GENERAL CARLOS ALBERTO SANTOS CRUZ

Santos Cruz: O governo Bolsonaro, a população e as Forças Armadas

Extremos não podem impor sua agenda, aventureiros não podem ser tolerados

Carlos Alberto dos Santos Cruz / O Estado de S. Paulo

O presidente da República, senadores, deputados, prefeitos e vereadores são eleitos para assumirem suas responsabilidades e fazer o que é possível dentro da lei. O governo é eleito para governar e reforçar o regime democrático por meio do aperfeiçoamento das instituições, promover a paz social e o respeito pessoal, funcional e institucional.

Nenhuma autoridade pode ser agente de desmoralização e de enfraquecimento das estruturas existentes, promover fanfarronices, factoides, passeios com dinheiro público e alegar que não o deixam trabalhar. O populismo, a demagogia e a agitação social não podem ser praticados por autoridades.

A população, pelo voto, elege a pessoa e legitima a autoridade. Na democracia, o equilíbrio existe por uma dinâmica de forças entre os Poderes e outros núcleos de influência. As disputas e os conflitos são resolvidos dentro da legislação vigente. Também podem ser propostas modificações nas leis, dentro das normas e dos procedimentos que devem ser respeitados. Quando o equilíbrio é instável ou rompido, ele tem de ser restabelecido também de acordo com a lei.

Todas as manifestações públicas dentro da lei são válidas e importantes. Elas fazem parte do ambiente democrático, da liberdade de expressão e do jogo de pressões. O estímulo a soluções de força, fora da lei, com risco de violência, é criminoso e covarde. Aqueles que se perdem em suas ações têm de arcar com as consequências legais. Normalmente os extremistas, os incitadores da violência, desaparecem e ficam impunes, pois são covardes na sua essência. As pessoas, na sua luta por aquilo em que acreditam, seja qual for a linha, não devem cair na armadilha dos covardes, dos irresponsáveis e dos inconsequentes.

A convocação de manifestações não pode ser para transferir responsabilidades para a população, para outros Poderes, instituições, e para as Forças Armadas. Isso é falta de coragem funcional. A responsabilidade é intransferível.

É difícil definir democracia. É mais fácil observar algumas de suas características, como o respeito, a liberdade, as eleições periódicas, a igualdade, a dignidade, etc. Uma das expressões mais famosas é a de que a democracia é o “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Isso é fundamento conceitual. Na prática, a responsabilidade governamental é transformar essa abstração em realidade com ações dentro da lei, que foi feita pelo povo, por intermédio de seus representantes, ao longo do tempo. As leis sempre podem ser melhoradas, aperfeiçoadas e ajustadas aos tempos atuais, dentro da ordem legal. Fora disso é fuga da responsabilidade, demagogia, populismo, assembleísmo.

Uma manifestação, mesmo que numerosa, com toda a sua validade, não representa a vontade de um povo inteiro. O que representa a vontade de um povo, na democracia, é o voto, que pressupõe, de antemão, o respeito à decisão da maioria.

É desrespeito às instituições militares inventar falsas justificativas e interpretações de conveniência para empurrar seguidores a pedirem intervenção de Forças Armadas (FAs), usar o prestígio e o poder militar como instrumento de intimidação e pressão política, para atingir objetivos de poder pessoal e de grupos. As FAs não podem ser exploradas e desgastadas por interesse político.

Deturpar o artigo 142 da Constituição federal é artimanha e demagogia. Não é verdade que as FAs sejam garantidoras da independência e da harmonia entre os Poderes. Não é isso o que diz a Carta Magna. Não existe nenhuma pista no artigo 142 que ampare essa interpretação. Também não existe nenhuma legitimidade em considerar as FAs “poder moderador” por conta de qualquer narrativa de conveniência. As FAs existem para a defesa da Pátria, para a garantia dos Poderes constitucionais, da lei e da ordem. Não cabe no Brasil atual a ideia de interferência de FAs no funcionamento e exercício dos Poderes da República.

