garimpos ilegais
Desmatamento ilegal conecta grileiros, frigoríficos e montadoras de carros
Murilo Pajolla*, Brasil de Fato
A JBS, maior processadora de carnes do mundo, descumpriu acordos internacionais e continuou comprando gado de fazendas envolvidas no desmatamento ilegal da Amazônia paraense. É o que aponta uma investigação divulgada no final de junho pela Global Witness, ONG internacional que fiscaliza impactos socioambientais de grandes empresas ao redor do mundo.
O relatório expõe a existência de uma cadeia de empresas que lucram alto com a exploração ilegal de terras e a violação de direitos humanos. Entre elas, estaria a "dinastia" Seronni, família de fazendeiros do Pará e fornecedora regular da JBS. Segundo a Global Witness, os Seronni são acusados de crimes como uso de trabalho escravo, desmatamento ilegal, grilagem e lavagem de gado.
"Sergio Luiz Xavier Seronni, chefão da dinastia Seronni, tem uma longa e conturbada história de desmatamento ilegal, abusos de direitos humanos e submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão. Essas atividades permitem que Seronni tenha um estilo de vida luxuoso. Ele possui aviões Cessna e Piper 19 e 10 empresas no valor de quase US$ 50 milhões", aponta o relatório da Global Witness.
Em nota, a JBS afirmou que tem uma "política de tolerância zero para desmatamento ilegal, grilagem de terras, trabalho escravo ou desrespeito aos direitos humanos". Mais sobre o posicionamento da empresa está disponível no final deste texto. A reportagem não localizou representantes da família Seronni. O espaço segue aberto para o posicionamento.
Bancos internacionais com agenda verde financiam JBS
A ONG também identificou que as ilegalidades não impediram bancos internacionais e gestores de ativos de financiarem, na casa dos bilhões, as atividades da JBS. O rol de financiadoras inclui instituições bancárias que anunciaram compromissos públicos contra o desmatamento. Entre elas estão Deutsche Bank, HSBC, Barclays, JP Morgan, Santander e BlackRock.
"Embora os governos do Reino Unido, da União Europeia e dos EUA declarem estar planejando leis para garantir que suas empresas não importem commodities ligadas ao desmatamento, estão deixando de fora o setor financeiro", afirma o autor do relatório e chefe de Investigações Florestais da Global Witness Chris Moye.
"A gente conclui que uma maior regulação desse setor é essencial para reduzir sua contribuição ao desmatamento, sobretudo considerando as repetidas falhas de suas iniciativas voluntárias de não desmatamento", completa Moye.
JBS mantém 144 fornecedores irregulares, aponta a Global Witness
A Global Witness aponta que a JBS é a principal compradora do gado criado na Amazônia. No bioma, 70% da área desmatada é hoje ocupada pela pecuária. Em 2020, a ONG revelou que a gigante do processamento de carnes tinha entre os fornecedores 3.027 fazendas com desmatamento ilegal.
A empresa já havia selado obrigações legais de não desmatamento com o Ministério Público Federal (MPF). Em 2021, a JBS fez uma declaração conjunta de combate à devastação ambiental provocada por seus fornecedores. O compromisso foi assumido na COP 26, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
"Agora nossa nova investigação conclui que, apesar desses compromissos, a JBS continuou comprando de 144 das mesmas fazendas paraenses expostas em nosso relatório anterior, mais uma vez descumprindo seus acordos com o Ministério Público", afirma o integrante da Global Witness.
Por outro lado, a JBS atesta que as compras feitas dessas fazendas foram verificadas e estavam dentro dos "regulamentos estabelecidos".
"Também, contrariando suas obrigações, a empresa não monitorou outras 470 fazendas envolvidas em suas cadeia de abastecimento, chamados fornecedores indiretos, contendo cerca de 40 mil campos de futebol de desmatamento ilegal na Amazônia", prossegue Moye.
Carros de luxo e desmatamento
Segundo a Global Witness, a destruição da Amazônia impulsiona os lucros da indústria automobilística mundial. Os bancos de couro em carros de luxo, símbolos de status para muitos consumidores, integram a cadeia de produção que começa no desmatamento ilegal.
Um dos objetos das investigações da ONG é o Grupo Mastrotto, da Itália, um dos fabricantes de couro mais prestigiadas do mundo. A empresa teria importado couro dos abatedouros irregulares da JBS que recebem gabo criado em áreas desmatadas ilegalmente.
O Grupo Mastrotto "possui um faturamento anual de 400 milhões de euros e fornece para o Grupo Volkswagen, proprietário de Audi, Porsche, Bentley, Lamborghini, Skoda, Seat e Bugatti", diz a Global Witness.
"Alguns dos outros clientes do setor automotivo informados pela Mastrotto incluem a Toyota. A Ikea também foi identificada como cliente regular da Mastrotto. Ela também possui subsidiárias que compram couro no Brasil", expõe a ONG internacional.
Outro Lado
A JBS respondeu que bloqueia fornecedores quando toma conhecimento de práticas ilegais e informou que 15 mil produtores estão de fora da cadeia produtiva por desrespeitarem os critérios socioambientais da empresa.
