Gabriela Prioli
Gabriela Prioli: Vacina? Só se for escondidinho
A abertura da CPI nos mostrou uma coisa: Bolsonaro, quando quer, sabe se organizar, desde que seja para defender seus próprios interesses. Em poucos dias, a Casa Civil produziu uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a própria comissão. Ele sabe o que ele fez.
Não se organizou antes porque o motivo não lhe parecia bom o suficiente. Trabalhar para salvar a própria pele, vá lá, mas se o risco que se apresenta for a morte de centenas de milhares de brasileiros, o esforço não vale a pena ou não interessa.
Afinal, não dá mesmo para todo mundo querer viver cem anos, como alertou Paulo Guedes na mesma reunião do Conselho de Saúde Complementar em que falou que a China, principal fornecedor de vacinas e insumos ao Brasil, inventou o vírus e criticou a Coronavac, que representa 84% das vacinas aplicadas no país, apesar do trabalho de Bolsonaro em descredibilizar o imunizante.
Sem saber que a reunião estava sendo transmitida, disse, sobre o aumento na expectativa de vida, que não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar a busca crescente por atendimento médico. Sem entrar na ordem de grandeza, sobraria algum dinheiro para a saúde se o governo, por exemplo, não insistisse na fabricação de medicamentos que não funcionam ou não precisasse ceder um pedaço do Orçamento para se proteger de remédios amargos, às vezes fatais.
Sobraria também se tivéssemos, com pressa, vacinado o nosso povo. Mais tempo de pandemia significa mais recursos públicos destinados a socorrer os mais vulneráveis. E não, a resposta não é o negacionismo que coloca o povo em risco para a economia não parar. Descoberta e disponibilizada a vacina, o isolamento que afeta a economia deixou de ser culpa do vírus para ser responsabilidade de quem atrasou deliberadamente o plano de vacinação. Vacina, aliás, que não faltou para o general Ramos, que precisou se imunizar escondido para não melindrar o seu chefe.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriela-prioli/2021/04/vacina-so-se-for-escondidinho.shtml
Gabriela Prioli: Disfarçando a passagem da boiada
O risco do discurso sem prática
Era abril de 2020 quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu "passar a boiada" e mudar regras ambientais enquanto a atenção da mídia e da população estava voltada para a Covid-19. Manter o descontrole da pandemia, por esse raciocínio, parecia ser bom negócio para o nosso desgoverno --no meio da gritaria, ninguém ouve os segredos ditos pelos cantos.
Se, no ano passado, o contexto internacional favorecia os arroubos de Bolsonaro, o mundo mudou. E não mudou só no Brasil, onde a CPI da Covid, ao enfraquecer Bolsonaro, aumenta o preço do centrão: o novo presidente americano, Joe Biden, fez da questão ambiental uma de suas principais plataformas. A preocupação é, em especial, com o Brasil. Poucos países foram citados nos debates presidenciais nos EUA.
O Brasil e a Amazônia apareceram como motivo de grande inquietação. O Itamaraty, recentemente livre de Ernesto Araújo, aconselha que a Cúpula do Clima seja uma virada de discurso e de prática. Nada mais difícil para um governo que se recusa a melhorar.
A preocupação, entretanto, não pode ser compreendida no singular. Há "preocupações" distintas quando se fala em meio ambiente. Há quem esteja de fato aflito com a preservação. Há, entretanto, aqueles para os quais a aparência de preservação vale mais do que a preservação em si. Para esses, uma mudança de discurso sem prática pode já ser suficiente, desde que convença os gringos.
Essa distinção entre ser e parecer é o que permite acomodar interesses e manter intacto o núcleo mais sensível das políticas de governo. A eventual mudança de tom assim, como em relação à pandemia, pode se dar na teoria para disfarçar a permanência na prática, desde que a aparência dure até o próximo ciclo eleitoral.
A aceleração das mudanças climáticas é um assunto multifacetado e de longo prazo, que depende de uma compreensão que leve em conta a realidade, o que não parece ser o caso da gestão Bolsonaro, o nosso exemplo de negacionismo.
Gabriela Prioli: Quem ganhar vai perder
Bolsonaro vai sorrir amarelo para o centrão?
Quando seu candidato ganhou a eleição à presidência da Câmara, Bolsonaro perdeu um ponto de sustentação da sua narrativa. E ele sabe disso, por isso a reação de afastamento: "eu apenas fiquei na torcida".
Jair existe na reação porque a sua presidência —ou a sua existência— não tem plano de ação. A estratégia é colocar a culpa nos outros. Foi assim até agora e tem funcionado.
