general Eduardo Villas Bôas
Janio de Freitas: Estapafúrdio produzido por Bolsonaro e apoiado por generais tem a ver com intenções definidas
Intenções inconfessas que enlaçam as atitudes do presidente têm corrido sem dificuldade
A incógnita mais expressiva, dentre as muitas atuais, é simples como formulação e inalcançável na resposta. Dado que estão explicitados os indícios de golpismo e a incompetência espetaculosa dos militares no governo, o que fará o Exército na possível transformação da pandemia em tragédia de massa, um país sufocado pela peste, carente de tudo menos de morte?
A marca de um ano exato do primeiro caso de Covid-19 no Brasil encontrou os estados em desespero com o recorde de casos e a ausência de leitos, vacinas, pessoal e outros recursos. Uma antevisão das previsões e alertas que as vozes mais competentes estão fazendo, inclusive a Organização Mundial da Saúde, caso persista o incentivo de Bolsonaro e do seu governo à calamidade.
O já célebre depoimento do general Eduardo Villas Bôas sobre a ameaça que fez ao Supremo, em nome do Exército, é claro na desmistificação da conversão desses militares ao Estado constitucional de Direito e à democracia.
Ressalva a fazer-se é a ausência até de mera informação aos comandos da Marinha e da FAB sobre a ameaça, como dito pelo entrevistado. Risco de discordância, é claro. E isso, não sendo certeza, pode ser indício de promissora evolução na Marinha e na FAB, oficialidades muito mais dotadas de preparo geral, para civilizar-se, do que no Exército.
Já é bem difundida a impressão, ou a convicção, de que todo o estapafúrdio produzido por Bolsonaro e apoiado pelos generais tem a ver com intenções definidas. Há bastante coerência nos atos amalucados, que são bem aceitos pelos generais também por uma comunhão não declarada nem gratuita.
A propaganda do falso tratamento com cloroquina cedo se mostrou como objetivo. Não só para desacreditar as recomendações científicas. Também para ações de governo que custaram milhões ao dinheiro público —e aí estava o Exército a fabricar quantidades montanhosas da droga enganadora.
O próprio Ministério da Saúde, o mais militarizado setor civil da administração pública, foi posto como indutor da droga ineficaz. Bolsonaro continua condenando as máscaras e estimulando aglomerações. E, sobre tudo o mais, a sabotagem a vacinas excedeu a incompetência. É muito mais e muito pior.
Por trás disso houve e há algo. Esse desatino não resistiria, para chegar à dimensão que alcançou, sem um propósito a sustentá-lo.
Não faz sentido o envolvimento, sem motivações especiais, de um governante em propaganda de remédio e em combate ao conhecimento científico provado e comprovado. Com esse meio de disseminar a morte, porém, combina-se um outro de fim idêntico.
No seu primeiro ato pela difusão da posse de arma, Bolsonaro alegou direito da cidadania de se defender. Sucessivos agravamentos dessa facilitação à criminalidade chegaram, agora, ao desmentido definitivo do propósito apresentado por Bolsonaro: novos decretos permitem até 15 armas para o cidadão comum, 30 armas para quem se apresente como caçador, 60 armas para quem se registre como atirador, munição a granel. Arsenais sem relação alguma com defesa pessoal. Mas não sem objetivo de quem os libera e dos militares, em especial do Exército, que dão o apoio.
As intenções inconfessas que enlaçam as atitudes de Bolsonaro, em temas como a pandemia e o armamento de civis, têm corrido sem dificuldade. Mas alguma coisa mudou nas últimas semanas. O Supremo mudou. Por quanto tempo e se para ser supremo sem temor e sem prazo, no momento, importa menos. Aproveite-se enquanto dure, que a necessidade do país é extrema.
Quando quatro ministros do STF decidiram trabalhar nas férias de dezembro e janeiro, a boa novidade foi noticiada como precaução contra propensões do recém-eleito presidente Luiz Fux. Revelou-se muito mais do que isso.
De Ricardo Lewandowski vieram, e continuam vindo, decisões que enfrentam desvios na política antivacinas do governo, o mesmo quanto às mais recentes revelações de ordinarices judiciais, políticas e policiais na Lava Jato, e outras de mesmo peso.
Alexandre de Moraes encarou, e não tem cedido nem milímetros, as ameaças ao Supremo, as patifarias nas redes, os indícios que recaem na Presidência da República.
Rosa Weber deu ao governo cinco dias, expirados ontem, para justificar o pacote das armas. Edson Fachin tomou a defesa verbal do Estado de Direito. E vai o Supremo por aí, ou parte dele, mudado, posto de pé e cabeça erguida.
Os negociantes do Congresso continuam negociando. O poder econômico, idem. Se a defesa da democracia não vier do Supremo, talvez só tenhamos resposta para a incógnita de Bolsonaro sob a forma de fato consumado. E a pandemia, como se agrava aqui, facilita.
Ricardo Noblat: O general Villas Bôas e o labirinto em que se meteu
Nota para intimidar o Supremo Tribunal Federal era mais incendiária do que foi
Reverenciado pela oposição e a mídia como um líder moderado e defensor da democracia à sua época de comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas conta em livro de memórias que a nota que divulgou em abril de 2018 para coagir o Supremo Tribunal Federal a não beneficiar Lula era mais incendiária na versão original. Deixou de ser por pressão de seus colegas.Três ministros do governo Bolsonaro, todos, hoje, generais da reserva, foram consultados sobre a nota e, segundo Villas Bôas, o aconselharam a amenizá-la: Joaquim Silva e Luna, atual diretor-geral de Itaipu; Fernando Azevedo, então chefe do Estado Maior e agora ministro da Defesa, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo. Ramos respondia pelo Comando Militar do Leste.
No dia 4 de abril daquele ano, a seis meses do primeiro turno da eleição presidencial, o Supremo julgaria uma ação que, se aceita, revogava a possibilidade de prisão de condenado em segundo instância. Lula já fora condenado em segunda instância no processo do tríplex do Guarujá. Se o Supremo recusasse a ação, ele poderia ser preso e ficar impedido de concorrer com Bolsonaro.