"No que se refere aos 144 fornecedores da JBS citados no levantamento, a Companhia analisou todas as compras realizadas e comprovou que estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos. No caso do Sr. Seronni, o próprio e seus familiares foram bloqueados assim que as denúncias de práticas ilegais foram informadas à JBS", informou a empresa.
"Além disso, com base na Lei de Acesso à Informação, requisitamos acesso às GTAs [Guias de Trânsito Animal] relacionadas a esses produtores, o que nos daria visibilidade completa sobre as transações realizadas. Porém, ainda não tivemos retorno, apesar de o prazo legal já ter expirado", finalizou a empresa.
Procurado, o Grupo Mastrotto não respondeu aos questionamentos. Caso haja retorno, o texto será atualizado.
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Título editado.
Garimpeiro ilegal mostra fugas e dribles à fiscalização em terra yanomami
João Fellet, BBC News Brasil*
"É três 'blackhawkzão', três!", prossegue o narrador, referindo-se ao modelo da aeronave militar. "Todo mundo, vamos se esconder, agora o bicho pega", ele diz.
Cenas como essa, que mostram garimpeiros fugindo de forças de segurança, são comuns num canal no YouTube criado por um garimpeiro que atua ilegalmente dentro do território yanomami, em Roraima.
Os vídeos do canal, 120 ao todo, foram postados nos últimos três anos, período de forte crescimento da mineração ilegal em terras indígenas, apesar de operações policiais pontuais.
No território yanomami, onde se estima que haja até 20 mil garimpeiros, a atividade ganhou visibilidade nas últimas semanas após denúncias de violência sexual contra mulheres e meninas indígenas.
O garimpo também está associado à presença de facções criminosas no território e à contaminação de indígenas por mercúrio (leia mais abaixo).
Rotina do garimpo
Os vídeos do canal "Fabio garimpo Junior" mostram garimpeiros à vontade diante das câmeras durante seus trabalhos, ainda que garimpar em terras indígenas seja crime passível de prisão.
Sem esconder o rosto, eles discursam em defesa do garimpo e criticam a repressão à atividade, muitas vezes ecoando posições do presidente Jair Bolsonaro.
Os vídeos mostram ainda como o garimpo na terra yanomami ganhou uma escala industrial nos últimos anos.
As gravações mostram helicópteros e aviões privados transportando os garimpeiros até as minas ilegais (não há acesso terrestre ao território).
Nos garimpos, máquinas pesadas abrem grandes clareiras na Floresta Amazônica e rios são desviados na busca por ouro e cassiterita. Alguns acampamentos parecem minicidades, com eletricidade e internet.
Segundo a Hutukara Associação Yanomami, a área desmatada por garimpeiros dentro do território indígena cresceu 46% em 2021 em comparação com o ano anterior.
A atividade, porém, implica sérios riscos para os garimpeiros. Dois vídeos mostram helicópteros a serviço do garimpo em destroços após caírem na floresta.
Outras filmagens mostram manobras arriscadas de barcos com garimpeiros subindo corredeiras, helicópteros descendo em pequenas clareiras e aviões pousando sob forte chuva.
As cenas são exaltadas no canal como exemplos da coragem e perícia dos envolvidos.
Perseguições com tiros
A rotina nos garimpos no território yanomami também abarca perseguições com tiros.
Um vídeo publicado em janeiro de 2020 tem como título "Piloto no garimpo do Uraricoera tenta fugir do Exército brasileiro".
As imagens mostram um piloto que navegava em alta velocidade enquanto era perseguido por um barco com quatro soldados no Uraricoera, principal rio do território yanomami.
Após quatro disparos, um homem na margem do rio grita: "Pegou, pegou". Ouvem-se então outros dois tiros, mas o vídeo termina sem que seja possível ver se o piloto foi realmente atingido nem qual foi o desfecho da perseguição.
Outra versão dessa cena, publicada em fevereiro de 2022, envolveu um carro da Polícia Militar de Roraima que perseguia em alta velocidade um pequeno avião num aeroporto não identificado.
Segundos após a decolagem, ouve-se um disparo, mas a aeronave prossegue o voo, aparentemente ilesa.
Garimpeiro youtuber
O canal no YouTube que exibe os vídeos existe desde janeiro de 2018 e tem 324 inscritos. A última gravação foi publicada em 28 de abril de 2022.
Em vídeo de agosto de 2021, o dono do canal se apresenta como Fábio Júnior Rodrigues Faria e se define como garimpeiro, mas diz ter a ambição de viver como youtuber.
"Se um dia futuramente der, vou viver disso, mostrando a realidade do garimpo, mostrando a dificuldade que os garimpeiros passam", ele afirma no vídeo.
Faria aparece em vários vídeos num dos maiores garimpos no território yanomami, conhecido como garimpo do capixaba. O local foi alvo de sucessivas operações nas últimas décadas - a última delas, em março de 2021, quando o Exército destruiu uma pista de pouso usada por garimpeiros.
