Fundação Astrojildo Pereira
RPD || Rogério Baptistini Mendes: A negação da política e a degeneração republicana
Bolsonaro explora um republicanismo de aparências, dilacerando os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo, ampliando ainda mais os desafios que o século apresenta
A ideia de um Estado pervertido por políticos desonestos mobilizou a sociedade civil e iniciou o processo que, paradoxalmente, exacerbou os vícios que depravam o espaço público. A República, em sua moderna concepção, herdada dos norte-americanos, está sob ameaça antes mesmo de se consolidar. Seculares oposições distendidas em uma história de acomodações entre o velho e o novo ganham nova vida e fazem aumentar a insatisfação dos viventes. A democracia representativa, a separação de poderes como prevenção ao autoritarismo e a defesa dos direitos individuais parecem formas vazias. O governo Bolsonaro explora um republicanismo de aparências e amplia os desafios que o século apresenta, dilacerando completamente os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo.
Seguindo lógica torta, os acontecimentos iniciados com as manifestações populares de 2013-14 transmutaram o que parecia ser a emergência de um protagonismo civil em despotismo fundado na moralidade e na religião, típico das sociedades hierárquicas e iliberais. O novo Brasil, egresso da onda negadora da política e dos políticos, galvanizou situação na qual o expurgo dos viciados – mas não da inclinação para o mal – é tolerado, desde que praticado contra os inimigos. E estes são muitos a povoar o universo da cultura, o sistema de partidos e a vida pública da redemocratização. Pessoas e instituições entram na mira, e os fantasmas de nossa tradição autocrática voltam a incomodar.
É possível observar que a radicalidade da concepção de autoridade que empresta sentido ao bolsonarismo está em harmonia com a visão de mundo de certas elites, organizadas politicamente e ocupadas em difundir uma versão grotesca e ultrapassada de liberalismo econômico. No universo do mercado livre, sem qualquer regulação, coordenação e planejamento, a anarquia e o caos social surgem e reclamam soluções de força. A ausência de solidarismo e o individualismo exacerbado conduzem à desordem, somente atenuada pela obediência ao soberano, homem da família, cuja moralidade é agir contra tudo e todos, para proteger os seus, os escolhidos, na jornada até a suposta terra prometida.
Uma série de equívocos nos trouxe até este momento. A pressuposição de que a justiça se confunde com a democracia, por exemplo, desgraçou o sistema político, a atividade política e, no limite, a cultura pública essencial à construção republicana. O caráter normativo do conceito de justiça dificulta verificações empíricas sobre o que seria uma situação justa, em contraste com o governo democrático que evidencia o que descreve. A primeira, conforme explica o filósofo político Félix E. Oppenheim (1913-2011), reclama o auxílio de definições morais; a segunda, não. E é este o engodo, a verdadeira cilada, que se armou no caminho da cidadania. Na luta contra a corrupção, a conexão entre Direito e Política foi subvertida a ponto de o Direito se confundir com a força coativa do Estado, e a práxis política ser amesquinhada por certa racionalidade econômica para a qual o não-Estado é o objetivo.
Voltando ao passado, a representação idealista da República como uma construção virtuosa, ordenada de cima para baixo, aproxima os que anseiam por justiça dos que exploram seus sentimentos e esvaziam a esfera pública. Num cenário atomizado, sem lugar próprio e seguro, os grupos primários, nos quais vige o contato íntimo e direto entre os membros, substituem a integração na comunidade política e levam à construção de uma identidade distorcida, apoiada no ódio contra o diferente e em contínuo transe. Tudo a ameaça, tudo a aflige. Não há destino comum; apenas inimigos a derrotar. A violência substitui o diálogo; a própria atividade parlamentar perde o sentido, transformando o que deveria ser a ágora moderna numa verdadeira arena, ocupada por tipos aberrantes e incapazes.
É por saber que os homens são o que são que os republicanos modernos criaram o sistema de pesos e contrapesos. Inumano um governo de deuses, falíveis os homens, a República moderna só é possível se operada pela Política ativa e protegida pelo Direito. Este não troca de lugar com aquela, nem pode. É de sua neutralidade e independência que os conteúdos de justiça construídos ao longo da história dependem. O que consideramos avanços civilizatórios não são objeto de negociação. Promotores, magistrados ou mitos não ocupam o proscênio. Entre nós, este pertence à cidadania.
* Sociólogo. Pesquisador do LabPol (Laboratório de Política e Governo da Unesp-FCLCAr).
RPD || Paulo Baía: Os ventos andam favoráveis para Bolsonaro
Apesar do descaso com o meio ambiente, o aumento das queimadas e devastação na Amazônia e no Pantanal, além dos efeitos nocivos da pandemia do novo coronavírus na economia brasileira, Bolsonaro continua com sua popularidade em alta, mostra Paulo Baía em seu artigo
Para Jair Bolsonaro, os ventos andam favoráveis no mesmo ritmo em que o Pantanal arde em chamas. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as queimadas aumentaram 210% em 2020, se comparadas ao mesmo período do ano de 2019. Dessa forma, de janeiro a setembro de 2019, foram registrados 4.660 focos de incêndio. Já em 2020, foram 14.489 focos. A fauna e a flora sofrem nas mãos de um governo que tem o meio ambiente como um obstáculo para a ideia de um progresso aos moldes extrativistas – pecuária e minérios.
No entanto, os ventos vindos pelo lado social e político, segundo a última pesquisa do IBOPE de 24 de setembro de 2020, indicam um aumento da popularidade de Bolsonaro para 40% de bom e ótimo e 29% de regular, o melhor índice desde a posse. A ventania a favor de seu governo cresceu ao redor dos 69% dos entrevistados, marcando seu apoio. O levantamento foi feito a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI). E o aumento da popularidade ocorreu principalmente entre cidadãos que têm renda familiar de até um salário mínimo (R$ 1.045,00).
No novo livro do cientista político Jairo Nicolau, O Brasil dobrou à direita, lançado no dia 5 de outubro pela editora Zahar, o pensador destaca que parte do eleitorado de Bolsonaro é composto por pessoas que o admiram e se identificam com seu jeito. E o compara a Lula, só que à direita. A admiração do eleitor é encontrada nos grandes centros urbanos, não precisando destacar-se no reduto petista do Nordeste. Talvez por isso, os ventos que queimam o Pantanal não sejam capazes de atingir seus eleitores de marca urbana, que se imaginam distantes dos problemas ambientais. Ele conquistou o eleitor das periferias urbanas, onde os partidos de esquerda não ganham e insistem, segundo o cientista político, numa disputa sobre o “fascismo”. Estas pessoas já vivem sob o domínio da violência cotidianamente, pelas mãos do narcotráfico ou das milícias, e agora pelos consórcios das narcomilícias em formação.
Para Nicolau, Jair Bolsonaro representa o primeiro líder de direita popular desde que o Brasil entrou na era da redemocratização. Talvez o fosso educacional esteja apresentando suas contas e desvelando o “Brasil profundo”. Nem mesmo o aumento do desemprego atingindo 13,1 milhões de brasileiros, a maior marca desde 2012, como indica a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, de 30 de setembro de 2020, foi capaz de abalar sua popularidade.
O presidente da República permanece seguindo a favor de vetos numa reação recíproca entre identidades que se espelham ao se reconhecerem. A escolha do desembargador Kassio Nunes Marques – presidente do TRF-1 – para a vaga de Celso de Mello é uma sinalização de paz e integração com a magistratura de carreira, uma das pautas da campanha presidencial de Bolsonaro e desejo dos bolsonaristas de raiz. O juiz Kassio Nunes Marques encaixa-se nos critérios políticos e morais que são eixos de seu governo e evita críticas do mundo jurídico em relação ao currículo do novo ministro do STF, além de ser nordestino (do Piauí).
Em relação às eleições municipais no próximo dia 15 de novembro, os movimentos do presidente da República são discretos em apoio às candidaturas a prefeito na maioria dos 5.570 municípios brasileiros. É um comportamento calculado com o intuito de agradar aos aliados dos últimos três meses, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, após o inquérito das Fake News, que foi capaz de conter seus arroubos autoritários. A presença ativa de Bolsonaro só é vista na cidade do Rio de Janeiro com dois candidatos, Marcelo Crivella e Luiz Lima e, na cidade de São Paulo, com Celso Russomanno.
Outro vento bastante favorável para o eleitor que o vê como mito é o Programa Renda Brasil, que deverá ser pago a partir de janeiro de 2021. Ou seja, Jair Bolsonaro vai constitucionalizar o programa de renda mínima como política de Estado, o que Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma não fizeram, apesar da insistência cidadã de Eduardo Suplicy.
Pelo que tudo indica, os ventos aceleram o ritmo de campanha em que o presidente está mergulhado desde a posse. E, pelo que parece, apesar de as queimadas estarem acelerando no Pantanal, na Amazônia e em outras florestas, não estão sendo capazes de consumir o apoio pró-Bolsonaro nesta primavera/verão de 2020, para perplexidade e inação das muitas esquerdas e oposição.
* Sociólogo e cientista político.
RPD || Editorial: Defesa da democracia e reconstrução nacional
Está em curso a consolidação da aliança entre o presidente da República e o bloco de deputados e senadores que responde pelo nome de “Centrão”. Repudiada, no primeiro momento, pelos núcleos duros do bolsonarismo como capitulação frente à “velha política”, a aliança já rende frutos significativos ao governo e promete colheita ainda melhor de resultados no futuro.
