golpe de 64

Eliane Cantanhêde: Rui o tripé ideológico

Bolsonaristas têm um trabalhão para seguir o salto triplo do ‘mito’ em saúde, política externa e ambiente

Depois de rasgar as bandeiras do combate à corrupção e do liberalismo econômico, o governo Jair Bolsonaro está desmoronando o seu tripé ideológico: saúde, política externa e ambiente. Isso, claro, cria um problemão para a sua seita, sobretudo na internet. Eles e elas terão de rever suas crenças e posições para seguir essa “inflexão”, ou salto triplo carpado, do presidente. Vão defender Joe Biden, França, Alemanha e Noruega? Cúpula de Paris, Fundo da Amazônia? Até China e vacina?

Não deve ter sido fácil para os bolsonaristas se alinharem com o PT no ataque ao ex-juiz Sérgio Moro, ícone do combate à corrupção, quando ele caiu acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal. E não está fácil jogar Paulo Guedes ao mar, depois do blablablá de que Bolsonaro podia não ser lá essas coisas, mas o Guedes segurava as pontas.

E lá se vai também o tripé ideológico. O diplomata Ernesto Araújo está de volta à sua insignificância e ao limbo dos seus delírios contra o comunismo. O general da ativa Eduardo Pazuello vaga pelo Exército, olhado de esguelha pelos companheiros de farda depois de humilhado e desautorizado pelo presidente na compra de vacinas e de se sair com o indecente “um manda, outro obedece”. Ambos, Araújo e Pazuello, estão na mira da CPI da Covid.

Com o cerco se fechando contra Ricardo Salles, Bolsonaro repete o script: elogia, leva para lives e confraternizações, dá tapinha nas costas e planta notinhas sobre o quanto gosta do ministro. Quanto mais o torniquete aperta, mais Bolsonaro prestigia seu ministro. Mas... quanto mais prestigia, mais o ministro esfarela.

Então, vejam como é a dura a vida de bolsonarista. Esquece Ernesto Araújo e o que ele fazia e dizia, para enaltecer o sucessor, Carlos França, e fazer juras de amor para China, França, Alemanha, Noruega, até para a Argentina de Alberto Fernández? E Joe Biden, chamado de “gagá”, “sequelado” e “esquerdista”, virou um cara legal.

E, agora, com Pazuello fora e o médico Marcelo Queiroga tentando correr contra o tempo e contra os erros gravíssimos na pandemia? Os e as que papagaiavam Bolsonaro, trocavam ciência por ideologia e comparavam as vacinas à talidomida, que matou e mutilou na década de 1950, correm para oferecer o braço e salvar suas vidas. Não consta que nenhum deles tenha virado jacaré...

Com os “novos” política externa e Ministério da Saúde, quem tem estômago deveria entrar nas redes para ver os bolsominions conclamando todos a se imunizarem e defendendo “aquela vacina chinesa do Doria”, que, na verdade, é praticamente a única maciçamente disponível no Brasil. Vencem a realidade e a racionalidade. Viva a China! O Butantan! A vacina! E viva a vida!

Mesmo antes do “novo Ministério do Meio Ambiente”, vem aí o novo discurso de Bolsonaro sobre sustentabilidade: antecipar a neutralidade das emissões para 2050, acabar com desmatamento ilegal até 2030, dobrar a verba para fiscalização já. Dá-lhe racionalidade! Viva a Amazônia! As leis ambientais! E viva o Biden, líder da causa ambiental no mundo!

Faltam: um pedido de desculpas ao cientista Ricardo Galvão, demitido do Inpe por alertar para desmatamento da Amazônia; resgatar o Ibama e o ICMBio; reativar as multas ambientais; cobrar compromissos com os indígenas. Bolsonaro quer escancarar as reservas para mineração, agricultura, turismo... Mas não tocou nisso na cúpula do clima.

O Brasil não tem só governo, um governo rechaçado no mundo inteiro. Tem cidadania, instituições, entidades, atores das mais variadas frentes, na pandemia, na política externa e no ambiente. Salvar o planeta é aqui e agora! Goste ou não Bolsonaro, ele é obrigado a cair na real. Governos vêm, governos vão, o Brasil fica.