Mas as operações não foram capazes de paralisar os trabalhos. Os vídeos mostram que, assim que as forças de segurança deixam os acampamentos, os garimpeiros saem dos esconderijos nas matas para retomar as atividades.
Ao se esconder, costumam levar consigo o ouro extraído e motores que usam para garimpar. Os equipamentos que ficam para trás costumam ser queimados pelos agentes.
Um vídeo de outubro de 2021 mostra uma distribuição gratuita de cerveja a garimpeiros logo após forças de segurança deixarem um acampamento, quando parte do local ainda estava em chamas.
"Pode pegar que tá liberado", diz um homem, ele próprio com duas latas na mão. "Aqui é por conta da (Polícia) Federal", ironiza.
Outras gravações mostram acampamentos de garimpeiros em outras áreas do território yanomami, como nos rios Catrimani e Uraricoera.
Procurado por meio de seu canal no YouTube, Faria não respondeu as perguntas da BBC.
Na última tentativa de contato, na última quarta-feira (11/05), a BBC postou no canal uma mensagem questionando se Faria estava ciente das penas para o garimpo ilegal em terras indígenas.
No dia seguinte, porém, a mensagem tinha sido deletada.
Problema histórico
Com área equivalente à de Portugal, a Terra Indígena Yanomami abriga cerca de 27 mil membros dos povos yanomami e ye'kwana, que vivem em 331 aldeias.
O território ocupa porções do Amazonas e de Roraima e se estende por boa parte da fronteira do Brasil com a Venezuela. A região é alvo de garimpeiros desde ao menos a década de 1980.
A atividade viveu um declínio com a demarcação da terra indígena, em 1992, mas voltou a crescer nos últimos anos.
Eleitor de Bolsonaro
No vídeo em que se apresenta, Faria se declara eleitor do presidente Jair Bolsonaro. "Em 2022, é Bolsonaro na cabeça, vai arrebentar de novo", afirma.
Em outro vídeo, quando se escondia na mata durante uma operação policial, o garimpeiro critica as forças de segurança e torce para que o presidente tome providências. "Espero que nosso presidente Bolsonaro veja isso", afirma.
Em várias ocasiões, Bolsonaro defendeu a aprovação de um projeto de lei - atualmente em debate no Congresso - que regulamentaria a mineração em terras indígenas.
O presidente também costuma criticar órgãos de fiscalização ambiental e afirmar que garimpeiros "não são bandidos", mas sim trabalhadores em busca de melhores condições de vida.
Discurso semelhante é ecoado pela categoria. Nos vídeos do canal, Faria e colegas dizem que os garimpeiros são perseguidos injustamente.
"Muita gente crucifica o garimpeiro, (diz) que o garimpeiro é sem vergonha, mas em nenhum momento você vê que a Bíblia condena o garimpo", diz Faria.
"Pelo contrário, Deus ama o ouro e deixou isso aqui que é pra tirar mesmo", defende.
A BBC questionou a Presidência da República sobre o conteúdo do canal e as menções dos garimpeiros a Bolsonaro, mas não houve resposta.
Interação com indígenas
Embora os vídeos tenham sido gravados dentro do território yanomami, são raros os momentos em que indígenas aparecem nas gravações.
Numa dessas ocasiões, Faria e colegas se depararam com uma mulher e três crianças yanomami enquanto atravessavam um riacho numa pinguela.
"Ó os índios da tribo aí", disse o garimpeiro. "Uma fome, miséria", afirmou.
Os indígenas aguardavam a travessia dos garimpeiros, esperando por sua vez para cruzar o rio.
Bem mais comuns que os encontros são as menções a indígenas nos discursos de Faria.
No vídeo em que se apresenta, o garimpeiro se refere aos indígenas como "uma raça de gente imunda" e os acusa de "roubar" os garimpeiros.
"É uma raça de gente que não merece você nem dar um prato de comida para eles", afirma. "São bandidos".
Um líder indígena yanomami ouvido pela BBC comentou a declaração.
"A população indígena yanomami não é bandida, não estamos colocando em risco a vida de ninguém, não estamos invadindo a terra de ninguém. Quem está invadindo são os garimpeiros", afirmou o indígena, que preferiu não ter o nome revelado por motivos de segurança.
Ele afirmou ainda que a existência do canal mostra que os garimpeiros "não têm medo de ninguém".
"Eles não têm medo da PF (Polícia Federal), não têm medo de mostrar os rostos. Eles sabem que não vão responder absolutamente (por crimes), que não vão ser presos", diz o indígena.
Questionado pela BBC, o YouTube disse que "conteúdos que incentivem a violência ou ódio contra pessoas" com base em características como etnia ou religião não são permitidos na plataforma, mas não comentou a exposição de cenas de garimpo ilegal no canal.
"Quando não há violação à política de uso do YouTube, a análise final sobre a remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet", afirmou a empresa.
O YouTube disse ainda que o canal do garimpeiro está "sob análise".
Penas para o garimpo ilegal
A Constituição de 1988 determina que a exploração mineral em terras indígenas só pode ocorrer se for regulamentada por leis específicas. Como as leis jamais foram aprovadas, a atividade é ilegal.