Os arroubos do presidente como revisor e intérprete da Constituição e o consequente confronto com o Legislativo e o Judiciário parecem coisas do passado. Em troca, o governo conseguiu fortalecer sua base de apoio na Câmara e no Senado; está prestes a obter uma composição do Supremo Tribunal Federal mais receptiva para suas demandas e inicia a campanha eleitoral com perspectivas favoráveis para os candidatos do novo e turbinado bloco governista, espalhados entre diversas siglas partidárias.
A oposição, por seu turno, permanece na defensiva, aparentemente atordoada com o crescimento da popularidade do presidente, apesar das crises superpostas, sanitária e econômica, que assolam o país e apontam para um quadro de enorme dificuldade para todos no futuro próximo.
No entanto, é preciso ter claro que a política de confronto aberto com as instituições democráticas não cessou por obra de alguma mudança nas convicções profundas do presidente e de seu círculo mais próximo, mas pela ausência das condições mínimas necessárias para levar essa política às últimas consequências. Houve mudança para ganhar tempo; tempo para fortalecer as posições do governo, com dois objetivos.
Primeiro, possibilitar o aceleramento da política de destruição nacional em andamento. “Passar a boiada”, na expressão do ministro Ricardo Salles, para avançar no rumo da catástrofe ambiental, do isolamento internacional, do desastre sanitário, do retrocesso educacional, bem como da transformação da segurança pública e dos direitos humanos em campos repletos de minas.
Segundo, criar as condições para revisitar a estratégia do confronto, quando as consequências da crise e a responsabilidade do governo sobre o processo aparecerem de forma mais clara para a opinião pública. Cenários de popularidade baixa e dificuldades eleitorais crescentes são propícios para investidas populistas contra a legitimidade do processo eleitoral.
Cabe às oposições não ceder às tentações da divisão, ao conforto ilusório do isolamento. Urge retomar o processo de convergência em torno de objetivos comuns: a defesa da democracia e a construção de uma plataforma mínima de reconstrução nacional.
RPD || Ensaio - João Cezar de Castro Rocha: A desqualificação nulificadora
Ensaio de João Cezar de Castro Rocha analisa a retórica do ódio presente nas pregações do guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Falso silogismo olavista pode - e tem - de ser desmascarado, avalia
Tal como ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, a retórica do ódio é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.
Trata-se de uma técnica — e esse aspecto deve ser sublinhado. Por isso, pode ser ensinada e transmitida. E como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora.
A retórica do ódio tem um alvo expresso — a “esquerda”, compreendida como um bloco monolítico, representante da “mentalidade revolucionária” — e um conjunto determinado de recursos — sempre com a finalidade de eliminar o adversário.
Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum. O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho. E como se trata de uma técnica, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes e deslikes, e, por fim, traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.
O primeiro nível da técnica da desqualificação nulificadora não passa de um truque infantil. Olavo de Carvalho principiou o joguete: por que não desqualificar um adversário pela corrupção paródica de seu nome próprio? Não vou me estender muito mais nesse primeiro (des)nível. O historiador Marco Antônio Villa, torna-se Marco Antônio Vil; o pensador Mário Sérgio Cortella, Mário Sérgio Costela. Sem comentários...
Venho, pois, ao segundo nível da desqualificação nulificadora. Trata-se da estigmatização que converte o outro numa mera caricatura, estimulando o seu sacrifício simbólico — pelo menos numa fase inicial.
A estigmatização tem um alvo preciso, aliás, ponto de interseção entre olavismo e bolsonarismo:
Cada vez mais me convenço de que o movimento comunista tem sido a ÚNICA força agente no cenário mundial. O resto é apenas “reação”, termo com que os próprios comunistas o descrevem com notável exatidão. (Facebook, 25 de setembro de 2016, grifos meus).
A sequência da postagem é uma peça inadvertidamente dadaísta:
(...) Desde a II Guerra o “establishment” americano, incluindo um exército inteiro de conservadores, tem como uma de suas principais ocupações acobertar — e portanto ajudar — a penetração comunista nos altos círculos do governo, tornando-a tanto mais poderoso e devastadora quanto mais invisível e imencionável. (grifos meus).
E um exército inteiro, não de democratas radicais, porém de conservadores, unidos na improvável missão de propiciar o triunfo do movimento comunista internacional, muito embora a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tenha sido dissolvida sem honra alguma em dezembro de 1991. Pois é...
Chegamos assim ao terceiro nível da desqualificação nulificadora: eliminação do outro, pois no âmbito da retórica do ódio, o adversário é um inimigo a ser eliminado.
Não exagero: leia esta postagem de 2018:
Quebrada a hegemonia intelectual, a guerra cultural começa com a desocupação de espaços. Botar para fora, da maneira mais humilhante possível, os farsantes e usurpadores. Isso exige militância organizada e PRESENÇA FÍSICA. (Facebook, 20 de março de 2018, grifos meus).
PRESENÇA FÍSICA? Ameaçadoras letras maiúsculas, associadas à ideia belicosa de uma militância organizada? Compreende-se que a noção de guerra cultural pouco tem de metafórica, sendo antes a expressão de um desejo nada obscuro, explicitada por verbos como quebrar, varrer, eliminar, apagar. Mais uma vez, o fantasma da hegemonia intelectual da esquerda é um falso passaporte que pretende legitimar toda forma de violência simbólica, que, agora sabemos, é o prelúdio cinzento da PRESENÇA FÍSICA — violenta, por óbvio.
A desqualificação nulificadora é o meio através do qual a retórica do ódio e a Doutrina de Segurança Nacional vivem em permanente lua de mel, inventando inimigos em série. Esse é o passo mais importante na caracterização da retórica do ódio. Contudo, precisamos ainda descrever um segundo procedimento padrão da mentalidade revolucionária olavista, a hipérbole descaracterizadora. Se entendermos seu alcance, o castelo de cartas marcadas do sistema de crenças Olavo de Carvalho terá os dias contados.
Hipérbole descaracterizadora
A marca d’água da mentalidade olavista é o cacoete da redundância, que pretende, por assim dizer, manipular a consciência do leitor, já que a reiteração sistemática do que se acabou de dizer almeja, conscientemente ou não, paralisar o receptor, que assediado pelo mesmo sentido, confundindo a reflexão filosófica com a experiência iniciática.
Comecemos a descrever a hipérbole descaracterizadora com o vídeo O Olavo tem razão 1: quem sou eu. O próprio fala de si. Um artigo que Ruy Fausto dedicou a sua obra serviu de pretexto.[1] Olavo então esclareceu a razão do impacto que produziu na cena brasileira.
Escutemos:
E o que eu escrevi tem mais efeito do que o que ele escreveu, porque eu escrevo mil vezes melhor do que esses caras, pô! É a coisa mais óbvia do mundo. Eles não sabem nem português, são uns coitados, porra! Então... agora o que eu escrevo é vivo, é engraçado, tem humor, tem sentido, tem conteúdo; então, é claro que acaba tendo muito mais repercussão. É obvio.[2] (grifos meus)
A autoproclamação hiperbólica — eu escrevo mil vezes melhor —econfirmatória— o que eu escrevo é vivo, é engraçado, etc. —tornou-se a máscara sem medo usada por Olavo de Carvalho em sua persona nas redes sociais. O efeito é devastador: seus discípulos adotam o truque, embora em geral não disponham de formação sólida em área alguma do conhecimento. Rapidamente, e com invejável ousadia, ministram cursos online com base em dois ou três livros consultados dogmaticamente acerca de um tema aleatório. O resultado é o caos cognitivo que domina o cenário brasileiro contemporâneo.
Nos textos de Olavo sempre estamos às voltas com o mais vasto empreendimento, envolvendo centenas de militantes-delatores infiltrados nas mais diversas instâncias do estado e na sociedade civil, e, claro, jamais houve na história do Ocidente uma tal empresa; naturalmente, não há nenhum precedente histórico para esse fenômeno, capaz de criar um império universal da impostura, pois, ao fim e ao cabo, um cérebro marxista nunca é normal.
Ora, tomei frases soltas da trilogia de Olavo de Carvalho, e simplesmente alinhavei uma longa frase, tendo como ponto de fuga a “ameaça vermelha”, pânico que, no campo da direita e sobretudo da extrema-direita, confere verossimilhança às associações mais desconexas e às conclusões mais disparatadas. Inventei assim um aplicativo: o gerador automático de frases do sistema de crenças Olavo de Carvalho. É uma espécie de silogismo aristotélico de Napoleão de hospício. Isto é, no silogismo, digamos, com juízo, duas proposições verdadeiras possibilitam a inferência de uma terceira proposição igualmente válida. A primeira premissa é de caráter mais geral, a segunda, mais restrita, e a conclusão é derivada da relação entre as duas proposições anteriores. No exemplo sempre citado:
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Sócrates é mortal.
Cristalino, não é mesmo?
Agora, por efeito de contraste, o falso silogismo olavista pode ser desmascarado. Olavo parte sempre da conclusão — “o perigo vermelho” iminente, e, desse modo, pouco importa o conteúdo das proposições, que, logicamente, deveriam anteceder à conclusão. Como ela se encontra determinada à priori e jamais se altera, Olavo inaugurou uma nova modalidade de lógica: trata-se da lógica do vale-tudo. Em 2019, a conclusão pau-para-toda-obra conheceu uma formulação impecável:
Nada no mundo se compara à intensidade do ódio no coração de um esquerdista. É implacável, incessante, sem fim. (Twitter, 4 de novembro de 2019, grifos meus).
