globalização

Reprodução: Horizontes Democráticos

A globalização continua

Luiz Sérgio Henriques* / O Estado de S. Paulo

Vozes econômicas influentes informam que a globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.

Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.

Reprodução: CNN Brasil
Reprodução: CNN Brasil

Os nacionalismos em questão articulam-se em rede, trocam experiências, auxiliam-se mutuamente sem constrangimento. Não se limitam a proclamar, fechados em si mesmos, que cada uma das respectivas nações de referência deve vir “em primeiro lugar” ou “acima de tudo” – e acompanhada por alguma versão pré-moderna de um Deus “acima de todos”.

A inter-relação tem se imposto desde os triunfos inaugurais do moderno nacional-populismo com o Brexit e a eleição de Donald Trump. O fluxo planejado de desinformação, possivelmente gestado ainda na era soviética, esteve presente nestes dois acontecimentos e em muitos outros, acirrando ressentimentos e explorando situações inéditas, como a fragmentação das velhas classes sociais e a emergência de uma “sociedade dos indivíduos”, na expressão de Pierre Rosanvallon. Nada faz supor que tal fluxo se detenha em eleições futuras, inclusive na brasileira, e só este fato deveria servir como segunda e poderosa advertência.

O nacional-populismo ganhou parte da juventude de esquerda na Europa | Reprodução: Mises Brasil
O nacional-populismo ganhou parte da juventude de esquerda na Europa
| Reprodução: Mises Brasil

Nunca é muito claro o exato momento em que uma “democracia iliberal” se despe de ornamentos e assume as feições de uma autocracia ou, para usar linguagem mais direta, de uma ditadura. E nem sempre lhe será possível, adequado ou conveniente apresentar-se como tal. O fato é que os nativistas aprenderam, ao menos em parte, a lição da hegemonia, empregando recursos que permitem dar uma orientação a amplos setores desnorteados com a velocidade das transformações em curso.

O nacionalismo autoritário sempre provê uma comunidade ilusória, permanentemente mobilizada contra os mais fracos e os “diferentes”. Às vésperas do fascismo clássico, há pouco mais de cem anos, espalhava-se a fantasia da “nação proletária” injustamente explorada pelas demais. Enquanto lutava pela sua parte no butim colonial, tal nação devia unir-se compactamente, calando as discrepâncias internas mediante a fruição do trabalho dos “povos inferiores”. Hoje, o populismo recorre demagogicamente a uma suposta defesa dos “perdedores da globalização”, investindo contra os imigrantes e tentando herdar os eleitores da esquerda clássica. O que não muda, em circunstâncias tão distintas, são o culto do homem providencial (Marine Le Pen é, aqui, uma exceção) e a consequente compressão da vida democrática.

Reprodução: PsicoDigital
Reprodução: PsicoDigital

Esta compressão apresenta-se com toda a nitidez no exemplo-limite da Rússia de Vladimir Putin, na qual o Estado aparece quase inteiramente como pura força. O plurissecular passado despótico – seja o dos czares, seja o do comunismo stalinista – constitui o repertório no qual se buscam as razões últimas do poder autocrático. A bem da verdade, o bolchevismo original é alvo da ideologia eslavófila de Putin, pois nele ainda pulsa uma ligação com o Iluminismo e a cultura ocidental, não obstante o radicalismo jacobino que o levaria à perdição. Internamente, por isso, o Estado de Putin se apoia no controle repressivo da sociedade civil; externamente, na guerra, em particular nas suas modalidades mais destrutivas, o que vemos a cada dia, com horror, na agressão à Ucrânia.

Recorrendo à lição hegemônica ou valendo-se da força, ou, ainda, empregando uma mistura de ambas, o nacionalismo populista é a grande ameaça atual à comunidade das nações democráticas. A estas últimas, também abaladas em seu interior por forças e personalidades autoritárias, não convém ostentar nenhum tipo de húbris ou vocação missionária. Elas podem regredir pavorosamente, bastando lembrar o assalto ao Capitólio e o mau exemplo semeado. Como indivíduos, para seguir viagem em meio às ondas tempestuosas da unificação do gênero humano, temos à disposição o cultivo do “instinto de nacionalidade”, na forma de lealdade à Constituição, e o aprofundamento da condição de cidadãos do mundo, envolvidos inexoravelmente em cada avanço e em cada recuo das nossas sociedades.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

(Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, em 17 de abril de 2022)


Merval Pereira: Guerra é guerra

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se mostrado competente na análise prospectiva de nossa economia, embora de nada isso lhe valha para evitar os fracassos que prenuncia. Disse que se fizéssemos muita besteira, o dólar chegaria a R$ 5,00. Chegamos a R$ 5,53 no fim de semana sem que o ministro tenha evitado. Recentemente, disse que poderíamos virar uma Argentina, ou quem sabe uma Venezuela, em poucos anos, se caminharmos para “o lado errado”.

Mais uma vez está certo, e nada indica que consiga frear essa caminhada célere para o abismo que o presidente Bolsonaro lidera. Bolsonaro sabe o que eu penso, eu sei o que ele pensa, disse Guedes durante a crise gerada pela intervenção presidencial nos preços da Petrobras. Só nós não sabemos por que Guedes não sai do governo se não consegue conter os ímpetos intervencionistas do chefe.

Por que, então, não nos transformamos em um Paraguai pelo menos por alguns dias, meses, e não saímos nas ruas até tirarmos Bolsonaro da presidência da República, cargo que ele não merece exercer pela falta de compostura, a incapacidade administrativa, e, sobretudo, a impossibilidade de enfrentar a pior pandemia em um século no Brasil e no mundo?  

“Estamos em guerra”, anunciou o Secretário de Saúde de São Paulo Jean Gorinchteyn. E se estivéssemos em guerra contra outro país, e não contra um vírus, como nos comportaríamos tendo à frente um líder como Bolsonaro, incapaz de oferecer a seus compatriotas “sangue, suor e lágrimas”?

Logo ele, sujeito de maus bofes, que vive procurando briga, irritadiço, violento, agressivo. Uma guerra de ocupação, de conquista ou defensiva, talvez encontrasse em Bolsonaro um comandante aguerrido, mas trapalhão, é o que se depreende de ele ter ameaçado pateticamente os Estados Unidos “com pólvora” numa imaginária guerra para proteger a Amazônia.

Capaz, mesmo tecnicamente sóbrio, de bravatas desastradas como a do General Leopoldo Galtieri, ditador argentino que, bêbado, declarou guerra à Inglaterra por causa das Ilhas Malvinas. Assim como não está preparado para comandar um Exército, pois falta-lhe bom-senso e não concluiu o curso de comando do Estado-Maior, Bolsonaro também não está preparado para exercer a presidência da República, mas foi eleito e tem sob seu comando vários oficiais superiores, que não lhe deixariam comandar pelotões em uma guerra, mas acham que podem ser comandados por um político medíocre, que já demonstrou o mal que pode fazer ao país.

Os militares que se subordinam ao capitão o fazem mais por uma hierarquia militar, que coloca o presidente como Comandante em Chefe das Forças Armadas, do que por amor à democracia.  Pois o amor à democracia os obrigaria a abandonar um presidente  tresloucado, que está levando a morte à população brasileira por caprichos, ignorância e cálculo político.

Em uma guerra, a morte é a regra, e, mesmo assim, o oficial que encaminha seus comandados a atos manifestamente criminosos, ou a excessos, pode ser condenado, mesmo em tempo de paz. Galtieri foi condenado por negligência na guerra das Malvinas, tendo sido anistiado depois por lei especial. A guerra contra a Covid-19, assim como na guerra tradicional, leva a morrer pela pátria, como no caso do pessoal da linha de frente médica, que se arrisca a morrer para salvar vidas. Desde o início da pandemia, segundo dados oficiais, quase mil mortes de profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, técnicos - foram registradas.

Defender a saúde pública é dever das autoridades do país, e nenhuma delas, por mais elevado que seja seu cargo ou posto, pode desconhecer o perigo de morte, se omitir ou dificultar o seu combate, segundo juristas. Qualquer autoridade que não lute pela  preservação da vida ameaçada por uma crise de saúde pública comete  “crime de responsabilidade”, e seus atos devem ser apreciados e julgados. Sobretudo quando mais de 260 mil pessoas já morreram, grande parte por negligência governamental.

“Todo mundo vai morrer um dia”, disse o presidente Bolsonaro ao comentar o número de mortes pela pandemia. Mas apressar a morte em uma pandemia por falta de oxigênio, de leitos de UTI, ou de vacinas, é crime.


Marco Aurélio Nogueira: A pandemia, o futuro, a vida que flui

A época atual é de perplexidade, que ofusca o futuro e idealiza o passado. Com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida, incrementando ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. A pandemia do coronavírus agravou um quadro que já era dramático. Partindo desse pressuposto, o artigo procura refletir sobre algumas vias alternativas, que recuperem o diálogo, a cooperação e a solidariedade em escala global, valorizando ao mesmo tempo a democracia e o reformismo incremental

Decifrar o futuro sempre assustou e excitou os humanos. Da mítica Esfinge de Tebas, com seu enigma que exigia um esforço de autoconhecimento e de reflexão sobre os passos da humanidade (a criança, o adulto, o idoso), ao Iluminismo, com sua aposta no racionalismo como motor do progresso, o futuro fixou-se como imagem de desafio, promessa e possibilidade. Prevalecendo a razão, decifrado o enigma, o passado seria ultrapassado inapelavelmente, levando consigo um cortejo de perversidades acumuladas, sofrimentos ingentes e vidas desperdiçadas.

Utópicos variados floresceram, idealizando construções que conteriam em si a felicidade e a harmonia futura. Mas tarde, com o predomínio crescente da ciência e da técnica, defensores do progresso técnico e econômico inexorável e futurólogos se multiplicaram, convictos da capacidade que teriam de antecipar o que se teria pela frente. Com os avanços obtidos após a Segunda Guerra Mundial -- o Estado de Bem-Estar, o aumento de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento da ciência aplicada nas áreas decisivas da saúde e do saneamento, os direitos sociais --, anunciou-se uma era de confiança no futuro.

Chegamos assim às últimas décadas do século XX, quando o aparato institucional, sociopolítico e cultural erguido no pós-guerra começou a ser abalado por uma combinação de fatores explosivos: crescimento das demandas dos cidadãos, aumento do custo das operações estatais, crise fiscal, mercado todo-poderoso, rápida evolução tecnológica, problemas de governabilidade, passagem de uma estrutura produtiva assentada na indústria metalomecânica para uma estrutura fundada na “economia da informação”, desemprego estrutural, expansão das redes de comunicação.

Deu-se então uma reversão das expectativas. Foram postas em xeque as promessas da modernização e do progresso. As ciências humanas e a filosofia ingressaram em uma fase dedicada ao mapeamento das modificações sofridas pelo moderno. Pós-modernidade, modernidade líquida, segunda modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade tornaram-se expressões de uso generalizado, sobre uma base consensual de que a realidade se tornara muito mais difícil de ser conhecida. Formou-se assim um paradoxo: quando tudo parecia estar sob controle -- da natureza e do tempo à sociedade, dos corpos às mentes -- eis que uma névoa espessa desaba sobre o mundo, vedando-o ao conhecimento crítico e travando a imaginação sobre o futuro. As utopias cederam lugar às distopias e às “retrotopias”, utopias regressistas, que olham para trás e celebram a nostalgia dos tempos passados.

