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Gaudêncio Torquato: A moeda divina na compra do poder
O fato é que os evangélicos crescem em ritmo geométrico, enquanto os católicos se expandem de forma aritmética
Gaudêncio Torquato / Blog do Noblat / Metrópoles
Padre Américo Sérgio Maia, antigo vigário de Cajazeiras (PB), teve um dia de viajar 28 quilômetros a cavalo para dar a extrema-unção a um doente. Cansado, apeando do animal logo perguntou: “Minha senhora, por que vocês não fizeram uma casa mais perto da cidade?”. Ouviu a ácida resposta: “Padre, e por que não fizeram a cidade mais perto da gente?”. Essa historinha serve para explicar o distanciamento de fiéis da Igreja Católica e sua perda para credos evangélicos.
O fato é que os evangélicos crescem em ritmo geométrico, enquanto os católicos se expandem de forma aritmética, a denotar que a moeda da fé circula pelos centros e pelas margens, mostrando o pendor e a falta de pudor com que o evangelismo usa a vida divina como chave para entrar no reino dos céus.
Fosse apenas essa a questão, a disputa seria apenas uma soma de números. Não. O problema é de natureza política. Os evangélicos querem ocupar o centro do poder, o que significa montar um partido político (Republicanos), dotá-lo das condições para influir na pauta legislativa, integrar a malha da administração pública por meio de ministros e, claro, culminar com a eleição de um presidente com o qual tenham ligação direta: Jair Bolsonaro. Que luta para inserir um ministro “terrivelmente evangélico” no STF.
A população católica se estreita. Dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram uma fuga média de 465 pessoas por dia. Já os evangélicos perderam a vergonha: falam claramente sobre seu projeto de poder, com seus quadros de comando, como o pastor Silas Malafaia sendo um dos maiores interlocutores de Bolsonaro. A par dessa observação, vem outra: quanto mais crescem mais o tintim da moeda enche os cofres de credos, que continuam a preencher os horários vazios das tevês, inclusive em horário nobre, para exibir discursos, perorações e milagres inventados para engabelar as massas.
Quais as razões que explicam tal fenômeno? O afastamento dos fiéis da política tradicional e a opção por uma nova política, está sob a égide das cortes divinas. É grande o descolamento entre a esfera política e a sociedade. Políticos fecham os ouvidos ao barulho das ruas e menosprezam o sentimento da plebe.
E qual o motivo para tal afastamento, quando se sabe que o mandato não pertence ao eleito, mas ao povo, que apenas lhe transfere temporariamente a representação? A resposta contempla a mudança do conceito de política, de missão para profissão, aquela abrigando o ideário coletivo, está incorporando o interesse individual. O verbo transitivo indireto servir (ao povo) cedeu lugar à forma pronominal servir-se (do povo). A esganiçada luta do poder pelo poder tornou mais ferina a competição política, formando um arsenal de poderosos instrumentos para os guerreiros usarem na arena eleitoral: recursos financeiros, espaços midiáticos, partidos sem doutrina e uma retórica de glorificação personalista, focada na grandeza dos perfis em detrimento das ideias.
Os conjuntos legislativos são vistos como braços políticos do ciclo produção-consumo, cujo foco é o rendimento, o ganho, a concorrência, o jogo de soma zero, no qual a vitória de um se dá graças à derrota de outro.
O rosário de virtudes desfiado pelo papa Francisco para revitalizar a Igreja Católica e resgatar a fé de rebanhos desgarrados não deixa de ser sábia contribuição para oxigenar a política. O pontífice usa as chaves da Igreja de Roma para abrir portas, mas a resposta tem sido pequena ao seu. O papa parece querer nos deixar um legado valorativo, algo como um manual de conduta política, tão franciscano quanto ele, contraponto ao Breviário dos Políticos, aquele manuscrito que o cardeal Mazarino produziu nos tempos dos Luíses XIII e XIV da França, pregando a desconfiança, a emboscada, a simulação e a dissimulação.
O livrinho do papa argentino alinha preceitos inerentes ao escopo da Política (com P maiúsculo), seja para uso da Igreja, seja para a vida partidária. E, ao contrário aos políticos, não aprecia esse marketing que espetaculariza eventos. Simplicidade, exibir um perfil sem máscaras, despojado, transparente. Simplicidade não usada pela liturgia pirotécnica dos evangélicos. Como lembra André Comte-Sponville, “simplicidade é ter a virtude dos sábios e a sabedoria dos santos”.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
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Gaudêncio Torquato: Brasil vegeta sob o reino da mentira
Hoje, o Brasil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência
Gaudêncio Torquato / Blog do Noblat / Metrópoles
Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Brasil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.
Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário libertário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Temos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.
Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cidadãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade sobre a virtude.
No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus corredores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.
Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.
Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, poluindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.
A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas promessas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas responsabilidades. Nos desmentidos”.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
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Gaudêncio Torquato: O desmonte da ciência
É crise puxando crise. Mais uma agora ameaça jogar a ciência brasileira ou seus entulhos no fundo do poço. As instituições de ensino superior e técnico estão recebendo apenas 2,22% dos recursos anuais a que têm direito, deixando perplexos reitores de universidades federais e o alunado que recebe bolsas, comprometendo a assistência estudantil, frustrando pesquisadores, enterrando descobertas da ciência em profundo fosso.