A redundância e suas reiterações infinitas: se o ódio é incessante, já se sabe que é sem fim. Se essa é a ilação-matriz, então, literalmente qualquer conteúdo se torna inaceitável; mesmo as afirmações mais absurdas parecem razoáveis.
Acredite!
Vejamos alguns exemplos.
A tal quarentena é A MAIOR FRAUDE DA HISTÓRIA HUMANA. (Twitter, 20 de abril de 2020, grifos meus).
Para o futuro do Brasil, SÓ a luta contra os comunistas é prioritária. O resto é TUDO desconversa, oba-oba e carreirismo. TUDO. (Facebook, 15 de setembro de 2020, grifos meus)
A mentalidade do Messias Bolsonaro ecoa essa lógica do vale-tudo. Recentemente, diante do fracasso óbvio da política econômica de seu governo, o presidente levantou a suspeita da presença de “infiltrados do PT” na equipe econômica.[3]Os ineptos ministros da Educação justificam a inação de suas gestões recorrendo à noção olavista das centenas de militantes infiltrados. O predomínio do silogismo de Napoleão de hospício nas altas esferas da administração pública somente torna ainda mais agudo, quase dramático, o paradoxo: o êxito do bolsonarismo implica o fracasso do governo Bolsonaro.
A hipérbole olavista é descaracterizadora porque ela suprime deliberadamente as mediações entre os pontos tratados num argumento qualquer. Transita-se do alfa ao ômega sem pausa alguma, numa vertigem que impede a reflexão e despreza o conceito. O uso constante de letras maiúsculas apenas dá forma visual ao efeito pretendido, qual seja, a adesão absoluta ao exposto pelo mestre-sabe-TUDO.
O inquietante é a homologia entre o recurso estilístico olavista e a natureza autoritária do projeto político bolsonarista. Em ambos os casos, o propósito último é o de abolir toda forma de mediação, a fim de estabelecer seja o controle da consciência dos discípulos, seja o estabelecimento de uma “democracia” direta por meio da abolição das mediações institucionais entre poder e cidadania.
Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes.
[1] Ruy Fausto. “Única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões”. Folha de S. Paulo, 30 de novembro, 2018: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/unica-coisa-rigorosa-no-discurso-de-olavo-sao-os-palavroes-diz-ruy-fausto.shtml.
[2] O Olavo tem razão 1: quem sou eu: https://www.youtube.com/watch?v=5q1FhFgjBhY.
[3] Thiago Bronzatto. “Bolsonaro desconfia de ‘infiltrados do PT’ na equipe econômica”. Revista Veja, 27 de setembro de 2020: https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desconfia-de-infiltrados-do-pt-na-equipe-economica/.
RPD || Entrevista especial: O Brasil está menos transparente, diz Gil Castello Branco
Economista fundador da Contas Abertas alerta que corrupção pode levar o país a perder no mínimo cerca de R$ 18 bilhões dos recursos federais usados no combate à pandemia
Por Caetano Araújo e Davi Emerich
Com mais de 150 mil brasileiros mortos em plena pandemia do novo coronavírus, o Brasil está menos transparente no combate contra a corrupção. A avaliação é do economista Gil Castello Branco, 68 anos, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, entidade que fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país.
Entrevistado especial desta 24ª edição da Revista Política Democrática Online, Castello Branco acredita que, em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. “Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos”, avalia.
Gil Castello Branco realiza frequentemente palestras em workshops para empresários, e cursos em instituições acadêmicas e nos principais veículos brasileiros de comunicação (O Estado de S. Paulo, TV Globo, Folha de S. Paulo, Fundação Getúlio Vargas, USP, UnB e O Globo, entre outros). Foi professor visitante da Unicamp e colunista mensal dos jornais O Globo, Correio Braziliense e O Estado de S. Paulo.
Para ele, “é preocupante constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário”, lamenta. “A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência”, completa Castelo Branco.
Atualmente Castello Branco é o professor do curso EaD No rastro digital do dinheiro público: como fiscalizar os gastos da União, Estados e Municípios, organizado pela Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, em parceria com a Contas Abertas. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD) – Antes das eleições de 2018, o senhor dizia que as propostas dos candidatos estavam ao nível de “lava pé”. Estamos no mesmo nível ou houve alguma variação?
Gil Castello Branco (GCB) – Acho que realmente as propostas tiveram a profundidade de um lava pé. Só que hoje estamos inclusive com dúvidas quanto ao que irá acontecer em relação às propostas. Atualmente estão no ar o Renda Cidadã, o Pró-Brasil e até a intenção de prorrogar o auxílio emergencial. Mas são propostas que esbarram em uma série de dificuldades, a começar pelo teto de gastos. O país está quebrado. Já vinha rachado antes da pandemia, com gastos maiores do que a arrecadação por seis anos seguidos. Já começávamos o ano no vermelho: essa era a realidade reinante de 2014 a 2019. Em 2020 não foi diferente; a meta fiscal antes mesmo da pandemia já era de um déficit de R$ 124,1 bilhões (Tesouro, Previdência e Banco Central). A previsão era um pouco melhor do que no início de 2019, cuja meta era de um déficit de R$ 139 bilhões.
Acontece que a pandemia chegou e nos pegou, eu diria, em uma situação fiscal que já era bastante difícil. A dívida pública, que era de 51,5% do PIB em 2013, passou para 79% do PIB, em setembro de 2019. Em 2020, com a pandemia, poderá chegar a 95% do PIB, ou mesmo ficar acima de 100% do PIB.
O governo tem pouca margem de manobra, diante de outro fator marcante no crescimento de nossa despesa pública. No início da década de 2000, exatamente em 2002, nossa despesa obrigatória correspondia a 76,8% da despesa primária (excluídas as despesas financeiras). Na proposta do orçamento para 2021, as despesas obrigatórias representam 93,7% do PIB. Ou seja, a despesa discricionária para 2021, a que o governo poderá eventualmente mexer, é de apenas 6,3% da despesa primária. Chego a achar curioso que o Congresso Nacional passe quatro meses, desde que o orçamento foi entregue, em 31 de agosto, para discutir o que será feito com aproximadamente 6% da despesa não-obrigatória. Esse engessamento restringe as margens de ajuste do governo. O investimento, que é o gasto nobre – obras, compras de equipamentos para hospitais, escolas etc. – vai ficar cada vez mais tendendo a zero. Em 2020, ele é só 0,4% do PIB.
RPD – Passamos nos últimos anos por vários processos de avanço no combate às práticas de corrupção. Da Lava Jato sobrou algum avanço? Hoje é mais difícil roubar do que era antes ou não? Houve excessos por parte da Lava Jato, no que ficou conhecido como “Vaza Jato”?
GCB – O Brasil é historicamente um país corrupto. Vejam, por exemplo, os indicadores da Transparência Internacional, divulgados todos os anos, apresentando os índices de percepção da corrupção, criados em 1995. Nos primeiros anos da série, quando a escala era de 0 a 10, o Brasil nunca chegou sequer a 5. Costumo dizer que nós nunca passamos de ano no que diz respeito à corrupção, porque não obtínhamos sequer a nota 5. Depois, quando a escala passou a ser de 0 a 100, o Brasil de novo não conseguiu chegar à nota 50. Em 2019, com a nota 35, o Brasil ficou em 106º lugar, em um universo de 180 países. Há 5 anos seguidos estamos caindo nesse ranking, o que reflete a percepção de um país cada vez mais corrupto.
A Lava Jato, a meu ver, estava modificando esse quadro. Antes dela não se viam poderosos indo para a cadeia, fossem eles empresários, políticos, banqueiros etc. Tive a ocasião de visitar a força tarefa da Lava Jato em Curitiba logo no início, e vi o quanto era importante a união de diversas pessoas em diversos segmentos para que a corrupção e o crime organizado pudessem ser combatidos. Integravam a força tarefa profissionais especialistas no sistema financeiro, bancário, pessoas que tinham a possibilidade de fazer conexões com o exterior para a colaboração internacional, e conheciam a fundo a Receita Federal. Com esse apoio, os procuradores conseguiram formatar processos com tal consistência que escritórios famosos de advocacia, desta vez, não conseguiram invalidar provas na origem, o que acontecia até então com frequência. Isso não aconteceu com a Lava Jato. Os escritórios de advocacia, inclusive os grandes escritórios criminalistas, passaram a não conseguir inocentar rapidamente os seus clientes. Quando surgiu o instrumento da delação premiada, alguns escritórios tradicionais foram até substituídos por outros mais especializados nessa linha de defesa.
O excelente trabalho da força-tarefa foi extremamente importante para que tivéssemos a impressão de que a corrupção iria diminuir no país. Pouco depois, surgiram as “10 Medidas Contra a Corrupção” ampliadas posteriormente para as “70 Medidas Contra a Corrupção”, um trabalho coordenado pela Fundação Getúlio Vargas e a Transparência Internacional, que contou com a participação de quase 300 entidades, inclusive a Contas Abertas.
O que está acontecendo com a Lava Jato no Brasil não é muito diferente do que aconteceu com a Operação Mãos Limpas na Itália. Quando a operação começou a atingir poderosos, dos mais diversos naipes, inclusive políticos, a operação começou a ser fragilizada por diversos meios. E, hoje, dizem na Itália, que combater a corrupção depois da Mãos Limpas é mais difícil do que era anteriormente. Por quê? Porque justamente a Legislação foi sendo afrouxada de tal maneira que inviabilizou o combate mais acirrado à corrupção. E receio que isso possa acontecer aqui no Brasil, ou, pior, que já esteja acontecendo.