O problema é que Arthur Lira não me parece ter qualidade essencial para que alguém seja considerado aliado do plano egocêntrico do capitão: a disposição para servir de muleta para o presidente. Alguém imagina Lira num vídeo como o de Regina Duarte na sua saída da Secretaria de Cultura? O sorriso amarelo de uma existência que se coloca a serviço do mito? Eu não. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Isso significa que Lira não poderá fazer concessões aos arroubos e discursos simbólicos de Jair? É claro que não. Fará, desde que a realidade se oriente em direção àquilo que é interesse do centrão. O sorriso amarelo pode se tornar o de Jair.
A pandemia produzirá os seus efeitos agravados pela péssima gestão de um presidente negacionista que boicota até a vacina. Um possível sucesso na pauta dos costumes segura Bolsonaro até a página dois. Se a economia afunda, não há conservadorismo que segure a insatisfação. Quando a hora do descontentamento chegar, o centrão, se lhe parecer conveniente, pode dizer: a culpa não é nossa, é do presidente, que não nos deixou fazer nada. Para isso, claro, precisam apresentar uma nova liderança.
O desafio dos que se contrapõem à agenda de Bolsonaro é compreender o resultado das eleições de 2018 e dos primeiros anos de governo com menos espanto e mais estratégia. Construir um denominador comum. A eleição na Câmara mostrou quantos votos se fazem com a frente ampla que a gente não construiu: um segundo lugar com menos da metade dos votos. Vitória no primeiro turno.
Que fique o recado para pensarmos 2022.
Gabriela Prioli: Os arroubos de Jair são propositais
Presidente ampliou seu poder na Abin, acusada agora de ajudar na defesa de Flávio Bolsonaro
Era abril desse perturbador 2020 quando o então ministro da Justiça Sergio Moro convocou uma coletiva para comunicar a sua saída do governo. Disse que não poderia mais continuar, pois teria ouvido expressamente do presidente da República que ele “queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, que ele pudesse colher relatórios de inteligência, seja diretor, seja superintendente”. Era a admissão da tentativa de aparelhar a Polícia Federal. Segundo Moro, Bolsonaro queria só uma das 27 superintendências da PF, a do Rio.
Moro saiu do governo rompido com Bolsonaro e sua acusação gerou o inquérito no âmbito do qual o STF decidiu pelo acesso ao vídeo da reunião ministerial ocorrida em 22 de abril.
Na ocasião, Bolsonaro reclamava da falta de informações e dizia querer trocar alguém da ponta da linha: “Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.
E foi o que ele tentou fazer. Bolsonaro nomeia Alexandre Ramagem para a direção geral da Polícia Federal em 27 de abril e Alexandre de Moraes barra a nomeação no dia 29. Mas Bolsonaro, nas suas palavras, não poderia ser surpreendido com notícias. Não podia viver sem informação.
Sem Ramagem na PF, restou ao presidente ampliar o seu poder dentro da Abin. No dia 30 de julho de 2020, Bolsonaro assinou o decreto 10.445 eliminando condicionantes para a requisição de informações pela Abin que constavam no decreto anterior (vejam, no STF, a ADI 6529).
A Abin dirigida por Ramagem atualmente se vê envolvida em acusações de atuar para ajudar na defesa do senador Flávio Bolsonaro. Voltemos à reunião de 22 de abril. O presidente disse expressamente: “Não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu”. Enquanto isso, o Brasil, sem a condução da Presidência no enfrentamento à pandemia, segue distraído pelos arroubos de Jair.
Gabriela Prioli: A briga das direitas e as novas esquerdas
O Rei está sempre só
Faz alguns anos que o maior assunto da política é a ascensão da nova direita. As esquerdas, que antes —dizem— teriam oprimido intelectualmente todos nós, agora estão na descendente. Uma estrela cadente, digamos.
A realidade, como sempre, é mais complexa do que a narrativa. Ao chegar ao poder e ter que, de fato, governar, a nova direita se tornou "as direitas". Liberais-na-economia-conservadores-nos-costumes, libertários, religiosos, lava-jatistas, militaristas, faria-limers etc. haviam abraçado o bolsonarismo oportunisticamente, para chegar ao poder. Agora, descobrem, uns surpresos, outros nem tanto, que não fizeram o Rei. O Rei é que os instrumentalizou para estar onde está. E com o seu completo consentimento.
O poder corrompe até quem se elegeu discursando sobre corrupção pelo poder. É possível que o Aliança pelo Brasil herde do partido Novo mais do que só a novidade. As direitas brasileiras brigam entre si pela pureza direitista valendo-se de um método já conhecido: jogando seus novos desafetos para o lado de lá.
Paralelamente ao racha da direita, surgem indícios de uma rearticulação das esquerdas. A volta do kirchnerismo na Argentina em 2019. A eleição de Arce na Bolívia. O "sim" em prol de uma nova Constituição no Chile, abandonando de vez a herança de Pinochet. A possível --quase provável-- vitória de Joe Biden nos EUA.