A exceção é quando o garimpo é realizado pelas próprias comunidades indígenas, em escala artesanal.
Segundo a Lei 9.605/98, extrair recursos minerais sem autorização é crime com pena de seis meses a um ano de prisão, além de multa. Como terras indígenas pertencem à União, garimpar nessas áreas também pode ser enquadrado como crime contra o patrimônio da União (lei 8.176/91), com pena de um a cinco anos de prisão e multa.
Porém, mesmo quando condenados na Justiça, garimpeiros raramente cumprem pena na cadeia.
Em audiência no Senado em abril, o procurador da República Alisson Marugal, que atua no combate ao garimpo no território yanomami, disse que as condenações de garimpeiros não costumam ultrapassar 4 anos de prisão e são normalmente substituídas pela prestação de serviços.
Segundo Marugal, hoje o Ministério Público Federal tem como foco investigar o garimpo enquanto organização criminosa que promove lavagem de dinheiro, crimes que geram penas maiores para os líderes dos grupos.
O procurador citou denúncias de que o "narcogarimpo" esteja presente no território yanomami, conforme facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) passam a se envolver com a atividade.
Para coibir os crimes na região, o procurador cobrou o fortalecimento da fiscalização, o bloqueio dos rios usados por garimpeiros e um maior controle da cadeia de venda e processamento do ouro.
Outro impacto do garimpo ilegal no território se dá pela contaminação de indígenas por mercúrio, usado pelos garimpeiros para aglutinar o ouro.
Em 2016, um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Fiocruz e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que 92% dos moradores de uma aldeia yanomami vizinha a uma frente de garimpo tinham altos níveis de mercúrio no sangue.
Acusações contra o Exército
O Exército também é alvo de acusações constantes nos vídeos dos garimpeiros.
"O governo manda o Exército aqui para dentro, e o Exército, quando vem, vem morrendo de fome", afirmou Faria num vídeo publicado em junho de 2019.
"Eles não querem tirar os garimpeiros, eles querem roubar o que o garimpeiro tem. Eles roubam celular, comida, qualquer coisa que beneficie eles", disse.
Contatado pela BBC desde a última terça-feira (10/05), o Exército não se posicionou sobre as acusações nem sobre os demais conteúdos do canal.
A corporação não tem como atribuição principal combater crimes ambientais, embora costume dar apoio logístico a operações em terras indígenas na Amazônia.
Desde 2019, porém, vários decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) determinados pelo presidente Jair Bolsonaro deram às Forças Armadas o papel de coordenar o combate ao garimpo ilegal nesses territórios.
A estratégia foi abandonada em outubro de 2021, decisão que analistas atribuem a seus fracos resultados e aos altos custos das operações lideradas pelos militares.
Desde então, o Ministério da Justiça (MJ) passou a coordenar a ação da Polícia Federal, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) no combate ao garimpo em terras indígenas.
Sob a coordenação do MJ, o ritmo das operações no território yanomami diminuiu.
Diretor-adjunto da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), o agente ambiental Wallace Lopes afirmou em 9 de maio no Twitter que o Ibama não é convocado a atuar na Terra Indígena Yanomami desde dezembro de 2021.
"Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade", afirmou.
A BBC questionou o Ministério da Justiça sobre os vídeos dos garimpeiros e o crescimento da atividade na terra yanomami.
Em nota, o órgão afirmou que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça está finalizando "um novo calendário de ações operacionais" no território.
"Tão logo esteja pronto poderá ser apresentado à mídia e à sociedade", disse o ministério.
Questionada se tinha conhecimento do canal no YouTube, a Polícia Federal disse que "não comenta eventuais investigações em andamento".
A corporação disse ainda que realizou 31 operações policiais contra crimes ambientais em terras indígenas em Roraima em 2021, e que há mais de 200 procedimentos investigativos em andamento, com mais de 170 indiciados por crimes ligados ao garimpo ilegal.
A Funai disse em nota que mantém bases para coibir crimes e controlar o acesso ao território yanomami.
"Cabe lembrar que a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é um problema crônico, sendo que a atual gestão da Funai tem trabalhado firmemente para resolvê-lo, bem como outros problemas que são fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira que, no passado, era guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não-governamentais", afirmou a fundação.
Em entrevista à Jovem Pan News em 12 de abril, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, disse que o garimpo no território yanomami "tem duas vítimas: tanto o indígena quanto o garimpeiro".
Ele defendeu a aprovação de uma lei para regulamentar a atividade "para trazer transparência ao processo e, quem sabe, garantir uma solução de vida mais digna para esses indígenas".
