos aqueles que pavimentaram esse caminho foram enterrados sob o asfalto que eles mesmos esquentaram. De Eduardo Cunha aos degenerados da Lava Jato, da própria imprensa ao “centro democrático”: todos foram deixados para trás até que acordássemos em um regime militar em pleno século XXI.
Ainda na lógica do “custo menor” havia dois problemas a resolver. O primeiro era a censura. Mas “censura” é, mais uma vez, algo arcaico, custoso e, principalmente, desnecessário. O poder só procura censurar quando teme a força da palavra. Melhor seria operar através de uma “usura” da palavra. Tirar a força da palavra, criar paralisia em seu uso, ao invés de simplesmente censura-la. Uma paralisia criada pela inversão constante de seu significado. Usar “liberdade” para descrever a indiferença em relação ao genocídio de Estado diante da pior pandemia da história recente, usar “ditadura” para descrever exigências mínimas de solidariedade social diante da catástrofe, usar “coragem” quando se quer mostrar o descaso com quem não pode ter acesso ao sistema privado de saúde para sobreviver, usar “doutrinação” onde outros falam de pensamento crítico. Há de se lembrar que era George Orwell quem fazia os habitantes da Eurásia gritarem: “ignorância é força, liberdade é escravidão”.
Se 30% da população participasse dessas estratégias de usura da palavra o processo político estaria paralisado. E não seria difícil contar com esses 30%. Quem conhece a história brasileira sabe que eles nunca faltariam ao seu dever. Enquanto isto, o resto perderia seu tempo a espera de “frentes amplas” que nunca aconteceriam (basta ver quem foi apoiar o candidato do governo nas eleições para a presidência da Câmara) ou discutindo eliminações do BBB na semana em que o Banco Central ganharia sua “autonomia”, ou melhor, sua definitiva servidão aos interesses mais brutais da elite rentista, esses mesmos interesses que são a base da realidade material que sustenta o eixo das formas gerais de espoliação (imaginar que nossa emancipação viria sob formas administradas pela indústria cultural e sua estrutura monopolista articulada aos interesses maiores da elite empresarial ... isso talvez explique o que ocorre quando conceitos como “indústria cultural” são abandonados em prol de práticas que se recusam a problematizar os meios de enunciação).
Mas havia um segundo problema a resolver. Um regime militar não aceita ser deposto. E este ponto volta agora em sua tensão efetiva, principalmente depois da possibilidade de Lula concorrer à presidência novamente. O Brasil conhece atualmente um conflito entre o que poderíamos chamar de “direita oligárquica” (a saber, esse grupo dirigente que deriva das oligarquias locais e seus representantes, a começar pela oligarquia paulista) e uma “extrema-direita popular” (que vem da longa história do fascismo brasileiro). O horizonte convergente de interesses permite a esses dois grupos sentarem-se à mesma mesa quando necessário. Mas tomado o poder, eles também entram em choque, como se mostrou ao longo da história nacional.
O deslocamento de Lula para o centro do jogo eleitoral não foi exatamente resultado de uma pressão popular irresistível, de um clamor irrefreável, mas de uma manobra arriscada de setores da direita oligárquica no poder para conter Bolsonaro em sua escalada fascista, como fizeram em junho quando Queiroz foi enfim “encontrado” em um sítio em Atibaia e o primeiro “enquadre” foi dado.
Com a vitória de Bolsonaro pelo controle da Câmara e do Senado e com sua liberdade absoluta de operação, era necessário um segundo enquadre, e ele foi dado através da ressurreição do único político com estatura eleitoral compatível com Bolsonaro e que parecia capaz de fazer, efetivamente, uma aliança de centro no Brasil com alguma estabilidade. Exatamente nesse momento, o poder Judiciário brasileiro “descobriu” que, afinal, o processo contra Lula era uma aberração jurídica e que ele nunca teve direito efetivo de defesa. Lula apareceu como o único capaz de fazer uma efetiva aliança de centro porque os outros fazem apenas acordos entre oligarcas sem muita densidade popular. Já ele opera por uma versão do “sindicalismo de resultados” que parecia poder funcionar no começo desse século. Por isso, falar em “polarização” chega a ser um desrespeito à inteligência nacional. Lula é a última figura capaz de tentar operar políticas de grande aliança no Brasil. Ele é exatamente o contrário de toda e qualquer “polarização”. Seu governo não nos deixa mentir.