A versão suavizada da nota de Villas Bôas, postada no Twitter na véspera do dia do julgamento, foi uma clara advertência aos ministros do Supremo: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”
E concluía sem ter o cuidado de disfarçar a intenção golpista do seu autor: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Imagine a versão abortada da nota original…
Uma vez que o Supremo, por 6 votos contra 5, manteve a prisão de condenado em segunda instância, Lula foi preso e levado para Curitiba em 7 de abril, ali permanecendo por 580 dias. Liderou as pesquisas de intenção de voto até meados de agosto. Apoiou então a candidatura de Fernando Haddad. Bolsonaro venceu Haddad no segundo turno. Villas Bôas e os generais celebraram a vitória.
Missão que se propuseram (evitar que a esquerda voltasse ao poder), missão cumprida com êxito! Villas Bôas reconhece que Lula como presidente foi generoso com as Forças Armadas dando-lhes dinheiro para a compra de equipamentos. Critica Dilma por ter instalado a Comissão Nacional da Verdade que investigou casos de tortura e de mortos pela ditadura militar de 64.
A ojeriza dos militares brasileiros à esquerda é uma questão ideológica que data do início do século passado. A revolução comunista russa foi em 1917. O Partido Comunista do Brasil é de 1922. Em 1935, uma intentona comunista tentou depor o governo de Getúlio Vargas, mas fracassou. Na 2ª Guerra Mundial, militares brasileiros e comunistas russos lutaram contra Hitler.
Logo depois começou a chamada Guerra Fria entre os Estados Unidos e seus aliados, um deles o Brasil, e a União Soviética e seus aliados. Capitalismo x comunismo. A União Soviética desmoronou em 1991. O mundo tornou-se unipolar. A China se diz comunista, mas é tão capitalista quanto os Estados Unidos e, em breve, sua economia será a maior do planeta.
O comunismo, hoje, resiste em Cuba, na Coreia do Norte e onde mais? Serve de espantalho a governantes autoritários que querem se perpetuar no poder, e aos seus apoiadores, fardados ou não. Serve também de aríete para corroer a democracia mundo afora.
Bruno Boghossian: Ex-comandante deixa claro que Exército tentou intimidar STF em 2018
Villas Bôas relatou que quase toda a cúpula da Força elaborou mensagem divulgada na véspera de julgamento de Lula
A cúpula do Exército trabalhou por dois dias para redigir um par de tuítes que seria divulgado pelo general Eduardo Villas Bôas em 3 de abril de 2018. Naquela noite, o então comandante publicou mensagens que falavam em "repúdio à impunidade" e que ficaram marcadas como uma pressão sobre os ministros do STF que julgariam um habeas corpus do ex-presidente Lula.
Segundo Villas Bôas, o texto foi escrito por "integrantes do Alto Comando" e recebeu sugestões de “comandantes militares de área”. Da trama que envolveu a cúpula da Força, saíram 74 palavras que citavam um Exército "atento às suas missões institucionais", num aceno óbvio a defensores de uma intervenção militar.
O ex-comandante narrou o caso como se descrevesse os caminhos burocráticos de um memorando pelos escaninhos do Exército. Numa entrevista ao pesquisador Celso de Castro para o livro "General Villas Bôas: conversa com o comandante", ele tentou revestir a mensagem de boas intenções, mas o relato não escondeu a intimidação ao Supremo.
Villas Bôas afirmou que, na véspera do julgamento que poderia deixar Lula fora da cadeia, o Exército tinha preocupação com o "extravasamento da indignação" de grupos que pediam uma intervenção militar. Disse ainda que o "público interno" da Força tinha "ansiedade semelhante" e acrescentou que o objetivo dos tuítes era "um alerta, muito antes do que uma ameaça".
Faltou explicar a diferença entre uma ameaça e um alerta feito pelo comandante de tropas armadas. Além disso, se a intenção era acalmar militares irritados e os golpistas que ele mesmo já definiu como tresloucados, não faria sentido mandar nenhum alerta. O depoimento mostra que aquelas mensagens eram uma advertência com endereço certo: os 11 ministros do Supremo.
Páginas à frente, Villas Bôas comenta a eleição de Jair Bolsonaro e diz que o Exército tinha "preocupação de que a política voltasse a entrar nos quartéis". Faltou ao general emitir um segundo "alerta" em 2018.
Ricardo Noblat: Livro de general é um alerta sobre a fragilidade da democracia
Para que a história não se repita
Com seu livro de memórias recém-lançado pela Fundação Getúlio Vargas, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019, atirou numa coisa e acertou em outra.
Se ele pretendeu reforçar a ideia de que as Forças Armadas não se metem em assuntos políticos pelo menos desde o fim da ditadura militar de 64, conseguiu exatamente o contrário.
Em abril de 2018, às vésperas de o Supremo Tribunal Federal aceitar ou não um pedido de habeas-corpus que poderia libertar Lula preso em Curitiba, Villas Bôas postou no Twitter:
“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
À época foi dito que Villas Bôas apenas refletia o ânimo dos seus companheiros de farda. Antecipava-se a possíveis manifestações raivosas de subordinados. Não queria perder o controle da tropa.
Por isso ou por aquilo, intimidado, o Supremo negou o habeas-corpus por 6 votos contra 5 e manteve a prisão de réu condenado em segunda instância. Lula continuou encarcerado.
Foi o general, que é portador da ELA, doença degenerativa do sistema nervoso, que procurou a Fundação Getúlio Vargas interessado em dar seu depoimento para a posteridade.
E o fez ao longo de 13 horas, repartidas em cinco dias, em conversa amena conduzida pelo professor e pesquisador Celso de Castro, autor de diversos livros sobre a temática militar.
Castro deixou-o falar sem contestá-lo nenhuma vez e sem pedir maiores detalhes sobre os fatos relatados. É de supor, portanto, que o general só falou o que quis, conforme planejado.
Villas Bôas conta que a mensagem postada no Twitter de advertência ao Supremo não foi obra exclusivamente sua, mas também do Alto Comando do Exército.
“Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”, diz Vilas Bôas. Não diz que “coisa” era, nem como ela poderia se manifestar. Uma rebelião? Uma tentativa de golpe?