A meu ver, a “Vaza Jato” não trouxe absolutamente informação alguma que pudesse consignar a parcialidade do juiz, a favor ou contra um determinado réu. Meu pai era promotor de Justiça e um de seus grandes amigos era um juiz. Nossas famílias se relacionavam e jamais essa relação afetou a atividade profissional de ambos. O promotor e o juiz representam o Estado. Não vi nas denúncias da “Vaza Jato” qualquer ato ou informação que pudesse configurar prejuízo aos investigados.
RPD – Haveria, a seu juízo, algum paradoxo entre os resultados políticos colhidos pelo candidato à Presidência em sua campanha em favor do combate à corrupção e a conduta do chefe de Estado, sobre o qual pesam evidências constrangedoras de envolvimento com a baixa corrupção e com o alto crime organizado?
GCB – Sem dúvida, o presidente da República se elegeu em função da promessa de continuar o trabalho anticorrupção. Hoje, entretanto, sinto-me completamente decepcionado com o que vejo no Brasil, uma espécie de pacto em favor da impunidade, que já vinha sendo desenhado há alguns anos. Basta lembrar aquela frase do Romero Jucá: “Nós precisamos estancar essa sangria”. Essa era e é a opinião de vários políticos, e inclusive de alguns ministros do Supremo, que chegavam a dizer que o combate à corrupção estaria prejudicando o crescimento do país. A meu ver, uma falácia.
Atualmente, percebo a existência de um pacto entre os Três Poderes. Foram adotadas medidas no Legislativo e no Judiciário que dificultaram o combate à corrupção. Por exemplo, dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, a mudança da interpretação da prisão a partir da condenação em segunda instância. Além disso, o presidente do Tribunal chegou a suspender a troca de informações que existia entre o Coaf, órgãos do Ministério Público e a Polícia Federal, decisão que foi, posteriormente, revista. Foram paralisadas investigações que a Receita Federal vinha fazendo, de forma absolutamente imparcial, em relação a algumas autoridades. No Legislativo, foi aprovado às pressas o projeto de lei de abuso de autoridade e não se tem observado pressa alguma na condução das propostas que podem recompor a prisão a partir de segunda instância. Foram também desidratadas as propostas anticorrupção apresentadas pelo então ministro Sérgio Moro, e engavetadas as 70 Medicas Contra a Corrupção, de iniciativa da sociedade civil.
Nessa mesma linha, o presidente da República, preocupado com a defesa dos seus familiares atingidos por denúncias e por evidências de irregularidades, tomou várias decisões como rasgar a carta branca que ele tinha dado ao então ministro da Justiça Sérgio Moro, contrariando completamente o discurso de campanha, para influir nas decisões da Polícia Federal, o que na minha percepção, ficou absolutamente caracterizado, qualquer que seja a consequência. Além disso, indicou a dedo um Procurador-Geral da República que, muitas vezes, parece mais um advogado criminalista do que propriamente um membro do Ministério Público. Recentemente, o presidente indicou um novo ministro para o STF com base na opinião de políticos investigados e de atuais ministros da Corte que nunca se caracterizaram pelo enfrentamento rigoroso à corrupção.
Em resumo: creio que os instrumentos de combate à corrupção estão sendo enfraquecidos, tal como ocorreu na Itália. Temo que estejamos retrocedendo décadas no que diz respeito efetivamente ao combate à corrupção, com certa conivência da cúpula dos Três Poderes.
RPD – Como você avalia a questão da reforma da Previdência, que também não é um privilégio do governo Bolsonaro, até porque várias medidas para reformá-la foram tomadas em governos anteriores, desde Fernando Henrique, passando por Lula e Dilma?
GCB – A questão da Previdência, de fato, precisava ser novamente enfrentada, o que já vinha sendo discutido há muito tempo, há vários governos. A Previdência é a segunda maior despesa do país, após os juros. Para 2021, mesmo depois da reforma, apenas as despesas com a Previdência e Pessoal corresponderão a mais de R$ 1 trilhão. Dessa forma, de uma despesa primária de aproximadamente R$ 1,5 trilhão, cerca de R$ 1,077 trilhão serão gastos com Pessoal e Previdência. A reforma, porém, manteve privilégios, como por exemplo em relação aos militares que acabaram saindo com vantagens. Em decorrência da pandemia, a economia de R$ 700 bilhões que seria obtida em 10 anos com a reforma foi completamente consumida no combate ao Covid-19. A reforma também não alcançou os Estados e Municípios que continuam em uma situação extremamente difícil.
RPD – E quanto às privatizações e às outras reformas, como a tributária?
GCB – As privatizações, realmente, ainda não saíram do papel. Deve ter sido uma enorme frustração para o ministro Paulo Guedes, um liberal da escola de Chicago, como também para muitos do grupo que ele trouxe para o governo. Quanto à reforma tributária, existem, hoje, três propostas: uma na Câmara, uma no Senado, e outra do governo. Em outras palavras, quem tem três, não tem nenhuma. E não acredito que avancem, não só em função da pandemia, mas, também, das eleições. O governo, cada vez mais, vem adotando linha populista, em que a preocupação central é mais a eleitoral do que com a responsabilidade e a austeridade fiscal, fato que já afeta alguns parâmetros da economia.
O real foi a moeda que mais se desvalorizou nos últimos tempos dentre todos os países emergentes. A taxa de juros futuros está subindo e o governo poderá ter dificuldades para rolar a dívida. Já é perceptível a fuga de capitais, com cerca de R$ 88 bilhões deixando a Bolsa de Valores, o dobro do que aconteceu em todo o ano passado. A bolsa opera abaixo de 100 mil pontos, sintoma de insatisfação do mercado financeiro. A inflação está em processo de aceleração, sobretudo no segmento da alimentação. Trata-se, enfim, de uma série de parâmetros que revelam que os agentes econômicos, de uma maneira geral, não estão mais acreditando que o governo irá seguir com reformas e no caminho da responsabilidade fiscal.
Agora, a cereja desse bolo populista é realmente a situação do Renda Cidadã e do Pró-Brasil. A preocupação maior do governo deixa o mercado de cabelo em pé. Nitidamente, a preocupação do governo não é apenas a de ampliar a base do Bolsa Família e sim fazer com que o valor médio desse novo programa, o Renda Cidadã, chegue o mais perto possível dos R$ 300,00 que está sendo pago como auxílio emergencial e alavancou a popularidade do presidente. Só que sair do atual valor médio de R$ 191,00 do Bolsa Família para valor próximo de R$ 300,00, além do aumento da base, irá significar um aumento relevante da despesa. O orçamento já está combalido e o país quase quebrado.
Neste quadro fiscal extremamente difícil, há hipóteses do endividamento chegar ao final deste ano bem perto de 100% do PIB. A Instituição Fiscal Independente, do Senado Federal, trabalha com três cenários. No otimista, a dívida bruta do governo chegará a 92% do PIB; no cenário base atingiria 96,1% do PIB; no cenário pessimista a dívida alcançaria 101,3% do PIB. Quanto ao déficit primário, segundo estimativa do próprio governo, o Brasil só deverá reequilibrar suas finanças, ou seja, equilibrar receita e despesa, em 2026/2027. Mas, no cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente, isso só irá acontecer no início da década de 2030.
RPD – Com a sua autoridade de dirigir “Contas Abertas”, o Brasil de hoje é mais ou menos transparente em relação a governos anteriores?
GCB – O Brasil está menos transparente. Lembro que, logo nos primeiros meses do governo, houve a tentativa de fazer com que os documentos secretos pudessem ser declarados como tal por uma quantidade enorme de pessoas. Ao se aprovar a Lei de Acesso à Informação, a ideia era justamente limitar o número de pessoas com essa capacidade, para que fosse possível manter maior controle sobre os documentos secretos e quem decidiria pelo sigilo maior. O Fórum de Acesso às Informações Públicas tem interpelado a Controladoria Geral da União sobre situações de restrição à transparência. Em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos. A Lava Jato de Curitiba conseguiu recuperar efetivamente pouco mais de R$ 4 bilhões, e tem o objetivo de, no médio/longo prazos, recuperar cerca de R$ 14 bilhões. Estamos, portanto, diante da possibilidade de uma fraude enorme, em volume inédito, em tão pouco espaço de tempo, durante a pandemia. Isso supondo o percentual de 3%. Pelo que já tomamos conhecimento de desvios no pagamento de auxílio emergencial, na compra de respiradores, máscaras, álcool em gel, toucas, na construção de hospitais de campanha etc., serão apenas 3%? O maior antídoto contra a corrupção é a transparência.
Algo preocupante é constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário. A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência, até mesmo porque as medidas de enfrentamento à corrupção tiveram caráter emergencial. Esta emergência, embora indiscutível, pode ter gerado facilidades maiores para os corruptos.
RPD – Ou seja, a tendência é pessimista.
CB – Sim. A emergência não revoga os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A emergência não dispensa a fiscalização rigorosa por parte do Ministério Público, Tribunais de Contas e da própria sociedade. Tal como já dizia há um século um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, “a luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. A transparência é essencial para que exista o controle social. Repito, na hipótese de desvio de 3% do montante destinado ao enfrentamento à pandemia, a corrupção atingiria a R$ 18 bilhões. A corrupção no Brasil pode ter-se tornado mais horizontal do que muitos imaginam.