No entanto, como foi dito anteriormente, um regime militar não aceita ser deposto. Em manifestações inéditas na vida política nacional, o dia seguinte ao anúncio de possibilidade de Lula concorrer foi marcado por declarações de militares dizendo ver a volta do ex-presidente como algo inaceitável. O que demonstra como caminhamos para um cenário de confronto e tensão. Quando a ditadura militar foi implementada em 1964, o “centro democrático” (sempre ele) se preparava pela eleição nos próximos anos: Juscelino era o nome principal nessa operação. Tal eleição nunca veio. Sessenta anos depois, os militares aprenderam a fazer isso muito melhor. Eles descobriram que o vocabulário da “inexistência” é muito mais sutil, se habilmente manipulado. Há de se estar preparado para isto.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
El País: Richard Nixon: “Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”
Cinquenta anos depois da chegada do socialista à presidência do Chile, o Arquivo de Segurança Nacional dos EUA divulga documentos inéditos que revelam as estratégias de Washington para desestabilizá-lo
Rócio Montes, do EL País
- Gravidez por estupro e tortura revelam como a era Pinochet fez das mulheres troféus de guerra
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Cinquenta anos depois da chegada de Salvador Allende ao poder no Chile, em 3 de novembro de 1970, o Arquivo de Segurança dos EUA divulgou documentos que derrubam a versão oficial sobre o papel desempenhado pela Administração de Richard Nixon (1969-1974) contra o Governo do socialista chileno. Durante décadas, os Estados Unidos afirmaram que intervieram no país sul-americano não com a intenção de desestabilizar a Unidade Popular de Allende, e sim de apoiar os partidos de oposição como vistas a uma eleição que seria realizada em 1976. Em suma, para “preservar” a democracia e suas instituições. O próprio Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional dos EUA, declarou que seu país não sabia do golpe de Estado de 1973 ―que acabou com os mil dias da via chilena para o socialismo e levou o presidente à morte― e não tinha relação com aqueles que o impulsionaram na frente interna. Os documentos liberados agora pelo organismo, porém, evidenciam uma estratégia agressiva de hostilidade e pressão.
“Esses documentos registram o objetivo deliberado das autoridades americanas de minar a capacidade de Allende para governar e de derrubá-lo para que não pudesse estabelecer um modelo bem-sucedido e atraente de mudança estrutural que outros países poderiam seguir”, explica Peter Kornbluh, analista sênior encarregado do Chile no Arquivo de Segurança Nacional, uma ONG com sede em Washington que analisa os documentos desclassificados pelos Estados Unidos depois da detenção de Augusto Pinochet em Londres em 1998. “É uma história de um país pioneiro ―um poderoso império― que queria controlar os países, suas instituições e as vidas de seus cidadãos, mas não em nome da democracia, e sim de uma ditadura militar e sua repressão. No nosso mundo atual, em plena crise, devemos estar atentos a essa história trágica”, diz.
Kornbluh se refere a um dos principais temores do Governo de Nixon e, principalmente, de Kissinger: que o caminho do socialismo à chilena ―alcançado pela via democrática― expandisse sua influência não só na América Latina, mas também em outras regiões do planeta. “Acredito firmemente que esta linha é importante no que diz respeito a seu efeito nas pessoas do mundo”, disse Nixon a Kissinger em uma conversa telefônica em novembro de 1970, segundo os papéis divulgados pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional. “Se [Allende] puder demonstrar que pode estabelecer uma política marxista antiamericana, outros farão o mesmo”, afirmou o presidente americano. Kissinger concordou: “Terá efeito inclusive na Europa. Não só na América Latina”.