Mas como, se o Exército e as demais armas são apolíticos como diz e repete o general ao longo do seu depoimento? Como, se são fielmente cumpridoras do papel que lhes reserva a Constituição?
A primeira versão da mensagem foi escrita por seu estafe e sob sua orientação, sendo submetida depois aos integrantes do Alto Comando do Exército residentes em Brasília.
Em seguida, ela foi transmitida aos demais comandantes de área para que a endossassem ou sugerissem ajustes. Recebidas as sugestões, a mensagem ganhou sua redação definitiva.
Jair Bolsonaro respirou aliviado quando leu a mensagem no Twitter. Era deputado federal e há pelo menos dois anos estava em campanha como aspirante a candidato a presidente
Neste governo, Villas Bôas, general da reserva, é assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República. Ao empossá-lo, Bolsonaro emitiu todos os sinais de que lhe é grato.
Por quê? Talvez porque Villas Bôas respaldou sua candidatura à reboque de generais e de soldados que já o apoiavam. Cada quartel foi uma célula de Bolsonaro, e não será diferente em 2022.
O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da República. É ele, e somente ele, quem em nome delas pode falar sobre temas políticos de repercussão geral.
Aos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, cabe falar sobre assuntos administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.
A fala de Villas Boas não foi a de um chefe que se dirige aos seus subordinados. Foi um pronunciamento em nome do Exército e a propósito do momento político que o país atravessava em 2018.
Não faltou provocação (“Quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras?”). Nem ameaça (O Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”).
Militar não é igual a civil. O que os distingue não é só a farda que um veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota brucutu, maneja tanques e é treinado para matar.
O que um deles fala, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a força da palavra.
Não é apenas a saúde dos brasileiros que está ameaçada pelo vírus que o governo Bolsonaro ignorou o quanto pôde. A saúde da democracia segue sob ameaça.
General Eduardo Villas Bôas: "No Brasil, todos os problemas tendem a se transformar em ideologias"
A Editora Insight, do Rio de Janeiro, promoveu o seminário “Brasil: Imperativo Renascer!”, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Levou lá, além do presidente do tribunal, Milton Fernandes de Souza, o presidente do BNDES, o titular da Fundação Getulio Vargas, o embaixador Jório Dauster, o sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos.
Mas a sensação do evento foi o general Eduardo Villas Bôas. De sua cadeira de rodas, tolhido pelos efeitos de uma lamentável moléstia degenerativa, o comandante do Exército brasileiro, de improviso, analisou com destreza e franqueza o momento nacional. O general partiu da análise do que seja o papel das Forças Armadas na atualidade. Mas foi bem além disso.
Villas Bôas examinou como transitam hoje as ideologias. Todo problema no país hoje tende a tornar-se uma ideologia, disse ele. Sem que se chegue à solução teoricamente desejada. Assim, “quanto mais ambientalismo, mais problemas ambientais temos. Quanto mais indigenismo, coitados dos nossos índios, mais são relegados ao abandono. Quanto mais luta contra o preconceito racial, mais racialismo. (...) Quanto mais luta ou quanto mais se discute as questões de gênero, mais preconceito nessa área se verifica e por incrível que pareça, até mesmo, está surgindo no nosso país intolerância religiosa”.
O general saltitou em terreno minado, sem detonar bomba alguma, ao abordar como funciona o imperialismo moderno que galvaniza estereótipos como a campanha mundial contra o desmatamento no Brasil, incorporada aqui inclusive pela esquerda.
“Temos 80% da Amazônia preservada e admitimos levar lições de países que têm 0,3% das suas florestas originais. A média mundial de preservação das florestas mundiais é de 25%, aproximadamente”, registrou, apontando a instrumentalização da ideologia ambiental que, como se sabe, visa proteger o mercado agrícola dos países que, todos somados, não dispõe da área agricultável que o Brasil tem.
Leia os principais trechos da palestra do general de Exército Eduardo Villas Bôas:
"Quando houve a queda do muro de Berlim, emblematicamente, marco do fim da Guerra Fria, passou a prevalecer nos países uma visão sistêmica de defesa em que ela deixou de ser uma exclusividade dos militares e passou a exigir a participação de toda a sociedade em seus mais variados segmentos.
Assim, a estrutura de defesa de um país será tão mais robusta quanto mais forte for a participação da área econômica das empresas, da área de ciência e tecnologia, da área acadêmica, do poder político e assim por diante.
Por outro lado, aos militares foi exigido também que eles não se restringissem apenas a se preparar para fazer face ao inimigo. Hoje, a visão consagrada no mundo é a de que as Forças Armadas devem estar em condições de atender qualquer demanda da sociedade. E não há países em que isso não se aplique. Alguém pode dizer, ah!, nos Estados Unidos as Forças Armadas compram esse tipo de atividade, porque lá eles têm a Guarda Nacional, que é praticamente força armada, inclusive as suas unidades são mandadas a participar dos conflitos e ela cumprem esse papel de trabalhar voltada para o território americano.
Falar de defesa no Brasil — e eu pretendo, em linha gerais, traçar algumas considerações sobre a inserção da defesa de um projeto nacional — é difícil, tem pouco apelo, porque não há no país uma percepção de ameaças à soberania e à integridade, nem por partes da população nem por parte das elites dirigentes, diferente, por exemplo, do que ocorre em Israel, ou do que o ocorre no Chile e em tantos outros países. Portanto, um diretor de banco, um reitor de uma universidade, enfim, pessoas dos mais variados setores da sociedade não estão preocupados com ameaça da integridade nacional.
O ministro Jobim, Nelson Jobim, ele dizia que fazia parte de uma geração política em que defesa para eles era repressão e as coisas relativas a isso. Como consequência, esse espaço da defesa foi ocupado inexoravelmente pelos próprios militares e a consequência é que, a consequência foi a grande dificuldade de alocação de recursos adequados para estrutura de defesa. Como se diz no jargão político, defesa não dá voto. Daí a dificuldade, nós nunca vimos, por exemplo, em um debate eleitoral para a Presidência da República, o tema “defesa” ser discutido, aliás não só o tema defesa, outros temas relativos ao Estado, como a política externa, não é embaixador (dirigindo-se ao companheiro de mesa, embaixador Jório Dauster)?