RPD || Lilia Lustosa: Sarape¹ mexicano
Ousado, Que Viva Eisenstein! veio para abalar as suscetibilidades de muitos conservadores e pseudoliberais mundo afora e libertar Sergei Eisenstein de uma vez por todas, avalia Lilia Lustosa em seu artigo
O México sempre atraiu cineastas (e) revolucionários: não à toa Luís Buñuel o adotou como segunda pátria, e Sergei Eisenstein não queria mais ir embora dali.
No início dos anos 1930, o cineasta soviético passou uma temporada no México, depois de rápida e decepcionante passagem por Hollywood, onde não conseguira desenvolver nenhum dos projetos que tinha em mente. Os Estados Unidos daquela época não estavam preparados para abraçar a alma revolucionária do diretor de A Greve (1925), O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1927). Para não perder a viagem e incentivado por Charles Chaplin, Eisenstein aceitou a proposta do escritor Upton Sinclair para rodar um filme em solo mexicano, a fim de mostrar o povo e a cultura daquele país.
¡Qué viva México! tinha orçamento inicial de US$ 25 mil, que deveria cobrir despesas de hospedagem, alimentação e transporte da pequena equipe – Eisenstein, seu assistente Grigori Aleksandrov e o cinegrafista Eduard Tisse – durante um período de três a quatro meses, quando o filme deveria estar concluído. Acontece que, em vez de quatro, a equipe soviética acabou ficando 14 meses no México, excedendo em muito o orçamento estipulado e, pior, sem conseguir finalizar o projeto. Pressionados por Sinclair e pelo próprio Stálin, que temia a deserção dos cineastas, os três tiveram de retornar para a URSS sem nenhum rolo de filme debaixo do braço. O material não-editado foi enviado diretamente para Hollywood.
¡Qué Viva México! acabou virando uma espécie de lenda no meio cinematográfico, atraindo a atenção de historiadores, cinéfilos e cineastas do mundo inteiro. Muitos foram os que tentaram reconstruí-lo. Em 1933, três versões foram lançadas, montadas por Sol Lesser, a pedido do próprio Sinclair: Thunder over Mexico, Death Day e Eisenstein in Mexico. A ideia era transformar aqueles negativos em algo minimamente comercial. Em 1940, foi a vez de Marie Seton, futura biógrafa de Eisenstein, tentar sua sorte com o Time in the Sun. Em 1958, Jay Leyda, ex-aluno do cineasta, usou o material que estava agora em posse do MoMA e montou Eisenstein’s Mexican Films: Episodes for Study, uma versão de 255 minutos. Já nos anos 70, quando os negativos finalmente voltaram para a URSS, Aleksandrov – único sobrevivente da trupe à época – montou uma versão baseada nos escritos e storyboards deixados por Eisenstein, intitulando-a ¡Qué Viva México! (1979). Outras versões foram feitas e, seguramente, outras ainda surgirão, mas essa é considerada a mais “original” de todas!
Atraída pela lenda, chegando ao México, saí (virtualmente) em busca de informações sobre a passagem de Eisenstein por aqui, tentando descobrir, quem sabe, alguma novidade sobre o dito filme. Já na primeira googleada, inteirei-me do ¡Que Viva Eisenstein! - 10 Dias que Abalaram o México (2015), do diretor inglês Peter Greenaway. Uma ficção barroca que pinta com diferentes matizes os dias que o cineasta soviético passou em Guanajuato, cidade localizada a 350 km da Cidade do México. Reza a lenda que foi ali que ele assumiu sua homossexualidade, ao conhecer o intelectual mexicano Palomino Cañedo, que lhe servia de guia. E é exatamente aí que Greenaway põe a lupa, retratando as inquietações, dúvidas e descobertas do homem (mais que do cineasta) ao ter contato com a cultura mexicana mais de perto. Uma cultura que trata a morte com respeito e alegria e que teve profundo impacto na obra vindoura de Eisenstein.
Morte e sexo (vida) estão, aliás, no centro dessa história, contada de maneira nada convencional, usando e abusando de efeitos cinematográficos, com uma linguagem fragmentária, cheia de contrastes e artificialidades, e com uma montagem inquieta e plena de rupturas. Trechos de filmes de Eisenstein convivem com imagens computadorizadas, câmeras digitais bailam ao som de Prokofiev, split-screens se sucedem na tela… Greenway parece ter querido colocar aqui todos os recursos disponíveis para homenagear de forma irreverente seu grande ídolo, um dos maiores cineastas de todos os tempos, um pensador da sétima arte, criador, entre outras coisas, da famosa montagem intelectual. Um grande artista que, por causa do sistema opressor da época, foi obrigado a reprimir sua sexualidade, casando-se inclusive com sua secretária para despistar as autoridades soviéticas. Autoridades cujos sucessores, até hoje, parecem ter dificuldades em aceitar a homossexualidade do cineasta, haja vista a recepção nada calorosa que ¡Que Viva Eisenstein! teve em terras de Putin.
¡Que Viva Eisenstein! é um verdadeiro “sarape mexicano” – como deveria ter sido o próprio ¡Qué Viva México! de Eisenstein (palavras dele) –, com seus contrastes escandalosos e vibrantes, “um poema sobre a vida e a morte”, um filme ousado que veio para abalar as suscetibilidades de muitos conservadores e pseudoliberais mundo afora e para libertar Eisenstein de uma vez por todas.
[1] Espécie de coberta de lã ou colcha de algodão, geralmente de cores vivas, com abertura ou não no centro para a cabeça.
RPD || José Luís Oreiro: Não, Bolsonaro não é desenvolvimentista
José Luís Oreiro questiona, em seu artigo, a análise de que o presidente Jair Bolsonaro se converteu ao desenvolvimentismo: “Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica”
Recentemente, devido à polêmica criada pela possibilidade de “flexibilização” do teto de gastos para dar espaço fiscal ao aumento do investimento público, alguns analistas da mídia e do mercado financeiro se apressaram em afirmar que o presidente da República se havia convertido ao (sic) desenvolvimentismo. Na visão desses analistas, o desenvolvimentismo seria sinônimo do velho populismo econômico latino-americano, o qual teve no ex-presidente argentino em Juan Domingo Perón seu maior expoente político. A característica fundamental, assim, do populismo/desenvolvimentismo seria a gastança desenfreada por parte do governo com o objetivo de obter resultados eleitorais de curto prazo, mas com efeitos nocivos sobre o crescimento econômico e a inflação no médio e no longo prazo.
Não tenho procuração ou interesse para defender Perón ou o peronismo de uma comparação estapafúrdia com Bolsonaro; mas, como me incluo entre os economistas desenvolvimentistas brasileiros, tentarei esclarecer, nas linhas abaixo, o que se entende por desenvolvimentismo.
O desenvolvimentismo é um sistema de pensamento econômico surgido na América Latina a partir do famoso Manifesto Latino-Americano, escrito por Raúl Prebisch por ocasião da primeira reunião da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 1949, em Havana, Cuba. A ideia fundamental por trás do Manifesto é que a divisão internacional do trabalho entre países exportadores de produtos primários (a periferia) e os países exportadores de produtos manufaturados (o centro) gerava padrão de desenvolvimento desigual entre essas regiões. Isso porque os produtos primários apresentavam tendência secular de queda, revertida apenas temporariamente durante os dois conflitos mundiais, ao passo que os produtos manufaturados mantinham seus preços mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa deterioração dos termos de troca impunha restrições externas ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, os quais incorriam regularmente em elevado endividamento externo e crise do balanço de pagamentos.
A solução para esse problema estrutural seria, portanto, a industrialização dos países periféricos, a qual se daria, numa primeira etapa, pela substituição de importações, a ser seguida, assim que fosse possível, pela promoção de exportações de produtos manufaturados, ou seja, pela inserção competitiva das economias latino-americanas nos mercados internacionais. O Estado teria papel importante no processo de industrialização, pois os países periféricos estão presos em uma armadilha de pobreza, em que o baixo nível de renda per capita gera, devido a uma série de falhas de mercado, uma baixa taxa de retorno para o investimento privado. Prebisch e a Cepal apoiavam, portanto, um Estado ativo que lançasse mão de todos os instrumentos de política econômica utilizados pelos países exportadores, mas dentro de uma economia de mercado, global e competitiva. Em suma, o aspecto essencial do desenvolvimentismo é a realização de uma profunda mudança na estrutura econômica dos países latino-americanos, o que incluía também reformas na estrutura fundiária, no sistema educacional e no sistema tributário com vistas a reduzir a desigualdade na distribuição de renda. Essa sempre foi vista pelos desenvolvimentistas como um obstáculo à necessária transformação estrutural da América Latina.
Como o leitor já deve ter percebido, o governo Bolsonaro não tem semelhança alguma com o pensamento desenvolvimentista. Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica cuja agenda de “reformas” tem por objetivo destruir o Estado Brasileiro e sua capacidade de ser agente indutor do processo de desenvolvimento econômico. As obras de infraestrutura que a ala militar do governo deseja realizar, por seu turno, estão centradas na construção de ferrovias para facilitar o escoamento da produção de produtos primários para a exportação; ou seja, irão apenas reforçar o caráter periférico e, portanto, dependente da economia brasileira. Não há nenhum projeto minimamente consistente para a reconstrução da indústria nacional, a qual teve sua participação na geração de empregos e no PIB da economia brasileira prematuramente reduzida nos governos tucanos e petistas. Por fim, mas não menos importante, o tratamento que o atual governo dá à área de ciência e tecnologia mostra de forma didática que o desenvolvimento econômico não é prioridade.