Um desmonte nunca visto, daí a pergunta: qual o nome do ministro da Educação? E tudo isso ocorre em paralelo ao negacionismo dos gestores públicos, a partir do presidente da República, na administração da pandemia da Covid 19.
Impactos podem ser sentidos nos próprios campi, como o da Universidade Federal do Rio de Janeiro, antes um centro de excelência, entre os melhores do mundo. Hoje quase em ruína. Saudosos tempos da Universidade do Brasil. O que diriam alguns de seus reitores do passado, como Benjamin Franklin Ramiz Galvão, primeiro reitor e ex-membro da Academia Brasileira de Letras (ABL); o médico Raul Leitão da Cunha, o ex-ministro da Educação e Saúde Pedro Calmon e outros tantos deste naipe? Teriam vergonha do Brasil. Mas o feio retrato se vê em todo o País.
Alegam cortes para viabilizar o chamado “teto de gastos”. Isso justifica o desmanche brutal? A imagem é necessária: para salvar a vida de uma pessoa, ao invés de amputar um dedo, um braço, extirpam-se as veias. Claro que não haverá salvamento. Assim agem os burocratas. Ora, a educação é a base de uma Nação. Sem ela não há processo civilizatório, progresso, vida saudável. E um território deixa de ser Nação para virar só um pedaço de terra.
Sem educação emerge aquela moldura descrita pelo filósofo argentino José Ingenieros: “em certos períodos, a nação adormece dentro do país. O organismo vegeta; o espírito se amodorra. Os apetites acossam os ideais, tornando-os dominadores e agressivos. Não há astros no horizonte, nem auriflamas nos campanários. Não se percebe clamor algum do povo; não ressoa o eco de grandes vozes animadoras. Todos se apinham em torno dos mantos oficiais, para conseguir alguma migalha da merenda. É o clima da mediocridade… O culto da verdade entra na penumbra, bem como o afã de admiração, a fé em crenças firmes, a exaltação de ideais, o desinteresse, a abnegação — tudo o que está no caminho da virtude e da dignidade.”
E onde está a política no meio dessa mediocridade? Preocupada com outras coisitas que lhe rendem recompensas, como votos. Verbas para comprar tratores, inserir emendas no Orçamento, participar de foros com visibilidade midiática. Assim é a vida da representação parlamentar. Será que suas excelências não devem nada à educação que impulsionou suas vidas? Preferem a balança do pragmatismo: o que pode ser melhor para mim nesse momento?
E a ciência, mesmo sob loas e aplausos de alguns, acaba sacrificada por “outras prioridades”. O que diz o MEC? Os recursos, infelizmente, estão “condicionados”. Ou seja, condicionaram a educação. A esta altura, alguém sabe responder à pergunta acima: como é mesmo o nome do ministro da Educação?
P.S. O clamor foi tão intenso que o governo acabou dando um pouco mais de recursos às Universidades.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Fonte:
Metrópoles/Blog do Noblat
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-desmonte-da-ciencia-por-gaudencio-torquato
Gaudêncio Torquato: Uma nota acima do tom
Basta apurar os sentidos para perceber que há uma nota acima do tom na orquestração da política. O presidente da República tem se comportado como um incontrolável rebelde no uso da liturgia da expressão. Todos os dias recita substantivos ácidos e adjetivos ferinos para animar suas galeras e atacar adversários. Magistrados, de alto coturno, incluindo os que carregam grande bagagem no acervo do Direito, extravasam a linguagem peculiar dos juízes, abrindo polêmica na frente institucional. Dos políticos, então, tanto dos bastiões de defesa do governo quanto das hostes de oposição, o tiroteio do palanque virtual não arrefeceu como seria de esperar nesses tempos de encolhimento pandêmico.
A conclusão a que se pode chegar sinaliza para uma sobrecarga de energia acumulada, como se o alvo dos tiros não fosse a danada da covid-19 e sim os interlocutores e protagonistas que agem nas esferas das nossas instituições. Até os generais que, em tempos idos, sob o escudo da hierarquia e da disciplina, eram comedidos no uso do verbo, extrapolam os limites de sua linguagem. É razoável pensar que esses comportamentos venham a oxigenar nossa democracia ante a hipótese de que o franco debate desperta a sociedade, mas há uma questão de fundo a balizar o jogo das ideias. Povoam a paisagem temas como intervenção militar, golpe, impeachment, rebelião social, entre outros. Há de se ter cuidado com a banalização de escopos desse teor.
Entremos nos temas. A retórica de conflitos, como podemos designar as querelas, se impregna de interesse estratégico dos protagonistas eleitorais. O presidente Bolsonaro estica a campanha de 2018 até hoje. Os 30% que o apoiam montam na garupa do azarão. O PT, que perdeu o trono depois do gigantesco buraco em que afundou o país, só pensa em voltar ao primeiro plano da cena. Basta ver Lula, condenado em duas instâncias, defendendo agora a primazia do PT na esfera partidária, negando-se a assinar manifestos em favor da democracia ao lado de entidades de renome. Os grandes partidos já apontam alguns nomes como eventuais candidatos em 2022. As médias e pequenas siglas se atrelam a quem, nesse momento, lhes oferece recompensas. São, por exemplo, os entes que formam o Centrão e que começam a se aboletar no governo Bolsonaro.