Na última eleição, esses dois temas não foram absolutamente tocados e isso se deve enfim, dentre outros aspectos, nós temos no Brasil, o que poderemos chamar de um passivo geo-histórico, histórico. Nós temos metade do nosso território não ocupado e não integrado à dinâmica do desenvolvimento nacional.
As consequências disso vão além de aspectos concretos, há questões também subjetivas decorrentes, se o território é a base da nacionalidade, vejam que nós não temos na nossa, o sentimento de nação totalmente consolidado. O Brasil foi resultado da criação de um Estado que a partir daí passou a trabalhar para consolidar os aspectos relativos à nacionalidade e isso ainda é incompleto.
O general Heleno costuma dizer que o Brasil é como um superdotado num corpo de adolescente. Ele não tem noção do seu território, não tem a percepção da importância e talvez daí decorra o fato de sermos tão voltados para dentro de nós mesmos. Uma das consequências disso é a nossa dificuldade de assumir uma responsabilidade inexorável que é exercer a liderança na América do Sul. Para exercer a liderança, é necessário primeiro demonstrar capacidade. Segundo, demostrar vontade; e terceiro, ser capaz de inspirar e de mostrar um caminho para o futuro.
Liderança
É muito impressionante quando vemos um militar argentino reclamar de nós, por não assumirmos a liderança na América do Sul. E esse sentimento, as relações militares, com muita frequência expresso, porque os países sul-americanos sabem que a alternativa que eles têm é de se agregar a um grande projeto de desenvolvimento do Brasil, caso contrário serão, estaremos sempre periféricos e não há absolvição para isso.
Nós somos o único grande país não beligerante, poderemos tirar talvez a Austrália, mas todos os demais grandes países são beligerantes. Então, o lado ruim de uma coisa boa, e importante: nos falta esse sentimento de um projeto nacional. E quando vejo essas discussões, em relação à crise que nós vivemos e a busca de caminhos, a minha impressão é que elas são superficiais. Carecem de profundidade e carecem de uma multidisciplinaridade necessária para a mudança da nossa realidade. Em relação a um projeto nacional, o país, o Brasil pela sua dimensão, pelas características que tem, ele não pode prescindir de uma ideologia que lhe dê um caminho, não estou me referindo a ideologia política.
O Brasil foi da década de 1930 à década de 1950 o país do mundo, ou um dos países do mundo que mais cresceu, havia uma ideologia de desenvolvimento, havia um sentido de projeto, havia um ufanismo, os mais velhos vão lembrar da década de 1960 vivendo lá o momento Juscelino, Brasília sendo construída, aterro do Flamengo, aterro de Copacabana, campeão do mundo de futebol, campeão do mundo de basquete, Maria Esther Bueno no tênis, Eder Jofre no boxe, enfim, havia um ufanismo e um otimismo muito grande. Éramos o país do futuro.
Cometemos o erro de, durante a Guerra Fria, permitir que a linha de fratura passasse por dentro e dividisse a nossa sociedade, foi aí que perdemos o sentido de coesão, perdemos essa ideologia do desenvolvimento, sentido de projeto, ficamos um país à deriva. Extremamente perigoso, como disse, pela nossa dimensão, pela nossa estrutura, porque as forças centrífugas estão se fortalecendo e corremos o risco de uma fragmentação, se não uma fragmentação territorial, mas já está a caminho uma fragmentação social. Nesse período, permitimos incorporar ideologias, aliás, dizem que, quando as ideologias ficam velhas, elas se mudam para a América do Sul. E incorporamos tanto ideologias políticas como ideologias sociais que estão nos desfigurando como nação e alterando a nossa identidade.
E há uma tendência no nosso país de todos os problemas serem transformados em ideologias. Quando isso acontece, se perde a visão de resultado e o foco fica sendo na aplicação da ideologia e não no que se pretende buscar como solução.
Isso gera um mais do mesmo, vejam que quanto mais ambientalismo mais problemas ambientais temos. Quanto mais indigenismo, coitados dos nossos índios, mais são relegados ao abandono. Quanto mais luta contra o preconceito racial, mais racialismo. O ministro Aldo Rebelo diz que nós éramos um país de mestiço e estamos nos transformando em país de brancos e pretos. Quanto mais luta ou quanto mais se discute as questões de gênero, mais preconceito nessa área se verifica e por incrível que pareça, até mesmo, está surgindo no nosso país intolerância religiosa.
O que me parece, contudo, é que por trás disso tudo está a nossa falta de disciplina social e a falta de limites que vem desde as carências da nossa educação. Então, essa essência é a causa principal de tudo que tem acontecido, nós perdemos até mesmo, os juristas aqui sabem, conhecem muito melhor do que eu que ínsito da presunção da autoridade, da autoridade presumida.
Nós perdemos até mesmo isso, é autoridade que automaticamente está investindo numa professora quando entra numa sala de aula, é uma autoridade necessária fazer com que aquele universo funcione adequadamente. Autoridades que você reconhece mais como um guarda de trânsito, ou se não, não se reconhece a um motorista de um ônibus, de um coletivo, enfim, então essa falta de limites mostra estar fazendo com que a nossa sociedade vá se desagregando paulatinamente e eu acho muito impressionante a passividade com que assimilamos essas ideologias.
Leonardo Boff
Do ponto de vista político, o frei Leonardo Boff deu uma explicação, muito simples e claro, ele disse que combater o capitalismo com base na luta de classe traz em si um problema, uma desvantagem porque coloca as classes em oposição, mas combater o capitalismo com base nessas ideologias, principalmente no ambientalismo, faz com que todas as classes se coloquem do mesmo lado e entrem em consonância.
Mas a inteligência brasileira não tem percebido é que depois do processo de descolonização — em que os países não têm mais liberdade de ação de exercer seu imperialismo por meio das Forças Armadas no setor — o fazem por meio dessas ideologias, instrumentalizadas pelos organismos internacionais, por organizações não governamentais e assim eu acho curioso que a parcela mais à esquerda do nosso espectro político incorporou totalmente esse novo imperialismo. Imperialismo do final do século XX, do início do século XXI e nós somos de uma passividade incrível, porque temos 80% da Amazônia preservada e admitimos levar lições de países que têm 0,3% das suas florestas originais. A média mundial de preservação das florestas mundiais é de 25%, aproximadamente.