Leio em Bauman: “O caminho do futuro assemelha-se estranhamente a um percurso de corrupção e degeneração. O caminho reverso, direcionado para o passado, transforma-se assim em um itinerário de purificação dos danos que o futuro produziu toda vez que se fez presente”. As esperanças de melhoramento fogem de um futuro que assusta, buscam refúgio em um passado idealizado em que se confiaria. “Tal reviravolta transforma o futuro, de um habitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em uma casa de pesadelos”. (Bauman, 2017: 16).

Na base dessa inflexão repousa o fato de que, com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida. Incrementou ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. O mundo enveredou por uma etapa que realiza in totum aquilo que em seus primórdios foi utilizado para definir a condição moderna: “estar em movimento”, mudar compulsivamente, agir para confrontar e transformar o mundo, tornando-o diferente.

Aceleração

Como enfatizou Hartmut Rosa, as sociedades tornam-se modernas quando ganham “estabilização dinâmica”, ou seja, quando ficam “sistematicamente dispostas ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (Rosa, 2019: XI). Além de se racionalizarem, ganharem diversificação e se individualizarem, as sociedades modernas são atravessadas pela aceleração de processos, sensações e acontecimentos. Tal vetor torna-se sempre mais um princípio

básico da vida moderna, que comprime o tempo e suspende os momentos de fruição, nos quais deveria ocorrer alguma possibilidade de “desaceleração” e de repouso do guerreiro.

Hartmut Rosa explorou como esse processo ativado pela compulsão produtivista implica perdas existenciais, mal-estares e aflições (estresse, exaustão, burnout, falta de tempo, pressa permanente, depressão). A sensação de que o progresso técnico (a informatização) dilataria o tempo livre e agregaria mais horas de fruição à vida cotidiana é questionada em termos práticos pela constatação de que o tempo se tornou uma variável fora de controle.

Rosa segue uma trilha também frequentada por outros autores. Byung-Chul Han, por exemplo, constata que “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho”. Seus habitantes não são mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos”. Inerente a ela é a produção recorrente de transtornos e paralisias hiperativas. “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, de certo modo seres de “almas consumidas”. Os transtornos que nela se reproduzem expressam “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. Refletem uma “humanidade que está em guerra consigo mesma”, que vive sob o império do cansaço, do esgotamento, do excesso (de estímulos, informações, impulsos), que fragmenta e destrói a atenção. (Han, 2015).

A aceleração produz efeitos nos distintos planos da vida. Afeta o modo como se pensa, se estuda, se ensina e se aprende. O modo como se trabalha e se descansa, o lazer e a fruição cultural, os relacionamentos e os afetos. Põe em xeque os sistemas, o Estado, a família, a escola e as organizações da sociedade civil. Dificulta a compreensão da realidade e a ação sobre ela. Mundializa o mundo, mas provoca separações e desigualdades que freiam a formação de uma comunidade de destino internacional. Suspende, assim, a elaboração de visões sistemáticas do futuro e de projetos de sociedade.

Essa alteração do ritmo existencial combina-se com o fato de que, na modernidade tardia, os indivíduos desejam “dispor do mundo” livremente, tratá-lo como inesgotável, pronto para ser explorado e submetido. Essa tendência está inscrita desde sempre em nossa relação com o mundo, mas alcança nova radicalidade no século XXI, graças às possibilidades técnicas oferecidas pela digitalização e pelas restrições político-econômicas da extensão e da otimização do capitalismo financeiro e da competição desenfreada. Os humanos deparam-se, assim, com um mundo que se lhes aparece como uma sucessão de “pontos de agressão”, objetos que precisam ser conhecidos, conquistados, dominados, utilizados. A “vida”, portanto, torna-se uma luta que jamais pode ser interrompida. Turbinada pelos mecanismos do mercado e pelas ofertas várias do processo sociocultural, a

dinâmica vital termina por gerar frustrações seriais, raiva, medo e insatisfação, assim como comportamentos políticos fundados na violência e na agressão.

Na modernidade tardia, observa Hartmut Rosa, o “mundo da vida” torna-se cada vez mais indisponível, opaco e incerto. “Em consequência, a indisponibilidade retorna à vida concreta, mas modificada e angustiante, como uma espécie de monstro que teria se criado a si mesmo”. (Rosa, 2020). O programa moderno de extensão do acesso ao mundo, que transformou o mundo em um amontoado de “pontos de agressão”, produz assim, de duas formas concomitantes, “o medo do mutismo do mundo e da perda do mundo”. Se "tudo está disponível", o mundo não tem mais nada a nos dizer e “onde ele se tornou indisponível de uma nova maneira, não podemos mais entendê-lo porque ele não é mais alcançável”.

Com a “estabilização dinâmica” das sociedades modernas e os problemas dela derivados, processa-se uma mudança na percepção cultural. Crescer passa a significa mais risco e ameaça, às pessoas, às sociedades, ao Estado, à natureza. Ao futuro. Deixa de ser um valor inquestionável, ainda que não seja abandonado como vetor econômico. Estreitam-se as margens de manobra dos governos e dos sistemas políticos, que deixam de produzir resultados satisfatórios.

Grupos e indivíduos defrontam-se com a realidade estrutural da modernidade atual: “o que sustenta o jogo do crescimento não é a vontade de obter ainda mais, mas o medo de ter cada vez menos”. Grupos e indivíduos sentem-se “estruturalmente constrangidos (a partir de fora) e culturalmente empurrados (a partir de dentro) para fazer do mundo o ponto de agressão”, para converter o mundo em algo a ser conhecido, explorado, consumido, dominado. Não é difícil imaginar a repercussão explosiva e perturbadora desse processo quando ele atinge seu ápice. A sensação de um mundo indisponível invade o plano político, onde é processada de modo discursivo e reforçada pela dinâmica incontrolável da mídia e das redes sociais, “que desencadeiam em pouquíssimo tempo ondas de indignação - ou de entusiasmo -- insuspeitáveis e com consequências gigantescas, ondas cujos fluxos e refluxos são tão imprevisíveis e incontroláveis quanto suas interações”. (Rosa, 2020)

Basta girar o periscópio para constatar que não há lugar na Terra que esteja a exibir coesão, harmonia e satisfação. A fragmentação, o sentimento de impotência, a frustração, a raiva, os estados depressivos espalham-se como fogo pelas mais diferentes sociedades. A “crise” torna-se assim abrangente: põe em xeque o modo de vida moderno, o padrão de desenvolvimento, o modo como se dispõe do mundo, como ele é ocupado, utilizado, explorado. Edgar Morin fala em “megacrise” e em “poli-crises” para acentuar precisamente essa dimensão complexa e universal, em um processo que aproxima e afasta, unifica e separa: “A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, emaranhadas, entre as quais estão a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais, que são, elas mesmas, produtoras da crise da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue chegar à humanidade”. (Morin, 2011).

Faltam lideranças que se disponham a pensar o futuro, praticando uma política inovadora e de civilidade, voltada para a solidariedade e a qualidade de vida, que ficam na dependência de “resistências colaborativas” e “oásis de fraternidade” (Morin) de pequena escala. A política sofre para falar com os cidadãos, deixa-se enredar nos mecanismos do poder e nas manobrar eleitorais. Afasta-se quando deveria se aproximar. “A nossa é uma era de crise permanente dos instrumentos para resolver problemas”, escreveu Bauman. O poder se separou da política, ficando solto e fora de controle. Em decorrência, as instituições ficam mais impotentes e mais submetidas aos técnicos. Os governos querem se agarrar ao terreno nacional, mas são pressionados pelo supranacional. A condição cosmopolita (a interdependência, as interações) não conta com uma consciência cosmopolita que a direcione e regule. O mundo global não conta com uma política global. Sem política, não se completa a formação de uma opinião pública global e de uma consciência de que os problemas são globais. (Bauman, 2017: 262).

Já estamos em processo de metamorfose: uma metamorfose “abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas, está acontecendo de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”. Ela “ocorre em segundos, com uma velocidade verdadeiramente inconcebível; em consequência, está ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas também instituições”. É por isso que ela escapa da conceituação vigente da teoria social e leva as pessoas a terem a impressão de que o mundo está louco. (Beck, 2018, p. 79).

O tempo veloz e a política

Quem governa e exerce poder vale-se da lentidão: precisa dela para respirar, fazer cálculos e decidir. Em boa medida, o governante poderoso pretende prolongar o passado, aquilo que existe. As oposições e os cidadãos têm pressa: desejam para hoje tudo o que tem sido postergado e tudo a que aspiram. Querem antecipar o futuro. A lentidão precisa ser modulada com sabedoria e capacidade de comunicação persuasiva. Se for excessiva, pode fazer com que oportunidades de avanço se percam e apoios sejam desperdiçados, levando a que não se consiga governar os ambientes. A antecipação apressada do futuro, por sua vez, pode ser feita de forma voluntarista, em nome da vontade de mudar, perdendo de vista as determinações fundamentais e as possibilidades concretas de mudança.

Hoje, a velocidade dos fatos aumenta na mesma proporção em que cresce a complexidade social (a diferenciação, a individualização, a fragmentação, o desentendimento) e acelera-se a inovação tecnológica, sobretudo a que afeta a comunicação e a informação, internet à frente. Quanto mais tribos, nichos e redes, maior é o volume de fatos e mais veloz é a sucessão deles. Dadas as interações e as trocas amplificadas, fatos passam a significar também versões e interpretações. Narrativas proliferam.

O resultado é um agregado que se movimenta sozinho, sem que encontre um centro gerador claro e preciso. O bólido gira em alta velocidade, como slides que deslizam rapidamente em um carrossel, sem que os espectadores tenham tempo de assimilá-los. Como decorrência, verdade e mentira se misturam, palpites e opiniões caem sobre a população como uma tempestade de raios, a mídia é onipresente. Forma-se uma névoa densa, que ajuda a rebaixar a qualidade das “narrativas” individuais, coletivas, governamentais ou patrocinadas por organizações. Vozes se espalham em tom de “verdade categórica”, impulsionadas por postagens e boatos espalhados por aplicativos, bots ou empresas especializadas.

Fatos se sucedem com rapidez inusitada, movidos por expectativas inflacionadas, ódios e ressentimentos à flor da pele, notícias e informações multiplicadas, discursos, debates e falas incessantes, uma cacofonia inesgotável. Há movimentos de luta, reivindicação e protesto os mais variados, condizentes com uma época que fez dos direitos humanos e das postulações identitárias um de seus signos mais fortes. Mas os avanços por eles obtidos tardam para socializar seus efeitos. A desigualdade se reproduz e chega a se expandir, misturada com discriminações várias e preconceitos que se repõem. A vida cotidiana, como sempre, mostra-se dura e pouco flexível, sobretudo para os marginalizados, os que se deparam com empregos que escasseiam e salários que declinam. Para os jovens, que sofrem para encontrar seu lugar no mundo.