Sob a malha eleitoral, a polarização política ganha volume e agita chefes, chefetes e lideranças de todos os setores. Para acirrar as tensões, enfrenta o país uma das maiores (senão a maior) epidemia de sua história, que causa milhares de mortos, podendo, logo, logo, chegar aos milhões de contaminados. A tragédia se expande na onda de uma reversão da economia, que esvazia o bolso de milhões de pessoas, empobrecendo as classes sociais, podendo até gerar convulsões aqui e ali, abrindo caminho para o caos social.
É evidente que, sob esse risco, estariam criadas as condições para a arrebentação da maré política, dando margem a eventos graves na esfera do Congresso Nacional. Portanto, a ideia de impeachment só se fundamenta na base da mobilização social, sendo improvável pensar em afastamento do presidente como ato unilateral do Parlamento. Só mesmo uma onda centrípeta – das margens para o centro – seria capaz de dar xeque mortal no tabuleiro da política.
Da mesma forma, é irrazoável a alternativa de intervenção militar. As Forças Armadas, com muito custo e graças ao profissionalismo, conseguiram firmar imagem de respeito, credibilidade e seriedade. Não topariam entrar numa aventura de tomada do poder na marra. Podem ir às ruas, em caráter excepcional, para garantir a lei e a ordem. A par desse compromisso, sempre renovado por suas lideranças, as Forças estão diante de uma sociedade mais atenta, crítica e solidária. Há um formidável contingente formado por imensa classe média, onde habitam núcleos que tendem a rejeitar os extremos do espectro ideológico. Apenas um minúsculo grupo – que não chega a 10% da população -, perfilaria a ideia de um golpe para levar o país ao território do autoritarismo.
Portanto, é conveniente baixar a bola, senhores guerreiros da arena político-institucional. O momento está a exigir que o foco de combate ao novo coronavírus não seja tumultuado por tiros dados ao léu, como a lenha que os fogueteiros de todos os lados jogam nas redes sociais, com calúnias, difamações, versões estapafúrdias.
Quanto aos magistrados, generais e mandatários, a mensagem é esta dos romanos: homo loquax, homo mendax – homem falador é homem mentiroso. Ou acaba se transformando em mentiroso.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Gaudêncio Torquato: Mentiras, versões e lorotas
Fake
De onde parte essa onda de fake news, versões, simulações e dissimulações que se espraia durante a epidemia? Nunca se ouviu tanto disse me disse, essas invencionices pelas redes sociais, gravações de conversas, vídeos editados, vazamentos de mensagens, envolvimento de policiais, de juízes e procuradores.
Fragmentos dos últimos dias: Bolsonaro tentando interferir na PF; uma desastrada reunião, farta de palavrões; hordas bolsonaristas agredindo jornalistas e portando faixas contra Legislativo e Judiciário; pedidos de prisões para ministros do Supremo; ações policiais sob viés político, uma profusão de informações e falsidades.
Onde estará a verdade? Ou, o que é verdade?
O fingimento faz parte da nossa cultura e se expande com a polarização. Mas fingir parte de nossa índole. Nosso folclore político, por exemplo, é farto em matéria de esperteza.
Sebastião Nery narra um exemplo: “José Maria Alkmin, mestre da arte política, chegava da Europa com cinco garrafas enroladas na pasta. A Alfândega quis saber.
– Água milagrosa de Fátima.
– Mas tudo isso, doutor Alkmim?
– Sim, o pessoal de Minas acredita muito nos milagres de Fátima.
– O senhor pode desenrolar?
– Pois não, meu filho.
– Mas, deputado, isso é uísque.
– Ué, não é que já se deu o milagre?
A matreirice faz parte do cotidiano das pessoas. A invencionice em nossa cultura anda sofisticada. Mergulhamos em meias verdades, mentiras e lorotas escalando uma montanha de pistas falsas.
O fato é que a história da política é rica em simulação e dissimulação. O cardeal Mazarino, ministro de Luis XIII, ensina em seu Breviário dos Políticos: “age com os teus amigos como se devessem tornar inimigos; o centro vale mais do que os extremos; mantenha sempre alguma desconfiança em relação a cada pessoa; a opinião que fazem de ti não é a melhor do que a opinião que fazem dos outros; simula, dissimula, não confies em ninguém e fala bem de todo mundo. E cuidado. Pode ser que neste exato momento, haja alguém por perto te observando ou te escutando, alguém que não podes ver”.
A descrição cai bem ao país. Até parece que os “inventores de causos” nas redes sociais aprenderam com Nicolau Eymerich, frade espanhol que, em 1376, escreveu em seu Manual dos Inquisidores”: falar sem confessar; responder às perguntas de maneira ambígua; responder acrescentando uma condição (acredita em Deus? Se ele existe…); inverter a pergunta; fingir-se de surpreso; mudar as palavras da questão; deturpar o sentido das mensagens; auto justificar-se; fingir debilidade física; simular demência ou idiotice e até se dar ares de santidade.