Sergio Fausto: Preservar a democracia e as Forças Armadas

Há uma relação de mútua dependência, seja o que for que os militares pensem do golpe de 64

A crise militar desencadeada por Bolsonaro deixou no ar um misto de alívio e apreensão. O pior não aconteceu. O presidente seguiu o critério de antiguidade na nomeação dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A apreensão deriva do fato de que essa não foi a primeira nem será a última vez que Bolsonaro busca instrumentalizar as Forças Armadas em função do seu projeto político, sabidamente autoritário e destrutivo das instituições do Estado. O que está em jogo é a preservação da democracia e das Forças Armadas, como instituição republicana, impessoal, que não se confunde com governos e chefes de Estado transitórios. São dois objetivos inseparáveis.

O presidente é sistemático e incansável em seu intento de criar exércitos para chamar de seus. Na base da sociedade, fomenta o acesso a armas e uma cultura de violência, em nome da liberdade e da segurança individuais, mandando às favas quaisquer escrúpulos de civilidade. Usa seu poder presidencial para reforçar sua identidade com grupos de indivíduos que fazem da intimidação um modo de ser, quando não um modo de vida e um negócio, como no caso das milícias. Na base do Estado, estimula o antagonismo entre policiais militares e governadores. Visa ao menos a criar a impressão de que, no dia D e na hora H, exércitos de PMs obedecerão ao seu comando para, junto com milícias civis bolsonaristas, encostar governadores e prefeitos contra a parede. Na cúpula do Estado, Bolsonaro dedica-se a enredar as Forças Armadas nas malhas de seu governo, pois sabe, como Hugo Chávez sabia, que sem cooptação das forças regulares a ameaça de intimidação de facções armadas é menos plausível.

Nunca antes em regime democrático, nem mesmo durante o regime militar, tantos oficiais – da reserva e da ativa – ocuparam tantas e tão destacadas posições em ministérios e empresas estatais. O sentimento de missão a cumprir, a natural atração que o poder exerce e a ilusão de que poderiam controlar o presidente levaram os militares a acreditar que este governo era o seu governo. Bolsonaro sabe cultivar esse sentimento: abre espaços na administração, melhora salários e proventos, amplia o orçamento da Defesa, comparece a formaturas, etc.

Bolsonaro já deve ter-se dado conta de que as Forças Armadas não embarcarão numa aventura autoritária sob o seu comando. Basta, no entanto, que lhe deem suficiente margem de manobra para que ele possa seguir tagarelando sobre o alinhamento político entre o governo e os militares. Para a sua base fiel, o recado é claro: se a chapa esquentar, eu tenho a força. A parolagem irresponsável do presidente é instrumental para manter vivo o mito do homem forte, tão mais útil quanto mais a realidade o mostra politicamente enfraquecido.

A confusão propositada entre governo e instituição militar terá custos crescentes para as Forças Armadas. A reeleição do presidente se tornou mais difícil. Ele enfrentará a disputa do próximo ano em condições muito piores do que jamais imaginou, carregando as perdas humanas, sociais e econômicas de uma tragédia que se tornou ainda maior por seus atos e omissões. Se Lula vier a ser seu principal adversário, travará uma guerra de deslegitimação do candidato petista e, se necessário, do próprio processo eleitoral. Se as heterogêneas forças de centro-direita e centro-esquerda se aglutinarem em torno de um candidato que caia no gosto popular, sua situação se complicará mais ainda. Mas, num caso ou noutro, mobilizará suas milícias online e offline para o que der e vier e usará todos os instrumentos do Estado que puder utilizar em favor de sua campanha. Bolsonaro pouco distingue as fronteiras entre família, governo e Estado.

O presidente conhece a resistência que o PT enfrenta no meio militar (mais uma razão para sonhar com a polarização com Lula). Ela se formou ao longo do governo Dilma e se consolidou com a Lava Jato. Os militares não digeriram a Comissão da Verdade. Também não gostaram do que entenderam ser tentativas de interferir em assuntos internos das Forças Armadas. O ex-juiz Sergio Moro continua a contar com prestígio entre os militares e a decisão do STF de declará-lo suspeito é tida como um retrocesso inaceitável. Bem aceito em seu governo, depois o ex-presidente ganhou inimigos nas Forças Armadas.

Falemos em português claro: o presidente joga com a hipótese de os militares se mostrarem mais maleáveis a seus interesses num cenário eleitoral em que Lula desponte como seu principal adversário. Nesse quadro, aposta que pode haver coincidência de interesses e maior alinhamento político. Aposta perigosa, para a democracia e para as Forças Armadas.