Os documentos mostram que o assessor de Segurança Nacional influiu decisivamente na política que o Governo americano adotou em relação ao Chile, que incluiu uma tentativa frustrada de golpe de Estado para impedir que Allende assumisse a presidência que ele havia conquistado democraticamente. Estava marcada para 5 de novembro de 1970, na Casa Branca, uma reunião formal do Conselho de Segurança Nacional para discutir a política para o Chile. Mas Kissinger manobrou para adiar a reunião por 24 horas e, com isso, conseguir se reunir a sós com o presidente para que este desistisse de tomar decisões brandas em relação ao Governo de Allende, empossado dias antes. “É essencial que você deixe muito clara a sua posição sobre esse assunto”, disse Kissinger a Nixon. O assessor tinha motivos para se preocupar: nem todos os funcionários americanos estavam de acordo com uma estratégia hostil.
O Departamento de Estado temia que houvesse um escândalo internacional se os esforços para derrubar Allende ficassem em evidência e, por isso, defendeu uma política prudente de coexistência. Foi a chamada estratégia modus vivendi: apoiar os partidos da oposição chilena― os de centro e de direita― para ajudá-los nas eleições de 1976. O Escritório de Assuntos Interamericanos, entretanto, alertou que se Washington violasse seu “respeito pelo resultado das eleições democráticas”, reduziria sua credibilidade mundial, “aumentando o nacionalismo” contra os Estados Unidos. “Isso será utilizado pelo Governo de Allende para consolidar sua posição junto ao povo chileno e ganhar influência no resto do hemisfério”, assinalou o escritório em um documento.
Chile e o temor de uma “Cuba em 1972”
Kissinger fez gestões de alto nível para conseguir se reunir a sós com Nixon antes do encontro do Conselho de Segurança Nacional. De acordo com um memorando em que um funcionário do Gabinete do presidente justifica o adiamento da reunião, Kissinger advertiu: “O Chile pode acabar sendo o pior fracasso de nossa Administração: ‘nossa Cuba’ em 1972”.
A reunião, registrada em 5 de novembro de 1970, entre Nixon e seu assessor de Segurança Nacional foi realizada no Salão Oval. Durante uma hora, Kissinger apresentou um estudo completo para que a abordagem agressiva de longo prazo em relação ao Governo socialista saísse vitoriosa. “Sua decisão sobre o que fazer a respeito pode ser a decisão mais histórica e difícil sobre relações exteriores que você terá de tomar este ano”, disse Kissinger, dramaticamente, a Nixon. “O que acontecer no Chile durante os próximos 6 a 12 meses terá ramificações que irão muito além das relações entre Estados Unidos e Chile.”
Kissinger se referia à influência mundial da via chilena para o socialismo: “O exemplo de um bem-sucedido Governo marxista eleito no Chile certamente teria um impacto em ―e até mesmo um valor como precedente para― outras partes do mundo, principalmente na Itália. A propagação imitativa de fenômenos similares em outros lugares, por sua vez, afetaria significativamente o equilíbrio mundial e nossa própria posição nele”, analisou.
O assessor procurava, por todos os meios, convencer Nixon a pressionar a burocracia da política externa a adotar uma posição de mudança de regime, em vez de preferir a estratégia modus vivendi, segundo um documento desclassificado pelo Arquivo de Segurança Nacional e publicado pela primeira vez no livro de Kornbluh intitulado The Pinochet File, lançado em 2013, 40 anos depois do golpe de Estado.
“Podemos derrubá-lo”
A reunião do Conselho de Segurança Nacional foi finalmente realizada em 6 de novembro de 1970. Nem todos os participantes sabiam que Nixon tinha ordenado que a CIA impulsionasse secretamente um golpe de Estado preventivo para evitar que Allende assumisse a presidência do Chile, o que não havia dado certo. No encontro, havia um acordo importante: a eleição democrática de Allende e sua agenda socialista para uma mudança substancial ameaçavam os interesses dos Estados Unidos. Mas, como Kissinger temia, não havia consenso sobre o caminho a seguir. O secretário de Estado, William Rogers, manifestou sua oposição à hostilidade e à agressão aberta contra o Governo de Allende: “Podemos derrubá-lo, talvez, sem ser contraproducentes”. O secretário de Defesa, Melvin Laird, sustentou: “Temos de fazer tudo que pudermos para prejudicá-lo e derrubá-lo”.
