gasto público

Míriam Leitão: O impossível nó do gasto público

O Brasil não está cumprindo a regra de ouro e o teto de gastos não entregou o que prometeu. No ano que vem será necessário pedir um crédito extraordinário de quase meio trilhão de reais para fingir que se cumpre a regra de ouro. Mesmo se não houvesse a pandemia, o problema existiria. O Brasil está há seis anos com déficit primário e só deverá voltar ao azul em 2027, no governo do sucessor do próximo presidente. É perigoso manter rombo por tanto tempo. Erros do passado e incapacidade no presente nos mantém nesse atoleiro.

Pela regra de ouro só se pode endividar para investimento ou amortização da dívida. Não pode ser para pagar despesas de custeio, e nisso entram os juros. Só que o Tesouro terá um custo alto no ano que vem com vencimento de papéis antigos. No começo do segundo governo Dilma, a taxa de juros disparou e foi a 14,25%. Naquela época, o Tesouro vendeu muita LFT, corrigida pela Selic, e por prazo de seis anos. Esses papéis estão vencendo em 2021, e terão que ser pagos. Agora, com os juros baixos, o Tesouro só consegue vender títulos de seis meses. Essa é uma das várias confusões do orçamento.

O teto de gastos foi apresentado com a promessa de reduzir a despesa lentamente. Ele foi aprovado em 2016. O Brasil reduziria a despesa primária em meio ponto percentual a cada ano, segundo as projeções. Em dez anos essa queda seria de 5 pontos percentuais do PIB. Então, teoricamente, se sairia de 2,5% do PIB de déficit em 2016 para um superávit de 2,5% em 2026. Só que não. Em 2016, quando o teto foi aprovado, a despesa era de 19,9% do PIB. Para o ano que vem, ela está projetada em 19,8% do PIB. E isso se o país crescer em 2021 os 3,2% que o governo está prevendo. O que deu errado? O país perdeu receita tributária. Exatos dois pontos percentuais do PIB. Primeiro, porque cresceu pouco, e depois veio novo tombo. No ano do teto, o déficit foi 2,6% do PIB, no ano que vem deve ser de 3% do PIB. Economistas dizem que sem o teto teria sido pior.

O Orçamento de 2021 traz alguns mistérios. Não tem dinheiro para o Renda Brasil, nem para o programa Pró-Brasil. Há apenas um aumento da verba do Bolsa Família. Insuficiente para o novo programa. Para os ministérios de Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas há redução de verbas. Imagine que o presidente Bolsonaro mude de ideia e deixe o ministro Paulo Guedes fazer o que ele havia planejado, acabar com o abono salarial e levar o dinheiro para o novo programa. Mesmo assim não resolveria. O dinheiro do abono do ano que vem já é devido a quem está trabalhando no mercado formal em 2020. O fato gerador ocorre este ano. Além disso, o Orçamento foi feito com o pressuposto de que será mantido o veto à desoneração dos setores que mais empregam. Se o Congresso derrubar o veto, abre-se um novo buraco de R$ 5 bilhões.

Apesar de não ter dinheiro para nada, o governo gastará R$ 4 bilhões capitalizando estatais. É que para vender a Eletrobras precisará transformar a Eletronuclear numa empresa 100% do Tesouro. E depois o plano é ela se endividar com garantia do governo. Esse buraco sem fundo tem nome: é Angra 3. Tem uma dívida de R$ 8 bilhões e não construiu nem metade da usina. Terá que gastar, segundo cálculo de um especialista, mais R$ 16 bilhões. E se a opção for desistir dela, terá que reconhecer um prejuízo de R$ 10 bi.

Por onde se olhe nos gastos públicos só há problemas. Aí o Ministério da Economia faz uma proposta que parece simples: quebre-se o piso. O secretário Waldery Rodrigues explicou que R$ 700 bilhões são despesas indexadas por índice de inflação, por salário mínimo ou pela receita corrente líquida. O que ele quer dizer com isso? Que educação e saúde não seriam corrigidos, que os benefícios previdenciários ficariam congelados. Se houver também a desvinculação seria obrigatório fazer várias mudanças na Constituição.

E se o governo conseguir criar um novo imposto? Mesmo se a receita crescer por causa de um novo tributo, não resolve, porque o teto só permite que as despesas cresçam pelo índice da inflação em 12 meses até junho. Foi de 2,1%. Para sair desse beco sem saída, era preciso ter um governo unido, com uma proposta clara, e base sólida no Congresso. Não se tem nada disso. O governo tem apenas um presidente correndo atrás da reeleição.


Cristiano Romero: Uma oportunidade para o Estado encolher

Uma das contrapartidas dos Estados na renegociação de suas dívidas com a União será a privatização de empresas estatais. O governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, concordou em privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). Goiás, por sua vez, aceitou vender a Celg, a distribuidora de energia do Estado.

