GEOPOLÍTICA
Fome: Em busca de uma saída solidária e global
Claudio Fernandes, Outras Palavras*
Caro leitor e cara leitora. Não se espante com o título aparentemente alarmista deste artigo, pois ele reflete uma verdade sobre fatos! Ouso dizer que, do jeito como as coisas estão colocadas, a humanidade não irá respirar tranquila pelos próximos anos. Contudo, meu trabalho aqui não será fazer previsões pessimistas para o futuro, mas sim, refletir sobre alguns aspectos da arquitetura financeira mundial, o papel das Nações Unidas e os compromissos políticos que os Estados-nações precisam assumir para construir e implementar uma resposta efetiva às crises que se acumulam.
Começo esta reflexão a partir de uma experiência recente, quando estive representando a Gestos e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda (GT Agenda 2030) em Nova York, durante o VII Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), promovido pela Organização das Nações Unidas. O fórum buscava discutir estratégias de atuação que pudessem responder à perspectiva de uma nova grande crise global resultante de um colapso no pagamento das dívidas externas de países em desenvolvimento.
Lembro-me que, em seu segundo dia, a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia chegou de forma pesada à quarta reunião de debates do FfD. Para além das mortes e da violência militar explícita que tem chocado a comunidade internacional, outro problema já se apresenta: vários países dependem de grãos importados do país atacado. O tema dominante, então, passou a ser o novo perigo de racionamento de alimentos e a insegurança alimentar, multiplicados pelos riscos do aumento da inflação, resultado dos problemas de cadeia de valor causados pela pandemia da Covid-19.
Contudo – e apesar do clamor da sociedade civil internacional para traçar alternativas socialmente responsáveis e verdadeiramente sustentáveis para reconstruir a economia mundial de forma equitativa – o que se ouviu no VII FfD foi mais do mesmo. A pura repetição de estratégias fracassadas que favorecem prioritariamente o 0,1% mais rico, enquanto os 99% da população mundial são arrastados para o fundo do abismo que a atual arquitetura financeira global cavou ao longo das últimas décadas. Diante disso, voltei para casa maquinando algumas das reflexões abaixo.
Para além da guerra, pode-se perceber a falta de compreensão da urgência em que o mundo está colocado. A emergência climática é uma disrupção presente e destinada a acelerar exponencialmente. Estamos falando de uma resposta logarítmica do planeta. O tempo já se esgotou para muitas populações em muitos países. Otimizar os fluxos financeiros em direção à sustentabilidade tem sido um apelo urgente há, pelo menos, sete anos, mas pouco avançou nesse sentido.
É preciso reconhecer que as soluções financeiras projetadas até agora ficaram aquém de seus objetivos. O “mercado” (esta entidade mítica e abstrata que engole todas as instâncias da economia política), como sempre, é o que domina o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Por quê? Porque os players e as regras do jogo não mudaram nem um milímetro para criar um processo normativo de transformação. O risco já há muito tempo tem sido considerado por meio da expansão de instrumentos derivativos para manter o sistema em rotatividade. Não podemos priorizar a mera reprodução do capital através do sistema financeiro enquanto continuamos a prejudicar pessoas e comunidades – o verdadeiro material concreto que faz a sociedade e a economia existirem.
A esses desafios, somam-se problemas sistêmicos e históricos já existentes que atrasam, e em certos casos, impedem a implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Como proposta para se encontrar soluções efetivas, a sociedade civil organizada vem requerendo explicitamente a convocação da quarta Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, entendendo que é o único espaço legítimo onde decisões que levam a mudanças fundamentais na arquitetura financeira global podem ser tomadas. Enquanto a União Europeia apoia a iniciativa, a China e os 134 países (incluindo o Brasil) que compõem o G77 estão divididos sobre o tema. Em conversa com um representante brasileiro, nos foi confiado que o motivo é o “medo de que uma nova conferência tenha como resultado um retrocesso nas questões em discussão”. Outros países do Sul Global também expressaram a mesma preocupação.
Realmente o mundo hoje está bem diferente do que era em 2015, quando foram aprovadas as resoluções da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Agenda de Ação de Addis Ababa. Desde então vários países se mostraram contrários aos processos de mitigação da emergência climática, de equidade de gênero e de expansão democrática. Em diversas regiões, a política foi infectada pela intolerância, pelo desrespeito e pela violência, criando riscos às liberdades e às instituições de direito. No entanto, decisões precisam ser tomadas sobre a arquitetura financeira vigente, que tem exacerbado os problemas ao invés de oferecer soluções sustentáveis para os diversos desafios que persistentemente ampliam os níveis de desigualdade presentes em cada país e entre as nações.