Hoje, demônios se disfarçam de santos.
Gaudêncio Torquato: O insustentável peso do ser
Será muito difícil caso a liturgia não seja resgatada
Em seu aclamado livro “A Insustentável Leveza do Ser” (1984), o tcheco Milan Kundera mostra que nossas vidas são marcadas pelos signos do peso ou da leveza, condicionantes do modo de ser, que levam uns e outros a ser diferentes nas atitudes em relação ao amor, à compaixão, à solidariedade, às mudanças; enfim, aos valores humanos. A leveza está mais próxima a qualidades positivas, já o peso carrega um viés negativo, nos termos da observação feita pelo filósofo grego Parmênides, citado por Kundera.
Os quatro personagens do romance vivem, cada um a seu modo, o dilema da escolha entre a leveza e o peso. Leitura literária à parte, fiquemos na dualidade peso e leveza para um pequeno exercício de análise política, a começar pela dúvida sobre a pertinência da questão: haveria um insustentável peso do ser? Arriscamo-nos a responder de maneira afirmativa.
O argumento que se pode usar nessa direção é a divisão entre dois territórios da política: um, habitado por valores positivos, abençoados pela deusa da democracia, abrangendo liberdades, direitos, deveres, respeito, cumprimento da norma, obediência ao rito. Entre outros, claro. Outro território é o contraponto, que agrega desrespeito, censura, discriminação, restrição às liberdades e aos direitos, incentivo ao ódio e quebra da liturgia institucional.
Pois bem, são essas as duas bandas do nosso país. Não é o caso de descrever quem faz parte do lado A ou do lado B. Mas é imperativo cívico apontar desvios de conduta daqueles que se investem de autoridade, a partir dos protagonistas legitimados pelo voto popular. Nesse ponto, cabe nominar sua excelência, o mandatário-mor da nação, presidente Jair Bolsonaro.
Por mais que se tente estudar e explicar a índole do ex-capitão e parlamentar que passou 28 anos no Parlamento nacional, é tarefa das mais árduas compreender a razão pela qual continua ele a usar um vocabulário esdrúxulo, de baixíssimo nível, agressivo, discriminatório, que afronta todas as classes sociais —à exceção de hordas engajadas numa luta ideológica. Luta que, aliás, não tem a magnitude a ela atribuída, tanto pelo fato de que a principal liderança do PT, condenada em três instâncias, não tem mais poder para mobilizar as massas como pela óbvia observação de que exacerbar o discurso é um jogo que interessa aos adversários.
O presidente está muitos níveis abaixo da liturgia que cerca o mais alto posto da nação. Quase todos os dias, com bananas de braço e expressões, algumas chulas, desferidas contra “pseudo-inimigos” ou aqueles que não comungam com suas ideias, o presidente desce do altar do cargo para a sarjeta. E o que mais impressiona é o silêncio da qualificada equipe de generais de alto nível que o cerca.
Por que não aconselham o chefe a usar linguagem castrense da caserna, bem-educada e respeitosa? É inimaginável que sua excelência, em tom de piada, use um termo jornalístico para abrigar a mais vil insinuação (de duplo sentido) que já se ouviu de um presidente da República para sujar a imagem de uma repórter, Patrícia Campos Mello, desta Folha. Algo não se encaixa. Será assim até o fim do governo? Ou essa artilharia expressiva terá continuidade nos próximos tempos?
Voltemos ao livro “A Insustentável Leveza do Ser”. Se a liturgia do poder não for resgatada, com respeito à linguagem do alto mandatário, se o deboche ampliar seu volume contra a imprensa, se o presidente da República fizer ouvidos de mercador nesses tempos de Brasil em transição, vai ser difícil, muito difícil, sustentar o “peso bolsonaro de ser”.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Gaudêncio Torquato: Política é missão, não profissão
A política não é um fim em si mesmo. Trata-se de um sistema-meio para administrar as necessidades do povo. Sendo assim, é uma missão, não uma profissão. Aristóteles ensina que o cidadão deve servir à polis, visando ao bem comum. Ao se afastar dessa meta, dá lugar à corrupção. Que acontece quando “quem governa se desvia do objetivo de atingir o bem comum, e passa a governar de acordo com seus interesses”, diz o filósofo.
Por conseguinte, a política não deve ser escada para promover pessoas nem meio para facilitar negócios. Como sistema, desenvolve a capacidade de responder aspirações, transformar expectativas em programas, coordenar comportamentos coletivos e recrutar para a vida pública quem deseja cumprir uma missão social.
Esse acervo é utópico? Pode ser, mas deve servir de inspiração aos políticos. Infelizmente, em nossa cultura, a política tem sido tratada por muitos como um bom negócio. Tradição que vem lá de trás. Quando d. João III, entre 1534 e 1536, criou e doou aos donatários 14 capitanias hereditárias, plantava a semente do patrimonialismo, a imbricação do público com o privado.