O leitor interessado em saber mais sobre Raúl Prebisch e o pensamento desenvolvimentista pode consultar o livro de Edgar Dosman, Raúl Prebisch (1901-1986): A construção da América Latina e do Terceiro Mundo, publicado em 2011 pela Contraponto.
*Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB).
RPD || Henrique Brandão: Uma noite de autógrafo sem autor e livro
Jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista, dramaturgo, autor de Poema Sujo, sua obra-prima. Assim era Ferreira Gullar que, se vivo fosse, teria completado 90 anos no último mês de setembro
Quem é quem na foto - Rio de Janeiro, livraria Rubayat, 1976. De pé, da esquerda para a direita: Cacá Diegues, retrato de Ferreira Gullar, Zuenir Ventura, Tereza Aragão (mulher de Gullar), Oswaldo Loureiro, Leon Hirszman, Bete Mendes, Mary Ventura, Arnaldo Jabor, Neném Werneck de Castro, Moacir Werneck de Castro, Mario Cunha, Helena Furtado, João Saldanha, Teresa Cesário Alvim, Neusa Amaral. Sentados: Mario da Silva Brito, Mario Lago, Sergio Augusto, Antonio Pitanga, Ziraldo, Darwin Brandão e Guguta Brandão
No mês de setembro deste ano, o poeta Ferreira Gullar completaria 90 anos. Não conseguiu receber as devidas homenagens. Faleceu em dezembro de 2016, dois meses depois de completar 86 anos.
José Ribamar Ferreira, seu nome de batismo, era um homem de hábitos simples. Sua figura, no entanto, chamava atenção. Magro, com a cabeleira escorrida ao longo do rosto, o nariz adunco e as mãos expressivas – que gesticulavam sem parar enquanto falava – não passava despercebido onde quer que estivesse.
Gullar era muitos. Além de poeta, foi jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista, dramaturgo.
Participou ativamente do Concretismo e do Neoconcretismo, movimentos importantes no cenário da cultura brasileira, nos anos 1950.
Gullar entrou tarde na política. Já rompido com o Neoconcretismo, participava do Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), quando ocorreu o golpe de 1964. “Eu me filiei ao PCB no dia do golpe de 64. Eu queria participar da resistência a um regime que se impunha ao país pela força”. Após o fechamento da UNE, Gullar e seus companheiros do CPC fundaram o grupo Opinião, que teve grande repercussão com suas peças e shows musicais.
Após o AI-5, em 1968, o regime militar apertou o cerco. Sobrou para todo mundo que se opunha à ditadura, até mesmo para os comunistas ligados ao PCB, que não defendiam a luta armada. A essa altura, Gullar fazia parte do Comitê Cultural do PCB.
Quem avisou que a barra tinha pesado foi Leandro Konder, também membro do Comitê Cultural, com a notícia de que um companheiro havia caído e, sob tortura, entregara todo mundo. Gullar deveria se esconder, pois estava na mira da repressão.
Depois de um tempo escondido, não restou alternativa a não ser o exilio. Clandestino, Gullar seguiu para a União Soviética e, de lá, para o Chile; depois para o Peru e, por fim, para a Argentina. Triste sina: a cada país que chegava, as condições políticas, passado algum tempo, pioravam. A direita ganhava corpo na América Latina.
A Argentina era então presidida por Isabelita Perón, que, pressionada pelos Montoneros à esquerda, preferiu se aliar ao peronismo de direita. O clima se radicalizava. Com o passaporte cancelado pelo consulado brasileiro e com todo o Cone Sul sob ditaduras – além do grave quadro de esquizofrenia de seu filho no Brasil –, a angústia e o desespero tomaram conta do poeta. Gullar achou que era hora de, segundo suas palavras, “expressar num poema tudo o que ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais – o poema final”.
Assim nasceu o Poema Sujo, sua obra-prima. Gullar trabalhou nele de forma visceral, de março a setembro de 1975. “Nada me fez interromper o poema. Estava entregue a ele todas as horas do dia e da noite”, registrou em Rabo de Foguete, seu livro de memórias do exílio.
Na época, Vinícius de Moraes fazia muito sucesso em Buenos Aires. Em uma das ocasiões em que esteve por lá, na casa de Augusto Boal, também exilado, Gullar leu o poema para Vinícius. “Esse poema é uma coisa muito séria. Quero levar para o Brasil e mostrar para o pessoal. Não há tempo a perder”, disse o poetinha. E assim nasceu a famosa fita, que veio na bagagem de Vinícius e, no Brasil, foi reproduzida entre os amigos.
As reuniões para ouvir o Poema Sujo se multiplicaram. O poema circulava em audiências domésticas, enquanto seu autor permanecia na Argentina, onde a situação política se deteriorava.
Foi então que um grupo de amigos resolveu fazer uma noite de lançamento do poema, sem a presença do autor e sem livro. Seria um ato político, a fim de ajudar na operação de trazer Gullar de volta ao Brasil. Em um mundo distante das redes sociais, a mobilização era feita por telefone ou no boca a boca, nas mesas de bar. Diante das circunstâncias, acabou virando um feito relevante. Várias pessoas compareceram para demonstrar solidariedade e manifestar repúdio ao regime militar.
Dessa noite de autógrafos, sem livro e sem autor, restou a fotografia feita ao fim do evento, que dá a dimensão daquele momento histórico. A trajetória política dos que aparecem na imagem ganhou rumos diferentes, após a derrocada da ditadura. Muitos, inclusive, já morreram. Mas, naquele momento, importava marcar posição contra o regime militar. De um lado, armas e repressão; de outro, um livro de poesia que ainda não existia e cujo poeta estava exilado.
A mensagem não podia ser mais clara.
*Jornalista e escritor
RPD || Gledson Vinícius: O retrato do livro revela o óbvio
Falta de políticas públicas e a deterioração que a educação e a cultura vêm sofrendo em várias esferas governamentais atingem fortemente a relação entre a sociedade e o livro
Na degradante linha do tempo obscurantista que o país tem construído nos últimos anos, somam-se novos dados desanimadores. Segundo o resultado da pesquisa Retratos da Leitura – divulgada recentemente pelo Instituto Pró-Livro (IPL) em parceria com o Itaú Cultural e o Ibope Inteligência –, o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019. Podemos ver em números, agora, o resultado de iniciativas esdrúxulas, como por exemplo, a censura promovida pelo prefeito Marcelo Crivella na Bienal do Rio de Janeiro, em 2019, ou a censura de livros clássicos implementada em Rondônia pelo secretário de educação Suamy Vivecanda.
Os atos de censura, nesse contexto, expressam apenas a face visível de um processo de deterioração que a educação e a cultura vêm sofrendo em várias esferas governamentais, em especial no Rio de Janeiro, durante os últimos anos. Entre os muitos exemplos de desmonte, desorganização e desinvestimento que as políticas públicas do livro, da leitura e da literatura sofreram, destaca-se a falta de compromisso com a universalização das bibliotecas escolares que deveria ter sido implementadas até maio de 2020, como proposto na Lei 12.244, de 2010.
Outro grande golpe no setor foi a interrupção no programa de distribuição de livros (PNBE), em 2015. Antes da interrupção, entre os anos de 2000 e 2014, foram quase 230 milhões de exemplares distribuídos a um custo médio de R$ 3,80/unidade. O investimento nesse período foi de R$ 891 milhões em compras. Ou seja, algo como R$ 68,5 milhões por ano na renovação dos acervos para escolas de todos os ciclos do ensino básico. O esfacelamento não se restringiu apenas no descumprimento de metas ou na redução dos investimentos financeiros. O processo atingiu a fundo o setor ao extirpar grandes nomes de posições decisórias e cruciais. Recordemos a extinção do Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura e a redução do número de representantes da sociedade civil no Conselho Diretivo do plano, por iniciativa do presidente Bolsonaro e do ministro da Cidadania, Osmar Terra.
Se, por um lado, os números que a 5º pesquisa realizada pelo Pró-livros – instituição criada e mantida pelas entidades do livro Abrelivros, CBL e SNEL – nos fazem ver que a descontinuidade de políticas públicas, falta de investimento e desmobilização reverberam fortemente na relação entre a sociedade e o livro (ao ponto de mostrar uma perda de 4,6 milhões de leitores), por outro lado essa mesma pesquisa consegue também, por meio dos números, auxiliar no enfrentamento para desmontar os argumentos que a equipe econômica liderada pelo ministro da economia, Paulo Guedes, apresentou para propor a taxação dos livros em 12%.
Se para o ministro o livro é um item da elite e que essa elite não vai se importar em pagar imposto, a pesquisa aponta que para 22% dos consultados, o preço é decisivo na hora de comprar. Fica claro também que não é apenas a elite que compõe a massa de consumidores de livros. Segundo o retrato da leitura, 27 milhões dos brasileiros identificados na classe C são compradores de livros, e para essa classe é ainda mais sensível a variação de preço que a taxação imporá.
A pesquisa reforça as convicções de um dos grandes nomes da nossa literatura, o baiano Jorge Amado. Ele, que também teve forte atuação na vida política do país pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), foi responsável pela emenda constitucional que determinava a isenção de impostos sobre o papel, em 1946. Essa isenção, mais tarde, passou a valer para o livro como produto final, e, finalmente, em 1988, essa isenção ganhou garantia constitucional.
Nesse contexto em que a ciência, as pesquisas, os livros são deslegitimados em detrimento de uma visão de mundo curta e tacanha, citar Jorge Amado se mostra imperioso. Por isso, sugiro que o leitor repita em voz alta a célebre frase do pai de tantas personagens marcantes da nossa literatura: “Eu continuo firmemente pensando em modificar o mundo, e acho que a literatura tem uma grande importância”.