Não estamos na guerra fria, no pós-2.ª Guerra Mundial. Estamos em 2021. O Brasil não vive uma opção única entre a ameaça de caos e um “salvador da pátria”, uma disputa entre amigos e inimigos, direita x esquerda. Isso é manipulação da opinião pública e a redução do nosso país à mediocridade da divisão social binária. Os problemas reais de nosso povo são a corrupção persistente, a fome, o desemprego, a falta de saúde pública, de educação, de segurança pública, de aplicação da lei, a desigualdade social e os privilégios imorais.

Extremos de qualquer matiz não podem impor suas agendas. Aventureiros não podem ser tolerados.

A Constituição e a legislação têm todos os recursos para encaminhar soluções legais. A manutenção ininterrupta de campanha política, de conflito permanente, causa prejuízo à paz social e insegurança, com consequências negativas principalmente para as atividades econômicas e para a vida dos mais necessitados. O governo precisa é transmitir equilíbrio, paz social, cumprir as leis, dar atenção aos principais problemas e exercitar a habilidade política nas disputas.

GENERAL DA RESERVA, FOI MINISTRO DA SECRETARIA DE GOVERNO

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-governo-a-populacao-e-as-forcas-armadas,70003824540


Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras’

Em entrevista à revista Política Democrática Online de maio, ex-ministro de articulação política de Bolsonaro critica “festa dos irresponsáveis”

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Ex-ministro de articulação política do governo Bolsonaro, o general Carlos Alberto Santos Cruz defende a vacinação como a saída para retomar a normalidade, inclusive econômica, elenca os efeitos da falta de respeito institucional no país e critica o que chama de “festa dos irresponsáveis”.

Santos Cruz concedeu entrevista à revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), lançada nesta sexta-feira (14/5), pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, vinculada ao Cidadania e que produz e edita a publicação. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no portal da entidade.

Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021

O general considera que a democracia brasileira “corre alguns riscos, mas não no sistema e, sim, em pontos específicos”. Ele diz não acreditar que uma medida aventureira qualquer venha a ter resposta positiva. “Não acredito porque as instituições, embora fracas e carentes de aperfeiçoamento continuado, existem e não vão aceitar ações aventureiras por parte do governante”, afirma.

Fanatismo

No caso das Forças Armadas, cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, Santos Cruz não vê a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional. “Outros riscos decorrem de atos fomentados por grupos de fanáticos, cujo desenlace é sempre a violência. O fanatismo é de fato um risco, mas não o vejo capaz de contaminar a sociedade”, avalia.

As Forças Armadas, segundo o ex-ministro, têm dentro delas um sistema de liderança que abarca todos os militares. “Individualmente, são todos eleitores, e podem votar em quem quiser. Não há problema nenhum. Mas, uma vez de uniforme e dentro da instituição, o militar segue o comando institucional. Isso é uma cultura”, acentua.

Ao longo de 47 anos de carreira no Exército, o general diz nunca ter visto discussões de caráter político dentro da corporação. “Zero discussões acerca de política. É cultural. Entrou no quartel, acabou a discussão. Você pode ir discutindo no carro. Entrou no quartel, acabou”, destaca.

“Efeitos preocupantes”

Na avaliação do ex-ministro, um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e funcional tem efeitos graves para a sociedade. “Isso tem efeitos multiplicadores preocupantes. Por exemplo, a conduta de fanáticos, de pequenos grupos de extremistas desqualificados, de baixíssimo nível. Essa conduta tem influência e não contribuirá para conduzir o país a boas soluções”, observa.

Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online

Santos Cruz diz, ainda, que o país assiste a “uma festa dos irresponsáveis”. “A internet é uma ferramenta de comunicação fantástica. Só que, da maneira como se está observando, é uma verdadeira festa de exageros, oportuna para os fanáticos, para gente sem limites”, afirma.