Os donatários recebiam a posse da terra, podiam transferi-la para os filhos, mas não vendê-la. Consideravam a capitania como uma possessão, sua propriedade. A res publica virou coisa privada.
Hoje, parcela dos nossos representantes considera espaços públicos ocupados por seus indicados como feudos, extensões de suas posses. É assim que a política se transforma em um dos maiores e melhores negócios da Federação. O caminho é este: primeiro, conquista-se o mandato; a seguir, a política transforma-se em instrumento de intermediação. Temos um amplo mercado em um território com 27 Estados (com o DF), com nichos, estruturas, cargos e posições em três esferas: federal, estadual e municipal.
O negócio da política mexe com cerca de 150 milhões de consumidores, que formam o contingente eleitoral. Para chegar até eles, um candidato gasta uns bons trocados (o custo médio está hoje em torno de 12 a 15 reais por eleitor), a depender do cargo disputado: vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, governador, senador e presidente da República.
Para tanto, candidatos ricos bancam suas campanhas. A maior parte recebe recursos do fundo partidário ou doações. Para 2020, o fundo partidário deve ser em torno de R$ 2,5 bilhões, sendo que o PSL e o PT, os dois maiores partidos na Câmara, receberão as maiores fatias. O que se sabe é que numa campanha despende-se entre três a quatro vezes mais recursos do que a quantia apresentada aos Tribunais eleitorais. São poucos os que conseguem chegar ao Parlamento com somas pequenas.
Desse panorama, surge a pergunta: se a campanha política no Brasil é tão dispendiosa e se os candidatos gastam acima do que ganham, por que se empenham tanto em assumir a espinhosa e sacrificada missão de servir ao povo? Será que há muito desvio entre o espírito cívico de servir e o sentido prático de se servir?
É arriscado inferir sobre ações e comportamentos do nosso corpo político, até porque parcela do Congresso tem atuado de maneira nobre na defesa de seus representados. Sofre, injustamente, críticas por conta da corrupção cometida por alguns.
E onde brota a semente da corrupção? Vejamos. Nas cercanias da política há um costume conhecido como superfaturamento. Obras públicas, nas três malhas da administração (federal, estadual e municipal), geralmente acabam recebendo um “plus”, um dinheiro a mais. Parcelas dos recursos servem aos achacadores e vão para os cofres das campanhas, formando o círculo vicioso responsável pelo lamaçal. Hoje, esse lamaçal está sendo devassado pela Operação Lava Jato. Mas há sempre uma fresta por onde se desvia dinheiro. E isso ocorre porque nos postos chaves estão pessoas de confiança de políticos que as indicaram.
Portanto, há um PIB informal formado por recursos extraídos das malhas da administração nas três instâncias federativas. Sanguessugas predadoras escondem-se em parcela do corpo político para sugar as veias do Estado brasileiro.
Dinheiro e poder são as vigas da vida pública, mas começam a soçobrar nesse início de ciclo da ética e da transparência.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Gaudêncio Torquato: A torre de Babel
Experimentalismo de 2018 abriu longa temporada
Fato um: a era petista desfraldou no país a bandeira do apartheid social, cuja cor vermelha, com o lema “nós e eles”, composto por Lula ainda nos tempos do estádio da Vila Euclides, no ABC paulista, pode ser lido como “os bons e os maus”, “oprimidos e opressores”, “elite e massas trabalhadoras”.
Fato dois: o bolsonarismo, mesmo em seu início, luta para aprofundar a divisão social, batendo na mesma tecla, agora com o sinal invertido. Em um lado do muro estão “comunistas, esquerdistas, simpatizantes de Cuba e Venezuela” —e, no outro, radicais de extrema direita, militaristas, saudosistas dos tempos de chumbo.
Fato três: a polarização a que o país assiste, ao contrário da tendência de arrefecimento, previsível após a virulência eleitoral, se acirra a ponto de se ouvir do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, a pregação de “um novo AI-5” se a esquerda “radicalizar”. Esse ato institucional, recorde-se, abriu o período mais sombrio da ditadura, com perseguição e repressão, fechamento do Congresso Nacional, cassação de mandatos, confisco de bens privados, censura aos meios de comunicação, tortura, mortes.
Pode a temperatura social tornar-se amena nos próximos tempos? Não se aposta na hipótese. A índole do capitão governante e os sinais emitidos pelo seu entorno sinalizam endurecimento de posições. De um lado, se um posicionamento mais radical dá munição aos dois “exércitos”, expandindo os tiroteios recíprocos, de outro afastará segmentos até então simpatizantes das alas conflitantes. Assim, é possível divisar o adensamento dos espaços centrais. Núcleos que ainda atuam como puxadores do “cabo de guerra” tendem a arrefecer sua participação.
A maior parcela da nossa população não cultiva a velha luta de classes, teme os efeitos de acentuada animosidade social, preocupa-se com questões da micropolítica —escola perto de casa, transporte fácil e barato, maior segurança, hospitais com serviços de qualidade.
