Geddel
Eliane Cantanhêde: O ano da foto
Nenhum poder escapou, mas a marca de 2017 é a foto do apartamento de R$ 51 mi
O ano de 2017 acaba hoje sem choro nem vela, deixando para a história duas denúncias da Procuradoria-Geral contra o presidente da República, o fim da impunidade de décadas do deputado Paulo Maluf, a primeira condenação do ex-presidente mais popular da redemocratização e a inclusão do presidente do PSDB no redemoinho moral. Nada, porém, marca tanto o ano quanto as fotos e vídeos da corrupção. Mais do que a foto do ano, tivemos em 2017 o ano da foto.
Qualquer retrospectiva política de 2017 mostra, forçosamente, as fotos de malas e caixas entupidas de R$ 51 milhões no apartamento do baiano Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Dilma Rousseff e de Michel Temer. E o vídeo da Polícia Federal com a corridinha ridícula do ex-assessor Rodrigo Rocha Loures carregando uma mala com R$ 500 mil em São Paulo?
Dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras. Essas duas imagens, de um didatismo impressionante, expõem e chocam mais do que as milhões de páginas das delações premiadas que traçam a trajetória da corrupção desde os palácios da República até os bolsos, malas, contas, apartamentos, paraísos fiscais, joias, obras de arte, mansões, jatinhos, iates e festas.
Quem se esbaldou na festa sabe como funciona e, por isso, os relatos objetivos de Emílio e Marcelo Odebrecht e a carta adjetiva de Antonio Palocci ao seu partido, o PT, extrapolam qualquer ficção. Nessa oficialização pública do rompimento, um aviso prévio sobre o poder demolidor de sua delação premiada, Palocci foi direto ao ponto, ou direto a Lula.
“Um dia, Dilma e Gabrieli (ex-presidente da Petrobrás) dirão a perplexidade que tomou conta de nós após a fatídica reunião na biblioteca do Alvorada, onde Lula encomendou as sondas e as propinas, no mesmo tom, sem cerimônias, na cena mais chocante que presenciei do desmonte moral da mais expressiva liderança popular que o País construiu em toda nossa história”, escreveu Palocci, ministro da Fazenda de Lula e chefe da Casa Civil de Dilma.
Em 2017, porém, o PT deixou de navegar sozinho nas revelações sobre os mares fétidos da corrupção que corroeu as finanças e a credibilidade da Petrobrás e se estendeu pelas estatais, fundos de pensão, empréstimo consignado, Estados e municípios. O PMDB, agora na Presidência da República, virou o principal alvo da PGR. O PP foi quase dizimado. E Aécio Neves empurrou o PSDB para o fundo desse poço.
Foi dessa competição em águas turvas que emergiu para as eleições de 2018 a figura controvertida de Jair Bolsonaro, o deputado com vários mandatos na Câmara que diz renegar a política, o militar fora do Exército há um quarto de século por situação beligerante e que se apresenta como militar.
E 2017 termina com Michel Temer errando a mão no indulto de Natal por motivos nada nobres, recuando no projeto do trabalho escravo e prometendo o que, talvez, não consiga entregar: a reforma da Previdência. Mas termina também com o Supremo, que passou o ano sob vaias, recebendo aplausos pela liminar justamente contra o indulto de Temer. (Registro: enquanto os ministros do STF se dividiam ao meio e ao vivo diante das questões essenciais, juízes se estapeavam pelo País para manter privilégios que agridem a Constituição.)
Temos, então, que o PT não está mais sozinho nas profundezas da Lava Jato e seus desdobramentos, nem o Legislativo está mais sozinho como vilão entre as instituições nacionais, agora disputando com o Executivo e o Judiciário. No ano da foto, portanto, houve uma democratização de alvos na maior e mais extensa operação de depuração política, ética e moral da história. Resta saber qual o resultado de tudo isso. As eleições estão aí para isso.
Felicidade, alegria e sobretudo bons votos em 2018!