Tudo incide sobre o espaço em que atuam os políticos, com seus partidos e suas agendas, e no qual se organizam as escolhas dos eleitores e as decisões dos governantes. A política, em si mesma, é revolvida de cima a baixo, com a crise despontando em cada curva do caminho, ora sob a forma do questionamento da representação, ora sob a colocação em xeque da ideia mesma de democracia, ora problematizando a figura dos políticos, ora fomentando versões de populismo. A esquerda enfrenta dificuldades para se renovar e se repor, a extrema-direita ressurge com virulência e agressividade.

No plano do pensamento, o cenário célere e mutante desafia os analistas, obrigando-os a checar mais fontes, a incluir mais ângulos de observação e a atravessar uma muralha de interpretações que complicam a relação “normal” entre essência e aparência. As análises tornam-se mais tentativas, refugiam-se no academicismo típico da hipermodernidade, movido a citações e referências e pouco atento à dimensão pública do

trabalho reflexivo. Exige-se sempre mais a incorporação de formas de pensar próximas da dialética e da teoria da complexidade, capazes de considerar que espaços dispostos em redes costumam gerar modalidades permanentes de “caos estável” (Beck), que se reproduzem e se refazem, até mesmo quando se estabilizam.

Sobredeterminando tudo isso, há a ação da época histórica. O capitalismo globalizado ganhou alento e seguiu seu curso, alheio a controles, crises e regulações. A turbulência econômica passou a ser personagem usual no mundo. O fundamentalismo foi reforçado, ganhando agora a companhia de nacionalistas xenófobos e demagogos, a democracia representativa tornou-se sensível demais às transformações que sacodem a vida cotidiana, a cultura de esquerda não conheceu o necessário revigoramento, o mundo do trabalho se desorganizou, a robótica, a inteligência artificial movida a algoritmos, os celulares e a informatização generalizada redesenharam o modo com os humanos vivem, pensam e fazem coisas.

O cenário não se fixa, parece sempre em movimento, mesmo quando se repõe. O analista que se proponha a interagir com tal cenário deve tentar captar o essencial do slide disposto pelo carrossel enlouquecido, sem perder de vista aquilo que vem em seguida e se projeta no horizonte. Precisa ser rápido sem ser apressado.

A velocidade está intimamente associada ao ritmo das mudanças. Há mudanças rápidas, outras precisam de tempos longos para amadurecer. Há épocas velozes e épocas em que a vida nem parece mudar, sociedades que navegam com as ondas e outras que mal conseguem sair do lugar. Em nossa época, muda-se tanto que a mudança ficou fora de controle. Sabemos que ela já está aí, mas não podemos dosá-la, nem direcioná-la. Mesmo assim, vivemos todos querendo mudar mais e no menor intervalo de tempo, somos praticamente subsumidos pela fascinação do novo, do que virá amanhã.

A velocidade com que o “novo” substituirá o “velho” intriga, até mesmo por não poder ser projetada. Há modulações e determinações a serem consideradas. A repentina subida da temperatura política e social pode tanto desencadear mudanças não previstas quanto bloquear outras já delineadas. Pode também desorganizar de tal forma o quadro existente que a complicação se torna inevitável, fazendo crescer enganos e ilusões. “Explosões” são sempre risco e surpresa: fascinam, geram temor, excitam esperanças, alteram humores, disposições e resistências.

O “novo” – um sistema, uma sociedade, um partido, uma elite política, uma cultura, um comportamento – não brota somente por causa de iniciativas políticas. Atos de vontade são importantes, mas não podem tudo. Não basta existir disposição, empenho e dedicação para que o “velho” seja deslocado. Ele está enraizado em terrenos muitas vezes arados pelo tempo secular, funciona como referência essencial para condutas, hábitos e pensamentos. Somente a ingenuidade política e o desconhecimento dos ritmos da história

podem relativizar “o peso que as gerações mortas têm sobre o cérebro dos vivos”, como escreveu Marx no 18 Brumário. A resistência à mudança, extenso e conhecido capítulo dos estudos sociais, não se apoia exclusivamente em interesses prejudicados, mas obtém a maior parte de sua força precisamente do “velho” que repousa entranhado nas bases da vida coletiva. Recusa-se a mudança por temor a ela, por não se saber direito o que fazer se aquilo que é conhecido deixar de existir, porque não se consegue visualizar o futuro.

Reformas complexas como são as da educação, da saúde e da previdência – os sistemas básicos de proteção social – requerem tempo para serem gestadas com um mínimo de consenso e executadas com sustentabilidade. Os cidadãos, porém, querem respostas imediatas. Os efeitos e os resultados do reformismo não são imediatos, fazem-se sentir ao longo de décadas. Enfrentam bloqueios e oposições, seja porque afetam interesses constituídos, seja porque se deparam com hábitos cristalizados, que não podem ser substituídos de um dia para outro.

Mudanças sistêmicas, que mexem com organizações e instituições, com modos de agir, pensar e sentir, não têm como ocorrer de chofre, abruptamente. Tentativas nesse sentido costumam dar errado. Justamente porque são complexas, tais mudanças vêm a conta-gotas: vencem quando são incrementais e economizam rupturas bruscas. São alterações moleculares, muitas vezes microscópicas e silenciosas, que, com o tempo, tendem a se acumular e a metamorfosear o organismo social como um todo.

O incrementalismo persegue a mudança segura, processual, blindada contra retrocessos. É uma perspectiva que valoriza a negociação e o acúmulo de forças, requerendo, por isso, a presença em cena de sujeitos políticos qualificados, dispostos a fazer “sacrifícios” e a se distanciar dos aplausos fáceis das multidões. Qualificados para resgatar a confiança perdida das pessoas, mobilizando-as para que assimilem as pressões mais disruptivas, reúnam-se e produzam consensos É uma perspectiva que requer maiores doses de inteligência política, sofisticação intelectual, paciência, bem como daquilo que os gregos chamavam de phrónesis, prudência. O incrementalismo só é sábio quando se ajusta ao tempo e à “alma” das sociedades, quando encontra um “organismo” que saiba dominar a arte do governo e se ponha na perspectiva de valorização do Estado democrático e republicano, aprofundando os pactos básicos de convivência e a formação de novos alinhamentos políticos e intelectuais.

Olhar para frente

Mas não há somente destroços e derrotas. Há crises por todos os lados, mas também estão postas as condições de possibilidade de um reformismo de esquerda que dignifique a igualdade e a democracia política. Não estamos retrocedendo.

A ambivalência é parte integrante dos processos atuais. Crises são simultaneamente risco e oportunidade. É o que leva Morin a afirmar que a globalização constitui ao mesmo tempo o pior e o melhor da humanidade. O pior decorre de seu ímpeto destrutivo, de sua adesão a um padrão de desenvolvimento desconectado das economias reais, de sua capacidade de produzir catástrofes em cadeia, que atiram comunidades inteiras no abismo da incerteza e da insegurança, ou seja, a possibilidade de autodestruição da humanidade.

Mas a globalização também abre espaços para o melhor da humanidade. “Pela primeira vez na história humana, as condições para que se ultrapasse uma história feita de guerras, na qual as potências de morte foram reforçadas a ponto de permitir agora um suicídio global da humanidade”. Agora, aumentou a interdependência de cada um e de todos, nações, comunidades, indivíduos, no planeta Terra, “multiplicam-se simbioses e misturas culturais em todas as áreas, as diversidades resistem apesar dos processos de homogeneização que tendem a destruí-las”. Ameaças mortais e problemas fundamentais terminam, assim, por criar uma “comunidade de destino para toda a humanidade”. Em suma, a globalização produziu a “infra-textura de uma sociedade-mundo”, a partir da qual podemos “ver a Terra como pátria sem que isso negue as pátrias existentes, mas, pelo contrário, englobando-as e protegendo-as”. (Morin, 2011).

É evidente que a consciência dos perigos ainda é fraca e dispersa, a consciência de uma comunidade de destino permanece deficiente, a própria globalização, com suas ambivalências, impede a formação da sociedade mundial cujas bases ela cria sem cessar. Há contradições de todo tipo, que opõem, por exemplo, as soberanias nacionais e a necessidade de autoridades supranacionais que consigam lidar com os problemas vitais do planeta. Mas a sorte de algum modo está lançada, os espaços estão se abrindo. Do que se necessita é de uma mudança de via, uma metamorfose.

Quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, observa Morin, ou ele se degrada e se desintegra, ou “revela-se capaz de criar um metassistema que o capacite para lidar com os problemas: ele se metamorfoseia”. Regeneram-se assim suas capacidades criadoras. “A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. Preserva sua radicalidade inovadora, mas a vincula à conservação (da vida, das culturas, dos legados do pensamento e da sabedoria da humanidade). Não há como prever suas modalidades e suas formas: toda mudança de escala leva a um surgimento criativo”. O que sabemos é que, para avançar em direção à metamorfose, é necessário mudar de via. “Mas se parece possível inverter certos caminhos, corrigir certos males, ainda assim não é possível frear a invasão técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre”.

Nada está dado de antemão. Não é simples. É preciso ir além da denúncia e das declarações de intenção. Começar a construir alternativas e formar novas consciências. Reproblematizar, repensar, recomeçar. Conectar o que está disperso e separado. Explorar o que há de “efervescência criativa” pelo mundo. Completar uma metamorfose que já está em curso.

A situação atual está assentada sobre problemas de difícil solução, que são ampliados pela disrupção tecnológica e se projetam no tempo e causam aquela “sensação de desorientação e catástrofe iminente” registrada por Harari (2018). Mas há ferramentas disponíveis, a ciência mostra sua pujança e não é de se descartar que os povos do mundo consigam conter a onda de xenofobia, isolacionismo e desconfiança que hoje varre o sistema internacional. Pelos riscos gravíssimos que produz, a desunião global é uma ameaça que tem como ser compreendida e neutralizada.

Pandemia

É evidente que esse quadro não favorece o reconhecimento do futuro como promessa e possibilidade, nem sequer como desafio ou esperança: ele simplesmente cancela o futuro, apaga-o das conjecturas. O “projeto” passa a ser administrar o presente, torná-lo maleável a ponto de permitir que todos possam continuar a se mover com celeridade para tentar alcançar alguma estabilidade pessoal ou grupal ilusória.

O ano de 2020 acrescentou nova camada à já espessa neblina que distorce a visão do presente e encobre o futuro. Em poucos meses, foi como se os povos do mundo se deparassem com a fragilidade do humano e a insuficiência dos sistemas de proteção social e de cuidados com a saúde.

Parte expressiva disso deveu-se à irrupção catastrófica do coronavírus, que estava nos cálculos mas não era esperada. A humanidade se deparou com um processo de adoecimento e de mortes sequenciais que dramatizou os meandros de seus piores pesadelos, embora estivesse delineado por pesquisadores e estudiosos há tempo. A banalização dos efeitos perversos da vida atual, a dificuldade de aceitar e compreender as transformações estruturais em curso -- o modo do capitalismo se reproduzir na era digital --, ao lado da emergência de “narrativas” anticientíficas impulsionadas por lideranças políticas e intelectuais da nova extrema-direita, fizeram com que uma onda de brutalidade e ignorância se instalasse entre os humanos, comprometendo as respostas coletivas ao Covid-19.