O diretor da CIA, Richard Helms, apresentou um documento informativo no qual explicou como Allende conquistou a presidência em uma eleição apertada, traçou o provável rumo de suas políticas econômicas e de relações externas e fez uma análise de sua equipe de ministros. O presidente chileno escolheu “um gabinete militante de linha dura” que “reflete a determinação dos socialistas de afirmar sua política mais radical desde o início”, assinalou Helms, que também se dedicou a fazer anotações.
“Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”, indicou Nixon no encontro, segundo o manuscrito de Helms, que faz parte dos documentos desclassificados pelos Estados Unidos e publicados agora pela primeira vez. O presidente havia decidido: seria adotado um programa de agressão hostil, mas de baixo perfil, para desestabilizar a capacidade de Allende de governar. “Nossa principal preocupação no Chile é a possibilidade de que [Allende] possa se consolidar e a imagem projetada ao mundo seja seu sucesso”, disse Nixon ao dar instruções à sua equipe de Segurança Nacional. “Seremos muito frios e muito corretos, mas fazendo coisas que serão uma verdadeira mensagem para Allende e outros.
Em 9 de novembro, Kissinger distribuiu um memorando secreto com a decisão adotada no conselho, intitulado Política para o Chile. “O presidente decidiu que a posição pública dos Estados Unidos será correta, mas fria, para evitar dar ao Governo de Allende uma base sobre a qual reunir apoio nacional e internacional para a consolidação do regime”, resumiu o assessor de Segurança Nacional. “Mas os Estados Unidos procurarão maximizar as pressões sobre o Governo de Allende para evitar sua consolidação e limitar sua capacidade de implementar políticas contrárias aos interesses dos Estados Unidos e do hemisfério”, acrescentou.
O documento desclassificado pelos Estados Unidos detalha os métodos: autoridades americanas colaborariam com outros Governos da região ―principalmente do Brasil e da Argentina― para coordenar esforços contra Allende; seriam bloqueados, silenciosamente, os empréstimos dos bancos multilaterais para o Chile, e cancelados os créditos e empréstimos para exportações dos Estados Unidos para o país sul-americano; empresas americanas seriam recrutadas para abandonar o Chile; e seria manipulado o valor, nos mercados internacionais, do principal produto de exportação do Chile, o cobre, para afetar ainda mais a economia chilena. Além disso, a CIA foi autorizada a preparar planos de ação relacionados à futura implementação dessa estratégia.
Naquela ocasião, Nixon e seu assessor também mantiveram uma conversa telefônica na qual comentaram o discurso de posse de Allende. “Helms [diretor da CIA] tem de chegar a essas pessoas”, disse o presidente. Kissinger respondeu: “Deixamos isso claro”. A transcrição do diálogo foi divulgada pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional.
Os novos documentos publicados lançam por terra as tergiversações que, durante décadas, autoridades dos Estados Unidos tentaram construir para que os EUA se esquivassem de sua responsabilidade pela quebra da democracia do Chile e pelos 17 anos de ditadura militar, que deixaram milhares de vítimas. Em setembro de 1974, o The New York Times revelou as operações encobertas da CIA para derrubar Allende. O Congresso americano abriu uma investigação sobre o assunto, o escândalo internacional resultou nas primeiras audiências públicas sobre as operações da CIA e foi publicado o estudo Covert Action in Chile 1963-1973 (“ação encoberta no Chile 1963-1973”), escrito por uma comissão especial do Senado, presidida pelo senador Frank Church (a comissão Church). Mas o Executivo americano reteve parte da documentação e os senadores que investigaram o caso não tiveram acesso ao registro completo sobre as deliberações e decisões da Casa Branca nos dias anteriores e posteriores à posse de Allende, que o Arquivo de Segurança Nacional revela agora, 50 anos depois dos fatos.
