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RPD || José Luís Oreiro: Não, Bolsonaro não é desenvolvimentista

José Luís Oreiro questiona, em seu artigo, a análise de que o presidente Jair Bolsonaro se converteu ao desenvolvimentismo: “Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica”

Recentemente, devido à polêmica criada pela possibilidade de “flexibilização” do teto de gastos para dar espaço fiscal ao aumento do investimento público, alguns analistas da mídia e do mercado financeiro se apressaram em afirmar que o presidente da República se havia convertido ao (sic) desenvolvimentismo. Na visão desses analistas, o desenvolvimentismo seria sinônimo do velho populismo econômico latino-americano, o qual teve no ex-presidente argentino em Juan Domingo Perón seu maior expoente político. A característica fundamental, assim, do populismo/desenvolvimentismo seria a gastança desenfreada por parte do governo com o objetivo de obter resultados eleitorais de curto prazo, mas com efeitos nocivos sobre o crescimento econômico e a inflação no médio e no longo prazo.

Não tenho procuração ou interesse para defender Perón ou o peronismo de uma comparação estapafúrdia com Bolsonaro; mas, como me incluo entre os economistas desenvolvimentistas brasileiros, tentarei esclarecer, nas linhas abaixo, o que se entende por desenvolvimentismo.

O desenvolvimentismo é um sistema de pensamento econômico surgido na América Latina a partir do famoso Manifesto Latino-Americano, escrito por Raúl Prebisch por ocasião da primeira reunião da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 1949, em Havana, Cuba. A ideia fundamental por trás do Manifesto é que a divisão internacional do trabalho entre países exportadores de produtos primários (a periferia) e os países exportadores de produtos manufaturados (o centro) gerava padrão de desenvolvimento desigual entre essas regiões. Isso porque os produtos primários apresentavam tendência secular de queda, revertida apenas temporariamente durante os dois conflitos mundiais, ao passo que os produtos manufaturados mantinham seus preços mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa deterioração dos termos de troca impunha restrições externas ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, os quais incorriam regularmente em elevado endividamento externo e crise do balanço de pagamentos.

A solução para esse problema estrutural seria, portanto, a industrialização dos países periféricos, a qual se daria, numa primeira etapa, pela substituição de importações, a ser seguida, assim que fosse possível, pela promoção de exportações de produtos manufaturados, ou seja, pela inserção competitiva das economias latino-americanas nos mercados internacionais. O Estado teria papel importante no processo de industrialização, pois os países periféricos estão presos em uma armadilha de pobreza, em que o baixo nível de renda per capita gera, devido a uma série de falhas de mercado, uma baixa taxa de retorno para o investimento privado. Prebisch e a Cepal apoiavam, portanto, um Estado ativo que lançasse mão de todos os instrumentos de política econômica utilizados pelos países exportadores, mas dentro de uma economia de mercado, global e competitiva. Em suma, o aspecto essencial do desenvolvimentismo é a realização de uma profunda mudança na estrutura econômica dos países latino-americanos, o que incluía também reformas na estrutura fundiária, no sistema educacional e no sistema tributário com vistas a reduzir a desigualdade na distribuição de renda. Essa sempre foi vista pelos desenvolvimentistas como um obstáculo à necessária transformação estrutural da América Latina.

Como o leitor já deve ter percebido, o governo Bolsonaro não tem semelhança alguma com o pensamento desenvolvimentista. Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica cuja agenda de “reformas” tem por objetivo destruir o Estado Brasileiro e sua capacidade de ser agente indutor do processo de desenvolvimento econômico. As obras de infraestrutura que a ala militar do governo deseja realizar, por seu turno, estão centradas na construção de ferrovias para facilitar o escoamento da produção de produtos primários para a exportação; ou seja, irão apenas reforçar o caráter periférico e, portanto, dependente da economia brasileira. Não há nenhum projeto minimamente consistente para a reconstrução da indústria nacional, a qual teve sua participação na geração de empregos e no PIB da economia brasileira prematuramente reduzida nos governos tucanos e petistas. Por fim, mas não menos importante, o tratamento que o atual governo dá à área de ciência e tecnologia mostra de forma didática que o desenvolvimento econômico não é prioridade.