Então, o Brasil não pode e não precisa e não deve aceitar lições de quem quer que seja, como aquele episódio em que a primeira ministra da Noruega cobrou do nosso presidente, em razão de a Noruega ter doado R$ 1 bilhão para a preservação da Amazônia.
Vou contar um episódio pitoresco, eu era comandante militar da Amazônia e indo realizar uma grande operação de fronteira e antes eu determinei que se realizasse uma operação de inteligência. Me liga muito afobado um comandante do Batalhão de Selva de Barcelos dizendo que estava na aldeia ianomâmi Demini e lá encontrou o rei da Noruega. Eu falei, 'ô, coronel, você está com algum problema' — ainda brinquei com ele — 'o senhor fumou tóxico vencido, por que é que o rei da Noruega está na aldeia Demini, área ianomâmi?'. 'General, o rei da Noruega está aqui'.
Eu fui ao ministro, que na época era o ministro Celso Amorin, ministro da Defesa, ele questionou o Itamaraty. Realmente, a visita era decorrente de um acordo sigiloso, o Ministério da Justiça, Funai, Itamaraty, e o rei da Noruega estava na área Ianomâmi. Então a nossa paciência...
Quando estava em votação pelo STF a demarcação da Raposa Terra do Sol lá em Roraima, o príncipe Charles veio à Amazônia, veio ao Brasil, não é? Então, esse assunto, enfim, é um tema que se pode discorrer muito, mas estou apenas usando para exemplificar a nossa passividade. Isso fez com que permitíssemos um déficit de soberania em relação ao nosso território. Vejo que agora o governo quis regulamentar a exploração daquela reserva extrativista lá no Pará e foi, isso gerou imediatamente uma campanha internacional. Então, hoje o Brasil não tem liberdade de ação para uso dos seus recursos naturais. E a Amazônia ela tem a princípio três papéis a cumprir para o Brasil. O primeiro decorre dos recursos naturais que ela tem, o levantamento mais abrangente que eu vi até hoje fala em 23 trilhões de dólares, o segundo diz respeito ao que, do ponto de vista geopolítico, a Amazônia, a Pan-Amazônia abrange nove países e ela, e todas as Amazônias, elas são extremamente semelhantes tanto do que diz respeito ao potencial, quanto no se refere aos problemas que ela apresenta.
Amazônia
E ela, para o Brasil, é uma enorme oportunidade de promovermos a integração e assumirmos a liderança da América do Sul. E terceiro é o grande apelo internacional que a Amazônia apresenta, água, energia renovável, produção de alimentos, mudança climática, biodiversidade, enfim, e por isso ela tem um apelo tão grande perante a opinião pública internacional e de certa forma a Amazônia em relação ao Brasil é vista mais ou menos como o Tibet em relação a Índia, então é uma tarefa urgente que Brasil tem que realizar, porque até hoje nós não temos uma política para Amazônia, não temos um órgão de qualquer natureza, um ministério, uma agencia reguladora, seja lá o que for para coordenar as ações na Amazônia e o que se faz na Amazônia é muito mais baseado, tem muito mais o caráter repressivo do que apoio a sociedade e promoção do desenvolvimento com proteção ambiental. Qualquer ação da Amazônia como diz, tem que ser multidisciplinar, ela tem que conter vetores sociais, ambientais, de conhecimento, de ciência e tecnologia, econômicos e logicamente de defesa e de segurança, então são os papéis que a Amazônia tem para desempenhar.
Dado esse quadro geral, mais com um caráter geopolítico do nosso país, como disse, é difícil tratar de defesa no Brasil e fazer com que a defesa tenha o reconhecimento merecido, e nós tivemos sempre séries orçamentárias muito baixas e mais grave do que isso ainda, vem da imprevisibilidade dos orçamentos, para nós é muito mais importante a regularidade a previsibilidade do que o montante propriamente dito, que nós possamos receber. E eventualmente se vê discussões em função daquele aspecto que eu destaquei, da falta de percepção, da importância da defesa, às vezes até isso atualmente não tem sido comum, mas se discute até mesmo a necessidade de força armada, porque se justifica, como justificar as Forças Armadas? Forças Armadas são instituições permanentes, conforme consagra o artigo 142 da Constituição, que diz que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes vem daquele aspecto da construção da nacionalidade e quando se consolida o sentimento de nação já há ali um embrião da força armada e, quando se adquire independência, a força armada já está presente.
Vejam que esse processo é universal, quase todos os países do mundo têm, como os grandes líderes Wolts, pais da pátria, figura de generais aqui na América do Sul é típico, né? Temos aí San Martín, Bernardo O'Higgins, Bolívar, Artigas e outros, nós não temos porque nosso processo de independência é realmente muito peculiar. Mas é importante então que a defesa seja entendida pelo que podemos chamar de valores, perdão, funções da defesa, isso não é uma condição acadêmica, mas decorre da percepção da realidade.
Numa simplificação, podemos considerar quatro funções, a primeira e a função primordial da defesa é dissuasão, de exercer a capacidade dissuasora, a dissuasão não é um fim em si mesmo ela se insere junto com outros fatores como o poder econômico, como a vontade política, como a ação da diplomacia para que se obtenha a liberdade de ação necessária ao país agir de acordo com os seus interesses exercer a liderança que pretender. Nós temos o exemplo, um contemporâneo, as consequências da perda de capacidade de dissuasão foi o que aconteceu com a Otan em relação à Rússia, o que fez com que a Rússia tivesse liberdade de ação, para agir e fazer o que fez na Ucrânia, por exemplo, e o que está fazendo na Síria. O resultado é que a Otan recomendou aos países membros que elevem de 1,5% para 2% dos Pipas, os gastos com defesa. E a história é repleta de exemplos de países que viveram situações até extremamente graves, catastrófica em função de perda da capacidade de dissuasão. Nós temos a capacidade dissuasória assegurada na América do Sul, mas não ainda internacional, e precisamos fazer, daí a importância dos projetos em andamento, como, por exemplo, submarino nuclear da Marinha, os caças, os gripen da Força Aérea, a força de blindados do Exército, a nossa força de mísseis e foguetes, enfim, tão logo consolidamos esses projetos teremos adquirido essa capacidade de dissuasão, que nos permitirá voltarmos com mais liberdade de ação para dentro de nós mesmos e para a América do Sul.
