Goiás
Ana Carla Abrão: Terra de Cora
O Goiás rico e próspero se perdeu com os empréstimos generosos e gastos crescentes
Quem vai a Goiás pela primeira vez ainda hoje se surpreende com a terra vermelha, o clima quente e seco e a luminosidade de um céu azul claro e um sol que não descansa. Além disso, logo percebe que muito além da pamonha, do pequi e das fazendas onde se cria gado, há ali uma economia diversificada, com uma indústria que se instalou em torno do agronegócio e juntos garantem um nível de riqueza que não se imaginaria possível duas ou três décadas atrás.
Esse é um Goiás rico, próspero, que cresceu acima da média nacional por mais de dez anos e cuja pujança é de causar inveja a vários Estados periféricos que, por estarem também longe dos grandes centros consumidores ou por terem menor potencial econômico, ficam à mercê dos repasses federais e a duras penas enfrentam as dificuldades de um país tão diverso e desigual como o Brasil.
Mas a partir de 2010, compensando um arrefecimento na taxa de crescimento da arrecadação própria, Goiás começou a receber empréstimos generosos dos bancos públicos, amparados por um governo federal cada vez mais camarada. E Goiás se perdeu, assim como tantos outros Estados. Limites foram ignorados e o que antes era receita extraordinária se transformou em despesa ordinária, obrigatória e crescente. Já em 2014 o desequilíbrio era grave, numa combinação de crise econômica com excessos nas isenções fiscais e gastos sempre crescentes.
Foi no apagar das luzes de 2014 que fui convidada para ser Secretaria de Fazenda de Goiás. Neófita em contas públicas, me fiz então uma única pergunta: Goiás atende os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal? Para meu alívio, internamente convencida de que aceitaria o convite, vi que sim. Ignorei os sinais no convite feito pelo então governador Marconi Perillo, que foi claro no seu objetivo de promover um forte ajuste fiscal no Estado, e desembarquei em Goiás cheia de planos.
Não foram necessárias nem 24 horas no cargo para entender que a realidade do Estado diferia em muito da normalidade dos relatórios de gestão fiscal exigidos pela LRF. O caixa do tesouro estadual mal dava para o pagamento da folha e dos serviços da dívida, num desafio diário de se buscar recursos para minimizar atrasos com fornecedores e repasses constitucionais. O descolamento entre caixa e contabilidade vinha validado por dois caminhos: por uma determinação do Tribunal de Contas do Estado de retirar os gastos com pensionistas e com o imposto de renda sobre a folha dos cálculos das despesas com pessoal; e por Leis Orçamentárias completamente desconectadas da realidade. O primeiro, ao subestimar os gastos com pessoal, evitava as sanções pelo descumprimento da LRF. O segundo validava receitas infladas que acomodavam despesas sem limites num jogo de faz de conta.
Ao longo de dois anos o ajuste permitiu a redução de custos de mais de R$ 6 bilhões, equivalentes a quase 30% de um orçamento de pouco mais de R$ 20 bilhões. Gastos com pessoal e custeio foram contidos, investiu-se no combate à sonegação e privatizou-se a companhia de distribuição de energia. Isso trouxe algum fôlego para novos investimentos, sacrificados pelo excesso de gastos correntes e uma acertada restrição a novos empréstimos a partir de 2015. Além disso, um programa de consolidação do ajuste foi apresentado por meio de uma PEC, com várias ações adicionais que deveriam ser adotadas nos próximos anos para garantir a perenidade do ajuste.
Mas nada disso foi suficiente para evitar o colapso fiscal de Goiás. A partir de 2017 as despesas de pessoal voltaram a crescer de forma descontrolada, os recursos da privatização da Celg se transformaram em asfalto que não resistirá a este período de chuvas e os fornecedores estão ao relento, apesar das promessas de que tudo se resolveria após as eleições. A PEC virou o instrumento que oficializou a maquiagem no cálculo das despesas com pessoal. Tanto se fez, que a verdade do caixa, de tão grave, dessa vez prevaleceu sobre os relatórios fiscais, mostrando que o faz de conta um dia acaba.