Arnaldo Jordy: A Pátria em crise
A passagem do dia 7 de setembro este ano foi marcada pelo grave momento de crise econômica e política vivida pelo Brasil. O país precisa urgentemente resgatar o sentimento de soberania duramente conquistada com o sangue derramado de milhões de brasileiros que lutaram pela Independência. No Pará, os cabanos se levantaram contra o opressor na defesa de um Brasil para os brasileiros. Hoje, a luta pela dignidade continua no urgente combate à corrupção, essa chaga que envergonha a maioria dos brasileiros, e pela construção de um projeto de país mais justo, desenvolvido, soberano e sustentável.
Felizmente, os fatos conspiraram para que um bandido que já deveria estar preso, Joesley Batista, entregasse inadvertidamente à Justiça as provas de sua própria corrupção para tentar manipular o Judiciário a seu favor, cooptando também um procurador federal, Marcelo Miller, e oferecendo provas importantes e válidas, sim, mas em troca de implodir o Supremo Tribunal Federal e a própria Lava Jato, tudo para escapar incólume de graves acusações e ainda, como ele mesmo disse, “fechar o caixão” da política brasileira, jogando a todos na vala comum da corrupção, enquanto ele se radicaria em outro país com suas empresas abastecidas com dinheiro público, certamente rindo da cara de todos nós.
Seu intento de botar os três poderes da República no chão, entretanto, não vingou, ainda que estejam sob graves suspeitas, como disse a presidente da Suprema Corte, Cármen Lúcia. Felizmente, ficou claro que o que houve foram insinuações e tentativas de chegar ao procurador-geral via Marcelo Miller, e aos ministros do Supremo via o advogado e ex-ministro José Eduardo Cardozo. Mas nenhuma acusação grave pesa contra o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, nem contra qualquer ministro do Supremo. Joesley Batista, ao contrário do que pretendia, deverá perder os benefícios da delação premiada que fez e provavelmente pagará na cadeia pelos seus crimes, que começaram pelo uso do dinheiro público, via BNDES, nos governos petistas. Rodrigo Janot, aliás, com equilíbrio e firmeza mandou investigar a participação do ex-procurador federal Marcelo Miller no acordo fechado com Joesley Batista, medida indispensável para preservar o bom andamento da Lava Jato.
Na semana passada, a Procuradoria Geral da República fez a denúncia de todos os envolvidos do PP no Petrolão. Esta semana, foi a vez do chamado “quadrilhão” do PT, também envolvidos em desvios bilionários das Petrobras. Os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff estão entre os denunciados pela PGR. Ambos são suspeitos de participar de organização criminosa que recebeu R$ 1,485 bilhão em propina para políticos do PT. Lula é apontado por Janot como líder e “grande idealizador” da organização criminosa. Somente Lula teria recebido R$ 230,8 milhões de propina entre 2004 e 2012 da Odebrecht, OAS e Schahin, com recursos desviados de contratos firmados com a Petrobras.
A situação de Lula e Dilma se agrava ainda mais com as denúncias feitas pelo ex-ministro Antônio Palocci, que deu depoimento contundente, detalhado e preciso à Lava Jato. Palocci foi um dos cinco quadros de maior peso nas estruturas de poder dos governos petistas, juntamente com Lula, Dilma, o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro João Vaccari. Não se trata, portanto, de um depoimento qualquer.
Assim como o PT não deve escapar ileso dos graves atos que cometeu durante seus 13 anos de governo, outros grandes partidos, PMDB, PP e figuras do PSDB, também devem responder pelos crimes que escandalizam a nação, como a cobrança direta de propina em dinheiro vivo entregue em malas. Os mais de R$ 51 milhões encontrados em um apartamento utilizado pelo ex-ministro Geddel Vieira Lima e os pagamentos feitos por Joesley Batista ao ex-deputado Rocha Loures e ao primo do senador Aécio Neves são provas de que de que ainda há muito para ser investigado. Geddel, segundo o áudio gravado por Joesley Batista com Temer, era seu homem de confiança, assim como da confiança do ex-deputado Eduardo Cunha. É difícil de acreditar que os R$ 51 milhões encontrados no apartamento eram apenas dele.