Defesa
O segundo aspecto, a segunda função da defesa, e as Forças Armadas, aí em especial o Exército, pela capilaridade, eles são guardiões da identidade nacional. Essa, e aí já me referi a esse processo que estamos vivendo, que pode levar a uma perda dessa identidade, nós perdemos a nossa essência e as Forças Armadas pelo processo que me referi, da formação da nacionalidade, elas são de certa forma, guardiões desse, até mesmo dos valores nacionais. Isso tem se refletido, por exemplo, em setores que demandam uma intervenção militar. A pesquisa indicou que 43% da população brasileira pede uma intervenção militar, isso na minha opinião é um termômetro da gravidade do problema que estamos vivendo no país. Uma intervenção militar seria um enorme retrocesso hoje, mas na verdade interpreto também aí como uma identificação da sociedade, os valores que as Forças Armadas expressam, manifestam e representam. E as pesquisas de opinião mostram também que, invariavelmente, as Forças Armadas estão em primeiro lugar no índice de credibilidade perante a sociedade.
O terceiro papel da defesa e das Forças Armadas é contribuir para o desenvolvimento nacional, faz parte da indução do desenvolvimento. Nós temos alguns dados aqui, e a nossa indústria de defesa hoje ela movimenta 3,7 % do PIB, ela gera 60 mil empregos diretos e 240 mil empregos indiretos, o movimento é de mais ou menos R$ 200 bilhões por ano, e todos os países desenvolvidos, nenhum país chegou ao primeiro mundo importando produtos de defesa. E todos eles têm a estrutura de defesa com um forte componente de indução do seu desenvolvimento econômico e também com muita relevância na área de ciência e tecnologia, já que as tecnologias são duais, qualquer tecnologia desenvolvida na área de defesa assistente a outras áreas. Segundo a Fipe, cada real investido em programas de defesa gera um multiplicador de 9,8 em relação ao PIB, então eu vejo que realmente se trata de um grande investimento.
E passando ao último fator, ou a última função da defesa, é a de que as Forças Armadas devem hoje atender às demandas da população, assim é que, como disse, as Forças Armadas hoje não devem se limitar apenas a se preparar para fazer face ao inimigo, ela tem que atender a qualquer necessidade, assim é que, por exemplo, hoje, um dia como hoje o Exército está participando de 58 operações de natureza variadas no território. Temos hoje 3.100 militares atuando, operando nesse momento. E aí nós temos operações de apoio a órgãos governamentais, a área ambiental, a área indígena, na área de saúde, os programas de combate a proliferação dos mosquitos, da zika, chikungunya etc. Temos operações de fronteira permanentemente em realização, temos as operações de garantia da lei e da ordem, como está em andamento aqui no Rio de Janeiro e a que realizamos recentemente no Rio Grande do Norte, aliás em um ano e meio fomos empregados três vezes no Rio Grande do Norte, e nesse espaço de tempo não houve nenhuma modificação estrutural no sistema de segurança pública naquele estado, e nós sabemos que logo seremos chamados a intervir novamente. Temos operações de defesa civil, por exemplo, distribuímos água a 4 milhões de habitantes do polígono da seca no Nordeste, fazemos isso, senhoras e senhores, há 14 anos já. O governo despende, mais ou menos, R$ 1 bilhão por ano nesse programa emergencial, 14 anos, já são lá R$ 14 bilhões, poderiam ter sido empregados em obras estruturais para modificar aquela realidade, e assim, enfim, permanentemente somos empregados.
No ano passado, 2017, tivemos 507 operações, com mais de 130 mil militares sendo empregados. Então vejo que as Forças Armadas exigem sistemas de proteção social particulares, peculiares, para que se tenha sempre uma instituição para ser empregado a qualquer momento, em qualquer local, e por um tempo indefinido.
Então, essas quatro funções da defesa precisam ser inseridas nesse sentido de projeto que nós urgentemente temos que desenvolver. Eu espero que na campanha eleitoral deste ano nós consigamos colocar esses temas em discussão junto com outros temas de Estado, e já estamos até, confesso, trabalhando, fazendo contato com os candidatos já, mais ou menos, consolidados e oferecendo até consultoria e ajuda para que eles trabalhem nesse sentido.
Então esse era um dos aspectos que eu queria apresentar aos senhores, agradeço pela oportunidade e pela paciência de me ouvir.
Muito obrigado."
Saída da crise deve vir da eleição de 2018, diz comandante do Exército
O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirma que a saída para a crise do país "está nas mãos dos cidadãos brasileiros", que poderão, "nas eleições de 2018, sinalizar o rumo a ser seguido".
Fábio Victor
Da Folha de São Paulo
Voz moderada em meio à cacofonia histérica de extremos ideológicos que marca a crise, na qual volta e meia grupelhos clamam por intervenção militar, Villas Bôas diz que "o Brasil e suas instituições evoluíram e desenvolveram um sistema de pesos e contrapesos que dispensa a tutela por parte das Forças Armadas" e reitera que a Constituição deve prevalecer: "Todos devem tê-la como farol a ser seguido".
A entrevista foi feita via e-mail, por opção da assessoria do Exército, e as perguntas foram enviadas no dia 4 de julho, sendo respondidas 23 dias depois, na quinta (27).
Folha - Pesquisa Datafolha recente mostrou que as Forças Armadas são a instituição do país em que a população mais confia hoje, enquanto a Presidência, o Congresso e os partidos são as instituições menos confiáveis. Como interpreta esses dados?
Eduardo Villas Bôas - Esses números nos impõem uma imensa responsabilidade. As Forças Armadas, que constituem um corte vertical da sociedade e possuem representantes de todo o espectro social, são reconhecidas por serem uma reserva de valores, como integridade, ética, honestidade, patriotismo e desprendimento.