O leitor interessado em saber mais sobre Raúl Prebisch e o pensamento desenvolvimentista pode consultar o livro de Edgar Dosman, Raúl Prebisch (1901-1986): A construção da América Latina e do Terceiro Mundo, publicado em 2011 pela Contraponto.

*Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB).


RPD || Gledson Vinícius: O retrato do livro revela o óbvio

Falta de políticas públicas e a deterioração que a educação e a cultura vêm sofrendo em várias esferas governamentais atingem fortemente a relação entre a sociedade e o livro

Na degradante linha do tempo obscurantista que o país tem construído nos últimos anos, somam-se novos dados desanimadores. Segundo o resultado da pesquisa Retratos da Leitura – divulgada recentemente pelo Instituto Pró-Livro (IPL) em parceria com o Itaú Cultural e o Ibope Inteligência –, o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019. Podemos ver em números, agora, o resultado de iniciativas esdrúxulas, como por exemplo, a censura promovida pelo prefeito Marcelo Crivella na Bienal do Rio de Janeiro, em 2019, ou a censura de livros clássicos implementada em Rondônia pelo secretário de educação Suamy Vivecanda.

Os atos de censura, nesse contexto, expressam apenas a face visível de um processo de deterioração que a educação e a cultura vêm sofrendo em várias esferas governamentais, em especial no Rio de Janeiro, durante os últimos anos. Entre os muitos exemplos de desmonte, desorganização e desinvestimento que as políticas públicas do livro, da leitura e da literatura sofreram, destaca-se a falta de compromisso com a universalização das bibliotecas escolares que deveria ter sido implementadas até maio de 2020, como proposto na Lei 12.244, de 2010.  

Outro grande golpe no setor foi a interrupção no programa de distribuição de livros (PNBE), em 2015. Antes da interrupção, entre os anos de 2000 e 2014, foram quase 230 milhões de exemplares distribuídos a um custo médio de R$ 3,80/unidade. O investimento nesse período foi de R$ 891 milhões em compras. Ou seja, algo como R$ 68,5 milhões por ano na renovação dos acervos para escolas de todos os ciclos do ensino básico. O esfacelamento não se restringiu apenas no descumprimento de metas ou na redução dos investimentos financeiros. O processo atingiu a fundo o setor ao extirpar grandes nomes de posições decisórias e cruciais. Recordemos a extinção do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura e a redução do número de representantes da sociedade civil no Conselho Diretivo do plano, por iniciativa do presidente Bolsonaro e do ministro da Cidadania, Osmar Terra.

Se, por um lado, os números que a 5º pesquisa realizada pelo Pró-livros – instituição criada e mantida pelas entidades do livro Abrelivros, CBL e SNEL – nos fazem ver que a descontinuidade de políticas públicas, falta de investimento e desmobilização reverberam fortemente na relação entre a sociedade e o livro (ao ponto de mostrar uma perda de 4,6 milhões de leitores), por outro lado essa mesma pesquisa consegue também, por meio dos números, auxiliar no enfrentamento para desmontar os argumentos que a equipe econômica liderada pelo ministro da economia, Paulo Guedes, apresentou para propor a taxação dos livros em 12%.  

Se para o ministro o livro é um item da elite e que essa elite não vai se importar em pagar imposto, a pesquisa aponta que para 22% dos consultados, o preço é decisivo na hora de comprar. Fica claro também que não é apenas a elite que compõe a massa de consumidores de livros. Segundo o retrato da leitura, 27 milhões dos brasileiros identificados na classe C são compradores de livros, e para essa classe é ainda mais sensível a variação de preço que a taxação imporá.  

A pesquisa reforça as convicções de um dos grandes nomes da nossa literatura, o baiano Jorge Amado. Ele, que também teve forte atuação na vida política do país pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), foi responsável pela emenda constitucional que determinava a isenção de impostos sobre o papel, em 1946. Essa isenção, mais tarde, passou a valer para o livro como produto final, e, finalmente, em 1988, essa isenção ganhou garantia constitucional.

Nesse contexto em que a ciência, as pesquisas, os livros são deslegitimados em detrimento de uma visão de mundo curta e tacanha, citar Jorge Amado se mostra imperioso. Por isso, sugiro que o leitor repita em voz alta a célebre frase do pai de tantas personagens marcantes da nossa literatura: “Eu continuo firmemente pensando em modificar o mundo, e acho que a literatura tem uma grande importância”.  

Nossas vozes precisam ser ouvidas.