Em debate especial com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as instituições Bretton Woods – isso é, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) – tornou-se evidente que as medidas tomadas para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 foram insuficientes. Por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (SDR) emitidos pelo FMI, equivalentes a 650 bilhões de dólares, ficaram principalmente nas mãos dos países que menos precisavam. Isso ocorreu porque o critério de distribuição foi baseado em quotas dos países na instituição; essas quotas, por sua vez, são determinadas por volumes de doação. Ou seja, os países com mais recursos tiveram as maiores quotas.
Como salientou Bodo Elmers, do Global Policy Forum e representante do grupo da sociedade civil para o FfD, “neste momento 400 bilhões de dólares estão dormentes nos bancos centrais de países que não precisam, enquanto os que precisam não conseguem acesso aos recursos”. É importante ressaltar que essas instituições foram criadas no contexto da maior crise mundial do século XX para prevenir crises futuras; mas aparentemente não foram capazes de prevenir ou mitigar satisfatoriamente as crises atuais.
Este órgão, a Organização das Nações Unidas, deveria representar o compromisso com os valores mais elevados para a humanidade e assumir um papel de protagonismo na tentativa de resolver a confluência de crises em que nos encontramos; particularmente o crescente desafio financeiro para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Uma nova Conferência Internacional de financiamento para o desenvolvimento em um futuro próximo, mas que deve ser decidida com urgência, é o único processo legítimo para realmente assumir a responsabilidade que o mundo precisa da comunidade internacional.
Portanto, precisamos de políticas públicas concretas e pragmáticas para reprojetar o equilíbrio das relações de poder que criaram a confluência de crises que vivemos e viveremos nos próximos anos. O que este fórum pode decidir? Pode decidir estabelecer um quadro normativo para um mecanismo de resolução de dívida soberana dos países, mas recusa-se a fazê-lo. Tem um mandato para criar uma convenção tributária internacional, conforme solicitado pelo G77, o que atualizaria o quadro normativo para um mundo globalizado e digitalizado. Mas tampouco avança.
De fato, a Agenda 2030 parece, cada vez mais, ser um sonho inalcançável; porém, algumas medidas governamentais também poderiam ajudar a amortecer os impactos globais e ampliar a implementação dos ODSs, como a precificação das emissões de carbono, a taxação sobre grandes fortunas e a adoção de tributos sobre transações financeiras em contexto multi-jurisdicional. A emissão de títulos da dívida pública com a condicionalidade para o financiamento do desenvolvimento sustentável também poderiam, em tese, servir para fazer girar a engrenagem financeira necessária para uma mudança sistêmica na aplicação de recursos privados.
Mas como lembra o editorial The private-equality delusion (A ilusão da igualdade privada, em tradução livre), publicado em 4 de março deste ano pela revista The Economist, “nós precisamos passar a levar a sério e refletir o que os mercados privados podem e não podem fazer”. Enquanto faltam recursos para a sociedade civil promover as mudanças necessárias para implementar a Agenda 2030, os agentes privados, de diversos tamanhos e volume de capital, já demonstraram que não têm compromisso efetivo com o desenvolvimento sustentável.
Um exemplo emblemático é o do Estado brasileiro que em 2012 (ainda durante o governo Dilma), optou por zerar as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) na bolsa de valores e futuros. Isso fez com que este tributo passasse a ser sentido apenas pelo cidadão médio. Além disso, o país está na contramão das grandes economias do mundo em vários sentidos, entre eles figuram a não progressividade de impostos sobre fortunas e medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 (que estabeleceu o famigerado “teto de gastos” para investimentos fundamentais para o desenvolvimento social) – isso para não falar do problema (cultural) inflacionário que está sendo tratado da pior forma possível – e de uma economia oligopolizada que abre espaço para a formação de cartéis e moderna engenharia de preços.
Verdade seja dita: é inadmissível que enquanto o mundo amarga 6 milhões de mortes por Covid-19 e cada vez mais pessoas são jogadas para a pobreza e extrema pobreza, os bilionários do mundo tenha ampliado suas fortunas em cerca de 60% (segundos dados da Forbes e da Oxfam). Reorganizar o fluxo de capitais, bem como os destinos e condicionalidades sustentáveis de suas aplicações deve ser um compromisso humanista.