A entrevista na íntegra está disponível para leitura na versão flip da revista, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

 

Leia Também

Clique aqui e veja todas as edições anteriores da revista Política Democrática Online


RPD || Entrevista Especial – Forças Armadas manterão fidelidade à Constituição, diz Santos Cruz

Por Caetano Araújo e André Amado  

O Brasil já se encontra no terceiro ano do governo Bolsonaro, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento graves. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, que é a vacinação da população, da recuperação da economia e o reforço das instituições do país, avalia o gerenal da reserva Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência da República do atual governo e entrevistado especial desta 31a edição da Revista Política Democrática Online.

“Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional”, diz Santos Cruz, que também foi secretário nacional da Segurança Pública na gestão do presidente Michel Temer e comandou as missões da ONU no Haiti e na República Democrática do Congo. Para ele, no caso das Forças Armadas, por exemplo, “cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional”, completa.

Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Santos Cruz também comenta sobre a questão da Amazônia e o meio ambiente, o papel do Brasil no cenário internacional, polícias militares, liberação de armas de fogo, segurança pública, cidadãos armados e o comunismo, o grande inimigo do bolsonarismo. “O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo”, alerta.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do general Carlos Alberto Santos Cruz.

Revista Política Democrática Online (RPD)Na situação de crise que vivemos, podemos considerar o comportamento do presidente da República como uma ameaça à democracia? 

General Carlos Alberto dos  Santos Cruz (SC): Antes de mais nada, é preciso contextualizar o momento brasileiro. Há alguns pontos que precisam ser focados. O primeiro deles é a pandemia, um trauma social, que já ceifou mais de 400 mil vidas. Todos nós conhecemos pessoas, famílias, conhecidos, parentes que se foram com a pandemia. Isso está afetando demais a sociedade brasileira. A vacinação é nossa saída, mas ela não está disponível em quantidade suficiente, o que causa enorme apreensão, tanto mais porque os cuidados que todos deveríamos seguir não estão sendo respeitados, por várias razões.  

O segundo ponto é a economia, que não passa por um bom momento. Mas o cidadão comum não está ligado nisso. Só os que têm alguma noção de economia sabem que nossa situação não é fácil nem boa. A vacina é a única maneira de restaurar a normalidade das atividades econômicas. Como, então, tratar da pandemia e da economia ao mesmo tempo?  

Os mais desassistidos estão sendo duramente afetados. Muitos de nós conseguimos passar bem de algum modo, mas as pessoas que perderam sua atividade econômica, que não têm rendimento garantido, são mais sacrificadas. É preciso destinar recursos federais para esse pessoal. Não adianta só jogar bilhões em emendas parlamentares. A prioridade é para quem está passando fome e outras necessidades.

“Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e  funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes”

Já estamos no terceiro ano de governo, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento grave. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, isto é, a vacina, a economia, a fome. Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional. As instituições estão carentes de apoio, de planejamento. Por exemplo: o Ibama e o ICMBio, com responsabilidade de fiscalização do meio ambiente, são criticados por ineficiência. A solução tem sido mandar o Exército em apoio. O Exército pode ajudar temporariamente, mas o fundamental é reforçar a estrutura das instituições. Caso contrário, os problemas não estão sendo corrigidos. Outro exemplo: critica-se o STF. Mas o que o Executivo e o Legislativo têm feito para melhorar o Supremo? Quais propostas foram apresentadas para alterar as atribuições, estabelecer novos critérios de escolha, prazos dos mandatos? Não adianta atacar, propor melhorias milagrosas. O objetivo tem de ser aperfeiçoar as instituições e, assim, fortalecê-las.

Nossa democracia corre riscos? Corre alguns riscos, mas não no sistema e, sim, em pontos específicos. Por exemplo, não acredito que uma medida aventureira qualquer venha a ter resposta positiva. Não acredito, pois as instituições, embora fracas e carentes de aperfeiçoamento continuado, existem e não vão aceitar ações aventureiras por parte de governante. No caso das Forças Armadas, por exemplo, cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional. Outros riscos decorrem de atos fomentados por grupos de fanáticos. E o desfecho do fanatismo é sempre a violência. O fanatismo é de fato um risco, mas não o vejo capaz de contaminar a sociedade. 