Não foi a primeira pandemia da história recente, como sabemos bem. A gripe espanhola (1920) dizimou em larga escala. Deu-se o mesmo com a AIDS, síndrome que se espalhou a partir de 1985 ativada pelos fluídos do amor e do sangue. Houve as epidemias de Sars (2003) e de Mers (2012), igualmente provocadas por tipos de coronavírus. O surto de ebola foi grave na África.

Em 2020, todos os filmes de horror foram reprisados, as distopias ganharam destaque na imaginação popular, combinadas com doses-extra de incerteza e insegurança, derivadas das circunstâncias em que se passou a viver: o capitalismo digital, a invasão tecnológica, a reestruturação produtiva, a desorganização das classes e grupos sociais, a individualização crescente, as novas formas de emprego, a crise do trabalho, da política, da democracia. Tudo, no fundo, foi sendo articulado de modo a formar um único pacote, que, nos primeiros momentos, não tinha como ser decodificado e traduzido em termos de vida prática. O ano transcorreu na escuridão reflexiva.

As ameaças não se restringem ao vírus, por mais que sua disseminação tenha agravado a situação e exposto as fragilidades globais. A onda autoritária-populista, de base nacionalista, manteve-se em ação, desafiando as democracias instituídas e roubando dos cidadãos parte de um imaginário composto de tolerância, respeito e defesa dos direitos humanos, confiança na ciência, solidariedade e proteção.

A brutalidade gestual, verbal, procedimental, a falta de serenidade e compostura, a grosseria e a arrogância, invadiram os ambientes em geral, indiferentes a classes, grupos, gêneros, religiões e etnias. Os esforços de cooperação internacional e de articulação entre países – como a União Europeia, o Mercosul ou o BRICS – não avançaram, com o Brexit pondo em xeque a principal delas, na Europa. Os partidos democráticos perderam propulsão e muitos cidadãos viraram as costas para a política, numa inflexão “antipolítica” que terminou por convergir com o populismo em expansão. As políticas econômicas (as políticas públicas em geral) entregaram-se a uma ideia de austeridade indiferente à necessidade de reduzir as desigualdades e de prover os serviços de que necessitam as populações. A crise climática completou um quadro de gravidade extraordinária. Incêndios florestais, aquecimento global, águas marítimas em elevação, pessoas desalojadas por enchentes e desastres ecológicos, compõem um cenário de desolação e temor.

A pandemia trouxe mais problemas consigo. Agudizou a crise econômica e, com ela, agravou o desemprego e fez com que mais 130 milhões passassem a viver em extrema pobreza. Se em 2018 a proporção da população mundial vivendo em situação de extrema pobreza (menos de US$ 1,90 por dia) era de 8,6% (cerca de 650 milhões de pessoas), entre 2020 e 2021essa proporção chegará a 8,8%. A projeção foi feita em novembro de 2020 pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujo secretário- geral, Mukhisa Kituyi, observou: “O vírus se beneficiou das interconexões e fragilidades derivadas da globalização, transformando uma crise sanitária em um choque econômico global que atingiu principalmente os mais vulneráveis”. Ele também destacou: “A covid-19 causou dor e alterou o curso da história, mas pode ser um catalisador para uma mudança necessária”, contribuindo para que se reformem as redes globais de produção e se reinicie a cooperação multilateral.

O fato é que a pandemia produziu impactos generalizados na vida prática, na política e no pensamento. O léxico se modificou, passou a dar destaque a termos que antes frequentavam os ambientes especializados: risco, incerteza, insegurança, instabilidade, turbulência, imprevisibilidade. Evidenciou-se que não há como traduzir o mundo real com abordagens fracionadas e hiperespecializadas, que brotam automaticamente das apostas cegas que a hipermodernidade faz no “prometeísmo da ciência, da razão, do racionalismo, da racionalidade, da racionalização”, fazendo com que a inteligência se afaste das determinações fundamentais e dos esforços de totalização complexa. (Carvalho, 2017: 76-77).

Particularmente nas ciências da sociedade, ganhou impulso a teoria da complexidade, seja na versão mais tradicional (a dialética da totalização), seja na versão de Edgar Morin, que trabalha com novos entendimentos da relação tempo/espaço, refuta a linearidade e valoriza a ambiguidade e a ambivalência, abrindo-se para uma compreensão mais abrangente das tensões entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, separação e reunião. Morin também insiste no valor da ciência e na necessidade de que ela se ligue aos saberes vários (mítico-imaginários) fornecidos pelas artes e ao trabalho de cooperação e solidariedade entre os próprios cientistas.

A pandemia não explica tudo, por certo. Mas fornece um excepcional posto de observação para que se compreenda melhor que as dores atuais são múltiplas e estão enraizadas nas estruturas da modernidade, hoje abaladas pela disruptiva revolução tecnológica que impõe uma nova formação social (a sociedade do conhecimento) e implode as diferentes práticas, as ideias, os modelos de organização, o Estado, as empresas, o trabalho, o ensino, a produção de conhecimentos.

A política recebe o impacto de todo esse processo. Mergulha numa crise que afeta os institutos de representação, os partidos e o próprio funcionamento da democracia. Os governos passam a governar menos e com mais dificuldades. A insatisfação social cresce e impulsiona reações variadas, que ajudam a alimentar a contestação e os movimentos de extrema-direita.

Os sinais de alerta têm sido constantes. Eles indicam com clareza que há de se retomar o empenho pela democratização, seja no plano da conduta governamental, seja em termos institucionais mais amplos, seja no plano dos relacionamentos sociais. Mais que isso: será preciso encontrar outro caminho, que consubstancie uma alternativa real ao modo como a humanidade tem vivido a vida. Não há como seguir em frente mediante a clonagem de modelos pré-existentes, o prolongamento de um padrão de desenvolvimento que produz sempre mais subdesenvolvimento, a reverberação de nacionalismos mais patrióticos ou menos, o desprezo pela ciência e pela natureza, a desconsideração de que a experiência humana é una e está radicalmente mundializada. Ou nos projetamos como integrantes de uma comunidade global de destino, ou ficaremos travados, às voltas com problemas que não conseguimos resolver.

Como acentuou Harari, “hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”. Nos últimos anos, acrescenta, “políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”. (Harari, 2020).

A saída não está em “desglobalizar” o mundo ou em fechar fronteiras: em vez de segregação, isolacionismo e medo dos “outros”, a solução passa por mais cooperação.

Vida que flui

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país como o Brasil, em que a distância social já é em si mesmo obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos dispensáveis e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento: hibernação. O vírus proliferou, mesmo assim. Faltaram políticas claras, os sistemas de saúde mostraram deficiências, a população não aceitou as recomendações com facilidade. A surpresa com a agressividade da doença somou-se à surpresa com o aparecimento insidioso de um patógeno invisível que colocou a humanidade de joelhos. A perplexidade foi inevitável: numa era de revolução tecnológica intensiva, de transformações biotecnológicas profundas, como foi possível que os humanos tenham deixado que uma crise em seus ecossistemas se instalasse e ajudasse sobremaneira a facilitar a disseminação de vírus e bactérias que simplesmente não conseguem ser controlados? Como aceitar que o coronavírus avance e mate numa época em que a ciência é fulgurante e os conhecimentos estão disseminados, de braços dados com a “inteligência artificial” e a engenharia genética?

É importante lembrar que houve respostas imediatas. Em pouco tempo, os pesquisadores conseguiram sequenciar o genoma do vírus, criaram testes confiáveis para detectar pessoas infectadas e avançaram na elaboração de vacinas. Os profissionais da saúde se desdobraram para manter ativos os sistemas sanitários. Medicamentos foram testados e aperfeiçoados. Mas o número de mortes e doentes continuou a crescer.

O mundo teve então de se fechar sobre si mesmo: tornar-se menos disponível, ser menos consumido e explorado. A vida digital se sobrepôs à vida presencial e em poucos meses a humanidade ingressou em outra etapa.

Nela, foi preciso descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver. Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia.

Valorizar-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família, das salas de cinema. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o teletrabalho, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

A situação levou a uma espécie de introspecção coletiva, na qual se alojaram os “demônios internos” de cada um, os medos e a preocupação existencial. A perplexidade se instalou de forma plena, arrastando consigo paradigmas explicativos, convicções e certezas. A pandemia exacerbou a desconexão existente entre o pensamento crítico e a realidade fática, entre o pessoal e o global.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. Não foram os chineses, nem o “globalismo”. Não se trata de “culpa”, mas do efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética. Da falta de solidariedade e fraternidade entre povos e pessoas.

Divergências, antagonismos, conflitos e contradições são parte da vida, e são também complementares às tendências de união e associação. Na rota de valorização de ambiguidades e ambivalência, sempre explorada por Morin, há que se “resistir à crueldade de tudo aquilo que é predador”, para com isso defender as “múltiplas solidariedades que são uma característica essencial da vida”. Ganhos consistentes de consciência planetária passam pelo reconhecimento dos paradoxos da mundialização, assim como requerem “o reconhecimento de nossa humanidade comum e o respeito das diferenças”. (Morin, 2019: 21, 40).

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que ainda não perdemos.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

Há impactos evidentes: questionar tudo, mudar a rota, repensar o desenvolvimento, melhorar a formulação de políticas públicas, produzir consensos. Em particular no mundo da ciência, cresce a percepção de que o avanço depende do trabalho múltiplo e articulado de vários setores da sociedade e do Estado. Cooperação, articulação, coordenação. Entre gestores, pesquisadores, formadores de opinião, jornalistas, cidadãos. A comunicação pública torna-se vital. Dentro e fora de cada sociedade nacional: fortalecer as agências multilaterais, em especial as de perfil técnico, como a OMS, que se tornam estratégicas.

Será preciso pensar, também, no processamento das informações e no debate público. Os temas que estão na agenda são controversos, causam medo, desconfiança e reações irracionais. A desinformação agrava a polarização das opiniões, até porque dificulta a compreensão do que é verdade e do que é mentira. Nesse quadro, somente o diálogo permanente entre os agentes da sociedade pode produzir algum resultado. Toda opinião conta, mas será preciso levar na devida conta as evidências científicas.

O mundo impactado pela epidemia reverbera no movimento democrático. Impõe a ele a revisão de convicções e modos de atuação, a redução da ênfase nas identidades singulares e a valorização do que aproxima. Mais unidade na diversidade, mais diálogo e respeito pelas diferenças. Mais substância, menos adjetivações. Digerir derrotas e ressentimentos políticos, partir para a construção de novos patamares de atuação, fazendo o que não foi feito quando a situação era mais favorável. Em uma palavra: buscar a união e a articulação dos democratas, recurso básico para que se possa administrar a situação corrente e planejar minimamente o futuro. O diálogo e a cooperação serão os principais antídotos contra o acirramento das polarizações e da política do pior.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios que devem ser considerados com atenção por ativistas, intelectuais, políticos e governantes. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, defesa dos direitos sociais, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável: tudo isso precisará prevalecer como diretrizes a serem seguidas. A coesão e a pressão dos democratas serão fundamentais para que as coisas caminhem nessa direção.

*Marco Aurélio Nogueira é cientista politico, professor titular da UNESP, tradutor e colaborador do jornal O Estado de São Paulo.