*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil (Título editado)
El País: 8 anos e 12 quilos, a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami
Beatriz Jucá, El País
Uma rede escura acomoda o corpo miúdo de uma criança Yanomami tão magra que é possível ver sua pele moldar as costelas. A fotografia de uma menina de oito anos que pesa apenas 12,5 quilos (o peso mínimo normal para a idade seria de 20 quilos), feita na aldeia Maimasi em Roraima, expõe um problema crônico de desassistência à saúde que os povos indígenas enfrentam no coração da Amazônia ―e que vem crescendo ano após ano. A criança estava acometida por malária, pneumonia, verminose e desnutrição, em uma região sem visitas regulares de equipes sanitárias e que fica a 11 horas a pé do polo de saúde mais próximo. Ela teve sua imagem capturada dias antes de ser transferida de avião a um hospital da capital Boa Vista no dia 23 de abril, onde já se recuperou da malária, mas segue em tratamento para os outros problemas. Virou símbolo do histórico descaso do Brasil com o povo Yanomami, que luta para sobreviver em meio a uma junção de graves crises: a escalada de violência por garimpeiros ilegais, os impactos ambientais que levam fome a algumas regiões e a fragilidade do acesso à atenção sanitária.
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“Na cultura Yanomami a gente não pode demonstrar imagem de criança, frágil, doente. Mas é muito importante [fazer isso] pela crise que estamos vivendo”, explica o líder indígena Dario Kopenawa, ao autorizar a publicação da fotografia nesta reportagem. Para esta etnia, a imagem da pessoa é parte importante dela e disseminá-la em uma situação de enfermidade pode enfraquecê-la ainda mais. Até quando se morre, é preciso queimar todas as lembranças de quem partiu para preservar seu espírito no mundo dos mortos. Mas a comunidade decidiu divulgar a fotografia enquanto a criança tenta se recuperar para denunciar aos napëpë ―como chamam os não indígenas― seu sofrimento diante da grave crise de saúde que os ameaça.
“Esta foto é uma resposta da violação de direitos dos povos indígenas”, resume Kopenawa. Enquanto a malária e a covid-19 avançam sobre as aldeias, lideranças narram que equipes de saúde foram reduzidas com profissionais afastados por covid-19 e outras doenças, postos de saúde foram fechados temporariamente e falta helicóptero para transporte de pacientes em áreas de difícil acesso. “A gente sofre há muito tempo sem estrutura boa, sem todos os profissionais completos pra dar assistência. Com a pandemia, piorou”, destaca Konepawa. O problema afeta especialmente as comunidades mais isoladas, que dependem de visitas esporádicas das equipes. “Tem locais que estão ainda sem vacinação contra a covid-19 porque não têm profissionais. São comunidades que ficam longe dos postos, não têm como chegar”, acrescenta Júnior Yanomami, membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), um órgão responsável pelo controle social das ações governamentais. No Brasil, os grupos indígenas são prioritários na fila de vacinação.
“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”
“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”, continua o líder indígena. Segundo ele, a aldeia Maimasi, que vive um surto de malária e onde várias crianças padecem com desnutrição e verminoses, não recebia visita de equipes de saúde havia seis meses, quando profissionais atenderam a criança da fotografia (divulgada por um missionário católico e publicada pela Folha de S. Paulo), no final de abril. A equipe não dispunha de medicamentos suficientes para todos os que precisavam, conta o indígena. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), responsável pela atenção aos povos originários, dá uma versão diferente: diz que o atendimento ocorreu dia19 de março, “mas a família não autorizou a remoção para uma unidade de saúde”. Também garante ter estoque suficiente de medicamentos e ter contratado profissionais de saúde, mas não esclarece qual é a frequência das visitas à aldeia. A Sesai tampouco informa ao EL PAÍS sobre a incidência de malária, desnutrição e mortalidade infantil para dar a dimensão do crescimento das doenças na região.
Esses problemas de saúde não são generalizados em todo o território Yanomami ―tão vasto quanto a área de um país como Portugal―, mas estão presentes em várias comunidades. Um estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz em duas áreas do território ―Auaris e Maturaká― e divulgado no ano passado dá pistas sobre o tamanho do problema: 80% das crianças de até 5 anos apresentavam desnutrição crônica e 50% desnutrição aguda nestes locais. A situação está relacionada desde à escassez de água potável até a falta de acompanhamento nutricional e de pré-natal na gestação. Passa ainda pelos quadros de verminoses, malária e diarreia frequentes nas comunidades, sem ações preventivas de saúde fortes. “Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo”, diz Júnior Yanomami. “Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam a caça. Nós nos alimentamos da natureza”, explica o indígena.
Os moradores da Maimasi são descendentes de um dos grupos mais afetados pela abertura da estrada Perimetral Norte (BR-210) na década de 1970, durante a ditadura militar. Naquela época, parte significativa do grupo morreu diante de surtos de sarampo e outras doenças levadas pelos trabalhadores das obras. Há anos, eles cobram um posto de saúde, mas por enquanto seguem dependendo de visitas esporádicas da equipe de saúde à comunidade. A situação que já era difícil ficou pior especialmente a partir do ano passado. As visitas diminuíram enquanto cresceram as atividades de garimpeiros ilegais, aumentando a chance de doenças transmissíveis e a violência. E os casos de malária, enfrentados pelos indígenas há décadas e considerados “endêmicos” pela Sesai, seguem crescendo. Segundo Júnior Yanomami, só neste ano já foram identificados cerca de 10.000 casos, o que corresponde a pouco mais de um terço de toda a população yanomami, de cerca de 29.000 pessoas. “A criança na foto provavelmente expressa esse somatório de tragédias”, afirma uma nota da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.
“Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo”
Os vários problemas sanitários, ambientais e sociais enfrentados não estão dissociados. O desmatamento na Amazônia no último mês de abril foi o maior em seis anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O desmatamento tem crescido ano após ano, e o desequilíbrio ambiental interfere na alimentação dos povos da floresta, que se alimentam do que colhem, pescam e caçam nas comunidades mais isoladas. Em várias áreas, a presença de garimpeiros e madeireiros ilegais leva ainda à contaminação de rios com mercúrio, contribuindo para desnutrição, desidratação e diarreia. Com os recursos diminuindo na floresta e a fome à espreita, alguns indígenas acabam trabalhando com não indígenas e aderindo a uma alimentação industrializada e menos nutritiva. “Não dá para generalizar que as crianças estão morrendo desnutridas, com fome. Tem esse problema onde há presença dos garimpeiros. Onde não tem garimpo as crianças estão saudáveis, comendo bem e cuidando de suas atividades. O que falta é assistência de saúde”, defende Kopenawa.“A vida do povo Yanomami está em risco. Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo.”
A escalada da violência com garimpos ilegais
Às crises sanitária e ambiental, soma-se ainda uma escalada de violência em algumas regiões. É o caso da comunidade indígena Palimiu, em Roraima. Há uma semana, a aldeia enfrenta ataques de garimpeiros, com tiros, bombas e gás lacrimogêneo contra os indígenas. Na última terça, garimpeiros ilegais trocaram tiros com a Polícia Federal durante uma visita para averiguar as denúncias de ataques à aldeia. “Eu nunca tinha visto tantos tiros. Só em filme. Eles [garimpeiros] eram muitos e tinham armamento pesado”, conta Júnior Yanomami, que estava na comunidade naquele momento. No ano passado, os indígenas criaram uma barreira sanitária para evitar a passagem de garimpeiros e tentar frear a disseminação do coronavírus. Mas o rio Uraricoera, onde fica a barreira, é uma das principais rotas para a atividade. No dia 24 de abril, os Yanomami impediram a passagem de um grupo. Tentaram negociar para que não voltassem. A resposta, segundo Júnior Yanomami, veio meio hora depois, com tiros em direção à comunidade. Os indígenas revidaram com flechas e tiros de espingarda.
Os vários conflitos na última semana, segundo relatam os indígenas, deixaram três garimpeiros e um Yanomami feridos. Duas crianças teriam morrido afogadas enquanto fugiam dos tiros, segundo lideranças. O último ataque, dizem, foi na noite de domingo. “É uma coisa muita séria. Todos lá estão com muito medo. Eu também fiquei”, emenda Júnior Yanomami. “Tem Yanomami correndo risco. Tenho medo de acontecer um massacre a qualquer momento. O Governo Federal tem que se mexer”, clama.
Entidades indigenistas veem o posicionamento do presidente Bolsonaro, que já fez declarações contra a demarcação da terra indígena Yanomami e costuma defender a regularização do garimpo nos territórios, como um estímulo aos conflitos. Na última quarta-feira, o Exército até deslocou homens para a comunidade, mas os retirou horas depois. A 1ª Brigada em Boa Vista não respondeu à reportagem se reenviará os militares e o que motivou a retirada deles. A Polícia Federal, por sua vez, deve retornar para investigar o caso. Enquanto isso, os indígenas seguem em estado de alerta e medo, contam lideranças. Até que a situação se modifique, devem ficar também sem os serviços de saúde, já que a Sesai retirou os profissionais diante da gravidade da situação. “A unidade de atendimento será reaberta tão logo seja possível atuar em segurança”, afirma a secretaria, acrescentando que atendimentos de urgência serão realizados pontualmente no distrito sanitário indígena que fica fora do território. Já a Fundação Nacional do Índio não retornou os contatos da reportagem. “O clima é de medo. Muito medo. Agora só eles estão lá. Não tem PF, Exército nem Saúde. Estão sozinhos para defender a sua comunidade”, finaliza Júnior Yanomami.
Fonte:
El País
Revista Política Democrática || Reportagem: Um Oásis no meio da destruição
Lago em Serra Pelada está cercado por desmatamento que aumenta com ação de garimpeiros, mostra segunda reportagem da série Sonho Dourado: 40 anos depois
Por Cleomar Almeida, enviado especial
Um lago de 200 metros de profundidade sobrevive como um oásis em meio ao cenário de terra arrasada, em Serra Pelada, no Sudeste do Pará. A ação das chuvas criou o reservatório no mesmo local onde há 40 anos passou a ser aberta uma cratera de 24 mil metros quadrados para exploração do maior garimpo livre do mundo até o final dos anos 1980. Contudo, ao redor do lago, dentro da floresta amazônica, garimpeiros aumentam cada vez mais o desmatamento, já que são explorados para trabalharem como tatus atrás de ouro na região.