Elas sempre estiveram presentes em momentos importantes da história de nossa nação. Algumas vezes, com o Braço Forte e, inúmeras vezes, com a Mão Amiga. Por conseguinte, essa confiança configura um capital intangível que nos é muito caro. Demonstra que a maioria esmagadora da população nos observa atentamente e nos avalia.
Pela primeira vez na história, um presidente foi denunciado por corrupção no exercício do mandato. Como acompanha essa crise? Acha que o presidente Temer tem condições éticas de permanecer no cargo?
Vivemos um período de ineditismos. Mas o fato de seguirmos batalhando, em nosso dia a dia, demonstra que as nossas instituições ainda estão funcionando, mesmo com a crise pela qual elas e o país vêm passando. Cabe-lhes atuar no limite de suas atribuições, sempre com o sentido de se fortalecerem mutuamente. Neste momento, o que deve prevalecer é a Constituição Federal e todos, repito, todos devem tê-la como farol a ser seguido.
Há quem compare a crise atual com aquela vivida em 1964. É possível fazer essa analogia?
Comparações podem ser feitas, mas o Brasil é, hoje, um país muito mais complexo e sofisticado. Naquela época, havia uma situação de confronto característica da Guerra Fria, com a ação de ideologias externas, que fomentaram ameaças à hierarquia e à disciplina nas Forças Armadas, aspectos que não estão presentes nos dias atuais.
O Brasil e suas instituições evoluíram e desenvolveram um sistema de pesos e contrapesos que dispensa a tutela por parte das Forças Armadas. Hoje, elas estão cientes de suas missões e capacidades e mantêm-se fiéis aos ditames constitucionais.
É chegada a hora de consentir que o período que engloba 1964 é história e assim deve ser percebido.
Em manifestações recentes, o sr. fez uma defesa enfática da Lava Jato. Como analisa os movimentos que vão na contramão da faxina ética pretendida pela operação (julgamento no TSE, liberação de Rocha Loures, devolução do mandato de Aécio etc.)?
As instituições estão trabalhando e buscando resolver essa crise, que está atingindo nosso cerne e relativizando nossos valores.
Tenho afirmado que, além da crise política, vivemos um momento em que faltam fundamentos éticos e no qual o "politicamente correto", por vezes mal interpretado, prejudica nossa evolução. Falta-nos uma identidade e um projeto estratégico de país. País com letra maiúscula. Por isso, costumo dizer que estamos à deriva.
No entanto, considero essa crise uma oportunidade, que poderá auxiliar a nação a se sanear, sem influências ideológicas ou políticas.
A Lava Jato simboliza a esperança de que se produza no país uma mudança fundamental, em que a ética seja nossa parceira cotidiana e a sensação de impunidade, coisa do passado.
Como o Exército se posiciona sobre a candidatura de Bolsonaro, um militar da reserva, à Presidência? E como vê o uso que ele faz da condição de militar na campanha (disse, por exemplo, que, como capitão, sua especialidade era "matar")?
Todo cidadão tem o direito de ser candidato a qualquer cargo eletivo. É natural que o deputado Jair Bolsonaro use seu currículo e sua história pessoal, como ex-integrante do Exército, em sua campanha. Como integrante da reserva, ele sempre terá o nosso reconhecimento e o nosso respeito.
No entanto, e em última análise, é a população quem vai julgar os partidos e os candidatos, por intermédio do voto, devendo, para tanto, conhecer muito bem os projetos e ideias de cada um deles.
Destaco que o Exército, como instituição permanente, serve ao Estado e não a pessoas, estando acima de interesses partidários e de anseios pessoais.
A dimensão da crise favorece o surgimento de candidatos populistas e aventureiros. Como vê essa possibilidade e como analisa o quadro eleitoral para 2018?
Acho que a falta de um projeto nacional tem impedido que a sociedade convirja para objetivos comuns. Isso inclui, até mesmo, a necessidade de referências claras de liderança política que nos levem a bom porto.
Talvez seja um reflexo de os brasileiros terem permitido, no passado, que a linha de confrontação da guerra fria dividisse nossa sociedade.
É preciso que a crise que estamos vivendo provoque uma mudança no debate político para 2018. É necessário discutir questões que possibilitem preparar um projeto de nação, decidir que país se quer ter e aonde se pretende chegar. Está difícil de identificar, no Brasil de hoje, uma base de pensamento com capacidade de interpretar o mundo atual, de elaborar diagnósticos estratégicos apropriados e de apontar direções e metas para o futuro.
Está nas mãos dos cidadãos brasileiros a oportunidade de, nas eleições de 2018, sinalizar o rumo a ser seguido.
O sr. é um crítico do uso das Forças Armadas em funções de polícia. O que achou de o presidente Temer ter assinado um decreto convocando as Forças Armadas para coibir um protesto que descambou para a violência em Brasília? Essa tarefa não seria da polícia?
O Exército brasileiro é uma instituição que tem suas missões reguladas na Constituição, mais precisamente no artigo 142. Nele, observam-se três tarefas claras: a defesa da Pátria; a garantia dos poderes constitucionais; e a garantia da lei e da ordem.
O emprego das Forças Armadas nas manifestações que ocorreram na Esplanada dos Ministérios se deu em uma situação de emergência e teve caráter preventivo. Havia um sério risco de o patrimônio público ser dilapidado. A integridade física das pessoas também estava em perigo.
Não é possível aceitar que vândalos infiltrados nas manifestações permaneçam sem identificação e fiquem impunes. A ação dessas pessoas deslegitima qualquer manifestação e agride a democracia.
O sr. tem reiterado que "não há atalhos fora da Constituição" e demonstrado ser um defensor intransigente da democracia. Como analisa e a que atribui as manifestações no país por intervenção militar?
As manifestações demonstram um cansaço da população com os escândalos que temos visto. Elas refletem a materialização do capital de confiança apresentado nas pesquisas. Uma instituição que detenha 83% de confiabilidade é uma exceção em um ambiente degradado.
Porém, como tenho dito, vemos tudo isso com tranquilidade, pois o Exército brasileiro atua no estrito cumprimento das leis vigentes e sempre com base na legalidade, estabilidade e legitimidade.