O que cabe agora é cobrar para que os criminosos e denunciados não tirem partido das tentativas de desmoralizar a Lava Jato para escapar incólumes. Afinal, é o que está ajudando a passar o Brasil a limpo. Essa deve ser a cobrança da sociedade brasileira em defesa da Pátria, que precisa da continuidade da operação.
* Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA e líder do partido na Câmara dos Deputados
Marco Aurélio Nogueira: As névoas que recobrem a sujeira do planalto
Ninguém sabe. Mas dá para ver que Calero não atirou a esmo e seu alvo não era exclusivamente Geddel.
Há coisas nebulosas, coisas intrigantes e coisas escandalosas no caso Geddel-Calero.
O escândalo é fácil de ser localizado.
Um ministro procura achacar outro para resolver um problema pessoal, numa absurda tentativa de coação do privado sobre o público. Quer dar uma carteirada e sair na boa. Nada mais antirrepublicano. Crime grave, ainda mais porque cometido no centro nervoso da Presidência, de modo infantil e presunçoso, indiferente ao bom-senso, como se quisesse provocar um vendaval de detritos e sujeira. O ex-ministro Geddel fez, literalmente, uma porcada, ou uma porcaria.
Em reação, o ministro-vítima sai pelo Palácio gravando conversas com seus pares e com o próprio Presidente. Falar em deslealdade, no caso, é cabível, ainda que tenha se tratado de uma manobra de autoproteção. Mas não é atitude razoável em um cargo como o de ministro de uma República na qual as coisas públicas devem ser tratadas publicamente. Temer falou em indignidade. Tem certa razão. Pode nem ser tanto, mas choca.
O nebuloso tem a ver com a atitude de Calero. Por quê? Não só gravou como fez questão de divulgar para o mundo que o fez. Ganhou uma projeção que jamais teve ou teria, vestindo o cômodo figurino do herói, do perseguido, do íntegro. Calero não só quis ser honesto, mas parecer sê-lo. Com qual finalidade?
Como há sempre um dia após o outro, a operação parece ter sido desenhada para organizar o próximo passo ou outra jogada de efeito mais à frente. Quem sabe uma candidatura? Um livro de memórias? Um filme?
Ninguém sabe. Mas dá para ver que Calero não atirou a esmo e seu alvo não era exclusivamente Geddel. Na mira, estava também Eliseu Padilha, ministro muito mais poderoso, além evidentemente do próprio presidente. Estava, portanto, o núcleo duro do Governo Temer.
Não se tratou de um ataque gratuito ou da ação de um lobo solitário, por mais que se deva dar ao ex-ministro o direito de se proteger do lamaçal que escorre em Brasília e dentro do Palácio. Ele mesmo disse que foi “aconselhado por amigos da Polícia Federal”. Deve ter ouvido muita gente antes de agir, o que sugere uma ação articulada.
O intrigante está aí. Calero gravou conversas estratégicas e explosivas, o que faz com que seja inevitável a pergunta sobre suas motivações e sobre as consequências de seu ato. Os petardos do ex-ministro podem ter sido qualquer coisa, mas não foram ingênuos nem aleatórios, e muito menos para defender a própria pele.
Até aí, matéria para um bom folhetim de suspense. A questão de base — o tráfico de influência —, porém, persiste, a assustar até os mais vetustos fantasmas do Palácio.
Ela mostra uma das dificuldades principais do Governo Temer, talvez sua maior fragilidade: a escolha de colaboradores. Seu déficit nessa área é brutal. Ou os escolhidos têm o rabo preso, ou são inadequados, ou são fracos de dar dó. Salvam-se poucos: Meirelles, Jungmann, Serra, Roberto Freire, Flávia Piovesan — dá pra contar nos dedos.
Com uma equipe de poucos que podem fazer a diferença, Temer tem de enfrentar um mar revolto e turbulento, em cujas praias repousam uma economia estagnada, milhões de desempregados e uma sociedade alvoroçada. É difícil vislumbrar como conseguirá fazer a travessia.
A chamada classe política, que deveria mostrar racionalidade superior e capacidade de interpretar os sinais do tempo, não o ajuda e ameaça, a todo momento, destroçá-lo de uma só vez ou comê-lo pelas bordas. O próprio presidente, figura de proa dessa classe, parece perdido, sem saber que caminho seguir ou que tom dar ao coro dos insaciáveis.