Referências

BAUMAN, Zigmunt. Retrotopia. Tradução de Marco Cupellaro. Bari-Roma: Laterza, 2017.

BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo. Novos conceitos para uma nova realidade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

CARVALHO, Edgard de Assis. Espiral de ideias. Textos de Antropologia fundamental. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam  líderes  à  humanidade. Tradução de Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MORIN, Edgar. La Voie: Pour l'avenir de l'humanité. Paris: Fayard, 2011. [Ed. Bras. A Via: para o futuro da humanidade. 2a ed. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013].

MORIN, Edgar. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Palas Athena, 2019.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Tradução Rafael H. Silveira. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

ROSA, Hartmut. Rendre le monde indisponible. Paris: La Découverte, 2020.


RPD || Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo

Acordo que permitiu a criação da Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) deve consolidar o comércio e as cadeias de valor da Ásia e será maior que a União Europeia e o Acordo Estados Unidos-México-Canadá. Membros somam quase um terço da população mundial e 29% do Produto Interno Bruto (PIB) do planeta

A Parceria Econômica Regional Abrangente (ou Regional Comprehensive Economic Partnership - RCEP, na sigla em inglês), assinada em 15 de novembro, tem sido considerado um marco nas relações econômicas e na geopolítica dos países asiáticos. A impressão inicial é que estas relações serão cada mais determinadas por processos intra-asiáticos, o que ainda não significa, até agora, o completo afastamento das potências externas que atuam na região. Alguns aspectos e consequências deste acordo merecem ser conhecidos para facilitar seu acompanhamento futuro.

Um primeiro aspecto diferenciador do acordo é a liderança do processo, exercida pela Association of South East Asian Nations – ASEAN, composta atualmente por 10 membros com economias de dimensões bastante variadas. Dentre eles, apenas a Indonésia se destaca pelo tamanho de sua economia (maior do que a brasileira), seguida pela Tailândia com um PIB, medido em PPP, cerca de três vezes menor. Porém, o dinamismo econômico da região é notável. Por exemplo, a quinta maior economia da ASEAN, o Vietnã, após a adoção da política de “doi moi” (renovação), com aspectos semelhantes às políticas chinesas, vem crescendo a taxas anuais elevadas, sendo que, de 1990 até 2019, apenas em 1999 a taxa de crescimento anual foi inferior a 5%. São ainda membros da ASEAN, listadas por tamanho de suas economias, Malásia, Filipinas, Singapura, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei.  

"Uma consequência deverá ser a expansão de cadeias regionais de valor. A RCEP surge num momento em que a concentração de grande parte das etapas das cadeias globais em um único país está sendo questionada"
Paulo Ferraciolli

Os seis participantes das negociações não membros da ASEAN - China, Índia, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia – se interessaram em participar do projeto, apesar de que os três primeiros tenham, cada um deles, economias muito maiores do que a de qualquer país do sudeste asiático. Ao final das negociações, a única defecção foi a da Índia que, em 2019, informou que o acordo não seria favorável a seus interesses e não se tornou signatário do RCEP. Duas razões ajudam a explicar a decisão de não participar: a falta de competitividade dos produtos indianos vis-à-vis os chineses e o aumento das tensões geopolíticas com a China. Contudo, esta segunda explicação fica enfraquecida, visto que estas tensões não impediram Narendra Modi de participar, com Xi Jinping, em novembro, da última Cúpula da Organização de Cooperação de Shanghai, na qual China e Índia são membros.  

Para o comércio, o RCEP é importante, ainda que muitos dos países participantes já tenham acordos entre si, pois cada um deles possui regras próprias. O RCEP buscou alterar esta situação, avançando na unificação de regras comerciais dentro do bloco. Por exemplo, as “regras de origem”, essenciais no comércio internacional e que eram diferentes nos acordos já existentes, passaram por um esforço de unificação para que as exportações se beneficiem das vantagens conferidas pelo RCEP a todos os participantes.

O capítulo sobre comércio de serviços apresenta regras mais liberais que as encontradas (quando existem) em outros acordos regionais. Um capítulo trata do “movimento temporário de pessoas naturais” necessárias à prestação de serviços, à venda de bens ou a investimentos, tema sempre espinhoso por sua correlação com políticas migratórias. Dentre muitos outros, merece destaque o capítulo sobre comércio eletrônico (e-commerce), que incentiva seu uso e encoraja aprimorar processos a ele relacionados, incluindo proteção de dados individuais e dos consumidores via e-commerce, além de manter a prática de não usar tarifas em transmissões eletrônicas.

Uma consequência deverá ser a expansão de cadeias regionais de valor. A RCEP surge num momento em que a concentração de grande parte das etapas das cadeias globais em um único país está sendo questionada, e a dicotomia “eficiência x resiliência” ganhou importância no processo decisório sobre a localização de novos investimentos. Um acordo que unificará mercados com bilhões de consumidores, onde há países com mão de obra barata, países tecnologicamente avançados e com a infraestrutura em expansão graças a grandes projetos de investimentos, como os da Belt and Road Initiative chinesa, torna a região bastante atrativa para empresas de todo o mundo.

 Notável é que a RCEP seja o primeiro acordo comercial que inclui os três principais países do leste asiático: o Japão não tinha acordos com a China e com a Coreia do Sul. Apesar das questões geopolíticas, os três consideraram relevante sua participação conjunta no acordo liderado pela ASEAN. Há outra tentativa de acordo trilateral entre os três países cujas negociações foram iniciadas em 2012, mas ainda não estão concluídas, esperando-se sua aceleração a partir da participação dos três na RCEP. Ao final de novembro, os ministros de relações exteriores da China e do Japão tiveram negociações por dois dias seguidos, o que indica tentativa de redução das tensões entre os dois países.  

Finalmente, vale destacar a posição dos EUA, que tentaram ditar as caraterísticas dos acordos comerciais asiáticos com sua liderança no TPP, o Trans Pacific Partnership, o tão citado “mega-acordo do Pacífico”, negociado por 12 países, no qual a China tentou participar, mas foi excluída por decisão de Obama. O TPP chegou a ser assinado por Obama em 2016, mas, antes de ser ratificado, Trump retirou os EUA do acordo em janeiro de 2017, o que reduziu muito de sua importância econômica e estratégica. Os 11 membros restantes aproveitaram parte significativa do que fora negociado num novo acordo, a CPTPP, Comprehensive and Progressive Trans Pacific Partnership, retirando do texto temas que haviam sido incluídos por pressão norte-americana, como cláusulas sobre propriedade intelectual e proteção a investimentos.  

A RCEP, ao que tudo indica, será fator de mudança da economia e da geopolítica da Ásia. Após a assinatura da RCEP, a grande novidade é que Xi Jinping anunciou que a China cogita em pedir adesão à CPTPP. O interessante é que este tema deverá ser tratado pelo Japão, que assumiu a liderança do acordo, após a saída dos EUA, e que tem na China seu principal parceiro comercial, além de ser membro da RCEP, como a China. Certamente, dado o relacionamento entre Japão e EUA, este novo posicionamento da China exigirá profundas reflexões estratégicas de Biden e seus assessores. 

*Engenheiro, mestre em economia e especialista em Relações Internacionais. Professor-convidado da FGV desde 2005. Membro de Conselhos da FIESP, FIRJAN e AEB, e membro do GT Manufaturas do CEBRICS. 


El País: China e outros 14 países da Ásia e Oceania assinam o maior acordo comercial do mundo

Tratado RCEP, que englobará 30% do PIB e da população mundial, representa um impulso econômico e político para Pequim, em detrimento da influência dos EUA na região

Macarena Vidal Liy, El País

Quinze países da Ásia e da Oceania assinaram no domingo (15) um acordo para formar a maior associação comercial do mundo, em uma grande vitória para a China, principal promotora do projeto desde que ele começou a ser negociado, em 2012. A Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês) exclui os Estados Unidos, mas reunirá 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial.

China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, juntamente com os dez países que compõem a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) ―Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei― ao fim da reunião de cúpula desta organização, realizada neste ano por videoconferência devido à pandemia. A Índia, que decidiu abandonar as negociações no ano passado devido ao temor de que produtos chineses baratos inundem seu mercado, terá a possibilidade de se incorporar à RCEP no futuro, se quiser.

Como a reunião foi por videoconferência, a assinatura do acordo seguiu um protocolo próprio, adaptado às circunstâncias da pandemia. Cada país realizou sua própria cerimônia, na qual o respectivo ministro do Comércio firmou o documento sob o olhar de seu chefe de Governo ou de Estado.

“Estou muito satisfeito porque, depois de oito anos de negociações complexas, finalmente concluímos hoje de forma oficial as negociações da RCEP”, afirmou o primeiro-ministro vietnamita, Nguyen Xuan Phuc, cujo país preside atualmente a Asean.

Impulso

O sucesso das negociações e a assinatura do acordo representam um impulso econômico e político para Pequim. Como principal propositor dessa iniciativa, a China consolida sua influência na Ásia, em detrimento dos Estados Unidos. Envia a mensagem de que é Pequim, e não Washington, o Governo que está realmente interessado na região. Ela poderá desempenhar um papel-chave no desenvolvimento das regras comerciais do continente. O pacto abre ainda novos mercados para suas exportações, em um momento de incerteza sobre a evolução da economia global. E reforça as credenciais que o país busca como defensor global do multilateralismo, em meio a uma tendência à desglobalização que foi acelerada pela pandemia de covid-19.

O pacto é uma alternativa ao TPP, o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica. A administração do ex-presidente americano Barack Obama via o ambicioso acordo entre países dois lados do Pacífico, do qual a China estava ausente, como um pilar econômico para sustentar a influência dos Estados Unidos na Ásia. Quando chegou à Casa Branca, o presidente Donald Trump ordenou a retirada americana do pacto, que outros 11 países ratificaram.

A saída americana foi um golpe quase fatal para o TPP e reforçou os argumentos de quem afirmava que a maior potência mundial não tem interesse em se envolver realmente na região. A decisão de Trump reavivou as negociações para a RCEP, que se arrastavam havia anos. O interesse dos Governos regionais de encontrar formas de estimular suas economias, afetadas primeiro pela guerra comercial e tecnológica entre EUA e China e depois pela pandemia, fez o resto.

Para o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, “nas atuais circunstâncias mundiais, [o acordo] traz um raio de luz e de esperança em meio às nuvens escuras” deixadas neste ano pela pandemia e pelas tendências desglobalizantes. A RCEP, acrescentou, “mostra claramente que o multilateralismo é o caminho correto e representa a direção adequada para a economia mundial e o progresso da humanidade”.

“Acreditamos que a RCEP, como o maior acordo de livre comércio do mundo, é um importante passo rumo a um marco ideal de comércio global e regras para o investimento”, assinalaram os países signatários em um comunicado. É um grupo muito diverso, que inclui algumas das economias mais avançadas do mundo, como o Japão; a “socialista com características chinesas” em Pequim; e algumas das mais pobres do planeta, como Laos e Camboja.