O processo de venda das estatais estaduais será conduzido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), uma exigência do governo federal. O banco, como se sabe, tem expertise no assunto, tendo sido responsável pelas privatizações realizadas nos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

“O BNDES já está trabalhando intensamente nisso [na privatização da Cedae]”, informou ao titular desta coluna o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. “Os governadores concordaram que o BNDES seja o coordenador do processo”, revelou, conforme antecipou ontem o Valor PRO, o serviço de informações em tempo real do Valor.
União negocia com todos os Estados a venda de estatais

A equipe econômica está negociando com todos os Estados a venda de empresas estatais. A privatização é parte do esforço para melhorar a situação fiscal do setor público, principal vulnerabilidade da economia brasileira neste momento. A medida tem um efeito colateral importante: com a desestatização, a tendência dos setores onde as estatais atuam é ter mais eficiência. Privatizar é, também, uma forma de reduzir drasticamente os incentivos à corrupção.

Na renegociação anterior das dívidas estaduais, em 1997, adotou-se o mesmo compromisso, muitas empresas foram vendidas, mas ainda existe um bom par delas em vários Estados. A severa crise fiscal é uma oportunidade histórica para o Estado brasileiro desistir de vez de sua atuação empresarial, passando a concentrar-se em atividades típicas de sua atuação, como educação, saúde e segurança.

O governo fluminense, na gestão de Marcello Alencar (1995-1998), tentou privatizar a Cedae, mas esbarrou em questões regulatórias – a disputa entre Estados e municípios quanto à competência sobre os serviços de saneamento básico -, na resistência de grupos políticos e no corporativismo dos funcionários. No ano passado, o tema veio à baila na Assembleia Legislativa.

Além do compromisso com a venda de ativos, os Estados concordaram com sua inclusão na proposta de emenda constitucional que limita a correção das despesas públicas à inflação do ano anterior e com a não concessão, por 24 meses, de aumentos reais aos salários do funcionalismo público. O ministro Henrique Meirelles explica que a Constituição assegura aos servidores a reposição do poder de compra (isto é, a inflação), mas alguns governadores entendem que é possível dar reajustes abaixo da variação da inflação.

“Não podemos impedir o que está previsto na Constituição, mas o fato é que, com essa regra, o crescimento real (acima da inflação) dessa despesa será zero. Muitos Estados vinham concedendo reajustes muito acima da inflação”, contou Meirelles.

Considerando-se apenas oito Estados (SP, RJ, MG, RS, SC, PR, BA e GO), o Distrito Federal e a prefeitura de São Paulo, a despesa com pessoal e encargos saltou de 3,7% para 5,2% do PIB entre 2008 e 2015. O investimento desses entes caiu, no mesmo período, de 0,8% para 0,5% do PIB. A despesa corrente (o gasto com educação e saúde, por exemplo) teve que encolher: de 4,7% para 3,8% do PIB.

Um aspecto muito importante da reunião dos governadores com a equipe econômica foi a concordância quanto à necessidade de adesão de todos os Estados à renegociação, mesmo daqueles que estão situação razoável, como o Espírito Santo. “Coloquei na reunião que ou fechávamos um acordo com todos ou não seria possível fazer apenas com alguns. Todos entenderam que era importante resolver a questão não só das dívidas, mas também da questão fiscal dos Estados”, revelou o ministro.

A adoção do teto de evolução das despesas é crucial porque, de 1997 a 2015, observa Meirelles, as despesas da União cresceram 6% ao ano em termos reais. Tomando-se o período em que os governos Lula e Dilma decidiram adotar a chamada “Nova Matriz Econômica” – de 2008 a 2015 -, o gasto avançou 14,5% acima da inflação acumulada. No mesmo período, a despesa total saltou 51% em termos reais, forçando o Tesouro Nacional a elevar a dívida pública em R$ 2,2 trilhões.

“Aprovada a emenda constitucional que fixa o teto, no ano que vem teremos zero de crescimento real”, previu Meirelles. De 2004 a 2015, a despesa primária (que não inclui os juros da dívida) do governo central saltou de 15,6% para 19,5% do PIB. O governo espera, com o teto, diminuí-la em dois pontos percentuais do PIB em três anos.

O ministro da Fazenda confirmou que, em 2017, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) deve apresentar um novo déficit primário. Acredita, porém, que o saldo negativo vai baixar ao longo do tempo. O cálculo é o seguinte: Meirelles aposta que, à medida que as iniciativas na área fiscal comecem a ser aprovadas e implementadas, o setor produtivo voltará a confiar na política econômica, o que ajudará a destravar as decisões de investimento, impulsionando a atividade econômica. A retomada do PIB, por seu turno, aumentará a arrecadação, auxiliando o ajuste fiscal.

Talvez, muitos ainda não tenham se dado conta, mas a imposição de um teto para as despesas acabará por tornar realistas os orçamentos públicos. Diante do teto, caberá aos governantes, em negociação com o Congresso e as assembleias legislativas, estabelecer as prioridades do gasto público. Hoje, pode tudo e o resultado é inflação, carga tributária e dívida pública crescentes, asfixia do setor privado e por conseguinte dos investimentos, baixo crescimento e baixa qualidade dos serviços públicos. (Valor Econômico – 22/06/2016)


Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras
E-mail: cristiano.romero@valor.com.br

Fonte: pps.org.br