Nossas vozes precisam ser ouvidas.
RPD || Benito Salomão: Cenários possíveis para 2021
Problemas econômicos do país seguem reais, apesar de terem saído do debate público como se tivessem deixado de existir, avalia Benito Salomão. Desemprego avança para 13,8% e a dívida pública chega a 88,72% do PIB
Benito Salomão*
No momento em que se caminha para o final do histórico ano de 2020, surge uma falsa e perigosa sensação de normalidade: a curva de infectados pelo novo coronavírus no Brasil finalmente cedeu, a economia apresenta alguns sinais de recuperação e a possibilidade de uma segunda onda parece ser uma realidade distante. Os problemas estruturais do Brasil parecem ter desaparecido do debate público como se tivessem deixado de existir. Aos poucos, lojas, bares, restaurantes e shoppings voltam a funcionar; as pessoas retornam às suas atividades, e a pandemia, que já deixou quase 150 mil mortos e continua seu cortejo macabro, passa a ocupar apenas a lembrança das pessoas.
Os problemas econômicos, no entanto, seguem reais. Segundo o IBGE, o desemprego no semestre findado em julho avançou para 13,8% e já supera o pior momento da crise de 2014/17, com pico de 13,7% em março de 2017. Segundo os dados da Pnad Contínua, cerca de 13,1 milhões de brasileiros procuraram trabalho e não encontraram no trimestre findado em julho; outros 5,8 milhões estão no desalento. No que se refere ao PIB, parece haver alguma recuperação em curso. Entretanto, uma análise de indicadores antecedentes como o IBC-Br mostra que, até o presente momento, a recuperação não cobriu sequer a metade da perda verificada no primeiro semestre do ano.
O único indicador no Brasil que cresce acima das projeções é o da dívida pública. Entre janeiro e agosto de 2020, a dívida bruta do governo brasileiro saltou de 76,18% para 88,72% do PIB, um avanço de 12,54% em apenas oito meses. Na crise anterior, já considerada por muitos como a maior da história até então, a dívida pública brasileira havia crescido de 51,79% para 71,01% do PIB, evolução de 19,22% entre março de 2014 e novembro de 2016, porém em um prazo muito mais dilatado, de 32 meses.
Em meio a um cenário fiscal tão desolador, o governo brasileiro segue de braços cruzados; a reforma tributária parece ter saído de discussão; a reforma administrativa apresentada não tem condições de ser aprovada; e o governo aposta em trapaças contábeis para criar seu “Renda Cidadã”, fruto da obsessão pessoal do presidente da República, não uma política de mitigação da pobreza, da miséria ou da fome, mas sim como um mero instrumento de perpetuação no poder. O Renda Cidadã é o ponto de tangência entre o bolsonarismo e o petismo; ambos são capazes de lançar mão da sustentabilidade fiscal e da estabilidade macroeconômica do país em troca da formação de feudos eleitorais constituídos por programas de transferências de renda, que, se não fossem deturpados, poderiam ser importantes instrumentos de redução das desigualdades no Brasil.
Ao paralisar reformas estruturais e insistir em teses econômicas inviáveis como o Renda Cidadã e a substituição da CPMF pela desoneração da folha de pagamentos, o Brasil está construindo um rápido atalho entre a crise atual e a próxima crise. Em janeiro de 2021, o decreto legislativo de calamidade pública irá expirar. Com ele, a PEC 10/20 do Orçamento de Guerra será sustado, e a política fiscal no Brasil voltará a se enquadrar no formato institucional padrão composto por Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Teto de Gastos Públicos e Regra de Ouro. Quando isso acontecer, as despesas primárias do governo federal não poderão crescer acima de 2,13% que é a inflação findada em junho. O governo também não poderá seguir contraindo dívida para pagar despesas correntes. Um grande número de Estados e municípios que infringiram o teto legal de despesas com pessoal da LRF será obrigado a reconduzir o orçamento para os limites da Lei e vai, fatalmente, demandar socorro da União e dos Estados. Enfim, os problemas de sempre voltarão à baila.
No front monetário, o governo brasileiro terá dificuldades de continuar financiando, via títulos, a expansão das despesas públicas. Com a sustação do orçamento de guerra, os papéis emitidos pelo Tesouro não mais poderão ser adquiridos pelo Banco Central e terão que ser absorvidos exclusivamente pelo mercado. É possível esperar a elevação das taxas de juros futuras. Além disso, uma provável segunda onda da pandemia na Europa pode voltar a derrubar os mercados financeiros e causar ainda mais volatilidade na taxa de câmbio e prejuízos ao comércio internacional. Se enganam os crentes em uma recuperação robusta em 2021; o cenário econômico deve prosseguir conturbado.
* Mestre e Doutorando em Economia PPGE - UFU
RPD || Alberto Aggio: A política em tempos de pandemia
Filtro político das recomendações para o combate à pandemia do novo coronavírus desnudou as perspectivas filosóficas dos governantes, suas concepções de civilização, sua visão do presente e do futuro, avalia Alberto Aggio
Alberto Aggio*
É uma verdade relativa a que se pode deduzir da expressão “o cidadão vive no município, não no Estado ou na Federação”. A vida mudou profundamente nos últimos tempos, tornando-se cada vez mais complexa e cosmopolita. Se as fronteiras entre os países se enfraqueceram, o que dizer então dos limites meramente administrativos das cidades? A pandemia da Covid-19, que já ceifou mais de 1 milhão de vidas no mundo, é mais uma evidência da mudança. Em meio a esses trágicos resultados, ou precisamente por conta deles, teríamos pelo menos um saldo positivo desse sofrimento todo se pudéssemos assimilar a nova forma de pensar a relação do cidadão com a Pólis e, em função dela, construir uma maneira contemporânea de pensar a política no nosso tempo.
A começar pelo reconhecimento de que sobreviver à pandemia só foi possível com a adoção de parâmetros de orientação científica que transcenderam qualquer dimensão municipal. O isolamento social, primeiro, e o distanciamento social, em seguida (uso de máscaras, periódica e meticulosa higiene das mãos etc.), foram as principais orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), para tentar estancar o alastramento do vírus. Mesmo que ambas tenham sido cumpridas de maneira bastante parcial no Brasil, nossas condutas, sociais e pessoais, assemelharam-se a de inúmeros países do globo.
A contestação a essas recomendações desnudou as perspectivas filosóficas dos governantes, suas concepções de civilização, sua visão do presente e do futuro. Em uma palavra, as recomendações dos especialistas foram filtradas, em toda parte, pelo crivo da política. Não poderia ser diferente. Viver ou morrer, no contexto da pandemia, estaria assim submetido a uma orientação global e se consubstanciaria em um plano político concreto em cada país, desde o nível regional até os entes locais do território. Nesse pacote estariam iniciativas referentes à montagem de hospitais, alocação e distribuição de medicamentos e de recursos financeiros e humanos etc.
O mesmo raciocínio pode ser usado em relação à vacina contra o novo coronavírus. A produção da vacina deriva do avanço da ciência e da especialização dos cientistas em nível global e, essencialmente, da troca de informações entre eles, além do grau de evolução e especialização da economia médico-farmacêutica de cada país. Da mesma maneira, o sucesso ou o fracasso no tratamento dos pacientes contaminados pelo vírus.
Em suma, a pandemia demonstrou, de forma cabal, que as cidades não são mundos encapsulados, que vivem para si mesmas – como se algum dia houvessem sido. Nos momentos mais agudos, elas se “fecharam” e restringiram o movimento dos seus cidadãos, mas se mantiveram conectadas com o que de mais importante se fazia ao redor do mundo no enfrentamento da pandemia.
Contudo, as orientações dos especialistas não responderam de imediato às expectativas de contenção do vírus e, com o correr dos meses, foram alteradas, embora tenham sido mantidas como as referências mais seguras para enfrentar a emergência sanitária que se apresentava. Em uma palavra: elas eram insuficientes diante da complexa realidade que se instalava. Sabia-se do alcance, dos benefícios e dos limites do isolamento social confrontado com a realidade social e econômica. Se é verdade que a fala dos especialistas não poderia ser tomada de maneira absoluta, era rematada tolice vocalizar que a pandemia estava sendo politizada. Em suma, não havia sentido em pensar que as decisões quanto à pandemia estivessem fora da dimensão política.
Por ser assim, o comportamento dos principais dirigentes políticos do mundo esteve em causa no contexto pandêmico. O presidente Jair Bolsonaro notabilizou-se, dentro e fora do país, porque politizou a pandemia da forma mais equivocada possível. Desdenhou de suas consequências e principalmente dos mortos; recusou-se a colaborar com governadores e prefeitos no combate à pandemia, alegando falsamente suposta obstrução do STF; impediu a comunicação e a transparência a respeito do avanço e do combate à pandemia; e, por fim, buscou, a todo custo, “abater” politicamente seus supostos concorrentes às futuríssimas eleições presidências de 2022. Assim se comportou com dirigentes democraticamente eleitos e com ministros que ele próprio convocou como seus auxiliares.
Governadores, prefeitos e todos os cidadão ficaram a mercê de orientações conflitantes e o resultado foi a desorientação total da população, com as consequências sabidas: mais de 150 mil mortos em pouco mais de seis meses. No essencial, em relação à pandemia, Bolsonaro entregou uma política truculenta e beligerante, eivada de incompreensão e de ausência de solidariedade, além da absoluta falta de empatia para com aqueles que perderam seus entes queridos.