Diferenças

A RCEP e o TPP são muito diferentes. Enquanto o TPP se concentrava na redução de barreiras não tarifárias (proteção do meio ambiente, padrões para investimento estrangeiro), a RCEP dá ênfase principalmente às tarifas, sem a preocupação com proteções dos direitos trabalhistas, oferecidas pela tratado promovido originalmente pelos EUA.

A aliança elimina tarifas sobre mais de 90% dos bens trocados entre os membros. O acordo também inclui proteções sobre propriedade intelectual e capítulos sobre investimentos e comércio de bens e serviços. Além disso, estipula mecanismos para a resolução de disputas entre os países.

No total, a RCEP reduz tarifas e estabelece regras em cerca de 20 áreas. Entre outros, elimina impostos sobre 61% das importações de produtos agrícolas e pesqueiros da Asean, Austrália e Nova Zelândia, juntamente com 56% da China e 49% da Coreia do Sul.

Com a assinatura do acordo, aumenta a pressão sobre o presidente eleito dos EUA. Joe Biden, para demonstrar o compromisso de seu futuro Governo com a região que acumula o maior potencial de crescimento nos próximos anos. Biden afirmou no ano passado que tentará renegociar o TPP para que os Estados Unidos se reincorporem ao pacto, o que não parece ser uma tarefa fácil.

As próprias negociações iniciais para levar adiante o pacto promovido pelos EUA já se mostraram muito espinhosas, e é possível que economias como a japonesa exijam condições mais rígidas. O próximo inquilino da Casa Branca também terá de lidar com um Congresso muito mais reticente em relação a grandes acordos comerciais. À medida que a campanha eleitoral foi avançando, Biden foi se mostrando menos enfático sobre suas aspirações de retomar o TPP, e já declarou que prefere se concentrar primeiro na recuperação econômica e na luta contra a pandemia.


Hélio Schwartsman: Por uma pitada de cosmopolitismo

Esquerdas se ocuparam da pauta identitária e esqueceram o discurso universalista

Uma explicação recorrente para o populismo de direita no mundo rico é a globalização e a desigualdade. A transferência de postos de trabalho dos países desenvolvidos para os emergentes fez com que a classe trabalhadora do primeiro grupo de nações não se beneficiasse tanto dos ganhos econômicos das últimas décadas. Sentindo-se abandonado, esse contingente populacional, que antes se identificava com partidos mais à esquerda, passou a flertar com coisas como o brexit e Donald Trump, dando-lhes eventuais vitórias.

Não discordo dessa explicação, mas reluto em comprar seu corolário, isto é, a ideia de que a globalização é um processo concentrador, disruptivo e que deve ser combatida.

O deslocamento de postos de trabalho para emergentes, em particular para China e Índia, é responsável por tirar milhões de pessoas da miséria. O abismo entre países ricos e pobres, embora ainda profundo, se reduziu. Até a pandemia, em nenhum outro período da história a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza havia sido tão pequena.

A pergunta que se coloca é se devemos adotar a visão mais paroquialista, na qual a globalização é o vilão, ou a mais cosmopolita, na qual ela é um passo para a redução das desigualdades.

Não escondo minha simpatia pelo cosmopolitismo, mesmo sabendo que nossos cérebros estão mais calibrados para o localismo. Vou um pouco mais longe e arrisco dizer que o grande erro das esquerdas nos últimos anos foi ter sucumbido tanto às pautas identitárias, esquecendo o discurso universalista.

Não que isso alteraria os resultados econômicos, mas poderia afetar a psicologia. Trabalhadores brancos sem diploma superior que dão duro para viver provavelmente não se sentiriam tão abandonados se os partidos em que sempre cofiaram viessem com um discurso que defendesse os direitos de todos, em vez de dizer que eles são privilegiados por não serem mulheres nem negros.


Paulo Hartung: Visões, possibilidades e tendências do pós-pandemia

Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez

O amanhã sempre ocupa a mente humana, ainda mais em tempos de crises angustiantes e desestabilizadoras. Nesse sentido, mesmo que ainda envolvidos numa longa travessia dramática, o cenário atual da pandemia pauta cada vez mais os nossos olhares e pensamentos para o que virá.

O nevoeiro das dúvidas ainda é denso, mas pelo que já se vivia antes da covid-19, e também em função dos comportamentos que estamos experimentando ou incrementando neste momento absolutamente desafiante, já se pode vislumbrar um quadro de possibilidades e tendências para o pós-crise.

A pandemia acabou por evidenciar nossas mazelas e fragilidades socioeconômicas, adicionando ainda mais dor e desamparo a este tempo horrendo. Assim, mais que uma tendência, as reformas estruturantes colocam-se como um dever de casa cívico e institucional do qual não podemos abrir mão se quisermos constituir um Brasil verdadeiramente civilizado.

O Estado precisa se digitalizar, modernizar seu arcabouço legal e se libertar do sequestro secular operado por grupos de interesse instalados dentro e ao redor das máquinas governativas. É urgente melhorar o sistema tributário, atualmente um obstáculo ao crescimento do País.

A educação básica demanda um esforço prioritário de qualificação do processo de ensino-aprendizagem, fundamental para promover a autonomia cidadã e tornar viável a inclusão produtiva. Ciência e tecnologia devem ser vistas como uma fronteira para avançarmos rumo um desenvolvimento amplo e consistente.

A corrosão da globalização, patrocinada por populistas de diferentes estaturas, ganhou novos fatos e argumentos. Para uns, a crise expôs a vulnerabilidade do modelo, principalmente a interdependência das cadeias produtivas e a divisão internacional do trabalho segmentado. O fechamento de fronteiras e a “guerra” entre países por insumos e equipamentos para enfrentar a pandemia adicionaram calor às discussões.

Mas fatos da geopolítica abalam qualquer certeza sobre o enfraquecimento da globalização. O acordo de recuperação econômica da União Europeia reforça parâmetros de integração, assim como as parcerias globais que se firmam para a vacina contra o novo coronavírus.

E temos ainda a disputa eleitoral nos Estados Unidos, que contrapõe projetos antagônicos quanto a temas cruciais – clima, sustentabilidade, acordos comerciais etc. –, estando na dianteira Joe Biden, defensor de soluções articuladas planetariamente. Ou seja, sobre a globalização, a tendência é o acirramento dos debates acerca de seus fundamentos e alcance.

O eco planetário de acontecimentos locais, regionais e nacionais ganhou vigor extraordinário e a pandemia amplifica a agenda do respeito às diferenças e da busca da igualdade social.

A digitalização da vida expandiu-se de modo inédito, colocando-se como alternativa de conexões as mais diversas. Tornou-se importante para questões que vão do universo das afetividades, passando por soluções comerciais, até a viabilização do trabalho remoto nos mais variados segmentos. A digitalidade cria efeito em cadeia em outros segmentos, como o mercado imobiliário, afetando desde o desenho dos centros urbanos, passando por questões de mobilidade, até o design das residências, que estão virando o local de trabalho.

Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez. O interesse por processos sustentáveis, que põe os olhos do mundo sobre a tragédia amazônica, por exemplo, deve firmar parceria com outros fatores de vida saudável, como cuidados com a saúde física e emocional e preocupações com questões sanitárias, especialmente a conexão entre zoonoses e segurança alimentar.

As múltiplas carências do País, que já havia entrado na pandemia com fragilidades, ensejaram a dinamização da sociedade civil, fenômeno que se deve consolidar. Um exemplo é o movimento de líderes empresariais, investidores e grupos econômicos junto ao governo em defesa da Amazônia.

A humanidade ocupa-se de pensar o amanhã não por mero exercício de futurologia, mas porque, como observa Santo Agostinho, o futuro – “a esperança presente das coisas futuras” – é uma das marcas cruciais do presente, a única dimensão temporal que verdadeiramente usufruímos para existir.

Além das expectativas do hoje, inspiram o olhar em perspectiva “a lembrança presente das coisas passadas e a visão presente das coisas presentes”. É assim, pois, que seguimos, com a colheita de impressões fortes do que se passou e se passa, a pensar os dias que virão. Afinal, o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas o que estamos construindo hoje, em memórias, sonhos, desejos, palavras, projetos e ações.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Marcos Sawaya Jank: O mundo global e a covid-19

A globalização será fortemente impactada pelos dois tsunamis da pandemia

A charge mais dura e realista da crise que vivemos são as duas ondas que nos vão atingir em cheio. A primeira é uma onda de menor tamanho, que recebe todas as atenções neste momento: a pandemia do coronavírus. A segunda, ainda desconhecida e muito mais avassaladora, é a recessão mundial que vem atrás da covid-19. Dois tsunamis sucessivos, porém de diferentes natureza e impacto.

O dilema é que quanto melhor forem a contenção e o isolamento das pessoas, maior será a vitória contra a primeira onda e mais desastroso será o impacto da segunda. Como diz o ditado, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Neste caso, se corrermos para fora de casa o bicho da covid pega todo mundo, se ficarmos confinados em casa o bicho da recessão nos come mais à frente.

A tragédia é que, enquanto a covid-19 ataca os mais velhos, a recessão atingirá principalmente os mais pobres, o mercado informal e as pequenas empresas, que têm pouco acesso a crédito e capital de giro, afetando milhões de empregos.

A crise atual origina-se na área sanitária, que determinou o isolamento social, e avança na área econômica, com a paralisação da oferta de bens e serviços. Esta crise exige, portanto, políticas públicas que consigam administrar o difícil trade-off entre riscos sanitários e riscos socioeconômicos, com suas respectivas medidas e seus ajustes.

No cenário otimista teremos um impacto momentâneo, com a doença causando poucas mortes e uma recessão moderada e administrável, compensada pelo inevitável surto de crescimento quando a vida se normalizar.

No cenário pessimista, a pandemia demora muito para ser solucionada e a recessão resultante deixa pesadas sequelas em termos de desemprego, quebra de empresas, desorganização de cadeias produtivas, desespero e mesmo violência.

As fronteiras do mundo haviam desaparecido com a facilidade de se conectar, viajar, conversar e trabalhar online. Pessoas se integraram por meio de aviões, internet, redes sociais e empresas e produtos que se tornaram globais. Mas esta crise está revelando aspectos até aqui inimagináveis, como a incapacidade dos países de prever e lidar com crises sanitárias. Com tanta riqueza acumulada, a humanidade da era digital foi abalroada pela falta de testes, máscaras, respiradores.

Isso sem contar a hoje visível fragilidade das cadeias de suprimento e a inoperância de organizações multilaterais como ONU e G-20 para atuarem de forma coordenada e contundente num momento em que elas são mais necessárias.

O fato é que a crise do coronavírus traz o Estado-nação e as fronteiras nacionais de volta à cena e vai aumentar as pressões por controles de fronteira, favorecimento de produtores e produtos locais e maior protecionismo.

O mundo global pode sangrar se o nacionalismo pós-coronavírus levar à deterioração das relações EUA-China, ao colapso da arquitetura integrada da União Europeia e à redução do comércio e dos investimentos globais. Isolamento e quarentenas, xenofobia, movimentos antiglobalistas e antimigração podem produzir uma aversão a produtos importados, atingindo em cheio a crescente presença e a competitividade do agronegócio brasileiro.