RPDPode-se entender que a falta de planejamento, de respeito às instituições e de liderança nas altas esferas do governo tenham justificado sua decisão de deixar o Palácio do Planalto?  

SC: Não. Era início de governo. Alguns problemas já eram bem nítidos, mas não totalmente caracterizados. Eu fui dispensado da minha função pelo presidente da República, o que é uma prerrogativa daquela autoridade. Não tem nada de errado. Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e  funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes. Por exemplo, a conduta de fanáticos, de pequenos grupos de extremistas desqualificados, de baixíssimo nível, cujo linguajar expresso em redes sociais constrange repetir em entrevistas. Essa conduta tem influência e não contribui para conduzir o país a boas soluções.  

RPDExistiriam dois exércitos, duas Forças Armadas que se poderiam posicionar diferentemente em relação a um agravamento da situação conjuntural política brasileira?  

SC: Não vejo nenhuma possibilidade disso acontecer. As Forças Armadas têm dentro delas um sistema de liderança que abarca a todos os militares. Individualmente, todos são eleitores e podem votar em quem quiser. Não há problema nenhum. Mas, uma vez de uniforme e dentro da instituição, o militar segue o comando institucional. Isso é uma cultura. Fiquei 47 anos dentro do Exército e nunca vi discussões de caráter político. Zero discussões acerca de política. É cultural. Entrou no quartel acabou a discussão. Você pode ir discutindo no carro. Entrou no quartel, acabou!  

Os três comandantes que foram recentemente substituídos, por exemplo, deram poucas declarações sobre a saída. Tomaram posse três outros militares também excelentes. Manteve-se a mesma filosofia. Nada mudou. Nada. Pessoas da mesma cultura, da mesma geração de formação, todos contemporâneos 35, 40 anos dentro da mesma força. Não tem como você quebrar isso. Não adianta. Não será um aventureiro qualquer que vai pegar e quebrar um sistema desses.  

“Não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança”

RPDIncitação à violência por meio da internet, tentativa de disseminar o acesso a armas sem o controle devido, flerte com reivindicações corporativas da Polícia Militar, essa mistura explosiva pode levar a uma explosão de fato? 

SC: Risco sempre existe, mas de pequenas coisas. Até porque nós estamos assistindo a uma festa dos irresponsáveis. A internet é uma ferramenta de comunicação fantástica. Estamos cada um em nossas casas fazendo essa reunião virtual. São recursos maravilhosos. Só que, da maneira como se está observando, é uma verdadeira festa de exageros, oportuna para os fanáticos, para gente sem limites. Já existem providências em defesa da sociedade, no plano legislativo. Por exemplo, a legislação de combate às notícias falsas, as famosas fake news, que alimentam o fanatismo. Não tem nada a ver com liberdade de expressão. Permanecem válidos os crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos no Código Penal.  

Sobre as polícias militares, é importante frisar que vivemos num modelo federativo. Tanto o governador como as instituições do Estado têm de seguir não só a constituição federal, mas também a estadual. O Legislativo e o Judiciário têm de atuar. Se o governador ou as instituições policiais violarem a lei, eles têm de ser responsabilizados. 

Cabe lembrar que as polícias militares têm pessoas muito boas, em geral muito bem preparadas.  O nível é bom. Esse pessoal é sensível à cadeia de comando. Eu não tenho dúvida nenhuma. Temos hoje 500 mil policiais militares no Brasil, que estão na rua em contato direto com a população. É um trabalho difícil. Sempre pode ocorrer erros. Em geral, erros pessoais. Isso é muito explorado, mas não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança.  

Sobre o problema das armas de fogo, não tenho dúvida de que a polícia militar e a polícia civil estão insatisfeitas com essa tentativa de liberar armas  sem o devido controle. Isso dificulta o trabalho dos policiais. Eles já têm a quem enfrentar, e ainda mais as armas fora de controle na mão de crime organizado, de milícias etc. É um problema essa liberação de armas sem um bom critério. Uma coisa é o comércio regulamentado. Sou a favor do que já existe, e é controlado pela Polícia Federal e o Exército. Só que as medidas de controle e de rastreamentos que o Exército fez dois anos, um ano e meio atrás, foram anuladas pelo presidente. O Exército é um órgão que trabalha só com o interesse técnico. Foi muito ruim anular esse controle.  