Não seria mais razoável o presidente começar de novo, enquanto há tempo? Reorganizar o governo, recheá-lo de bons técnicos e de políticos consistentes, traçar metas generosas e emprestar qualidade à comunicação pública, para tentar se ligar melhor à sociedade? Difícil, mas não impossível, até porque não depende exclusivamente dele. Onde estão os que o apoiaram em nome dos interesses gerais da nação e não de olho no próprio umbigo?
Aí, o cidadão olha desesperadamente para fora do governo, para além dele. Procura forças sociais com vocação reformadora e espírito democrático. Não acha. Procura lideranças que consigam conjugar todos os tempos verbais. Não acha. Procura gente que queira debater com serenidade, estudar o país e o mundo, disseminar cultura política democrática e senso de responsabilidade. Não acha, ou acha poucos, quase sempre caçados pelos militantes da intransigência.
Dirige-se então às oposições e se depara com um elenco conhecido: demagogos de prontidão, gente que se mexe sem sair do lugar, líderes histriônicos que se dão ares de providenciais, que prometem passar o país a limpo e esquecem o quanto de sujeira eles próprios produziram, que circulam, falam e gesticulam como se fossem os salvadores da pátria e trouxessem o futuro nas mãos, valendo-se dos mesmos expedientes e da mesma retórica surrada de sempre, que prometem partir do zero e mostrar como se governa, tal como heróis da modernidade perdida.
É uma oposição temperada com desejo de vingança e ressentimento, que trabalha para devolver a Temer o impeachment que ele protagonizou. Pode ser que venha a acontecer, mas, se assim for, o barco continuará o mesmo, o mar permanecerá revolto e as praias não sairão do lugar. Ao menos no curto prazo.
Os déficits são enormes. Falta convicção social de que a representação democrática é um valor. Faltam partidos com musculatura para agregar grupos e pessoas em torno de programas factíveis de reforma. Faltam bons sistemas educacionais, regulação democrática dos meios de comunicação e redução da publicidade manipuladora para que se dissemine capacidade crítica entre os cidadãos. É um vazio cívico que tem sido preenchido por formas light ou hard de autoritarismo e por postulações próximas da barbárie, da intolerância e da grosseria preconceituosa.
Está difícil. Nunca é fácil.
Sempre há um excesso de pó e fumaça na vida real, a saturá-la e encobri-la. A realidade é uma combinação marota de verdade e ilusão, essência e aparência. Há uma “pseudoconcreticidade” embaçando a concreticidade. Enxergamos sempre paisagens na neblina, o que nos impede de desvelar aquilo que surge. Nem tudo é o que parece.
Lutar e brigar há que. Mas a batalha mais importante é a da compreensão: a crítica do real. Mais importante porque mais difícil e porque hoje se faz em campo aberto, sujeito a muitas interveniências, narrativas, ressignificações e exageros. Quando se consegue limpar o quadro, a paisagem já voltou a mudar.
Talvez por isso tanta gente opte por gritar, protestar, advertir, ameaçar, resistir, denunciar. Busca-se assim um lugar ao sol, em nome da sensação de que se está pondo algo em movimento.
O verdadeiro movimento, porém, passa ao largo, silencioso, imperceptível.
Não há um antes e um depois, tipo primeiro a razão depois a luta. Lutar às cegas é se candidatar à derrota. Lutar é compreender e compreender é lutar. A realidade é uma só, verdade e aparência, e os que querem compreendê-la precisam tratá-la como um todo. A verdade nasce daí, com todos os senões, limites e contradições.
* Marco Aurélio Nogueira: Cientista político por profissão e por paixão. A política liberta, mas também pode ser uma prisão. Democrata e gramsciano por convicção, socialista por derivação. Corintiano de raiz. Atualmente, coordena o Núcleo de Estudos e Análises Internacionais-NEAI da UNESP. Seu livro mais recente é As Ruas e a Democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo (Contraponto/FAP, 2013).
Fonte: http://ano-zero.com/caso-geddel-calero/