Godfather of Harlem
Henrique Brandão: Os anos de 1960, nos EUA, pela lente do Harlem
Fui dormir tarde sábado. O motivo: resolvi “maratonar” a série “Godfather of Harlem”, em exibição na Fox Premium. Ontem, a Patricia Kogut ocupou o espaço de sua coluna para falar justamente dela. A série está disponível no Now, no canal da Fox Premium, e tem dez capítulos.
Não foi por acaso que a crítica de TV de O Globo dedicou generoso espaço à série. “Godfather of Harlem” (em tradução livre, “O Padrinho do Harlem”, mas, após o filme de Francis Ford Copolla, “The Godfather”, talvez seja mais apropriado traduzi-la para “O Poderoso Chefão do Harlem”), é uma série que vale cada minuto na frente da telinha (a partir de agora tem spoiler).
“Godfather of Harlem” conta a história de Bumpy Johnson que, em 1963, após sair da prisão, volta a Nova York e a seu bairro, Harlem, onde era o rei das ruas. O cenário que encontra, no entanto, é outro bem diferente de onze anos atrás. Na sua ausência, a máfia italiana invadiu seus domínios. A heroína, droga que se disseminou no período, agora dominava as ruas. Para manter seus negócios, Johnson terá que lutar contra os antigos aliados italianos.
A série é baseada em fatos reais. Bumpy Johnson (1905-1968) existiu e muitos dos personagens da série também. É o caso, por exemplo, de Malcolm X (1925-1965), seu jovem colega de crimes nas ruas do bairro. Ao sair da prisão, Bumpy encontra o amigo já convertido ao islamismo e um destacado prócer do movimento negro, agora preocupado com o trabalho social junto aos drogados e empenhado na luta pelos direitos civis. A relação entre eles é contraditória, mas fraternal, e perpassa toda a série.
Como todo bom filme de “gangster”, o conflito na disputa por espaços no submundo do crime, que envolve tráfico, apostas e prostituição é o elemento principal da trama. Não tem mocinho. Bumpy, apesar de paternalista com os parceiros e moradores, quando necessário é brutal, assim como seus rivais. A diferença é que ele está em seu habitat natural, o Harlem, bairro ao norte de Manhattan, majoritariamente habitado por negros. Viveu, desde sempre, a desigualdade social, o racismo e a violência. Diante do cenário, conseguiu sobreviver e se impor, adotando o método dos adversários.
O contexto dos anos de 1960, com a explosão do movimento dos direitos civis, é o pano de fundo da trama. Além de Malcolm X, outros personagens reais são importantes na história, como Adam Clayton Power Jr. (1908-1972), um pastor batista que foi o primeiro descendente afro-americano a ser eleito para a Câmara Federal em NY (de 1945 a 1971, pelo Partido Democrata).
Além dos personagens baseados em pessoas reais, o uso do noticiário transmitido pela TV, aparelho que era relativamente recente nos lares e bares dos EUA naquele período, é um recurso que situa, a todo momento, a narrativa dentro do tempo histórico.
Está tudo lá. Até Cassius Clay (1942-2016), o jovem boxeador em luta pelo cinturão dos pesos-pesados que, por conta de sua conversão ao islamismo, mudaria depois o nome para Mohamed Ali. Suas conversas com Malcolm X são definidoras de sua trajetória e a interferência de Bumpy Johnson, blindando-o das pressões da máfia italiana, fundamental para garantir o título. Está lá também o teatro Apolo, ícone do Harlem, palco de shows de figuras importantes da música negra norte-americana daquele momento, como James Brown.
É interessante observar as nuances das posições políticas dos envolvidos na luta pelos direitos civis em relação à Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, gigantesca manifestação que tomou conta da capital norte-americana em 28 de agosto de 1963. Cada qual com seus motivos, tanto Malcolm X como Adam Clayton têm ressalvas ao papel de liderança exercido por Martin Luther King (um dos organizadores da Marcha, John Brown, à época um jovem de 25 anos, acabou de falecer no EUA, vítima de câncer, aos 80 anos).
A série assume explicitamente a tese de que a máfia é a responsável pelo assassinato de John Kennedy. Ao ver a cena pela TV do assassinado de Lee Oswald, executado dentro de uma delegacia, na frente de jornalistas e de vários policiais, que nada fazem para impedir o crime, Bumpy Johnson comenta que é evidente a participação da polícia, infiltrada até a alma pela máfia, na queima do arquivo.
Na sequência, Bumpy Johnson explica aos comparsas a ligação da máfia com os Kennedy, que começa pelo pai do presidente eleito, que enriqueceu como contrabandista. O pivô do rompimento da aliança entre os Kennedy e a máfia, que apoiou John na eleição, foi a atuação de seu irmão Bobby no cargo de Procurador Geral dos EUA (este depois também seria assassinado pela “Cosa Nostra” em plena campanha eleitoral para presidente).
Fora o imbricamento com os fatos reais, que acrescenta verossimilhança à narrativa, salta aos olhos o evidente capricho da produção, com uma reconstituição de época primorosa.
O elenco é cheio de feras. A começar por Forest Whitaker, no papel de Bumpy, como sempre dando show. Giancarlo Esposito dá vivacidade ao deputado Adam Clayton e Nigél Tatch, brilha na pele do Malcolm X (a semelhança física é impressionante). Vicente D’Onofrio se destaca na composição de um mafioso italiano rude e violento (Vicent Gigante). Paul Sorvino encarna o chefe da “Cosa Nostra”, Frank Costello. Chamam atenção também a bela Ifenesh Hadera, como Mayme Johnson, esposa de Bumpy, e Antoinette Crowe-Legacy, a filha do mandachuva do Harlem viciada em heroína.
Patricia Kogut indica duas outras séries para quem estiver interessado em saber mais daquela época efervescente dos EUA: “Bob Kennedy president” e “Quem matou Malcolm X”. Este último, seis episódios que desvendam os meandros da política do movimento negro islamita norte-americano, com todas as suas idiossincrasias. Elas realmente acrescentam informações relevantes. Juntaria a esta lista o último filme de Spike Lee.
O fim dos dez capítulos deixa claro que haverá uma continuação. A primeira temporada acaba com o presidente Kennedy assassinado e Malcolm X sendo punido pela organização muçulmana à qual pertence, Nação do Islã. No entanto, nos EUA dos anos de 1960, muita coisa ainda viria a acontecer, principalmente em se tratando do movimento pelos direitos civis. Se for tão boa quanto a temporada de estreia, a continuação, promete.
Não perca!!!