Existem distorções de concepção. A segurança pública é obrigação do Estado. Não pode um governo estimular as pessoas a se armarem para melhorar a segurança pública. Isso é falta de noção completa, falta de noção das suas obrigações, porque segurança pública é obrigação do Estado e tem de ter um plano nacional de segurança pública. Isso passa pela valorização e treinamento do efetivo da polícia, pelo aperfeiçoamento da legislação, orçamento etc. Todos têm de estar envolvidos – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo. Tanto quanto dizer que o Japão não invadiu os Estados Unidos, na segunda guerra, porque os Estados Unidos tinham não sei quantos milhões de armas nas mãos dos civis. Teoria sem cabimento. Imagina a logística militar que se exigiria do Japão para invadir os Estados Unidos. Tais argumentos animam certo frenesi, uma esquizofrenia política. Tudo isso, sem dúvida nenhuma, significa risco. Se não é risco geral, ao menos localizado, com algumas possíveis iniciativas pontuais. Mesmo nos Estados Unidos, essas maluquices levaram a violências localizadas. Vejo, portanto, também aqui, risco de violência ao menos limitadas. 

RPDO que se pode dizer da versão defendida por alguns setores das Forças Armadas de que, de um lado, propostas de cooperação com comunidade de nações no tocante ao desmatamento da Amazônia podem disfarçar alegada cobiça internacional sobre a região e, de outro, que a ameaça do comunismo para a sociedade brasileira ainda persiste. 

SC: Com 15 dias de casado, 44 anos atrás, 1977, cheguei na Amazônia, em Tabatinga e Ipiranga, na beira do rios Solimões e Içá. Fiquei lá um ano e meio, sem telefone celular nem televisão, com a Radiobrás iniciando transmissão com maior potência para competir com as emissões em espanhol provenientes dos Andes.  

O pessoal militar tem um sentimento de propriedade da Amazônia, porque ali deixou seu sacrifício. Para mim, não foi sacrifício. Foi grande satisfação. Mas o pessoal tem essa cultura. É normal. A cobiça internacional sobre a Amazônia existe. E isso mexe muito com o brasileiro. Só que o pessoal também tem de entender que existem assuntos que são mundiais. No caso do meio ambiente e do clima, são assuntos mundiais em que estamos inseridos. A Amazônia é nossa, claro. Todo mundo sabe que é nossa. Mas a gente não pode, por causa disso, dizer que “eu faço o que eu quero, não participo de convenção do clima, não participo de discussões de meio ambiente e também não sigo determinados padrões de desenvolvimento”. Não é assim. 

Essa é uma questão muito sensível, e o Itamaraty tem condições de ocupar uma posição de liderança por conta de boa formação de seu pessoal, mas tem de seguir a diretriz que é dada pelo governo. Ainda em 2019, logo após a assunção deste governo, busquei contato com o Chanceler e sua equipe, para transmitir-lhes minha visão sobre alguns pontos de política exterior. Sempre tive muita ligação com o Itamaraty. No curso de minhas viagens ao exterior, costumava visitar os embaixadores brasileiros. 

Lembro-me de ter comentado que, embora prioridade da política externa, os Estados Unidos não se resumiam a Donald Trump.  Sobre meio ambiente e clima, penso que deveríamos tratar da questão com uma perspectiva mais ampla e com finalidade social. Tive oportunidade de falar sobre essa matéria com autoridades francesas, em particular com a agência de desenvolvimento, quando destaquei a importância de investimentos no Brasil, em especial no Nordeste. Depois, saí e não acompanhei mais o assunto. 