Temos os recursos necessários para fazer isso, mas é preciso coragem. Coragem das pessoas responsáveis pela formulação de leis, de chefes de Estado e players da geopolítica para abandonar um modelo econômico falido que coloca a existência da vida humana no planeta em risco. Acima de tudo, é preciso reconhecer a capacidade ímpar das organizações da sociedade civil em liderar o caminho para uma comunidade global sustentável e equitativa. Sabemos como fazer e, cada vez mais, precisamos dos recursos necessários para alavancar nossas ações e causar impacto positivo em maior grau e volume.
*Texto publicado originalmente em Outras Palavras
Por que a globalização está ameaçada
Michael Roberts, no The next recession*
Além da inflação e da guerra, o que atrai o pensamento econômico atual é o aparente fracasso do que a teoria econômica mainstream aprecia chamar de “globalização”. O que ela quer dizer com esse termo? Refere-se à expansão livre do comércio e do fluxo de capital através das fronteiras. Em 2000, o FMI identificou quatro aspectos básicos da globalização: comércio e transações, movimentos de capitais e investimentos, migração e circulação de pessoas e disseminação do conhecimento.
Todos esses componentes aparentemente se expandiram a partir do início da década de 1980 como parte da reversão neoliberal das políticas nacionais de macrogestão anteriormente seguidas. Ditas keynesianos, elas eram adotadas por governos no ambiente da ordem econômica mundial de Bretton Woods (isto é, sob a hegemonia dos EUA). A nova regra agora era quebrar as barreiras tarifárias, cotas e outras restrições comerciais, permitindo assim que as multinacionais negociassem “livremente” e transferissem os seus investimentos no exterior, ou seja, para áreas de mão de obra barata, com a finalidade de aumentar a lucratividade. Isso levaria à expansão global e ao desenvolvimento harmonioso das forças produtivas e ao crescimento dos recursos do mundo – pelo menos era o que se afirmava então.
Não havia nada de novo nesse fenômeno. Desde que o capitalismo se tornou o modo de produção dominante nas principais economias, já em meados do século XIX, houve períodos de aumento do comércio internacional e de exportação crescente de capital. Em 1848, os autores do Manifesto Comunista notaram o aumento no nível de interdependência nacional trazido pelo capitalismo e previram o caráter universal da sociedade mundial moderna: “A burguesia, por meio da exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para grande desgosto dos reacionários, ela tirou de debaixo dos pés da indústria o terreno nacional em que estava assentada. Todas as antigas indústrias nacionais estabelecidas foram destruídas ou estão sendo destruídas diariamente…. No lugar da antiga reclusão e autossuficiência local e nacional, temos relações em todas as direções, interdependência universal das nações”.
De fato, de acordo com a Organização Mundial do Comércio, um indicador-chave da “globalização”, a proporção das exportações mundiais em relação ao PIB mundial, ficou praticamente inalterado entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial; caiu depois quase 40% no período entre guerras; aumentou 50% de 1950-70; depois estagnou até a década de 1990, decolando até a Grande Recessão de 2009; depois disso, na Longa Depressão da década de 2010, esse indicador caiu cerca de 12%, um declínio não visto desde a década de 1970.
A última onda de globalização começou a diminuir pouco antes do início dos anos 2000, quando a lucratividade global passou a recuar, tal como mostra a figura abaixo.
Na década de 1990, o comércio mundial cresceu 6,2% ao ano, o investimento transfronteiriço (IDE) aumentou 15,3% ao ano e o PIB global se elevou em 3,8% ao ano. Mas, na longa depressão da década de 2010, o comércio cresceu apenas 2,7% ao ano, mais lento do que o PIB em 3,1%, enquanto o IDE aumentou apenas 0,8% ao ano. Ora, é isso o que mostra a figura em sequência.
Os fluxos de investimento transfronteiriços em ativos produtivos físicos também pararam de crescer na década de 2010, enquanto o comércio global por meio das “cadeia de valor” (ou seja, por meio de transferências internas de empresas multinacionais) também se estabilizou.
É claro que a crítica da economia política poderia ter previsto esse resultado da globalização. A teoria da vantagem comparativa de David Ricardo sempre foi comprovadamente falsa. Sob o capitalismo, com mercados sem restrições, as economias mais eficientes tomarão parte do comércio das menos eficientes. Assim, os desequilíbrios comerciais e de capital não tendem ao equilíbrio ao longo do tempo. Pelo contrário, os países costumam ter enormes déficits e superávits comerciais por longos períodos; experimentam crises cambiais recorrentes; os trabalhadores de um país perdem os seus empregos dada a concorrência do exterior; novos setores mais competitivos não costumam substituir os decadentes (ver Carchedi, Gugliermo – Frontiers of Political Economy).