No Pará, o aumento da destruição do meio ambiente tem relação direta com a exploração do ouro, que teve seu auge anos 1980. Desde aquela época, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Estado perdeu 148,3 mil km² de floresta, o equivalente à área do Ceará. A maioria dos garimpeiros atua em situação ilegal, como mostrou a primeira reportagem da série Sonho Dourado: 40 anos depois.
Os garimpeiros deixam seus rastros visíveis de destruição ao se embrenharem na floresta em busca do ouro. Derrubam árvores. Acumulam montanhas de terra em cima da vegetação. Com pás, enxadas, picaretas e motosserras, exploram uma área até se esgotar qualquer chance de encontrar o metal. Em seguida, partem para outra região da Amazônia e repetem o mesmo ciclo do desmatamento.
— A gente vem para o garimpo para não passar necessidade, mas todo mundo sabe que destruir a floresta não é certo. O patrão, que foi quem descobriu o garimpo, é quem manda a gente passar a motosserra de madrugada. A gente só obedece, diz um garimpeiro da região que pediu para não ser identificado.
De agosto de 2018 a julho de 2019, o Brasil bateu novo recorde do desmatamento na Amazônia nesta década, de acordo com números oficiais do governo federal divulgados, no dia 18 de novembro, pelo Inpe. No período, a área desmatada na floresta foi de 9.762 km², o que representa um aumento de 29,5% em relação ao período anterior (agosto de 2017 a julho de 2018), que teve 7.536 km² de área desmatada.
O aumento percentual deste ano é o terceiro maior da história. Outros aumentos preocupantes só foram registrados nos anos de 1995 e 1998. Os dados são do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), considerado o mais preciso para medir as taxas anuais.
O Pará é o que mais destruiu a região desde o ano passado, com 3.862 km² de área desmatada. De acordo com o Prodes, foram 39,56% de toda a floresta derrubada. Juntos, os estados do Pará, Rondônia, Mato Grosso e Amazonas foram responsáveis por 84% do total desmatado no período, cerca de 8.213 km².
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atribuiu o aumento do desmatamento à “economia ilegal” na Amazônia, citando o garimpo, a extração de madeira e a ocupação do solo nessa situação. Ele disse que há negociações na esfera governamental para criar uma sede do órgão na Amazônia. As medidas incluiriam transferência de parte dos órgãos de identificação, monitoramento e pesquisa de biodiversidade e floresta, e o setor de ecoturismo, que faz parte do ministério.
— Os garimpos que foram autuados neste ano foram os mesmos autuados em anos anteriores, o que mostra que essa colocação de que atividades ilegais tenham começado agora por causa de discurso, seja ele qual for, não é verdade, afirmou Salles.
Em menos de um ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro tem repetido discursos de apoio a garimpeiros prometendo legalizar a atividade, enquanto critica os fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e ataca os dados de desmatamento monitorados e divulgados pelo Inpe.
O Observatório do Clima considera que “a alta no desmate coroa o desmonte ambiental de Bolsonaro e Salles”. Diz, ainda, que os dados de desmatamento são decorrência direta da estratégia do governo para desmobilizar a fiscalização, engavetar os planos de combate ao desmatamento dos governos anteriores e empoderar, no discurso, criminosos ambientais.
— O dado divulgado pelo Inpe é o indicador mais importante do impacto da gestão Bolsonaro/Salles para o meio ambiente do Brasil até agora: um imenso desastre. E propostas como legalização da grilagem de terras públicas, mineração e agropecuária em terras indígenas, infraestrutura sem licenciamento ambiental só mostram que os próximos anos podem ser ainda piores”, disse o secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl.
Ruínas de mineradora canadense mancham paisagem da região
As ruínas de um esquema fraudulento de retomada da exploração do garimpo pioram o cenário de destruição e abandono em Serra Pelada, no Sul do Pará. Excesso de concreto – alguns acumulando água da chuva –, vigas de ferro jogadas por todos os cantos, balcões vazios e túnel desativado dão um sinal do que restou da desenfreada ação humana atrás do ouro na região, de 2008 a 2014.
O novo empreendimento de exploração de ouro foi resultado de uma parceria entre a Cooperativa dos Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp) e a empresa de mineração Colossus Minerals, do Canadá. A aliança, firmada em 2008, gerou uma terceira empresa, a Serra Pelada Companhia de Desenvolvimento Mineral (SPCDM), detentora da portaria de lavra, documento concedido pelo governo federal que permite a retirada de minério do local.
Na época, a operação de retomada do garimpo foi articulada pelo senador e ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão. A suspeita era de que operação envolvia pagamentos suspeitos a cabos eleitorais dele e empresas - algumas supostamente de fachada - instaladas no Brasil e no Canadá.
Ainda em 2007, como senador, Lobão agiu para que o governo federal convencesse a Vale, até então detentora da mina, a transferir à cooperativa seus direitos de exploração de ouro e outros metais nobres em Serra Pelada. Na época, a Vale submeteu a proposta a seu conselho de administração, que concordou em atender ao pedido de Brasília e, em fevereiro de 2007, assinou um "termo de anuência" repassando à cooperativa dos garimpeiros o direito de explorar a mina principal.