Um dos elos mais sensíveis no ambiente altamente tumultuado desta pandemia é o abastecimento de alimentos e bebidas. Pelo menos aqui, no Brasil, não vai faltar comida, já que produzimos muito mais do que consumimos. Mas dois problemas podem impactar o esforço de produção: a distribuição de produtos e a recessão global.

No médio e no longo prazos, temos de entender melhor qual será o impacto de uma recessão global nas nossas exportações de commodities. Conceitualmente, o agronegócio deveria ser um dos setores menos afetados, pois as pessoas não vão deixar de comer e o mundo depende do Brasil para sua segurança alimentar em diversas commodities. Mas uma recessão longa e penosa pode criar alta volatilidade e derrubar preços e margens, se for igual à Grande Depressão de 1929.

No curto prazo, as medidas de contenção têm criado travas importantes no fluxo físico das cadeias de suprimento de produtos agropecuários e alimentos, que são longas e complexas, principalmente na área de produtos perecíveis, como frutas, verduras, carnes e lácteos, e de atividades que dependem de mão de obra intensiva e aglomerada. Isso sem contar o impacto das restrições impostas sobre importantes canais de distribuição, como bares, restaurantes, hotéis e serviços de alimentação. Tenho ouvido relatos de arbitrariedades absurdas, falta de serviços de apoio, atrasos e quebra de contratos nas cadeias do agro.

Em toda a minha vida, nunca vi um momento tão crítico como este, que exige estratégia sólida e coordenação firme de autoridades em diferentes níveis do governo e imenso esforço coletivo e cooperativo de empresas e pessoas. Os países que melhor lidaram até aqui com a mitigação da doença e da recessão foram os que implementaram estratégias firmes e focadas para lidar com problemas concretos (isolamento de doentes, por exemplo), junto com campanhas de ampla informação e conscientização da sociedade.

PROFESSOR DE AGRONEGÓCIO GLOBAL DO INSPER E TITULAR DA CÁTEDRA LUIZ DE QUEIROZ DA ESALQ-USP.


Jorge Arbache: A globalização chegou ao fim?

Entre as ameaças estão as tensões sociais causadas por impactos das tecnologias e ataques cibernéticos

Há um crescente sentimento mundo afora de que a globalização teria chegado ao fim e que uma nova ordem estaria emergindo. Para suportar esta narrativa, os céticos miram em manifestações como a desaceleração dos fluxos de comércio, de finanças e de investimentos, na ascensão do nacionalismo e das políticas protecionistas, na guerra comercial, na contestação a iniciativas multilaterais, no crescente controle de investimentos estrangeiros e nas políticas anti-imigração. E a isto agregam sentimentos negativos da população, que creditaria o aumento do desemprego e da desigualdade à globalização.

Mas será mesmo que a globalização estaria em retirada? Se medirmos integração e interdependência econômica entre países - que são as principais características definidoras da globalização - por fluxos comerciais de bens e serviços e por fluxos financeiros e de investimentos, como normalmente é feito, então haveria sinais de uma possível pausa. Porém, se usarmos métricas mais alinhadas com a dinâmica econômica do século XXI, então haveria sinais de que a globalização estaria acelerando e não recuando.

E que métricas são essas? Trata-se de indicadores de integração e de interdependência econômica entre países que vão muito além do comércio e dos fluxos financeiros. Considere o que passa no campo dos padrões técnicos e regulatórios. As últimas décadas presenciaram uma verdadeira globalização de padrões, protocolos, certificações, processos e normas de controle e monitoramento em áreas relativamente simples, como a de transportes por contêineres, e em áreas mais complexas, como a de produção de bens e serviços, comunicações e temas fitossanitários, de segurança e de qualidade, dentre tantas outras áreas.

Essa padronização reduz os tempos, aumenta a previsibilidade, permite a identificação de riscos e seus mitigantes, pavimenta cadeias de valor e, assim, encurta caminhos, estimula investimentos e fluxos de fatores e viabiliza a integração da produção e dos mercados. As perspectivas para o futuro são de ampliação do escopo e da intensidade dessa padronização.

Considere, ainda, o que passa com as plataformas e redes de serviços digitais e comércio eletrônico e com as plataformas e sistemas operacionais de telefonia celular e de computadores. Testemunhamos uma sem precedentes massificação do acesso a serviços digitais que está conectando a tudo e a todos. Essa conexão é possível por meio de sistemas operacionais e protocolos padronizados da internet que permitem que bilhões de usuários se comuniquem a custo quase zero, acessem simultaneamente conteúdos digitais e façam negócios desde praticamente qualquer lugar do mundo.

Expansão da conectividade, queda dos custos de computação e de sensores e nível relativamente baixo de regulamentação nos mercados digitais estão acelerando a adoção e o uso de tecnologias digitais, permitindo o surgimento de toda uma nova geração de modelos de negócios e fomentando a integração econômica. A tendência é de que essa comoditização digital siga aumentando.

Mas há, ainda, outras evidências que apontam o avanço da globalização. Pense nos mercados financeiros e de capitais, que estão cada vez mais unidos por produtos e serviços, o que é viabilizado pela padronização de rotinas, processos e normas contábeis e regulatórias, pelas políticas de gestão financeira e de riscos e pelos sistemas de pagamentos. Tudo isto está promovendo integração econômica e crescente interdependência das economias.

Pense, também, na sem precedentes consolidação dos mercados de bens e serviços, em que cada vez menos tomadores de decisão exercem cada vez mais influência sobre os mercados e sobre os investimentos em nível mundial, o que integra modelos de negócios e mercados. As evidências sugerem que a consolidação de mercados seguirá crescendo nos próximos anos.

Por fim, a despeito das recentes indicações de políticos por preferências por relações econômicas bilaterais entre países, vários acordos comerciais plurilaterais foram aprovados ou estão em negociação promovendo harmonização técnica e regulatória e padrões de referência em áreas tão variadas como serviços, compras governamentais, economia digital, investimentos, propriedade intelectual, condições de trabalho, padrões fitossanitários, governança de empresas estatais e meio ambiente. Essa harmonização também está contribuindo para aproximar e integrar mercados.

Com a computação quântica, a tecnologia 5G e a internet das coisas, as oportunidades de colaboração e compartilhamento serão ainda maiores e as atividades econômicas se tornarão ainda mais fluidas. De fato, estamos numa era em que o intangível ganhou protagonismo na formação do valor, as cadeias globais de valor estão se regionalizando e muitas formas de integração econômica não são captadas pelas contas nacionais e tampouco pelos livros dos reguladores.

Portanto, podem ser precipitadas as conclusões de que a globalização estaria chegando ao fim, posto que os céticos normalmente não levam em conta dimensões mais sofisticadas da integração dos mercados e da interdependência das economias. Ao que parece, a globalização estaria se transformando e não recuando.

Dentre os temas que mais poderão ameaçar a globalização estão as tensões sociais associadas aos impactos das novas tecnologias, ataques cibernéticos que interfiram na integridade e na segurança dos dados e sistemas e bloqueios deliberados ao uso de plataformas, sistemas operacionais, sistemas de pagamentos e protocolos digitais, criando muros e apartando pessoas, negócios e até países.

*Jorge Arbache é vice-presidente de Setor Privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF)


El País: EUA e China acertam trégua de 90 dias em guerra comercial e ganham tempo para novo pacto

Trump e Xi Jinping chegaram ao acordo, que entra em vigor a partir de 1 de janeiro, numa reunião de duas horas e meia após encerramento do G20 em Buenos Aires

Um compromisso que não termina com a disputa, mas que faz ganhar tempo. China e Estados Unidos chegaram neste sábado a um acordo para não impor novas tarifas comerciais a partir de 1.o de janeiro. O presidente do gigante asiático, Xi Jinping, e o da potência norte-americana, Donald Trump, comprometeram-se a continuar as negociações para buscar uma solução à guerra comercial entre os dois maiores blocos econômicos mundiais, segundo informaram os veículos estatais chineses e a Casa Branca. Mas o compromisso é estritamente temporário – uma trégua de 90 dias – e não inclui nenhuma medida mais relevante.

O pacto foi alcançado numa reunião de duas horas e meia que os dois mandatários realizaram em Buenos Aires, após o encerramento da cúpula do G20, e que se transformou na única notícia de peso da última jornada do encontro: na declaração final da reunião de chefes de Estado e Governo das 20 maiores economias do planeta, os líderes haviam reconhecido os “problemas do comércio” mundial e se abstiveram – por vontade dos EUA – de condenar o protecionismo, um dos sinais de identidade da Administração Trump. O texto reconhecia também que o comércio multilateral havia “falhado em seus objetivos” e destacava a necessidade de reformar a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Washington deu um passo além em seu ataque contra a China: informou que a reunião entre Trump e o presidente argentino, Mauricio Macri, tinha se concentrado na “atividade econômica predatória chinesa”. Havia sido num breve comunicado assinado pela porta-voz de Trump, Sarah Sanders. Mas a palavra “predatória” (“predatory Chinese economic activity”, no texto completo em inglês) caiu como uma bomba no país anfitrião, que esperava que Buenos Aires fosse o lugar escolhido para que ambos os países firmassem o “cachimbo da paz” ou que pelo menos afastassem suas diferenças. No final, acabou sendo assim graças à reunião de última hora.

Xi e Trump, no encontro bilateral.

Tarifas de 10%
Em declarações aos jornais na capital argentina, o vice-ministro chinês de Comércio, Wang Shouwen, explicou que as tarifas existentes continuarão em 10% e que não serão impostas tarifas a produtos novos. Ambas as partes seguirão as negociações para encontrar uma solução que permita retirar essas alíquotas. Se até lá não conseguirem chegar a um consenso, as tarifas subirão para até 25% – o valor que se esperava que entrasse em vigor a partir de 1º de janeiro.

Em nota, a Casa Branca confirmou o acordo de trégua. Segundo Washington, Pequim comprará “uma quantidade ainda não decidida, mas muito substancial, de produtos agrícolas, energéticos, industriais e outros dos Estados Unidos para reduzir o desequilíbrio comercial entre nossos dois países”. No caso dos produtos agrícolas – um dos objetivos buscados pela potência norte-americana –, as compras começarão de imediato. Trump e Xi, de acordo com a Casa Branca, “acordaram começar imediatamente negociações sobre mudanças estruturais com respeito à transferência forçosa de tecnologia, proteção da propriedade intelectual, barreiras não alfandegárias, pirataria e intrusões informáticas, serviços e agricultura”.

O objetivo é que essas negociações tenham conseguido fechar um acordo para dentro de 90 dias. “Se no final desse período as partes forem incapazes de chegar a um pacto, as tarifas que se encontram a 10% subirão para 25%”, confirma o comunicado dos EUA. Antes da reunião com Xi em Buenos Aires, Trump ameaçava elevar a 25% em 1º de janeiro as tarifas de 10% que os EUA agora impõem sobre 200 bilhões de dólares de produtos chineses. Esse passo preocupava não só a China, mas também o mundo todo: teria sido um passo de gigante, de consequências incalculáveis na escalada entre as duas maiores potências do globo. Os mercados financeiros devem respirar um pouco mais tranquilos na próxima segunda-feira.