Talvez seja muito forte dizer que é uma tendência. Afinal, quatro anos atrás estávamos comentando que os EUA elegeriam sua primeira mulher presidente. Mas tudo isso tampouco quer dizer que o nacional-populismo vai desaparecer do debate público. O tema chegou para ficar.
Pode ser apenas uma consequência do fato de que a maior crise já enfrentada em gerações chegou exatamente quando a nova direita estava se assentando no poder. Mas serve para lembrar que nunca se deve ficar muito confortável, mesmo com a caneta na mão, e nunca se deve perder a esperança, mesmo diante do inimaginável.
*Gabriela Prioli, é mestre em direito penal pela USP e professora na pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Gabriela Prioli: Meu Deus, que bandeira é essa?
É loucura ou verdade tanto horror perante os céus?
Nesta semana, um episódio nos fez duvidar da humanidade. Uma menina de dez anos, estuprada dentro de casa havia quatro, ficou grávida de seu agressor. Menina que é, foi ao hospital porque estava com dor de barriga. Descobriu-se grávida.
Autorizada pela Justiça para agir como já prevê a lei, pôde interromper a gravidez fruto do estupro (hipótese de aborto legal prevista no artigo 128, II, do Código Penal), que oferecia risco não só à criança feto mas também à criança mãe (hipótese de aborto legal prevista no artigo 128, I, do Código Penal).
Teve início o espetáculo macabro: uma ministra do governo comenta o caso e irrompe a frente antiaborto.
A técnica usada? Constrangimento e ameaça. Os gritos de "assassina" em frente ao hospital me lembraram Castro Alves clamando ao Deus dos desgraçados: seria loucura ou verdade tanto horror perante os céus?
A crueldade da turba diante do hospital pode nos fazer esquecer que eles não são os únicos representantes da fé. O intolerável carrega perigos que vão além da crueldade e do absurdo. Nietzsche nos alerta que, observado por tempo demais, o abismo olha para dentro de nós. Ao condenarmos o intolerável, precisamos cuidar para não nos tornarmos intolerantes.
Nem todo religioso é fanático, e essa constatação simples tem relevância fundamental num país em que o Estado é laico, mas o eleitorado, em grande parte, é cristão.
Há mais lideranças entre os cristãos do que conhecem aqueles que vivem fora da igreja. Para cada Mal —a exclusão do final do nome serve a dois propósitos, o de ressaltar a qualidade e o de não dar visibilidade— existem outros tantos bons.
Precisamos desse diálogo e dessa cooperação, pois também é cidadão quem traz um terço, Bíblia ou o evangelho na mão. Se uma mulher não fala por todas as mulheres, um negro não fala por todos os negros, um cristão não fala por todos os cristãos. A generalização presta serviço ao fanatismo, porque reduz uma coletividade diversa e complexa ao barulho e ao oportunismo.
Gabriela Prioli: Estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés
A crítica incomoda quanto mais encontra eco na nossa insegurança. A recente fala do ministro Gilmar Mendes, sobre o risco de o Exército ser associado ao genocídio em curso, teve peso não tanto pelo uso da eventual hipérbole, mas pela apreensão que evocou.
Não é novidade para ninguém que os militares (e não só eles, diga-se) fizeram uma aposta arriscada ao darem as mãos para Jair Bolsonaro. O barquinho do bolsonarismo só não apresentava um risco óbvio para quem, deliberadamente, olhasse para o outro lado. Havia muita gente diferente a bordo: aqueles preocupados com um Brasil mais liberal, os militares buscando a redenção pelos erros do passado e uma ala ideológica buscando algo que ninguém sabe direito o que é, mas sabe que é ruim… talvez a borda da terra plana. Todos, com a aparente exceção dos últimos, dispostos a concessões perigosas.
Os que deliberadamente viraram o rosto o fizeram, como muitos dos eleitores do capitão, acreditando que o presidente poderia ser moderado. Não demorou, entretanto, para que ficasse claro que o bolsonarismo só existe no conflito e se escora no absurdo. Se impôs o dilema: ou abandonavam o barco e admitiam o equívoco, ou permaneciam, assumindo o risco de se misturar aos erros do governo.
Pegaram seus violinos e decidiram permanecer. A fala do ministro do STF chama a atenção para a água no pescoço.
Muita gente viu nessa embarcação a única chance de voltar ao poder. Confiaram demais na própria capacidade de controlar o capitão e esqueceram de cogitar que poderia haver ataques perpetrados por outros tripulantes. Mais: não contavam com a tempestade do coronavírus. O mar agitado acionou o alarme do salve-se quem puder. Não há botes para todos e nem todos se deram conta de que precisarão de botes. Há quem tenha consciência de que é preciso desembarcar, mas sem qualquer outra opção à vista, resiste pelo medo de morrer à deriva no mar, ainda que sob o risco de afundar com o manche longe das mãos.