A Colossus ingressou na sociedade com 51% de participação na nova empresa. A Coomigasp ficou com 49%. Pouco depois, sempre com a anuência dos diretores da cooperativa ligados a Lobão, a mineradora canadense conseguiu ampliar sua participação para 75%.
Em 2010, a Colossus Minerals encontrou dois depósitos inesperados com alta concentração de ouro e platina no seu projeto de Serra Pelada, no Pará, aumentando as expectativas de que existam mais reservas minerais ainda não descobertas na região. Em 2014, a mineradora fez demissões em massa e comunicou a paralisação das atividades.
— Com certeza tiraram várias toneladas de ouro e os garimpeiros não ficaram com nada. O que estamos pedindo, agora, é para as autoridades investigarem o processo. Queremos que o governo nos ajude a desvendar o que houve aqui, diz o diretor da cooperativa Almir José da Cruz Arantes, que assumiu o cargo após eleição de nova diretoria.
Em nota, a Vale informou que não tem qualquer participação na Colossus. A reportagem não conseguiu contato de representantes da mineradora canadense e de Edison Lobão. O governo federal não se pronunciou.
Fotógrafo lançará livro com primeiras fotos de garimpo
Serra Pelada é conhecida por fotos históricas de um formigueiro humano dentro da cratera de exploração de ouro. O fotógrafo André Dusek (63 anos), o primeiro profissional brasileiro a registrar essa “cena babilônica”, como ele mesmo a denomina, deve lançar em janeiro um livro com fotografias históricas de Serra Pelada em três épocas: 1980, 1996 e 2019. A previsão dele é de que o lançamento do livro ocorra em Brasília, Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro.
Dusek conseguiu seu primeiro acesso livre à Serra Pelada, em 1980, enquanto fazia um trabalho para o Correio Braziliense, em outro garimpo, em Conceição do Araguaia, no Sul do Pará. Anos depois, trabalhou também para veículos de circulação nacional, como o Estado de S. Paulo e a revista IstoÉ.
A autorização ocorreu após um encontro rápido com o Major Curió, como ficou conhecido Sebastião Rodrigues de Moura, que ficou conhecido no Norte do país por ter sido o comandante da ação que exterminou a Guerrilha do Araguaia, em 1974. Quando o governo quis “organizar” a exploração do ouro em Serra Pelada, Curió foi destacado como interventor, em maio de 1980. Era a única autoridade civil e militar na região.
Acompanhado de Curió, o fotógrafo chegou de helicóptero a Serra Pelada. Como havia usado boa parte dos filmes de sua máquina fotográfica em outra reportagem, Dusek, que tinha 23 anos na época, seguiu para o maior garimpo a céu aberto do mundo com muito frio na barriga e uma vontade enorme de fotografar todos os detalhes possíveis. Ficou dois dias no local.
— Talvez, seja um dos trabalhos mais importantes da minha vida. Só tinha 5 filmes de 20 poses, ou seja, 100 chapas para fazer as fotos. Tinha mais um filme de 36 fotos coloridas. Essa foto mesma eu só fiz uma, disse ele, referindo-se à fotografia do formigueiro humano na cratera de exploração de ouro.
Em 1981, o fotógrafo fez uma exposição na Aliança Francesa e publicou parte de seu material na revista francesa de fotorreportagem. Fez uma seleção minuciosa e, para o seu novo livro, pretende construir um trabalho que reúna o seu retorno à região nos anos 1996 e 2019.
— No garimpo de ouro, as pessoas ficam obcecadas. É como se estivessem em um jogo. Começam a tirar ouro e não querem parar. Estive lá e presenciei isso, na época. Foi algo muito emocionante. Não estava ali para procurar ouro, queria era fazer foto boa, conta Dusek.
Na história
O tenente-coronel Sebastião Rodrigues Moura era um nome pouco conhecido nos garimpos do Pará, nos anos 1980. A mesma pessoa usou nomes falsos durante oito anos: Marco Antônio Luchini e Major Curió. Ele foi agente do Sistema Nacional de Informação (SNI) e comandou as operações oficiais em Serra Pelada. Hoje, aos 81 anos, vive com o auxílio de um profissional de saúde em uma casa no Lago Sul, em Brasília.
Com a promessa de ser a ponte entre garimpeiros e Estado, Curió proibiu a entrada de mulheres, cachaça e armas na zona de trabalho em Serra Pelada. Usou sua popularidade como major da região para chegar ao Congresso. Foi eleito deputado federal pelo Pará, em 15 de novembro de 1982, com 49.529 votos. Sua candidatura foi anunciada em maio daquele ano. Em Brasília, Curió tentou prolongar ao máximo a concessão de direitos ao trabalho manual dos garimpeiros.
Até 1984, o garimpo manual seguiu instável, passando por longos meses de fechamento. Em junho, o governo estendeu por mais cinco anos a chance de trabalho humano nos barrancos de Serra Pelada. Um churrasco com direito a fogos de artifício e à liberação da visita de mulheres foi realizado no povoado. Em entrevista à imprensa, Curió declarava que a questão estava resolvida, ou seja, que a lavra manual seria mantida.