Ante o risco que Bolsonaro representa, há uma relação de mútua dependência entre a preservação da democracia como regime político e das Forças Armadas como instituição de Estado, independentemente do que os militares pensem a respeito do golpe de 31 de março.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP


Míriam Leitão: O dia que inventou a noite

Falsificadores de passado inventam virtudes para a ditadura de 64

Foi exatamente há 54 anos que começou a noite de 21 anos sobre o Brasil. Hoje, mais de meio século depois, o país que guarda mal sua memória é vulnerável aos falsificadores de passado e vai se espalhando a ideia de que foi um tempo sem corrupção, com segurança e com crescimento econômico. Não é verdade, na ditadura houve corrupção sem apuração e crise econômica.
É triste ter que recontar os ocorridos daqueles anos do regime militar como se fosse preciso ainda convencer de que houve o que houve. Tortura, morte, desaparecimentos políticos, exílio, censura, cassação de mandatos de parlamentares pelo crime de opinião, aposentadoria forçada de ministros do Supremo e catedráticos, proibição de que estudantes frequentassem a universidade, suspensão do direito de reunião e manifestação, anulação do habeas corpus e de outros direitos constitucionais, fim das eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos das principais cidades. Era um tempo horrível.
Hoje há um esforço deliberado de se reescrever esse passado com mentiras para convencer os jovens de que aquele foi um tempo de paz interna, contestada apenas por alguns poucos “comunistas”. Há um grupo que inclusive escolheu como seu líder o torturador símbolo Brilhante Ustra, proclamado herói de certo candidato. Houve recentemente até um assessor do candidato que propôs que as versões do torturador e de seus torturados são equivalentes. Qual dos dois lados falou a verdade? Perguntou. Ora, ora. É preciso poupar-se de todos os fatos ocorridos para ter essa dúvida, inclusive a evidência de que 40 dos torturados morreram no Doi-Codi de São Paulo comandado por Ustra. Se morreram, não foi por bons tratos.

É triste ter que voltar mais de meio século e recontar a história como a história foi, para ter que lutar de novo contra a narrativa dos militares daquele tempo construída com censura à imprensa. Deveríamos estar inteiramente dedicados a pensar o futuro e a superar os muitos desafios do presente. Nossa democracia é imperfeita, passa por crises e isso cria o ambiente fértil para se edulcorar esse passado, desprezível em todos os aspectos.
Na democracia ideal muita coisa que nos acontece hoje não deveria estar ocorrendo. Não haveria tiros ou pressões contra a caravana de um candidato, como acaba de acontecer com Lula. As decisões da Justiça seriam entendidas como decisões da Justiça, e não como golpe. O foro privilegiado não deveria ser o escudo no qual bandidos se abrigam. Não se discutiria se um condenado em dupla instância deveria ou não cumprir pena. Não haveria cenas de pugilato verbal no Supremo. Principalmente não ocorreria o assassinato de uma jovem e promissora vereadora no mesmo centro do Rio, onde, na ditadura, foi morto o jovem Edson Luís há 50 anos.
Em qualquer democracia há divisões. É da natureza das democracias serem cheias de diversidade. O pensamento único só cabe numa ditadura em que as vozes discordantes são caladas pela violência política. Mas é doloroso ver que os debates naturais se transformaram em agressões grotescas entre grupos que têm projetos e versões diferentes. Mas será na democracia que corrigiremos seus erros e temos tido muitos progressos, como o de, pela primeira vez na história, o país estar enfrentando a corrupção com extrema coragem.
O dia 31 de março, há 54 anos, inventou uma noite que durou duas décadas. Nela não era possível divergir, combater os crimes de poderosos, protestar contra a crise econômica. No começo da década de 1980, nos últimos anos daquela noite, o Brasil estava quebrado, com dívida externa impagável, em recessão, desemprego alto, a inflação subia estimulada pela correção monetária criada nos governos militares. Foi a democracia que tirou o país desse buraco, desarmou a bomba inflacionária, renegociou e pagou a dívida. Precisou de 10 anos para superar esse difícil legado. Nos anos seguintes, a democracia se dedicou a resgatar brasileiros da pobreza extrema.
Os dias podem nascer nublados, chuvosos ou ensolarados. Mas é neles que o país construirá o futuro. Mesmo que pareça tão desconcertante e difícil o tempo atual. A noite, aquela noite, passou. E tem que ficar no passado.
* Foi o ministro Celso de Mello que votou pela prisão domiciliar de Jorge Picciani, e não Ricardo Lewandowski.