Não são as vantagens comparativas ou os custos que impulsionam os ganhos comerciais, mas os custos absolutos (em outras palavras, a lucratividade relativa). Se os custos trabalhistas chineses forem muito menores do que os custos trabalhistas das empresas americanas, a China ganhará participação de mercado, mesmo que os Estados Unidos tenham a chamada “vantagem comparativa” em design ou inovação. O que realmente decide o crescimento de uma economia é o nível de produtividade e o custo da força de trabalho.
Ao contrário da visão do mainstream em Economia, o capitalismo não pode se expandir por meio de um desenvolvimento harmonioso e uniforme, estendendo-se para todo o mundo. Pelo contrário, o capitalismo é um sistema atravessado por contradições geradas pela lei do valor e pela motivação do lucro. Uma das contradições do capitalismo é a lei do desenvolvimento desigual – algumas economias nacionais concorrentes se saem melhor que outras. E quando as coisas ficam difíceis, os mais fortes começam a comer os mais fracos. Como Marx disse nas Teorias de mais-valia: “os capitalistas são como irmãos hostis que dividem entre si o saque do trabalho das pessoas que trabalham”. Às vezes, esses irmãos se mostram fraternos e a globalização se expande como no final do século XX; outras vezes, eles se afiguram hostis e a globalização diminui – como no século XXI.
Para a teoria marxista, globalização vem a ser de fato a palavra de uso corrente e dominante para se referir ao imperialismo. O século XX começou com o capitalismo mundial cada vez mais dividido entre um bloco imperialista dominante e o resto. No século XXI, o domínio do imperialismo permanece. E se, agora, as economias imperialistas começam a lutar pela lucratividade e pelos mercados, então elas começam a não cooperar, lançando as bases para a divisão, o conflito e a guerra.
Mesmo a teoria mainstream está agora ciente de que o livre comércio e o livre movimento de capital, que se aceleraram globalmente nos últimos 30 anos, não levaram ganhos para todos – exatamente ao contrário do que afirma a teoria da vantagem comparativa e da livre concorrência. A globalização e o livre comércio não trouxeram aumentos de renda para todos. Sob a livre circulação de capitais pertencentes às transnacionais, assim como sob o livre comércio sem tarifas e restrições, os grandes capitais mais eficientes triunfaram às custas dos mais fracos e ineficientes.
Em consequência, os trabalhadores desses últimos setores foram também atingidos. Em vez de um desenvolvimento harmonioso e igualitário, a globalização aumentou a desigualdade de riqueza e renda, tanto entre as nações quanto dentro delas. As corporações transnacionais transferiram as suas atividades para áreas em que a mão de obra era mais barata, adotaram novas tecnologias que exigem menos mão de obra na luta pela lucratividade.
Esses resultados se devem em parte à globalização levada a efeito pelo capital multinacional: fábricas e empregos foram transferidos para o que costumava ser chamado de Terceiro Mundo. Mas também se devem em parte às políticas neoliberais nas economias avançadas (isto é, redução do poder sindical e dos direitos trabalhistas; precarização do trabalho e redução dos salários; privatização e redução dos serviços públicos, pensões e benefícios sociais). Não se pode esquecer também a parte devida aos colapsos ou quedas regulares e recorrentes na produção capitalista.
Eis que tudo isso levou a uma perda de renda familiar para um volume expressivo de trabalhadores nos países desenvolvidos. Ora, essa perda nunca vai ser contrariada por meio de uma “recuperação’, principalmente a partir de 2009. O mundo capitalista nunca foi plano, mesmo no final do século XX – e certamente está bem montanhoso agora. A grande recessão, a fraca recuperação durante a longa depressão, a pandemia de COVID e agora o conflito Rússia-Ucrânia, tudo isso destruiu as cadeias de suprimentos globais, bloqueou o comércio global e interrompeu os movimentos de capital.
Durante os anos 1990 e 2000, a teoria econômica dominante (com poucas exceções) se alinhou com as teses liberais de David Ricardo; assim, os méritos imaculados da globalização foram louvados. Apesar das tendências atuais, alguns especialistas tradicionais ainda mantêm a visão de que a globalização retornará. Veja-se em sequência o que disseram dois deles:
“Foi a inflação” – disse o primeiro – “que ajudou a criar um novo ambiente político em meados do século XX e na década de 1970. À medida que os custos econômicos e políticos da inflação se tornaram mais óbvios e mais prejudiciais, parecia mais atraente procurar maneiras de acalmar as pressões inflacionárias. Com certeza, a cura da doença inflacionária – a globalização e um governo mais eficaz – foi temporariamente desconfortável. Mas levou o mundo a aproveitar oportunidades técnicas e geográficas antes ignoradas ou negligenciadas. Há, em suma, um futuro pós-conflito para o qual podemos olhar para frente com algum grau de esperança”.
