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Política Democrática || Márcia Gomes: Nosso patrimônio imaterial – a manifestação da Folia de Reis
São João del-Rei, em Minas Gerais é um exemplo emblemático da preservação cultural da Folia de Reis. Cidade tem cinco grupos reconhecidos como patrimônio imaterial do município, o que lhes confere maior visibilidade, identidade, reconhecimento e sentimento de pertencimento
Nosso patrimônio é uma construção social que referencia o efeito da ação do homem e permite que ele se sinta pertencente a um mesmo espaço. Considera, também, a representação de um passado, relacionado à memória da sociedade e sua cultura. No dizer de Rita de Cássia Cruz “não há patrimônio, seja ele material ou imaterial, que não seja cultural”, sendo a cultura a formação da sociedade.
O patrimônio imaterial abrange as expressões culturais e as tradições que um grupo de indivíduos preserva em respeito da sua ancestralidade, para as gerações futuras. Desta forma, guarda a memória coletiva e cria um sentimento de identidade, de pertencimento a um grupo – ou seja, uma ideia de continuidade.
São João del-Rei é um exemplo emblemático, uma cidade em que as manifestações culturais – bens culturais de natureza imaterial – sempre estiveram ligadas às devoções religiosas. Elas se entrelaçam e abrigam todas as camadas sociais, as habilidades e ofícios a serviço da beleza e do brilho das cerimônias, da história, da vivência e da memória.
É por meio das observações e das interpretações dessas manifestações populares que se torna possível descobrir os códigos, as regras e os estatutos que constroem o ensinar e o aprender da diversidade da nossa cultura e, consequentemente, o desenvolvimento da nossa identidade. O patrimônio imaterial contido nessas manifestações é fundamental para manter a identidade local.
Toda manifestação da cultura popular só pode ser entendida se vista dentro de seu ambiente e tempo natural de ocorrência, ou seja, se contextualizada à vida de sua comunidade mantenedora, de sua religiosidade, de suas crenças e costumes.
A manifestação da Folia de Reis foi reconhecida, assim, como patrimônio imaterial do Estado de Minas Gerais, e no município de São João del-Rei cinco grupos de Folia de Reis estão também registrados como patrimônio imaterial, conferindo-lhe maior visibilidade, identidade, reconhecimento e sentimento de pertencimento.
Os sentimentos de pertencimento e identidade, quando fortalecidos dentro das relações humanas valores como respeito, cuidado, ajudam também no ‘estar presente’, no ‘pertencer’. É preciso perceber como ‘vivemos’ nossa cidade, como valorizamos nossa cultura, nossos ambientes, nossas relações, nossas tradições, nossa dedicação com o futuro e a responsabilidade com as nossas memórias e nosso comprometimento com a preservação e a valorização do nosso patrimônio material e imaterial – vale lembrar que ‘patrimônio’ é algo mutável. Não é algo natural, nem eterno, nem estático e, sim, uma construção social dinâmica.
A prática da Folia de Reis foi trazida da Europa e incorporada à cultura brasileira e proporciona convergência de grupo e fortalecimento de laços de solidariedade, uma vez que a simbologia que carrega conduz a uma ‘cristianidade’ e vida de luta em comum. Essa prática tem a capacidade de fortalecer os vínculos, a memória e identidade de grupo, por meio da ‘passada’ da Folia de casa em casa – o ‘giro’, momento do auge em que o simbólico se junta à materialidade.
Ela é folclórica sob a ótica do pesquisador ou do admirador que a vislumbra da assistência. Mas quem a pratica a faz como um gesto natural e funcional, de expressão lúdica ou religiosa. Os folieiros podem ter a consciência de que aquilo é folclórico, mas manifestam como um ato de sua vida. É uma diferença sutil, portanto profunda.
Cantos, danças e estandartes compõem a manifestação. As pessoas envolvidas cantam, dançam e carregam a bandeira da Folia até as casas como forma de devoção aos Santos ou aos Três Reis Magos. Devoção essa que se revela também nas brincadeiras, cantos e símbolos presentes no Éthos deste grupo. Ao mesmo tempo, remete a uma narrativa bíblica que enuncia o nascimento do Salvador do mundo – o Menino Jesus.
Para Jorge Amado, ‘meu materialismo não me limita’ (Jubiabá, 1935), o que equivale dizer que a estética dessa manifestação causa tamanho encantamento que, num instante mágico, se desloca do religioso e agrada nossos sentidos. A história ensina que a beleza tem autonomia em relação às crenças.
A Folia de Reis é uma forma de expressar a fé, de fazer pedidos sagrados, de cumprir a missão, de abençoar a vida e, enfim, de se divertir também, digna e respeitosamente.
“Ó senhor dono da casa,
recebei esta bandeira,
faça favor de entregá-la
a quem tem por companheira”.
*Coordenadora de Patrimônio Imaterial, Setor de Patrimônio Cultural/SMCT. Outubro/2019.