Numa postagem recente em uma rede social, o sr. exaltou o marechal Castello Branco, um dos artífices do golpe militar de 1964. Que mensagem quis passar ao dizer que Castello Branco é "um exemplo de líder militar a ser seguido"?
Herói da campanha da Itália, ele já seria um exemplo por ter participado da Força Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra Mundial.
Mais tarde, em 1964, o Marechal Castello Branco foi o líder que civis e militares encontraram para dirigir os rumos da nação naqueles momentos conturbados e que, hoje, devem ser compreendidos dentro do contexto vivido à época.
Com sua visão de estadista, foi o responsável por alterações na legislação, que afastaram os militares da política partidária e que norteiam, até hoje, a permanência das Forças Armadas em seus quartéis, no estrito cumprimento do dever constitucional.
As Forças Armadas brasileiras não reconhecerão os erros e atrocidades que cometeram durante a ditadura?
A lei da anistia, compreendida como um pacto social, proporcionou as condições políticas para que as divergências ideológicas pudessem ser pacificadas. Ela colocou um ponto final naquela fase da história. Precisamos olhar para o futuro, atendendo ao espírito de conciliação.
O sr. costuma ressaltar a gravidade do quadro da segurança pública no País, com número de mortes equivalente ao de guerras. Como resolver ou pelo menos minimizar esse problema?
Esse problema exige uma resposta que envolva distintos atores da sociedade. Mas a solução deve, necessariamente, passar pela valorização e capacitação das forças de segurança pública. Passa, igualmente, pelo efetivo combate ao tráfico de armas e de drogas, hoje, grandes indutores da violência nos principais centros.
Da mesma maneira, o princípio da autoridade deve ser fortalecido e o sentido da disciplina social e do coletivo nacional –sem luta de classes– deve ser recuperado. Existe no Brasil uma excessiva compreensão com direitos e uma enorme negligência com deveres.
Há, também, excesso de diagnóstico e pouca ação efetiva e prática. Imaginar-se que apenas a vertente policial poderá resolver essas questões é ledo engano.
As ações de segurança pública devem, sim, estabelecer metas e prioridades. Exigem cooperação entre atores públicos e privados e deve ter, por ferramentas, programas sociais e serviços públicos, que fogem à esfera da Segurança Pública, adequados à região e à população.
Como está a negociação para alterar a Previdência dos militares? Estão definidos a idade mínima, o tempo de contribuição e o teto? O que o sr. defende? E há alguma perspectiva em relação ao reajuste salarial dos militares?
Os integrantes das Forças Armadas não têm sistema previdenciário, como, aliás, já descreve a Constituição. O que temos é proteção social, de acordo com as peculiaridades da profissão militar, já bem compreendidas por alguns setores da sociedade.
O Ministério da Defesa está coordenando os trabalhos de um grupo técnico com militares das três Forças Armadas, para propor medidas mais amplas nas áreas da reestruturação da carreira militar, da redução da defasagem remuneratória e da adequação de regras ao sistema de proteção social. São mudanças que terão consequências e reflexos mais duradouros no futuro.
Aliás, o próprio presidente da República, no final do ano passado, reconheceu a enorme defasagem salarial dos militares das Forças Armadas em comparação com as outras carreiras de Estado.
Recentemente, nas audiências em que participei nas comissões da Câmara e do Senado, também os parlamentares ficaram surpresos com essa discrepância.
Os objetivos estão traçados para o longo prazo e vão muito além da mera redução de despesas para a União. Eles visam à manutenção da atratividade da carreira militar e à atração e retenção de profissionais vocacionados, motivados, capacitados e com valores éticos e morais condizentes com a profissão que detém o poder de uso da violência institucional em nome do Estado.
Quero deixar claro, no entanto, que os militares não se furtarão a contribuir com a reforma. Estão dispostos a dar sua cota de sacrifício, comportamento que já tomamos inúmeras vezes no passado.
Qual a principal função das Forças Armadas, do Exército em particular, no Brasil de 2017?
Essa resposta é atemporal. Arguimos os nossos interlocutores sobre a importância das Forças Armadas em países com as nossas dimensões e potencialidades. Não raras vezes, nos surpreendemos com respostas superficiais, quando não, completamente distorcidas.
Quem leva o Estado Brasileiro às longínquas fronteiras, contribuindo para a presença nacional? As Forças Armadas!
Quem respalda decisões do Estado brasileiro perante outros Estados, impondo a nossa vontade por meio da dissuasão? As Forças Armadas!
Qual país verdadeiramente relevante do ponto de vista geopolítico descarta suas Forças Armadas? Nenhum!
Se você possuísse bens extremamente valiosos, estaria disposto a pagar para mantê-los? Estou seguro de que sim.
Desse bem a nossa sociedade já dispõe, mas não se apercebeu do quão importante é protegê-lo. Esse bem é a nossa liberdade.
Assim, é mister discutir mais sobre nossas Forças Armadas, para que, ao conhecê-las, saibamos valorizá-las e respeitá-las.
O sr. tem uma doença degenerativa, sobre a qual já se manifestou com transparência publicamente. Como está sua saúde hoje? De que modo a doença tem limitado sua atuação? Até quando o senhor tem forças para ficar no posto?
Conforme comentei em outras ocasiões, fui acometido por uma doença degenerativa que atingiu alguns grupos musculares, restringindo minha capacidade de locomoção.
Sinto falta de viajar, de percorrer as nossas unidades, de estar junto com a tropa. Busco vencer os desafios dia a dia e sigo no tratamento. Tenho um objetivo maior de servir à pátria e continuo a persegui-lo.
O general Sérgio Etchegoyen, de quem o sr. é conterrâneo e amigo, ganhou força no governo, e há quem comente que poderia substitui-lo. Existem articulações nesse sentido? Como vê a possibilidade? Como é a relação entre vocês?
A substituição dos comandantes de força é atribuição exclusiva do presidente da República. Quanto ao general Etchegoyen, ele é meu amigo pessoal, há mais de 50 anos, como você mesmo destacou. Trabalhamos juntos em várias oportunidades e, além da amizade, fortalecida a cada dia, mantemos agradável convivência familiar.