Se há algum saldo positivo a esperar é que os brasileiros, nas próximas eleições e nas vindouras, exerçam suas escolhas estabelecendo claramente a diferenciação entre lideranças e dirigentes políticos que se comprometeram em superar a crise e aqueles que se aproveitaram dela visando apenas seus interesses pessoais.
RPD || Reportagem especial: Destruição do Pantanal confirma desmonte de política ambiental no governo Bolsonaro
Discurso de ministros sobre boi bombeiro não sinaliza para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país
Cleomar Almeida
Quase quatro milhões de hectares já foram destruídos por incêndios no Pantanal, a maior planície alagada do mundo, com 65% de seu território concentrados nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Além de deixar a vegetação em cinzas e o céu do país tomado por fumaça e fuligem, as queimadas são consideradas a maior da história pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o que, para especialistas, refletem o desmonte das políticas ambientais em menos de dois anos do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A dimensão exata da destruição da fauna e flora ainda é incerta diante da imensidão das queimadas que aumentam a área devastada a cada dia. A Polícia Federal suspeita que fazendeiros provocaram os incêndios criminosos para transformar a área em pasto, seguindo uma linha do próprio governo federal. Em audiência no Senado, no dia 9 deste mês, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que o boi é o “bombeiro do Pantanal” e, segunda ela, as queimadas e o “desastre” na região poderiam ter sido menores se houvesse mais gado no bioma.
“O boi é o bombeiro do Pantanal, porque é ele que come aquela massa do capim, seja ele o capim nativo ou o capim plantado, que foi feita a troca. É ele que come essa massa para não deixar como este ano nós tivemos. Com a seca, a água do subsolo também baixou os níveis. Essa massa virou um material altamente combustível", afirmou Tereza Cristina. Seu discurso foi criticado por especialistas e segue na linha do que já havia sido defendido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e por Bolsonaro.
A versão do governo não sinaliza, positivamente, para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país. No Pantanal, animais foram carbonizados ou severamente feridos pelas chamas, que também jogaram inúmeras árvores chão abaixo e destruíram quase todo o Parque Estadual Encontro das Águas, refúgio de onças pintadas no Mato Grosso, e o famoso Ninho do Tuiuiú. Organizações não-governamentais (ONGs) e voluntários atuam para socorrer animais, enquanto brigadistas, bombeiros e integrantes da Marinha tentam combater os incêndios.
Até o dia 3 de outubro, 2.160.000 hectares já haviam sido destruídos no Pantanal mato-grossense e outros 1.817.000 hectares em Mato Grosso do Sul. O total de área devastada entre os dois estados é de 3.977.000 hectares, o que representa 26% de todo o Pantanal. Os dados são do levantamento mais recente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) Prevfogo e do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado no dia 6 deste mês, antes do fechamento desta edição. Toda essa área devastada equivale a quase 20 vezes o tamanho das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas.
O Pantanal arde em chamas desde julho e, em menos de três meses, o Inpe identificou cerca de 16 mil focos de calor no bioma. É o maior número desde 2015, quando foram contabilizados 12.536 focos de calor. A região enfrenta a maior seca em 60 anos, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadene), e a longa estiagem faz os incêndios avançarem ainda mais. A falta de chuvas ajuda na propagação do fogo subterrâneo, o que, segundo o instituto, só poderiam ser controlados efetivamente por chuvas constantes.
Com a estiagem, a navegabilidade também fica ainda mais prejudicada na região, que carece de estradas. Para ter uma ideia, o nível do Rio Paraguai já atingiu o marco zero em régua de porto em Mato Grosso do Sul, onde o governo federal decretou estado de emergência, assim como em Mato Grosso. No entanto, de acordo com o Observatório do Clima, o Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba de preservação.
Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram, ainda, que o Pantanal sofreu redução de 50% nos registros de chuva em relação à média histórica. De acordo com o órgão, um dos principais indicadores da forte estiagem é o Rio Paraguai, que, segundo levantamento oficial, também atingiu o nível mais baixo desde os anos 1960. Além disso, técnicos reforçam a suspeita de que a propagação dos incêndios pode ter relação com o uso do fogo para fins agropecuários, utilizando-o para limpeza ou renovação da pastagem do gado.
Os efeitos devastadores dos incêndios no Pantanal têm consequências em todo o país, que vem registrando aumento das temperaturas e baixa umidade do ar nos 26 Estados e no Distrito Federal. Em algumas regiões, como no Rio Grande do Sul, já houve chuva preta, consequência da grande quantidade de fumaça das queimadas na atmosfera.
A organização não-governamental Greenpeace, que atua em defesa do meio ambiente, lamentou a destruição do Pantanal e informou, em nota, que o argumento da ministra da Agricultura sobre boi bombeiro foi “equivocado”. Disse, ainda, que o governo promoveu um desmonte na gestão ambiental, o que, conforme acrescentou, provocou as queimadas descontroladas no bioma.
“Diante de um cenário já previsto de seca severa, com focos de calor muito superiores à média desde março de 2019, não foram tomadas medidas efetivas de combate e prevenção aos incêndios, necessárias desde o primeiro semestre. Se não tivesse ocorrido um desmonte da gestão ambiental no Brasil, a situação não teria chegado a este nível de gravidade”, afirmou o Greenpeace na nota. A Presidência da República e os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente não se pronunciaram.
Comissão quer bioma no Conselho Nacional da Amazônia Legal
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) começou a ser pressionado para responder a um requerimento da comissão que acompanha ações contra as queimadas no Pantanal sobre a inclusão do bioma no Conselho Nacional da Amazônia Legal pelos próximos cinco anos. Assim como ele, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foram criticados por especialistas por deferem “mito do boi-bombeiro”.
Em relação ao requerimento da comissão, o colegiado quer que o governo federal assuma sua responsabilidade e garanta uma estrutura de enfrentamento a futuras queimadas no Pantanal. A medida inclui mais recursos financeiros e estrutura logística, com aparato de combate a incêndios, como helicópteros e apoio da Força Nacional e da Defesa Civil.
A ação da comissão também poderá fazer o governo repensar sua defesa sobre o “boi bombeiro” no pantanal, que, segundo ambientalistas, é um mito. Bolsonaro e seus ministros endossam uma tese do agrônomo e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Evaristo de Miranda, que é chefe da Embrapa Territorial. Em entrevista à imprensa, Miranda culpou o declínio da pecuária no Pantanal e a criação de reservas ambientais na região pelo fogo.
“Quando a pecuária declina, por razões econômicas, de competitividade, quando se retira o boi, como se retirou de grandes reservas que se criaram na região, reservas ecológicas, a RPPN [Reserva Particular do Patrimônio Natural] do Sesc Pantanal, o que acontece nesses lugares, tirando o gado e cercando? O capim cresce muito e acumula muita massa vegetal. Na hora em que pega fogo, é um fogo muito intenso”, disse ele.
Pesquisadores ouvidos pela BBC Brasil afirmaram que o gado criado solto ajuda, de fato, a reduzir a quantidade de matéria prima disponível para queima, mas, segundo eles, não é a redução na pecuária que explica os incêndios deste ano. Essa falta de correlação também é apontada em dados da Pesquisa Pecuária Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os rebanhos bovinos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul nas últimas décadas e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Além disso, o rebanho bovino no Pantanal tem aumentado nos últimos anos, ao invés de diminuir. De 1999 a 2019, segundo levantamento do projeto Mapbiomas, a cobertura de vegetação nativa no Pantanal caiu 7%, reduzindo de 13,1 milhões de hectares, para 12,2 milhões de hectares. “Já a área de pastagem exótica cresceu 64% sobre áreas naturais, passando de 1,4 milhões de hectares, para 2,3 milhões de hectares. Nesse mesmo período, o rebanho de bovinos no Pantanal aumentou 38%, de 6,9 milhões para 9,58 milhões de cabeças”, afirmou o coordenador de inteligência territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), Vinícius Silgueiro, à BBC Brasil.
Cinzas de animais deixa fauna enlutada
Animais mortos pelos incêndios no Pantanal têm suas amostras coletadas por força-tarefa que busca levantar o impacto das labaredas na fauna. Animais menores, como pequenos mamíferos e serpentes, foram carbonizados facilmente em razão de terem deslocamento curto e lento. Também já foram encontradas cinzas de jacarés, onças e antas.
O Pantanal tem cerca de 2 mil espécies de plantas, 580 de aves, 280 de peixes, 174 de mamíferos, 131 de répteis e 57 de anfíbios. O número de invertebrados é desconhecido. O bioma também é refúgio para espécies ameaçadas de extinção que vivem em outras regiões. Considerando levantamentos anteriores, o projeto Bichos do Pantanal estima que entre 30% e 35% das espécies de flora e cerca de 20% de mamíferos foram atingidos pelos atuais incêndios.
Os animais de maior porte têm maior chance de fugir. Se não forem cercados pelas chamas ou queimados nas patas pelo fogo que arde por baixo da vegetação, conseguem ir para áreas úmidas ou próximas aos rios. No entanto, em áreas em que há pouca água, praticamente nenhuma espécie consegue escapar.
Além de ter representantes do projeto Bichos do Pantanal, a força-tarefa conta com apoio da ONG Panthera, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e do Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal (INPP).
Também participam dos trabalhos profissionais do Instituto Homem Pantaneiro, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre outras instituições. A unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) do Pantanal tem atuado na elaboração dos protocolos e na análise dos dados coletados.