Somos um povo emotivo, que padece grandes carências, mas não perde a fé. E começamos a alargar a trilha da lógica, como mostrou a última eleição. Infelizmente, a troca de comando —inspirada pelo espírito de um novo tempo— tem se mostrado amarrada ao passado, incluindo o que esse tinha de pior, o culto à ditadura. O fato é que o universo social se divide hoje em três estratos: um terço dos brasileiros vivendo no chão bolsonarista, um terço habitando o território da esquerda e um terço ocupando o centro.
Traços de incerteza se espalham para cima, para baixo e para os lados. Não se sabe o que vai ou pode ocorrer. Pior, não têm aparecido líderes capazes de galvanizar as forças sociais. Quem emerge como líder de um projeto para o país? Quem acena com esperança? Bolsonaro, com seu espírito belicoso, terá longa vida?
Os novos quadros que começam a surgir não inspiram confiança. Alguns são populares e bem visíveis, como Luciano Huck, o apresentador da Rede Globo. Que veste o manto do entretenimento, podendo, até, encarnar a novidade. Seu figurino atrairia as massas. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, é acusado de oportunista. Mas sabe lidar com comunicação. João Amoedo, do Partido Novo, expressa renovação, mas tem origem na área dos ganhos financeiros, não muito bem vista. Faltaria lastro para entrar nas margens. Ciro Gomes (PDT)? Ora, o ex-governador do Ceará é peça velha no tabuleiro. E Lula ainda tem chance ou patrocinará alguém? O PT com a lama da Lava Jato pode voltar ao centro do poder?
É triste constatar que nem bem o governo completa um ano e as conversas já adentram o cenário de 2022. Uma torre de Babel se instala sob tiroteio expressivo do próprio presidente, que anuncia vontade de continuar no assento presidencial, antecipando momentos e instalando a balbúrdia. Apesar de avanços na trilha do civismo, a incultura ainda se faz presente nas margens, cuja tendência é a de buscar a novidade.
O experimentalismo de outubro de 2018 abriu longa temporada no país.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Gaudêncio Torquato: Riscos e tensões no horizonte
Governo não tem vértice, e sinal amarelo pisca forte
Quando os governantes se deixam levar pelas circunstâncias, perdem a noção do conjunto e acabam trocando o essencial pelo superficial. E quando o ator principal, por sua extravagância e desprovido de bom senso, continua a frequentar o palanque, a identidade do governo perde o eixo e deixa a sociedade perplexa sobre o rumo do país.
Esta percepção sobre o governo Bolsonaro se alastra. Nos quase oito meses da administração, tensões se expandem em função das posições do presidente, entre as quais se destacam: alinhamento automático com os EUA; ameaça da União Europeia de desfazer o acordo com o Brasil em virtude da questão ambiental, com foco no desmatamento da Amazônia e a exploração de minérios na região; a ameaça de perda de parcela do mercado argentino, com a eventual vitória do kirchnerismoem outubro; substituição da tradicional diplomacia brasileira por uma política ancorada na extrema-direita; extensão do apartheid social, sob o cultivo da base bolsonarista e tiros nos adversários; e esgarçamento da base governista, insatisfeita com o estilo bolsonarista.
O governo não tem um vértice. Bolsonaro pode até desfraldar a bandeira brasileira e cantar “Pátria Amada”, mas seu governo será um fracasso sem as reformas acalentadas pela sociedade, como a tributária/fiscal, a administrativa e até a dos padrões da política.
Avalia-se o desempenho de uma administração pela somatória de quatro campos de viabilidade: o político, o econômico, o social e o organizativo. O equilíbrio entre eles é responsável por sua fortaleza ou fragilidade. Vale dizer que o governo acumulou força des¬comunal com a vitória, mas até agora não soube transformá-la em ferramenta de eficácia da gestão. Deixa escapar, aos poucos, a condição de usar o poder como “capacidade de fazer com que as coisas aconteçam”, como ensina Bertrand Russel. Basta analisar os furos exagerados em três dos quatro cinturões. A área política é semeada de tensões e pressões, o que leva à instabilidade. Não fosse Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, a reforma da Previdência estaria emperrada.
A base governista, de cujo apoio o governo tanto necessita, constitui um aglomerado heterogêneo. Até o PSL, partido do presidente, se envolve em querelas. O ponto central: o governo não se assenta no conceito de coalizão e, assim, não tem compromissos com os parlamentares, o que torna frouxos os elos com as estruturas partidárias. Não há pacto de apoio; os acordos provisórios ficam sujeitos às circunstâncias, com a indicação de nomes por parlamentares importantes —o que lembra a velha política.
O território social está devastado pela improvisação. O povo espera mais uma graninha no bolso. Medidas paliativas, como a suspensão de radares móveis nas estradas, não esticarão o colchão social.
A segurança pública pode até melhorar com o pacote anticrime do ministro Sergio Moro (Justiça). Mas o próprio passa por vexames e até certo afastamento do coração do presidente. A desconfiança entre eles começa a brotar. A saúde carece de um choque de gestão, a começar pela rede hospitalar sucateada.Há investimentos para equacionar o déficit do programa Minha Casa, Minha Vida? E a rede de esgotos com apenas 47% dos domicílios brasileiros, dentre os quais apenas 20% dispõem de tratamento?