Incluído nas conversações entre Xi e Trump, revelou a Casa Branca, há um pacto pelo qual a China, “num maravilhoso gesto humanitário”, designará o fentanil como uma substância controlada e castigará “com a maior pena de acordo com a lei” quem vender essa substância aos EUA. O fentanil é um analgésico entre 50 e 100 vezes mais potente que a morfina, cujo uso foi vinculado ao aumento de mortes por overdoses de opiáceos nos EUA. A substância entra nesse país sobretudo pelo tráfico de grupos mafiosos na China e no México.

O ministro chinês de Relações Exteriores, Wang Yi, confirmou em entrevista coletiva que Pequim acordou comprar mais bens norte-americanos para tentar reduzir o desequilíbrio na balança comercial. O ministro descreveu a conversa entre Xi e Trump como “amistosa e sincera”. Ambos, segundo Wang, concordaram que a China e os EUA “podem e devem” garantir o sucesso de suas relações.


Luiz Werneck Vianna: Bye bye, Brasil?

Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve

Bye bye, Brasil, querem nos embarcar para uma terra nova – por ora, está difícil de evitar – sem reinações de Narizinho, sem Jubiabá, sem um catolicismo gordo e compassivo, sem o culto da cordialidade, sem o jagunço do Euclides da Cunha e os retirantes de Graciliano, o abolicionismo do Nabuco, sem Gilberto Freyre, sem a Coluna Prestes, até sem a Petrobrás e o Banco do Brasil, sair assim, com as mãos abanando e as cabeças vazias. O embarque deve ser imediato, para que nós, que mal conhecemos o liberalismo, num país onde jamais o capitalismo foi uma ideia popular, passemos direto ao neoliberalismo e ao culto da teologia da prosperidade, glória a Deus.

Cirurgia de tal envergadura não é obra solitária, ela foi concebida durante décadas com argumentos vindos de vários setores da vida social, inclusive do PT, que desde suas origens investiu contra a tradição republicana brasileira e o centro político que a encarnava, tal como no episódio famoso, ocorrido em pleno regime militar, em que sua principal liderança declarou que o principal inimigo das classes trabalhadoras era a CLT, e não o AI-5, vindo a sustentar um sindicalismo de resultados em oposição às antigas lideranças sindicais, em boa parte tradicionalmente associadas ao centro político. Em outro momento, com Lula candidato em segundo turno à sucessão presidencial vencida por Collor, seu partido recusou a participação em seu palanque de Ulysses Guimarães, um dos grandes próceres do nosso liberalismo político, como antes declinara assinar a Carta de 88, obra, no fundamental, do centro político, sob a inspiração desse mesmo Ulysses, que a apresentou ao mundo com palavras memoráveis.

A desconstrução do centro político contou com a ação de outros personagens, como setores das elites originárias da dimensão do mercado, desde sempre, tal como no caso da sua acirrada oposição, nos anos 1930, à legislação social, refratária à regulação pelo direito da vida social e ao embrião de social-democracia admitido pela Carta de 88. E mais recentemente, pela ação do Ministério Público, que interpretou em chave salvacionista a luta justa e necessária contra a corrupção sem atentar para as suas consequências e sem discriminar alhos de bugalhos, comportando-se como um macaco solto numa loja de louças, com o que levou à lona a sua representação política.

Estamos em pleno mar, navegando com mapas incertos e pilotagem inexperiente, ela própria sem saber para onde nos quer levar. Os quadros econômicos selecionados pelo governante eleito, os principais formados na ortodoxia da Escola de Chicago, com seus compromissos conceituais e práticos com os processos de globalização, inarredáveis na medida em que correspondem a movimentos seculares das coisas pertinentes à economia mundo, ao menos desde as grandes navegações empreendidas pelo Ocidente – nossa Ibéria à frente –, em suas cabines de comando já se encontram contestados pelo trumpismo do futuro chanceler Ernesto Araújo. A bússola deve estar apontada para qual destino: o da globalização ou o da denúncia do globalismo?

Ruma-se para qual direção, a da autarquia e a do nacionalismo (isso com a turma do Paulo Guedes?), que, na linguagem de Trump, significa America first, atrelando nossa pobre carroça aos objetivos imperiais do presidente americano, que se deixou embair pela anacrônica guerra de civilizações ideada por Samuel Huntington?

Logo nós, que não viemos da matriz anglo-saxônica, mas da ibérica, e somos da família dos bandeirantes, e não da dos pioneiros, para lembrar as antigas lições de Viana Moog; nós, que seguimos a estrada universal em direito do sistema da civil law, esta, sim, entranhada na História do Ocidente, ao contrário do sistema da common law, que Hegel, por exemplo, não reconhecia como filho da razão, e sim do casuísmo de uma cultura singular, sem protagonismo, portanto, na marcha do espírito com que a criatura buscava seu encontro com seu Criador. O Ocidente é uma criação europeia e é aí que nós, os americanos, como reconheceram os fundadores da grande República do Norte, cultores dos autores do Iluminismo nos Federalist Papers, estamos instalados, não se podendo omitir, no caso brasileiro, a criação do seu Estado pelo herdeiro de uma dinastia europeia.

A metafísica rústica dos ideólogos do trumpismo, como o célebre personagem de Voltaire, ignora a sociologia do risco, tão bem estudada pelo sociólogo Ulrich Beck, na crença ingênua de que tudo no mundo se encaminha no sentido da sua melhor solução. Nosso planeta não conheceria uma crise ambiental, em que pesem os alarmes emitidos pela comunidade dos cientistas, inclusive da Nasa, uma agência americana de indiscutida legitimidade científica, acerca dos dados que se acumulam sobre os perigos do aquecimento global. A crer no que enuncia uma parte dos nossos futuros governantes, o desmatamento da Amazônia em nome de uma política expansiva das fronteiras do nosso capitalismo para o agronegócio e a mineração não importaria em riscos e sua denúncia não passaria de fabulações de intelectuais desavisados.

Não se deve chorar o leite derramado. O lado vencedor na sucessão presidencial foi esse que aí está. A oposição a ele não tem por que se precipitar. O mundo gira e a Lusitana roda. Por quanto tempo ainda haverá Donald Trump? E os militares, mais uma vez no proscênio, terão perdido a memória de suas grandes personalidades do passado, dos que lutaram em torno da bandeira do petróleo é nosso, do marechal Rondon, dos pracinhas que em campos de guerra na Itália enfrentaram com bravura o fascismo, das virtudes sem mácula do marechal Lott? E os seres subalternos, até quando suportarão o capitalismo sans phrase, em bruto e sem amortecedores, que ameaça vir por aí?

Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve.


Política Democrática: Globalização promoveu aumento da riqueza, afirma Vinícius Müller

Doutor em História Econômica e professor do Insper observa que fenômeno também provocou separações sociais

Por Cleomar Almeida

O doutor em História Econômica e professor de Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) Vinícius Müller diz que a globalização é um “fenômeno mais complexo que promoveu aumento da riqueza na mesma medida em que desarticulou antigas estruturas produtivas e sociais”. “A globalização não era, como pensávamos há mais de vinte anos, um novo imperialismo encabeçado pelos norte-americanos”, afirma ele, em artigo publicado na edição de novembro da revista Política Democrática online, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS).

De acordo com Vinícius Müller, as novas separações sociais produzidas pela globalização na sociedade norte-americana não são exclusivamente econômicas. “Elas estão relacionadas ao questionamento que parte da sociedade faz em relação aos valores que construíram aquela nação. De um lado políticas identitárias, de outro, xenofobia. Entre eles um hiato. É neste espaço que mora o diabo”, ironiza ele.

» Acesse aqui a edição de novembro da revista Política Democrática online

No fim do século passado, de acordo com o doutor em História Econômica, quando a combinação entre o fenômeno da globalização e a retomada dos valores liberais se arvorava como o modelo único, duas posições antagônicas se estabeleceram, conforme ele escreve. “Uma delas dizia que a abertura dos mercados nacionais, a maior velocidade nas trocas de mercadorias e moedas, assim como a formação de cadeias produtivas globais, garantiriam a ampliação da riqueza e melhoria significativa no padrão de vida de pessoas espalhadas pelo globo”, afirma, para continuar: “Outra, contrária, apostava na hipótese de que a globalização em sua vertente neoliberal nada mais era do que retomada do imperialismo do século XIX, agora liderado pelo EUA. Os resultados, depois de 30 anos, não cabem em slogans tão simples assim”.

No plano geral, conforme destaca o professor do Insper, a produção e a circulação de riquezas aumentaram. “Grupos populacionais imensos foram beneficiados pela ampliação do mercado, descentralização produtiva e aumento da produtividade e da riqueza”, acentua ele, e um trecho do artigo. “A urbanização de contingentes populacionais maiúsculos na China e na Índia, a transferência de partes significativas da produção industrial para países como o Vietnã e o aumento da qualidade de vida em países do leste europeu são visíveis. Em uma constatação anti-intuitiva, os países que mais ganharam com a globalização não foram aqueles que, no início do século, pareciam ser os impositores desta ordem”.

Na avaliação do autor, portanto, o que parecia ser uma imposição voltada à abertura de mercado mundial aos EUA, como um “neoimperialismo”, segundo ele, não se confirmou na medida em que tal processo produziu mais efeitos benéficos, ou que foram proporcionalmente maiores, em países como Chile, Coreia do Sul, Austrália e Lituânia do que nos EUA.

“A constatação de que a globalização, de fato, produziu mais riqueza e ampliou a qualidade de vida de enormes contingentes populacionais, e que hoje a tese de um imperialismo norte-americano parece fruto da ingenuidade da juventude, não significam a confirmação de que tal processo ocorreu sem efeitos colaterais que hoje batem à nossa porta. O mais importante entre eles é a ampliação da desigualdade. Não aquela que os críticos da globalização imaginavam que ocorreria entre os países”, diz outro trecho.

Vinícius Müller também diz que um argumento que atenuava o avanço da desigualdade afirmava que “é melhor viver em um país desigual e rico do que em um igualitário e pobre”. “Tem sentido, até porque a riqueza quando cresce beneficia a todos, mesmo que em níveis diferentes. O exercício retórico era simples: em uma sociedade na qual vive Bill Gates, a renda per capita cresce, mas a desigualdade também”, acrescenta o autor. “E, certamente, é melhor viver numa sociedade que tem a oportunidade de ampliar sua produção de riqueza a partir do uso das ferramentas criadas pelo fundador da Microsoft. O problema é que tamanha desigualdade começa a impactar em outras questões que fogem do escopo deste argumento”, assevera ele.

 

Leia também:

» “Entramos na era da mentira”, diz Sérgio Denicoli

» “Bolsonaro significa o novo”, diz Paulo Baía

»Eleição de Bolsonaro põe fim a um ciclo, diz presidente nacional do PPS

» “Faz sentido um superministério da Economia?”, questiona ex-deputado federal do PSDB

» Congresso eleito é “mais liberal, atrasado e temerário”, afirma Antônio Augusto de Queiroz

» “Privatizações não resolvem o problema fiscal”, diz José Luís Oreiro

» Em 2018, GDF tem segundo pior investimento aplicado na assistência social em 10 anos

» Eleição de Bolsonaro deve gerar “novo governo de transição”, diz Sérgio Abranches

» Política Democrática online de novembro repercute eleição de Bolsonaro