“A minha crença” – disse o outro – “pode ser tomada como fé cega, contudo o fato é que as últimas orações para a globalização foram feitas várias vezes nos últimos anos, mas, em cada ocasião, ela se levantou do seu leito de morte parecendo, então, bastante animada. As empresas têm sido engenhosas, apoiam-se na tecnologia para se renovarem. Até mesmo os governos mais destrutivos têm se mostrado incapazes de anulá-la”.
Claro, o comércio mundial e o investimento transfronteiriço não vão desaparecer; ao contrário, continuarão a crescer (pelo menos um pouco) apesar das pandemias, guerras e cadeias de suprimentos em colapso. Mas isso dificilmente é um argumento para dizer que a onda de globalização anterior não acabou.
O argumento de fundo é que a crise de lucratividade e a inflação dos anos 1970 foi seguida pela onda de globalização dos anos 1980 e 1990 e isso pode acontecer novamente. Mas este não parece ser um cenário muito provável. A década de 2020 se parece mais com o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial; veja-se que as potências econômicas rivais (irmãos inimigos) estão lutando agora entre si para obter uma parte maior dos lucros gerados globalmente.
Escrevendo no final da década de 1880, Engels previu, não a expansão global harmoniosa como pensava o líder e teórico social-democrata alemão Karl Kautsky, mas o aumento da rivalidade entre as potências econômicas concorrentes, o que resultaria em uma nova guerra europeia: “as destruições da Guerra dos Trinta Anos (ocorrida no século XVII) seriam comprimidas em três a quatro anos e estendidas por todo o continente… com uma realocação irrecuperável de nosso sistema artificial de comércio, indústria e crédito, sem um retorno à expansão global de 1850-70”.
Os keynesianos agora procuram retornar aos dias de Bretton Woods com suas taxas de câmbio fixas, estímulos fiscais dos governos e tarifas gradualmente reduzidas. Afirmam que isso levaria a um renascimento do “multilateralismo” e da cooperação global. Eis que uma ordem mundial de paz e harmonia poderia ser aparentemente restaurada.
Mas esse prognóstico – veja-se bem – é apenas uma negação da história e da realidade dos anos 2020. As organizações multilaterais do pós-guerra, como o FMI, o Banco Mundial e a ONU, estavam todas sob a “orientação” do capitalismo norte-americano. Mas agora a hegemonia dos EUA não se impõe mais de modo seguro; ademais, de modo mais significativo, a alta lucratividade das principais economias pós-1945 não existe mais. Os irmãos agora não são mais fraternos entre si, mas hostis. A atual tentativa dos EUA de manter sua hegemonia é mais parecida com tentar colocar gatos em um mesmo saco.
É perfeitamente possível argumentar que a desglobalização diminui a eficiência das empresas, diminui a concorrência e que isso não é bom para o capital. Sem qualquer reversão prevista no rumo das coisas para acelerar o crescimento, um mundo desglobalizado seria “muito inferior” aos últimos 30 anos em que prevaleceu uma abertura do comércio mundial.
Um estudo recente da Organização Mundial do Comércio, baseado em medição do impacto dinâmico da perda de comércio e da difusão de tecnologia, descobriu que “uma divisão potencial do sistema de comércio global em dois blocos – um bloco centrado nos EUA e outro centrado na China – reduziria o bem-estar global, por volta de 2040, em comparação com uma linha de base, em cerca de 5%. As perdas seriam maiores (mais de 10%) nas regiões de baixa renda que costumam se beneficiar de repercussões positivas dos avanços do comércio e da tecnologia”. De fato, o colapso da globalização pode se transformar não apenas em uma batalha entre dois blocos, mas em uma mistura mais complexa de unidades econômicas concorrentes.
De qualquer modo, a globalização só retornará eventualmente se e quando o capitalismo ganhar um novo sopro de vida baseado em lucratividade crescente e sustentada. Parece improvável que isso aconteça diante da perspectiva de uma nova crise nos próximos anos – e talvez de mais guerra.
*Texto publicado orginalmente em The next recession