A administração tem furos. O governo prometeu enxugar a máquina e vê que é tarefa complexa. A burocracia ainda trava, apesar da Lei da Liberdade Econômica. Que eficiência se pode esperar de um ministério do tipo colcha de retalhos e com ministros sob suspeita?
Já o cinturão econômico conta com equipe brilhante. Porém, o ministro Paulo Guedes tem dúvidas sobre a aprovação de seus projetos. O desemprego continua acima dos 12 milhões. O arrocho tributário vai às alturas. A reforma tão falada vai aliviar a carga de pessoas físicas e jurídicas? Com tantas dúvidas, o sinal amarelo pisca forte, prenunciando o prolongamento da recessão.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Gaudêncio Torquato: Será que vai dar certo?
Como medir a viabilidade de um governo
Pergunta recorrente a este consultor: o governo Bolsonaro chegará ao final? Questão suscitada pelas tensões, idas e vindas desses cinco meses de administração. Em minhas bolas de cristal não vislumbro resposta convincente. No limite, aponto o Senhor Imponderável dos Anjos como assíduo visitante ao nosso roçado político-institucional.
Mas a ciência política ensina como medir a viabilidade de um governo e a possibilidade de se sustentar. Pinço as alavancas que o cientista político chileno Carlos Matus usa em seus ensaios para apontar quatro eixos que balizam respostas à pergunta acima.
São elas: a) a viabilidade política; b) a viabilidade econômica; c) a viabilidade cognitiva e d) a viabilidade organizativa. A primeira diz respeito à índole dos políticos e sua disposição de endossar ou não a agenda do Executivo; isso depende muito da articulação do governo. Imbróglios obscurecem o horizonte político. Ao dizer que não se submete à “velha política”, o presidente Bolsonaro coloca imensa barreira entre o governo e o Parlamento.
Além disso, a articulação do governo é dispersa, com protagonistas múltiplos – general Santos Cruz, Onyx Lorenzoni, o próprio presidente e líderes do governo no Congresso. Afinal, quem é o responsável? A própria base governista é um amontoado sem rumo. O PSL, por exemplo, vive em querelas constantes, enquanto o governo precisa convencer políticos (até da oposição) para aprovar as reformas.
A segunda viabilidade requer dados e contextos econômicos alinhados sob a tese que se quer demonstrar. No caso brasileiro, a recessão já dá sinais de que pode voltar. O PIB encolheu 0,2% no primeiro trimestre e o resultado pode ser medíocre este ano. Sem a reforma da Previdência, não haverá como pagar aposentadorias. Ao contrário, com as reformas, inclusive a tributária, as projeções mudam de rumo. O país cresceria de 2% a 3%, segundo o relator da PEC 293/2004, da reforma tributária, o competente ex-deputado Luiz Carlos Hauly.
Os inputs econômicos se assentam sobre base racional e não emotiva. Sob ameaça de volta da recessão, o risco é que o país volte às brumas do passado.
O terceiro eixo é o cognitivo, área do conhecimento sobre as matérias pautadas. Sem ampla divulgação dos temas, não haverá convencimento do corpo parlamentar. Da mesma forma, a sociedade precisa ser bem informada para que faça pressão sobre seus representantes. Conhecimento se transporta pelos meios de comunicação: interpessoais, grupais ou coletivos, reuniões, debates, rádio, TV, jornais, redes sociais etc.
Mas, como sabe, a comunicação do governo é falha. Há estruturas, um porta-voz general, redes usadas pelo presidente e seus filhos. A dispersão desorienta e gera balbúrdia.
Por último, a viabilidade organizativa, conjunto de meios e instrumentos – ministros, estruturas, articulação política -, que influencia na circulação rápida de ideias. Sem coordenação, o fracasso ocorrerá.
Os quatro eixos devem ser ajustados para alcançar metas e objetivos.
A análise acurada de cada viabilidade abrirá sinais e referências para se construir uma resposta adequada à pergunta que encabeça este texto.
*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político.
Gaudêncio Torquato: Os enviados de Deus
Governantes que precisam apelar
Muitos governantes invocam o nome de Deus como escudo, registra a história. Em seu reinado, o ditador Franco, “caudillo da Espanha pela Graça de Deus” referia-se sempre à Providência Divina: “Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos”. A fascista Falange Espanhola o declarou “responsável perante Deus e a história”.
Monarcas justificam tudo pelo direito divino, independentemente da vontade dos súditos. Hassan II, no Marrocos, se declarava descendente do profeta Maomé: “Não é a Hassan II que se venera, mas ao herdeiro de uma linhagem dos descendentes do profeta Maomé”.
Hirohito, imperador do Japão de 1926 a 1989, era visto como divindade. Criou uma aura, distante da população que viveu guerras e mortes. Vestia-se como um “imperador divino e perfeito”, descendente da deusa do sol, Amaterasu.
O ditador Idi Amin Dada, de Uganda, garantia ao povo que conversava com Deus em sonhos, espécie de aval aos seus atos. Um dia perguntaram: “o senhor conversa com frequência com Deus”? Ele: “Sempre que necessário”. Já em Gana, os eleitores cantavam assim a figura de Nkrumah: “o infalível, o nosso chefe, o nosso Messias, o imortal”.