Como bem disse Cora Coralina, nossa melhor síntese: “Goiás é água e pão. Água para toda sede e pão para toda fome”. Mas para que o potencial e a riqueza de Goiás se distribuam por todos os goianos, o interesse público precisa estar no centro das decisões políticas. Sempre.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
Fernando Gabeira: Ouça, Temer
Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta
Tenho discretas razões para supor que Temer compreenderá o equívoco de abrir para a mineração, na Amazônia, uma área do tamanho da Dinamarca. No passado, ele se tornou dono de terras em Alto Paraíso, e a comunidade que trabalhava há anos ali foi a Brasília pedir ajuda. Terras em Goiás foram distribuídas a políticos do PMDB. Temer nem sabia exatamente como eram e o que produziam. Pressionado pelos agricultores alternativos que trabalhavam ali, Temer resolveu abrir mão de suas terras e as doou à cidade de Alto Paraíso. Agora, não se trata apenas de alguns, mas de 47 mil hectares. As terras não são de Temer, mas do Brasil e, de uma forma indireta, de toda a Humanidade. Quando os militares criaram a reserva, a ideia era pesquisar e explorar os recursos de uma forma estratégica. Não creio que pensaram nisso como um momentâneo desafogo a uma crise econômica provocada pela incompetência e corrupção.
Não quero raciocinar em termos de estatal ou privado, ou mesmo de nacional ou estrangeiro. Depois que os militares criaram a reserva, muita água passou por baixo da ponte, ou mesmo por cima, com os eventos climáticos extremos.
No fim da década dos 1980, o Brasil ainda era um vilão internacional porque desmatava a Amazônia. Lembro-me de uma reunião de cúpula na Holanda em que Sarney não foi porque tinha medo de uma reação negativa. Na época, além das queimadas e de outros fatores, houve ainda o episódio de negarem passaporte a Juruna.
Com a realização da Rio-92, o maior encontro de estadistas no pós-guerra, o papel do Brasil começou a se alterar. De vilão ambiental, tornou-se um interlocutor importante e passou a ser visto como ator decisivo nos acordos sobre o aquecimento global. A Amazônia tornou-se para o mundo um espaço a ser preservado, respeitada a autonomia nacional sobre suas terras. Países como a Noruega acharam que se a Amazônia era importante para a sobrevivência de todos, deveriam investir nela em projetos sustentáveis. E fizeram isso.
Ouça, Temer
Você mesmo esteve na Noruega, embora a tenha confundido com a Suécia.
A grande crise iniciada em 2008 e fatos posteriores, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, enfraqueceram mas não destruíram a disposição planetária de contribuir com a Amazônia.
Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta. E de uma certa maneira, despreza os potenciais investimentos em projetos sustentáveis em nome de uma saída que me parece anacrônica e predatória.
Tudo bem, Temer, você dirá que serão respeitadas as regras ambientais para a mineração. Mas quem percorre Minas Gerais e outros pontos do país constata rapidamente que elas não são respeitadas no Sudeste, onde teoricamente, concentra-se o grosso da fiscalização.
No segundo decreto, você criou um comitê ligado à chefia da Casa Civil para monitorar as atividades de mineração nessa faixa que engloba parte do Amapá e do Pará. Não consigo me convencer disso. O chefe da Civil, Eliseu Padilha, é investigado por crimes ambientais no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul. E as acusações são amplas, vão de desmatamento a construção de pistas de pouso clandestinas. Pouca gente sabe disso. Mas está disponível na internet e no próprio Supremo.
Além de arruinar o trabalho de construção da imagem nacional, o governo nos propõe uma fórmula de controle na qual a raposa toma conta do galinheiro. O namoro do PMDB com as riquezas naturais da Amazônia vem de longe. Romero Jucá é o mais destacado parlamentar buscando fórmulas para regulamentar a mineração nas terras indígenas.
Nesse momento, Temer, você está cedendo às piores influências no manejo da Amazônia. Se fosse simplesmente um opositor, talvez pudesse me alegrar com essa decisão. Antes de ser opositor, sou brasileiro e lamento ver o Brasil caindo de novo naquele desprezo internacional que sentimos em Haia, no fim da década de 1980. É uma ilusão você pensar que tudo dará certo. Até mesmo Padilha e Jucá, que devem estar comemorando, não percebem que estão atraindo um furacão contra eles. Deveriam ser mais discretos, mas a aposta é de levar tudo porque aqui não se pune ninguém.
No momento em que publico este artigo, estou tentando entrar na reserva, que não tem acesso fácil. O argumento de que garimpeiros clandestinos estão por lá não justifica esta abertura às grandes empresas. Aliás, Temer, existe uma possibilidade de você estar se deixando execrar inutilmente. As empresas que você quer atrair também estão no mundo e devem sofrer pesadas campanhas em seus países de origem.
Não me importa que você confunda Noruega com Suécia, Paraguai com Portugal, ou mesmo reviva a União Soviética. O essencial é não confundir a Amazônia com Goiás, onde tantas terras foram passadas a líderes do PMDB. É um lugar tão complexo, capaz de sepultar não apenas os sonhos pioneiros como o de Henry Ford, mas também as grandes trapaças.