As palavras do poder
“Embora soubéssemos bastante sobre as maquinações do Governo de Nixon para impedir ou desestabilizar o Governo de Allende, é extremamente importante contar com estes documentos, incluindo notas manuscritas e transcrições de conversas telefônicas”, opina o historiador chileno-americano Iván Jaksic. “É surpreendente ver como aquilo que antes parecia ser especulação era mais do que verdadeiro. A crueldade da linguagem e as medidas propostas para pressionar o Governo de Allende e mandar sinais inequívocos a outros países são francamente arrepiantes”, acrescenta o ganhador do Prêmio Nacional de História de 2020. “São as palavras do poder e, com estes documentos, não resta dúvida de que por trás de cada palavra existiram medidas concretas que tiveram um impacto direto na agonia que viveu nosso país nesses anos.”
Jaksic conheceu o relatório da comissão Church assim que chegou aos Estados Unidos, em 1976: “Foi realmente devastador”, lembra o autor de livros como La Lucha por la Democracia en Chile (“a luta pela democracia no Chile”). “Mas a história não para por aí, pois nem mesmo essa comissão teve acesso a todos os documentos. As evidências que surgiram desde então e que continuam aparecendo são fundamentais para comunicar como foi urdida uma política em relação ao nosso país e à América Latina”, reflete.
O historiador, que mora em Santiago desde 2006, considera “notável” que se envolva a Europa na política para o Chile: “É evidente que, para o Governo dos EUA, o Chile era importante principalmente como um exemplo que não deveria se espalhar, ou seja, um marxismo que chega ao poder por vias democráticas”.
Segundo Ascanio Cavallo, jornalista e um dos autores de La Historia Oculta del Régimen Militar (“a história oculta do regime militar”), “não há ninguém no Chile que duvide da vontade do Governo de Nixon de que Allende não terminasse seu mandato”. “Mas tanto o próprio Nixon como Kissinger ―que em suas memórias faz uma referência muito breve ao Chile― sempre negaram um papel ativo dos Estados Unidos depois que Allende assumiu a presidência, diferentemente do que indicam estes documentos, que revelam que a Administração americana discutia como conseguir sua derrubada.”
Henrique Brandão faz homenagem aos 90 anos do poeta Ferreira Gullar
Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, jornalista destaca perfil do que chama de ‘homem de hábito simples’
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
No mês de setembro deste ano, o poeta Ferreira Gullar completaria 90 anos. Não conseguiu receber as devidas homenagens. Faleceu em dezembro de 2016, dois meses depois de completar 86 anos, como lembra o jornalista Henrique Brandão. Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, ele lembra que o poeta, cujo nome de batismo era José Ribamar Ferreira, “era um homem de hábito simples”.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. “Magro, com a cabeleira escorrida ao longo do rosto, o nariz adunco e as mãos expressivas – que gesticulavam sem parar enquanto falava – não passava despercebido onde quer que estivesse”, escreve Brandão sobre Gullar.
Além de poeta, Gullar foi jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista e dramaturgo. Participou ativamente do Concretismo e do Neoconcretismo, movimentos importantes no cenário da cultura brasileira, nos anos 1950. “Gullar entrou tarde na política. Já rompido com o Neoconcretismo, participava do Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), quando ocorreu o golpe de 1964”, lembra Brandão.
“Eu me filiei ao PCB [Partido Comunista Brasileiro] no dia do golpe de 64. Eu queria participar da resistência a um regime que se impunha ao país pela força”. Após o fechamento da UNE (União Nacional dos Estudantes), Gullar e seus companheiros fundaram o grupo Opinião, que, segundo Brandão, teve grande repercussão com suas peças e shows musicais.
Após o AI-5, em 1968, o regime militar apertou o cerco. “Sobrou para todo mundo que se opunha à ditadura, até mesmo para os comunistas ligados ao PCB, que não defendiam a luta armada. A essa altura, Gullar fazia parte do Comitê Cultural do PCB”, escreve o autor do artigo na Política Democrática Online.
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