Aqui se eleva aos céus a figura de Jair Bolsonaro. A quem um pastor evangélico do Congo, Steve Kunda, assim se refere: “Na história da bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo, o imperador da Pérsia, Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: ‘Eu escolho meu sérvio Ciro’. E o senhor Bolsonaro é o Ciro do Brasil”.
O nosso Messias jogou o vídeo nas redes sociais. E entoou: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”.
Para reforçar, o bispo Edir Macedo pede que Deus ‘remova’ quem se opõe a Bolsonaro, acusando políticos de tentarem “impedir o presidente de fazer um excelente governo”.
O fato é que os governantes em países atrasados culturalmente e até desenvolvidos organizam seu próprio culto. Querem a imprensa cultivando sua imagem de herói, Salvador da Pátria, Super-Homem, Pai dos Pobres, Enviado dos Céus. Nietsche já alertava contra tal esperteza: “o super-homem destrói os ídolos, ornando-se com seus atributos. A apoteose da aventura humana é a glorificação do homem-Deus”.
Essa mania do parentesco com Deus ressurge na onda direitista e populista que se espraia pelo planeta, incluindo Hungria, Polônia, Áustria, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, Filipinas, Turquia e, claro, os Estados Unidos de Donald Trump.
Esses governantes assumem comportamento autoritário, criam estruturas próprias de comunicação, formam alas sociais amigas e inimigas, fustigam a imprensa. Tentam impedir a mídia tradicional de cumprir sua missão de apurar os fatos, vigiar e cobrar dos poderes públicos.
Cortam investimentos publicitários, extinguem empregos e investem no “achismo” das redes sociais. Os efeitos brotam: perda de credibilidade na informação; formação de exércitos na guerra da contrainformação; apartheid social.
No meio do turbilhão, Jair ataca a imprensa e os políticos e, quem sabe, pensa subir ao trono das divindades. Já tem até identidade: afinal, Messias é seu sobrenome.
*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político
Gaudêncio Torquato: A liturgia no brejo
Um presidente deve separar o público do privado
Tem motivos o presidente da República para se indignar com uma cena escatológica, dessas que assustam o interlocutor que a ela teve acesso? Sim, a indignação é uma reação natural a quaisquer atitudes ou cenas que fogem ao senso comum e que, pelo inusitado dos fatos nelas descritos, entram no dicionário das aberrações. Tem motivos o mandatário número um do país para passar adiante a cena que tanto o indignou, massificando a imagem junto a mais de 3,4 milhões de seus seguidores em uma rede social? Não.
Jair Bolsonaro espalhou junto ao contingente que o segue em uma das redes sociais o vídeo em que um homem dança sobre um ponto de ônibus após introduzir um dedo no próprio ânus, seguido de outra cena em que um deles abre a calça e urina na cabeça do outro. Sob o argumento de “expor a verdade” à população, acentua: “É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro”.
A atitude do capitão reformado gera inconvenientes. Permite a milhares de seguidores, entre os quais jovens, acesso a um vídeo que não teria sido visto por eles. Que impacto a imagem causaria a esse público?
Usar o Twitter como meio oficial de transmissão de informações, diretrizes e interpretação pessoal sobre o cotidiano constitui uma decisão incompatível com a posição de um dirigente de nação.
O poder, como se sabe, é exercido por um conjunto apreciável de mandatários e participantes das estruturas do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Todos integram a esfera governativa, mas o comandante do Poder Executivo é quem detém o cargo de maior proeminência. Guia-se por um liturgia, um exercício que o obriga a cumprir ritos, cerimônias e atos variados, não podendo a eles escapar sob pena de gerar desvios na rota que lhe é imposta.
O presidente da República tem que obedecer a essa liturgia, evitando comportamentos comuns dos cidadãos. Mesmo situações identificadas com o caráter do mandatário —por exemplo, sair às ruas, fazer feira, ir a jogos de futebol —hão de ser intensamente controladas para evitar transtornos que possam desfigurar a liturgia do poder.
A ele impõe-se separar a seara privada do território público. Não pode fazer com que sua visão peculiar do cotidiano seja transformada em política pública. Esse é o entrelaçamento que o presidente Jair não tem sabido distinguir. Se queria fazer uma denúncia, ao veicular o vídeo da “golden shower”, poderia ter pedido providências aos órgãos de policiamento, inclusive com a identificação dos autores da “façanha”.
Ao não traçar uma fronteira entre os campos público e privado, o presidente ingressa num cipoal de críticas. Tomar a parte pelo todo dribla a análise. Pois o Carnaval deste ano foi o mais cheio de gente nas ruas dos últimos tempos, a par de resultados que se mostram: 20 milhões de empregos temporários e R$ 7 bilhões nas contas do comércio e dos serviços.
Com seu gesto Bolsonaro acirra ânimos ainda nervosos do pleito passado, contribuindo para o tiroteio entre exércitos favoráveis e contrários. O Brasil pós-Carnaval, é pena, sobe ao palanque.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político