É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim

As riquezas em terras indígenas despertam a cobiça de nações estrangeiras? A perspectiva de bloqueio internacional faz parte dessa estratégia? Sou da opinião de que devemos consolidar uma liderança sobre a matéria e conversar com todos, para angariar a boa vontade da cooperação internacional.  Mas fica difícil convencer nossos potenciais parceiros se nem no nosso horizonte geográfico mais próximo, América do Sul, tivemos o impulso de convocar uma reunião sequer do Pacto Amazônico, mesmo sediando em nosso território a secretaria executiva desse órgão multilateral. Poderíamos desenvolver projetos dentro das terras indígenas, por exemplo, promovendo reuniões periódicas em Manaus, Porto Velho e em outras cidades da Amazônia, para demonstrar nosso interesse, nossa liderança, e conquistar boa vontade. Tem de ter orçamento para isso. Traríamos também representantes da França, afinal um país com território na Amazônia.  

Quanto ao comunismo, registro que morei na Rússia por dois anos e um ano nos Estados Unidos. Pelo que vi, concluí que o Brasil não aproveitou o que existe de bom nos Estados Unidos e na Rússia. O Brasil poderia ter feito uma boa combinação, mas não fez.  O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo. Só os patriotas que andam de verde e amarelo, e os demais são inimigos. É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim. 

Temos de atuar de maneira mais racional no cenário mundial. A corrupção não tem nada a ver com o comunismo ou não-comunismo. Temos de combater os privilégios e nossas diferenças sociais. Não é possível pagarmos supersalários com dinheiro público. Temos de fazer o que precisa ser feito para melhorar a sociedade brasileira e não alimentar discussões ideológicas e estéreis. Nosso problema básico é fazer o que é melhor para nós. Por conta de postura ideológica, o Ministério das Relações Exteriores quase nos isolou na comunidade internacional. Existem saudosistas comunistas, mas comunismo está ultrapassado, tanto quanto falar de direita ou esquerda. Nessa concepção puramente ideológica, fica tudo muito limitado.  

RPDNum mundo em mudança acelerada, quais as novas tarefas necessárias à defesa nacional? 

SC: A defesa nacional hoje não está mais só com as Forças Armadas. Tinha-se a concepção de que a defesa nacional estava nas Forças Armadas. Hoje, não. As Forças Armadas têm a parte de integridade, física, a parte dissuasória. Isso ainda reside nas Forças Armadas. Mas a defesa nacional, como um conjunto, passa pelo desempenho no meio ambiente, na economia, na política.  

Quando a gente deixa de ser respeitado internacionalmente na política, isso afeta todos os componentes da defesa nacional. Uma boa economia, sólida, uma sociedade não dividida, harmônica, unida, são fundamentais para a defesa nacional. As Forças Armadas são uma das poucas instituições que fica e tem condições de se manter em locais remotos e ali marcar a presença nacional e apoiar os outros setores, outros Ministérios que, às vezes, têm que fazer alguma tarefa na fronteira, mas não têm estrutura. Mas lá tem as Forças Armadas para acolher e auxiliar. Não adianta desenvolver as Forças Armadas e não desenvolver a economia, o respeito internacional, não desenvolver a união da sociedade e outros órgãos internos que precisam ser desenvolvidos.  

“O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo”

A modernização das Forças Armadas passará também pela política industrial, pela segurança cibernética. Imagina uma interferência no banco de dados do Bolsa Família, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil? E que tal uma guerra cibernética como essa ou mesmo uma guerra biológica, com vírus ou qualquer coisa que ainda não se tenha estruturado? 

Além das ideias já citadas, imagina o tumulto de uma interferência no banco de dados dos benefícios assistenciais do INSS. Isso deixaria muita gente necessitada sem receber o auxílio. Defesa Nacional é a tranquilidade e a paz social. Ela não depende só das Forças Armadas. 

Saiba mais sobre o entrevistado

General Carlos Alberto Santos Cruz
Entrevistado especial da Edição 31 da Revista Política Democrática Online, Carlos Alberto dos Santos Cruz é general de divisão da reserva do Exército Brasileiro, que foi comandante das forças da ONU no Haiti e no Congo, Secretário Nacional de Segurança Pública e ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil.

Saiba mais sobre os autores

Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Fonte: