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Política Democrática || Lilia Lustosa: Oscar 2020 - Cheiro de esperança no ar?
Apesar da ausência de ausência de mulheres e negros indicados nas categorias principais do Oscar 2020, Hollywood começa finalmente a abrir os olhos para o que acontece longe de seu umbigo e começa a se dar ao trabalho de ver filmes com legenda, avalia Lilia Lustosa
De todos os Oscares a que já assisti, creio que esse foi o que me deixou mais satisfeita, apesar da “derrota” brasileira (documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa) e da tão falada ausência de mulheres e negros indicados nas categorias principais. Uma falha grande da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana, sem dúvida, mas que acabou surpreendendo pelo número de mulheres que subiram ao palco: Hildur Guonadóttir, trilha sonora; Jacqueline Durran, figurino; Nancy Haigh e Barbara Ling, direção de arte; Karen Rupert Toliver, curta de animação; Carol Dysinger e Elena Andreicheva, curta documentário etc. Uma prova de que a indústria cinematográfica já foi ocupada por elas. Com Oscar ou sem Oscar! O mesmo não pode ser dito, no entanto, dos negros, que tiveram participação ínfima na premiação deste ano, numa marca evidente de retrocesso em um campo já tantas vezes discutido e que, por algum tempo, tivemos a ilusão de ter avançado.
Ainda assim, diante do grande vencedor da noite – Parasita, do coreano Bong Joon-hoo –, terminei de assistir à cerimônia com a impressão de que Hollywood começa finalmente a abrir os olhos para o que acontece longe de seu umbigo… ou, como disse o próprio Joon-hoo no Globo de Ouro mês passado, começa a se dar ao trabalho de ver filmes com legenda!
A mudança vem sendo sutil. No ano passado, Roma (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, falado em espanhol, já havia surpreendido ao ser indicado em 10 categorias, entre elas melhor filme estrangeiro e melhor filme, o que gerou certa polêmica. Spielberg chegou a se pronunciar, alegando que produções feitas para plataformas de streaming (no caso, a Netflix) não deveriam concorrer ao Oscar. Mas Roma acabou ficando com 3 prêmios importantes: melhor filme estrangeiro, melhor fotografia e melhor diretor, perdendo, porém, o prêmio maior da noite. Neste ano, a façanha se repetiu com o coreano Parasita que, indicado em 6 categorias, acabou sendo o grande vencedor, levando merecidamente 4 estatuetas – melhor roteiro original, melhor diretor, melhor filme internacional e melhor filme –, derrubando o favorito 1917, do inglês Sam Mendes, que, diga-se de passagem, é o clichê, do clichê, do clichê do filme de guerra hollywoodiano. 1917 foi premiado no que tinha de bom: diretor de fotografia, mixagem de som e efeitos visuais. Justo!
Outro sinal de mudança na Academia foi a sutil troca de nomes na categoria de filmes falados em língua estrangeira, que passou a se chamar “Melhor filme internacional”, e não mais “Melhor filme estrangeiro”. Ora, “estrangeiro”, além significar “cidadão de outra nação”, também pode ser entendido como alguém ou algo que não pertence, algo estranho àquele lugar. O que até então parecia ser de fato a norma em Hollywood. O que estaria por trás de tal mudança? Algum conluio político? Lobby empresarial? Uma mensagem para Trump em ano de eleições? Pode ser. Mas, independentemente disso, Parasita ganhou porque merecia, porque reunia todas as qualidades de uma grande obra cinematográfica (roteiro original, bela fotografia, primorosas montagem, direção, atuação, etc.). Ou seja, ganhou porque é bom, não porque é coreano! Porém, ao laurear um “estrangeiro” com seu prêmio máximo, os norte-americanos dão ares de finalmente estar entendendo que já não há mais espaço para fronteiras (nem muros) neste mundão de meu deus. Somos todos cidadãos de um mesmo planeta, com sofrimentos, angústias, alegrias e anseios semelhantes. A tendência, a meu ver, é que em breve o “internacional” saia de cena, deixando a categoria de “melhor filme” aberta a todas as nações. E quem sabe não surja a categoria “Melhor filme norte-americano” para premiar as produções locais, como já acontece em prêmios da importância de um BAFTA, maior premiação inglesa. Me parece muito mais apropriado a essa aldeia global em que vivemos.
Nos prêmios para atriz, ator e coadjuvantes, não houve muita surpresa. Joachin Phoenix e seu Coringa estavam imbatíveis; Renée Zellweger e sua Judy estavam em tão perfeita simbiose, que em nenhum momento lembrávamos de que um dia ela fora Bridget Jones… Brad Pitt também excelente no seu papel de dublê, aliás, um riquíssimo personagem criado pelo grande Tarantino. Laura Dern foi a única que não me convenceu! Achei sua interpretação exagerada, beirando o caricato, o que não combina em nada com o estilo do excelente e sensato História de um Casamento, de Noah Baumbach. Sua parceira de cena, Scarlett Johansson, duplamente indicada em 2020 (melhor atriz e melhor atriz coadjuvante), poderia ter ficado com esse prêmio por seu extraordinário desempenho no belo e original Jojo Rabbit, de Taika Waititi.
Triste foi ver O Irlandês, com tantas nomeações (10, no total), sair de mãos vazias. Dificilmente veremos um elenco de tamanho peso reunido em outro filme dirigido por um mestre do porte de Scorsese. Seria esse um outro sinal de que Hollywood está querendo se abrir para o novo? Ou seria esta não-premiação às produções Netflix uma outra mensagem da indústria do cinema para as plataformas de streaming? De toda maneira, a duração exagerada do filme (3 horas e meia) deve ter contribuído para essa derrota. Fora, claro, o excelente nível dos competidores.
Para muitos brasileiros, a grande decepção foi mesmo termos voltado para casa sem a estatueta de melhor documentário. O vencedor foi Indústria Americana, de Julia e Jeff Reichert, produzido por ninguém mais, ninguém menos do que o casal Obama. Um sobrenome de peso que certamente ajudou muito o filme a se sair vitorioso, sobretudo em ano de eleições. Sinal de enfraquecimento de Trump? Talvez. Mas, deixando outra vez a política de lado, o filme não deixa por isso de ser merecedor do prêmio recebido. Com uma produção impecável, Indústria Americana é muito bem filmado e montado, narrando um problema pra lá de atual, que afeta trabalhadores do mundo inteiro: a desumanização das empresas, a redução no número de empregos ofertados, a ambição desenfreada dos empregadores, o enfraquecimento dos sindicatos, a luta pelos direitos trabalhistas etc. Tudo isso mostrando ainda o choque cultural entre China e EUA. Um prato cheio para a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que poderá usá-lo como inspiração para o desenvolvimento de projetos vindouros.
Nosso Democracia em Vertigem, por sua vez, apesar de tratar de um tema que também está na ordem do dia, é um filme bem mais pessoal, narrado em primeira pessoa, contando a história de nossa jovem democracia, desde o fim da ditadura militar até os dias de hoje, já na era Bolsonaro. Uma história que se confunde com a própria história de vida da diretora Petra Costa, nascida em 1983, o que não diminui em nada o valor do filme. Ao contrário, o fortalece, tornando-o mais próximo de nós e talvez, por isso mesmo, mais verdadeiro. Vide o também indicado Para Sama, documentário sírio belíssimo, extremamente duro de ver, em que a diretora Waad Al-Kateab faz uma espécie de diário para sua filha Sama, que nasceu em meio a bombas, mortes e ruínas, contando a história de sua vida em pleno cerco à cidade de Alepo. Filme de um realismo assustador, mas que tem, ao mesmo tempo, a delicadeza e a grandeza de um amor de mãe.
Democracia em Vertigem perde um pouco da força na hora em que toma partido pela versão do “golpe” contra a presidente Dilma, já mais para seu final. Talvez um final aberto, que deixasse ao espectador o trabalho (e o direito) de tirar suas próprias conclusões sobre a História, teria fortalecido a narrativa de Petra. Um dos grandes trunfos de Parasita, aliás! Mas, claro, não há obra de arte sem viés, sem subjetividade, afinal ela está no cerne de tudo que fazemos, dizemos ou escrevemos. No entanto, ao tomar partido, assumimos o risco da crítica dos contrários. E isso tem um preço!
Apesar de Para Sama ter-me tocado mais, torci muito para nosso cinema brasileiro sair premiado. Seria mais uma prova de nossa força criativa, como foram os prêmios dados a Bacurau e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão em Cannes no ano passado. Ao mesmo tempo, acredito que estar ali, em pé de igualdade com os gigantes da indústria cinematográfica, já seja por si só um prêmio! Um lembrar que nós fazemos parte do mapa geográfico do cinema, e não mais como os bons selvagens colonizados de outrora, mas como uma nação que luta, que acerta, que erra e sofre para erguer sua cinematografia, sua arte e para consolidar sua democracia. Sim, definitivamente há cheiro de esperança no ar…
Política Democrática || Reportagem Especial: Governo Bolsonaro privilegia pauta de costumes e emplaca discurso de ódio
Presidente foca na intimidade das pessoas para aprofundar polarização; STF e Congresso atuam para frear radicalismo
Por Cleomar Almeida
Guerra às minorias, sustentadas em discursos e práticas de ódio, tem se fortalecido no Brasil, assim como pautas de costumes altamente conservadores do governo de Jair Bolsonaro, o primeiro presidente de extrema direita desde a volta da democracia no país, em 1985. Hostil à esquerda, ele tem um mandato tomado por polêmicas, mas encontra, no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF), obstáculos a seus atos ainda mais radicais, conforme avaliam especialistas ouvidos pela revista Política Democrática online.
Até a democracia tem perdido força no governo Bolsonaro. Desde que assumiu a presidência, caiu de 69% para 62% o apoio da população ao regime político do Brasil, aponta pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada no início deste mês. Por outro lado, segundo o levantamento, manteve-se em 12% a porcentagem dos que apostam na ditadura como a melhor saída para o país, em determinadas circunstâncias.
Professor de comunicação política, eleições e análise de dados na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Felipe Nunes diz que “Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro a incluir a pauta de costumes e valores na política nacional”. “Ele é o primeiro eleito para o cargo com temas que dizem respeito a valores cotidianos, de dentro da casa das pessoas. Isso significa uma quebra de paradigma muito grande. Talvez por isso os políticos brasileiros tenham dificuldade de fazer oposição efetiva ao governo”, afirma o pesquisador.
PhD em ciência política e mestre em estatística pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), Nunes está produzindo livro sobre a eleição de Bolsonaro em 2018 e reforça que o presidente infla discussões sem caráter técnico, informações e evidências. “Ele move polêmicas pautadas no desejo, no gostar das pessoas, nas preferências mais íntimas que elas têm. As pessoas passaram a discutir política de forma não mais objetiva, mas totalmente emocional, cada uma tentando confirmar aquilo em que já acredita”, observa.
É nesse cenário que ganha força a pauta dos costumes de Bolsonaro, que, de acordo com a socióloga e psicanalista Almira Rodrigues, representa um conjunto de propostas sobre práticas e instituições sociais. Envolve, segundo ela, a tentativa de restrição do entendimento de família à união de homem e mulher; a proposta de diminuir as possibilidades de realização do “aborto legal” (previsto para os casos de risco à vida da mulher, gravidez fruto de estupro e feto anencéfalo); e o combate aos estudos de gênero e à defesa da diversidade sexual e de gênero, batizados pelo governo como “ideologia de gênero”.
“É uma pauta tradicionalista, fortemente embasada em valores moralistas e religiosos, que busca estender a cidadãos e cidadãs os valores de alguns setores políticos, mediante a aprovação de legislação e implantação de programas governamentais”, avalia a socióloga. Ela explica a diferença do discurso de ódio. “Este tipo de discurso aponta para uma visão monolítica e intolerante, expressando o não reconhecimento da alteridade, dos outros”, acentua.
Segundo a psicanalista, o discurso de ódio visa a extinguir o outro. Tem se apresentado, basicamente, como machista, racista, homofóbico e transfóbico. “Este discurso, que se instaura em nível da palavra e das mentalidades, ganha concretude transformando-se em atos de violência, particularmente contra determinados grupos sociais”, diz ela, citando, como exemplo, mulheres, negros, povos indígenas, população sem teto e a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexos e mais (LGBTI+).
Na constante queda de braço com as demais instituições da República, Bolsonaro encontra freios para suas posturas mais radicais. O STF, por exemplo, tem garantido importantes direitos à população LGBTI+ nos últimos anos, como casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção de crianças por casais homossexuais, mudança de nome na certidão de nascimento para as pessoas trans e criminalização da homofobia e da transfobia.
Além disso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, neste mês, uma resolução que regulamenta o cuidado específico de pessoa transgênero, revogando resolução anterior, mais restritiva. O documento amplia o acesso a atendimentos de saúde por parte de pessoas com incongruência de gênero e a procedimentos para adequação de sexo na rede pública
O Congresso Nacional, onde Bolsonaro não tem maioria, é outra instituição que tem freado as ações do presidente que tem mais vetos derrubados pelo parlamento desde 1988. Nos primeiros nove meses de mandato de Bolsonaro, os congressistas rejeitaram, total ou parcialmente, 8 (24%) dos 33 vetos presidenciais analisados no período. De 1988 a 2014, apenas oito proposições vetadas foram rejeitadas pelo Congresso.
Além disso, Bolsonaro também tem legitimado a destruição de políticas ambientais e os retrocessos nas áreas de educação, cultura e direitos humanos, assumindo um forte enfrentamento ideológico a tudo que rotula como de esquerda e socialista.
Em uma das maiores polêmicas do governo Bolsonaro em janeiro, o Brasil viu o então secretário nacional de Cultura, Roberto Alvim, fazer um discurso com frases semelhantes às do ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Goebbels, no governo nazista. Goebbels era antissemita radical e foi um dos idealizadores do nazismo. A repercussão desastrosa levou o presidente a demiti-lo no dia seguinte. O Ministério Público Federal (MPF) defende a anulação de todos os atos de Alvim à frente da pasta.
“Programas implementados em gestões anteriores passam a ser desmontados e extintos, apesar de sua contribuição social”, analisa a socióloga Almira. Apesar do panorama nacional, ela entende que ainda existe um pacto social de respeito às leis e às instituições e de aceitação das normas básicas de convivência pela maioria da população. “É de extremo valor o fato de que são muitos os movimentos de luta e inúmeras as iniciativas em prol de um Brasil democrático, justo e fraterno”, ressalta ela.
Daqui em diante, Bolsonaro terá de oferecer à população muito mais do que mostrou até agora, segundo o professor da UFMG. “Embora a eleição tenha sido em torno dos costumes, o que vai definir o sucesso do governo, ou não, é a pauta econômica. Se conseguir ter resultados econômicos expressivos, quando isso se associar à pauta de costumes, ele terá resultado mais expressivo”, afirma, para continuar: “No entanto, se os resultados não vierem, a pauta de costumes não será suficiente para convencer a maioria da sociedade e, por isso, manterá unida apenas a base eleitoral mais próxima. Para ganhar uma eleição de novo, ele terá de mostrar resultados econômicos”.
‘Ódio é instrumento de governo’, critica juiz de Santa Catarina
Violência e ameaças cotidianas têm ganhado ainda mais força com a legitimação do discurso de ódio disseminado na sociedade pelo governo de Jair Bolsonaro e também atingem pessoas que atuam como braço do Estado. É o caso do juiz da Vara de Execução Penal de Joinville, a 180 quilômetros de Florianópolis, João Marcos Buch. “O ódio é um instrumento de governo. As pessoas perderam a vergonha de defender tortura”, afirma.
Bolsonaro não se intimida, em nenhum momento, de fazer apologia à tortura. No ano passado, o presidente chegou a elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – reconhecido pela Justiça como torturador da ditadura militar –, chamando-o de “herói nacional”
Com o atual governo, de acordo com o magistrado, há um acirramento do discurso de ódio com escolhas pontuais e especificas de quem são os alvos. “São as minorias, além de pessoas presas e quem trabalha com essas pessoas a fim de garantir dignidade”, diz Buch. “No ano de 2019, essa situação ficou mais acentuada porque tive experiências concretas”, conta ele, que é conhecido pelo seu perfil humanista.
Em um dos casos mais recentes, em dezembro, o juiz estava dentro de um tradicional bar da cidade, acompanhado de amigos, quando um homem, do lado de fora, passou a dizer a terceiros: “Vou colocar esse juiz de bandidos no lugar merecido”. O autor das ameaças foi retirado do local por outras pessoas, sem conseguir se aproximar de Buch. Ele, que quase foi agredido, soube do fato somente dias depois quando seus amigos lhe contaram.
“Posso contar nos dedos as vezes que, em 25 anos de magistratura, fui ameaçado. Já usei de escoltas, sempre a partir de decisões judiciais que tomei e que geraram reações ofensivas logo debeladas. Nunca antes, entretanto, estive tão próximo de ser agredido pela exclusiva condição de ser um juiz da execução penal que aplica a Constituição”, lamenta o magistrado.
Buch não questiona a legitimidade da eleição de Bolsonaro e ressalta que atos governamentais devem ser respeitados. Segundo ele, os cidadãos que discordarem do governo têm instrumentos democráticos para resolverem as discordâncias. “No entanto, percebo, no governo Bolsonaro, um discurso absolutamente consciente de escolha de pessoas para as quais quer voltar o ódio da sociedade”, afirma.
“Quando o maior governante do país diz que ‘bandido bom é bandido morto’ ou dá licença para a polícia matar, sinto o conflito no ar quando vou a um presídio. La é diferente, não tem lei, não tem Constituição, é selvageria e violência”, diz o magistrado. Ele destaca a importância de seguir a lei e garantir dignidade a todas as pessoas, independentemente da condição delas.
População LGBTI+ reage aos ataques de Bolsonaro
O coordenador nacional da Diversidade do Cidadania 23, Eliseu de Oliveira Neto, diz que o presidente Jair Bolsonaro “é o líder dos ignorantes” e instiga as pessoas a praticarem violência contra minorias, entre as quais lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexos e mais (LGBTI+). A educadora social e mulher trans Rubi Martins do Santos Correa reforça: “Os ataques às minorias são legitimados pela maior autoridade do país”.
Eliseu alerta para o que ele chama de “efeito manada” do governo Bolsonaro, referindo-se à capacidade de grupos carregados de ódio e preconceito, como homofóbicos, machistas, feminicidas e racistas, contaminarem outra parcela da população. “Esses grupos se sentem empoderados, representados, e, dessa forma, acabam convencendo pelo ódio outras pessoas que estavam sem opinião formada, no ‘meio do caminho’ e que poderiam ser conscientizadas de forma pedagógica”, lamenta ele, que já foi vítima de homofobia mais de uma vez.
A população LGBTI+ reconhece que sempre sofreu violência e teve de se organizar em movimentos político-sociais para terem seus direitos reconhecidos. No entanto, de acordo com Rubi, Bolsonaro “legitima atos violentos contra as minorias”. “Isso dá certa autonomia para as pessoas destilarem os seus preconceitos. Elas se sentem no poder de praticar violência porque até o presidente naturaliza isso”, assevera a educadora social, que também coordena um trabalho junto à população em situação de rua e extrema vulnerabilidade no Distrito Federal.
Como também tem dificuldade de articulação no Congresso, Bolsonaro ocupa o tempo se envolvendo em polêmicas sustentadas em pauta sobre moral e costumes. “É a pauta dos conservadores”, afirma. “Bolsonaro é um homofóbico que não tem pudor de colocar as pessoas em risco e de mentir para se manter no poder”, acrescenta.
A educadora social destaca que, ao contrário do que parte da população brasileira pensa, “Bolsonaro não é burro”, mas sabe bem endossar seu discurso para atingir o que pretende. “Não é burrice. Ele tem maldade. São questões pessoais e mal resolvidas dele e que são usadas para atacar os outros. É um ódio gratuito contra minorias”, lamenta ela.
Otimista, Rubi mobiliza a população para não se marginalizar e se oprimir diante das práticas do governo Bolsonaro. “Somos um país de pessoas resistentes. Temos gays em todos os lugares”, acentua. “Temos que empoderar a população LGBTI+ e as outras minorias para ocuparem os espaços na sociedade. O empoderamento é chave para as minorias atuarem como sujeitos de direitos e deveres. Não sei quanto tempo vai levar, mas um dia chegaremos lá”, afirma ela.
Política Democrática || Juan del Alcázar: Ganhou o Brexit. Falta reforçar a União Europeia
Com a proximidade do desfecho do Brexit, integrantes da União Europeia devem tomar medidas para reforçar as instituições continentais e, ao mesmo tempo, cobrar-lhes mais presença, eficiência e maior implantação no dia a dia dos cidadãos
Depois da vitória esmagadora de Boris Johnson e do Partido Conservador nas eleições britânicas, e estando próximo o desfecho do Brexit, com prejuízos incalculáveis para todos, os europeus convencidos deverão tomar medidas para reforçar as instituições continentais e, ao mesmo tempo, cobrar-lhes maior presença, maior eficiência e maior implantação no dia a dia dos cidadãos da União.
A Europa, mais concretamente o território da União Europeia, é a região mais habitável do planeta Terra, e com diferenças, como o verificaram todos e cada um dos que viajaram a qualquer outro continente nas últimas décadas. Considerando a segurança na cobertura social e a cultura de liberdades individuais como parâmetro, a Europa permite – a despeito de todos os problemas que comporta, que não são poucos – uma qualidade de vida a seus cidadãos superior à de outras regiões. Infelizmente, como deixaram patente as últimas eleições britânicas – além dos resultados tanto para a Escócia como para a Irlanda do Norte – a ideia da unidade europeia não é tão hegemônica como nos conviria.
Essa unidade é necessária, imprescindível, e não só para os cidadãos. Fez-se evidente na Cúpula do Clima, reunida em Madri, apesar dos desacordos sobre a obrigação de endurecer a redução de emissões. Também o será na hora de negociar com Londres as condições da saída da EU. E, além de temas concretos, por mais relevantes que sejam, e o são, sem dúvida, a unidade dos europeus é imprescindível para evitar que os gigantes que disputam o controle do planeta – Estados Unidos, Rússia, China e, em menor escala, Índia – nos conduzam ao desastre total.
Malgrado as fortes tensões endógenas e os inimigos internos e externos, que esfregam as mãos cada vez que a União Europeia exibe sintomas de debilidade, os europeus temos a obrigação de nos entendermos, e não só por razões culturais ou econômicas. A Europa, assolada por duas guerras totais no século XX, com uma longa história de enfrentamentos brutais entre os territórios que a integram, ainda é a região do mundo em que se alcançaram os mais altos níveis de liberdade individual; cujos Estados lograram assegurar a mais elevada capacidade redistributiva da riqueza; a região que estabeleceu as mais altas quotas de proteção social; a que atingiu os mais altos níveis de segurança pessoal; a que manteve o Estado mais emancipado do confessionismo religioso.
A União Europeia é, indiscutivelmente, o marco jurídico e legal mais adequado, mais operativo, para resolver problemas internos dos diversos estados nacionais e plurinacionais, como é o caso da Espanha. Tendo a Europa como perspectiva, torna-se mais tangível uma compreensão mais objetiva dos problemas internos de cada país, na medida em que as instâncias ou instituições que os forem resolver não estão maculados por interferências, imposições, obstrução ou má vontade dos diretamente afetados por eles.
A Grã-Bretanha partirá logo; abandona a União Europeia. Teremos de negociar essa saída, e parece que, com a nova composição do Parlamento das Ilhas, será mais fácil celebrar acordos bilaterais, mas será necessário que a União Europeia tenha uma única voz. Teremos também de observar com atenção o que ocorrerá particularmente com a Escócia, bem como na Irlanda do Norte, que votaram em um sentido diferente dos que apoiaram o Brexit.
Em relação ao ocorrido com a Grã-Bretanha, temos, ainda, de ser conscientes de que, dentro da União Europeia, há muitos inimigos que a desestimam, em especial a extrema direita populista, xenófoba e racista. Devemos, também, reconhecer que interesses poderosos, de Washington a Moscou, tudo farão para fortalecê-los. Temos, portanto, não só de não baixar a guarda, mas também fortificar a Europa, unir a Europa, construir mais Europa.
É um momento de fato difícil, mas é em tempos complexos que se tem de demonstrar fortaleza. Há importante déficit de liderança na Europa, sobretudo se recordarmos os líderes que tivemos no passado. Mas, em momentos como o atual, os cidadãos devem assumir suas responsabilidades e saber transmitir aos mais variados dirigentes políticos que não nos resta outra opção do que a Europa, a Europa e a Europa. Agora, que a União sofreu o golpe do Brexit, é exatamente quando devemos reforçá-la. Temos muito em jogo.
*Catedrático em História Contemporânea da América Latina da Universidade de Valencia, Espanha. Autor de diversos livros, dentre eles, Política y utopia en América Latina - las izquierdas en su lucha por un mundo nuevo (Tirant humanidades, València, 2019). Dirige o Blog “El cronista periferico” (elcronistaperiferico.blogspot.com).
Política Democrática || Entrevista Especial - Cristovam Buarque: 'Nós falhamos'
Em entrevista à Revista Política Democrática Online, Cristovam Buarque fala de seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018”, dos erros cometidos pela esquerda que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro e os novos caminhos que os democratas progressistas precisam traçar para mudar o país
Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida
Cristovam Buarque (Cidadania) é o entrevistado especial desta 15ª edição da Revista Política Democrática Online. Ex-ministro da Educação do governo Lula e ex-senador pelo Distrito Federal, ele comenta sobre seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018” o que considera os principais erros do bloco progressista. Para Cristovam, foram 24 desacertos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Para Cristovam Buarque, que preside o Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), a esquerda brasileira está nocauteada, correndo o risco de se diluir ainda mais na corrida eleitoral deste ano e o bloco progressista - que reúne PSDB e PT, entre outros partidos — ainda não conseguiu se unir em torno de um projeto de país e cedeu à corrupção. "Se nós pretendemos traçar um caminho novo para o Brasil, temos que descobrir como nos juntarmos nesse bloco. O primeiro erro que eu coloco foi a divisão PSDB e PT. Não tem razão ideológica profunda para essa ruptura", acredita.
Educação e seu papel na construção do país, bem como os rumos da democracia no Brasil, também estão entre os temas tratados por Cristovam Buarque na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Revista Política Democrática Online (RPD): Seu próximo livro tem como título Por que falhamos? De 1992 até 2018. O texto já está disponível na internet, cuja versão em inglês sairá proximamente, e a em português, provavelmente pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Como tudo isso aconteceu.
Cristovam Buarque (CB): Este livro realmente tem uma história. Logo depois das últimas eleições, fui convidado pelos organizadores de um seminário na Universidade de Oxford para participar de uma discussão sobre o Brasil. Queriam que eu explicasse a vitória de Bolsonaro. Respondi que preferiria falar sobre como nós perdemos. Eles aceitaram. Preparei, então, um texto de cerca de 30 páginas, fiz a apresentação, à que se seguiu um debate e, na volta ao Brasil, comecei a trabalhar no livro. Demorou, mas já fiz circular uma versão do texto, que, agora, está consolidada em um pequeno livro, publicado só em e-book, que eu mesmo banquei e distribuí gratuitamente. No dia 7 de fevereiro, estarei de novo em Oxford, para participar do lançamento da versão em inglês do livro, a ser comercializada pela Amazon, e que terá outro título: Como a esquerda elegeu a direita no Brasil. Achei que ficava mais internacional. Quanto à versão impressa, também já estamos cuidando dela. Se puder ser pela FAP, melhor.
RPD: Logo no primeiro parágrafo de seu livro, você afirma: “Ao invés de aproveitarmos o colapso do comunismo para criar um novo modelo progressista e democrático..., fracassamos ideológica, política, econômica e moralmente. A ponto de o eleitor nos repudiar e preferir... um presidente nostálgico das maldades e do atraso da ditadura. Mais grave é que insistimos em não reconhecer nossos erros”. O senhor poderia ampliar um pouco essa reflexão?
CB: No curso da campanha em que perdi, agora em 2018, eu estava em Taguatinga, no chamado corpo a corpo. Um senhor, de uns 50 anos olhava tudo ali de longe. Fui apertar a mão dele, quando ele me disse: “Você tem consciência que você é o melhorzinho aqui entre os candidatos?” Eu ri e, cheio de mim, acrescentei: “Pois, então, que me ajude nessa campanha que não está fácil“. Ele esclareceu: “Eu não disse que vou votar em você, disse que era o melhorzinho, mas eu não quero saber se vai ser melhor ou pior, eu quero outro. Você já está aí tempo demais.”
Percebi que nós tínhamos esgotado um ciclo, e que a população se cansara desse ciclo e queria outro. Esse outro foi Bolsonaro. Porque os demais pareciam todos ser do mesmo bloco, que chamo de democratas progressistas, aqueles que lutaram contra o regime militar e que têm nuances progressistas, na economia, na justiça social, nos costumes. Por isso, concentrei-me de Itamar a Temer; não coloquei Sarney e o Collor, porque, acho, estavam mais ligados ao regime militar, até quando romperam com os militares e, portanto, não fizeram parte do bloco democrático, tampouco do bloco progressista. Senti que a população brasileira queria outro. Tanto que o último capítulo do livro é a ideia do outrismo. Nosso fracasso criou uma ideologia que é a ideologia outrista. A população quer outro.
RPD: Quem são o “nós” a que você se refere no livro? É uma definição controversa, que muita gente não aceita, não é?
CB: A crítica mais comum ao livro é essa. Claro, toda classificação é arbitrária, inclusive a definição de progressista, de democrata. Escolhi cinco presidentes e seus governos. Coloquei um “nós”. E a classificação foi de democratas e progressistas. Não se trata de uma classificação científica; antes, uma classificação arbitrária. E a maioria recusou. O PT não aceita. Está furioso porque acha que o livro está criticando só ele. Porque para ele só existem eles. E muita gente do PSDB reclama: “Nós não fomos irresponsáveis fiscalmente.” É verdade. O Lula tampouco foi.
Falo de bloco. Por exemplo, o bloco dos autoritários não engloba todos os militares, porque nem todos o são. Os quatro presidentes militares tinham muita diferença entre eles. Mas essa foi a primeira reação contra o livro, por isso eu começo explicando quem somos nós.
A gente precisa trazer a ideia da autocrítica e não da crítica aos outros. Para fazer uma autocrítica, você tem de se incluir. Nunca fui acusado de corrupção, mas nós, o bloco, tivemos tolerância com a corrupção. Não cometemos todos esses erros, mas, como bloco, cometemos.
Se pretendemos traçar um caminho novo para o Brasil, temos de descobrir como nos juntarmos nesse bloco. O primeiro erro que aponto foi a divisão PSDB e PT. Não tem razão ideológica profunda para essa ruptura. Até os programas sociais foram convergentes. Fernando Henrique lançou o Bolsa Escola, Lula não mudou a posição dele. Aliás, o próprio Bolsonaro está mantendo. A oposição entre PSDB e PT, dois partidos paulistas, centrava-se na eleição do prefeito de São Paulo. Em vez de discutirem uma estratégia comum para o Brasil, cuidavam em destruir o outro no pleito paulista. Nós precisamos descobrir o “nós” que nos unirá, quando descobrirmos onde erramos. Esse é o desafio.
RPD: Mas, em alguns casos, o preço a ser pago pelos erros não confunde com a dinâmica natural da política de alternância de poder, como ocorreu, entre outros, com Felipe González na Espanha, ao tentar a reeleição pela terceira vez?
CB: Se o bloco democrático progressista não estivesse errado, a alternância de poder poderia ter sido com um dos candidatos desse bloco. O bloco é composto por forças diversas, mas, ainda assim, integradas em um bloco. Nas últimas eleições, Marina era desse bloco. Alckmin, Haddad, Meireles e Ciro também. Aliás, os petistas quando falam do livro alegam que Itamar era golpista, portanto não pertencia ao bloco. Itamar foi 12 anos vice-presidente do PT, como não era do bloco? Volto a afirmar: se tivéssemos acertado, a alternância teria beneficiado um de nós. E o que aconteceu foi o oposto completo. O Aznar, com todos seus defeitos, não era franquista. Mas Bolsonaro é um nostálgico da ditadura. A ditadura não voltou na Espanha quando a população se esgotou dos socialistas.
RPD: Seu livro trata também da educação, tema que lhe é tão caro. Existiria uma solução nacional para a educação do Brasil, considerando que somos um país continente, com disparidades sociais e culturais gritantes?
CB: Só vai existir solução para nossa educação se for nacional. É uma estratégia que pode demorar 30 anos, a Coréia demorou até mais. Temos de substituir esse sistema municipal, velho, carcomido e incapaz de ser recuperado, por um sistema federal. O processo será lento e por cidade. Não acredito que a saída seja fechar a escola municipal e abrir escola federal, mas o governo federal deve adotar a educação e todas as crianças de uma cidade. Uma depois a outra. Não há dificuldade em substituir o sistema municipal pelo federal em 100, 150, até 200 cidades pequenas por ano, desde que tenha uma carreira nacional do magistério. Abrir o concurso, começar a formar esses professores com salário bastante elevado, para poder atrair bons quadros, construir novos prédios, porque os que estão aí não têm condições, equipar com o que os alunos hoje gostam, celular, computador, e em horário integral. Isso dá para fazer em uma estratégia de médio e longo prazo, respeitando os limites fiscais do Estado.
RPD: O mesmo programa seria idêntico para o Piauí e São Paulo?
CB: Em qualidade, mas não em conteúdo. Temos de federalizar com descentralização na base. Hoje a gestão é do prefeito. Defendo que a gestão seja da escola. Como é na Finlândia. Cada escola se auto gere. Mas a carreira do professor será uma só em todo o país. O professor que vai dar aula no Piauí passou em um concurso nacional, como ocorre no Banco do Brasil, na Caixa Econômica, no Ministério Público, no Itamaraty, no Exército. Descentralizar. E liberdade pedagógica para o professor. Eles darão a aula que quiserem. O salário inicial seria de 15 mil reais por mês, mas a nova estabilidade não poderá ser plena. Haverá o que chamo de estabilidade responsável. Periodicamente, uma avaliação, cujos termos seriam previamente definidos com os próprios professores, conferirá o atingimento de metas. Em caso de resultado insatisfatório, o professor teria de ser afastado.
A verdade é não soubemos substituir a bandeira do socialismo estatal, do socialismo de até os anos 70, por uma nova utopia, no sentido mais realizável do conceito, uma utopia que incluísse três aspectos fundamentais: a democracia, o meio ambiente e a educação. Claro, com uma economia eficiente. Nós deixamos de pertencer ao bloco de países que em trinta anos seria um dos campeões mundiais da educação, onde o filho do pobre estudaria na mesma escola que o filho do rico, a exemplo dos países desenvolvidos. Toleramos a ideia de que educação boa é uma coisa de gente rica. Nunca houve um discurso claro de que nós teríamos como meta e, sem demagogia, sentar o aluno rico ao lado do aluno pobre. Quem começou a falar isso? Eduardo Campos, na campanha dele. Li que o Huck estaria dizendo algo semelhante. Mas o Lula e o PT nunca disseram coisa alguma a respeito. O PSDB, tampouco.
Um projeto até mais radical seria, em 30 anos, transformar as escolas em concessão pública, como as linhas de ônibus, que são uma concessão pública, mas operada por uma empresa privada.
RPD: Por não se fala no Brasil em ensino profissionalizante, de tão bons frutos na Alemanha e Suíça?
CB: O Brasil é um país aristocrático, e o título de técnico não dá nobreza. Muitos preferem título de doutor sem emprego do que de técnico em computação com emprego. É a mentalidade brasileira: valorizar a universidade. Foi um dos grandes erros de Fernando Henrique, Lula e Dilma. Nunca buscamos priorizar a educação profissional, nem de base nem profissional, porque não dá voto. Agora, como fazer isso? Defendo há muito tempo que o ensino médio tem de ser de quatro anos, e que todos concluam com um ofício: fotógrafo, auxiliar de gravação, cozinheiro, jardineiro etc. Defendo também que deveria haver uma cota nas escolas de engenharia para quem provém da escola técnica. Hoje tem cota para pobre, negro, índio, por que não para quem seguiu uma escola técnica? É um preconceito que está destruindo a educação e a própria a economia brasileira.
RPD: A educação poderá ser tema da campanha eleitoral municipal?
CB: Não será boa bandeira. Saneamento e saúde vão dominar. Educação não atrai o eleitor, que não consegue ainda explicar como a educação é importante na vida das famílias, a não ser a universidade. Um prefeito que oferecer bolsa para os alunos que passarem no vestibular vai ter mais voto do que o candidato que oferecer escola de bom nível.
RPD: Há semelhanças entre a situação interna no Brasil e a de outros países, onde políticos despontam com discursos como os de Bolsonaro, e onde vem ocorrendo cisões no campo democrático progressista? Em caso afirmativo, o que caberia fazer?
CB: Sou pessimista quanto à capacidade da democracia de cuidar dos grandes problemas da atualidade. A democracia é um sistema nacional que tem de dar respostas imediatas ao eleitor. E hoje a gente vive em um mundo planetarizado, os problemas são planetários e de longo prazo. Vejamos alguns exemplos.
Meio ambiente. Não acho que meio ambiente vai eleger um presidente. Macron está sofrendo porque tentou aumentar o preço da gasolina. O eleitor quer baixar o preço da gasolina, esquecendo que estará agravando o aquecimento global. Vi pela televisão um manifestante em Paris com uma bandeira contra o aquecimento global e outra contra o aumento do preço da gasolina. É como se um vegano reclamasse do aumento do preço da carne.
Outro exemplo: o oceano vai subir tantos centímetros em 100 anos. Vai acabar com o Recife. Mas 100 anos, não tem eleitor que vote pensando em cem anos. Nem 50. Nem 30. Então os populistas irresponsáveis, sem compromisso de longo prazo, vão tender a ganhar a eleição, oferecendo soluções para o imediato.
Falando de rótulos político-ideológicos, o que é mais de direita, defender o meio ambiente ou defender o emprego? O que é mais de esquerda, defender o emprego ou defender o meio ambiente? Para mim, seria defender o meio ambiente, porque tenho sentimento de humanidade. Mas o eleitor comum não pensa assim. Os ecologistas estão comprometidos com o ser humano, não com o trabalhador. Nos tempos de Marx, trabalhador e ser humano eram a mesma coisa, com o trabalhador representando a grande maioria do ser humano. Hoje já não é.
Venho até trabalhado com o conceito de desvalia, mais grave, do ponto de vista humanitário, do que o de mais valia. Na mais valia, o patrão explora, mas pelo menos paga um salário. Na desvalia, ignora. É o pobre abandonado, é o marginal. A esquerda não percebeu a desvalia no discurso teórico, percebeu-a em programas assistenciais, como o Bolsa Família. Não estamos sabendo qual é o programa capaz de casar o humanismo com o eleitor. Por isso, nós, esse bloco, enfrentaremos muitas dificuldades eleitorais.
Tanto mais porque surgem com mais força os extremos. No Brasil, a gente vai passar muito tempo ainda com a polarização PT e Bolsonaro. Por quê? Porque uma das grandes invenções do processo eleitoral democrático é a ideia de dois turnos. Hoje joga-se para emplacar vaga no segundo turno. Vota-se no primeiro turno em quem é mais próximo e, no segundo, em quem é menos distante. Daí tanta gente votar em branco. E tanto Bolsonaro como o PT estão trabalhando para garantir 20, 25 porcento. E os outros não estão conseguindo formular um programa que os unifique, para poder aterrissar na faixa do segundo turno, no lugar de um dos extremos. Caminhamos para favorecer a radicalização.
O que fazer, então? Primeiro, ter paciência. Entender que, mais uma vez voltando a Marx, a superestrutura (as ideias) não passa por cima da realidade. Segundo, torcer para que a pedagogia da catástrofe produza resultados imediatos. Em geral, não produz. A pedagogia da catástrofe só ensina depois que o prédio cai. Se houve aquele ruidozinho na parede, você sente que a coisa está tremendo, mas vai levando. É depois que cai que você vê.
Daí a função do debate, da ampliação do círculo de pessoas com quem se deva conversar, ouvir o que elas têm a dizer, para compor um bloco democrático progressista, mesmo que sua composição seja díspar. O importante é que as forças políticas assim reunidas coincidam em refutar os extremos.
Política Democrática || Sergio Vellozo Lucas: O mundo visto pela Greta
Estamos vendo a realidade de nosso planeta através da sensibilidade e da percepção de uma jovem sueca de 16 anos. Contra ou a favor, estamos vendo o mundo pela percepção de Greta Thumberg, escreve Sergio Velozzo Lucas
Há uma estreita fresta pela qual observamos os acontecimentos do planeta. Cada um enxerga de acordo com seus interesses, referências, crenças ou preferências. De vez em quando, de forma cada vez mais frequente nesses tempos de redes sociais, alguém captura o imaginário da maioria e o mundo se divide em dois: contra ou a favor.
Alguns mais bem informados, ou com a mente mais aberta, têm acesso a uma amplitude de opiniões que permite visão mais precisa dos acontecimentos, mas ver o mundo por uma pequena greta é o máximo da possibilidade cognitiva da maioria dos que entram nessas ondas de paixão e ódio que regularmente invadem as redes sociais. Nesse momento, estamos vendo a realidade através da sensibilidade e da percepção de uma jovem sueca de 16 anos. Contra ou a favor, estamos vendo o mundo pela percepção de Greta Thumberg.
O substantivo greta se funde aqui com o nome próprio Greta, em torno de quem as discussões sobre o meio ambiente giraram desde o ano passado, o que apequenou terrivelmente esse debate.
A maior parte das pessoas que opinam nas redes apenas se comporta como gado atrás da manada, seguindo formadores de opinião que na maioria das vezes passaram menos tempo na escola do que a própria Greta, como ironizou Ricky Gervais, na apresentação do Globo de Ouro deste ano.
Greta é uma adolescente privilegiada: se é autista, se tem habilidades da Síndrome de Savant e é um pequeno gênio, se tem TOC e é obsessiva além da conta, se é manipulada por grupos econômicos e políticos ligados à economia verde, nada disso muda o fato de que o tema do meio ambiente é muito maior do que as alterações de humor e diatribes da Greta. A passionalidade com a qual ela se posiciona contribui mais com o aprofundamento da divisão Nós x Eles do que traz luz ao tema.
É certo que Greta é pró-ciência, eu também, mas será que suas acusações às gerações anteriores e a países em desenvolvimento contribuem mais para a causa da ciência, ou de uma agenda política?
Usar argumentos científicos de forma absoluta, raivosa e dogmática parece muito mais com religião do que com ciência.
Entre os que enxergam o mundo pela Greta estão os que questionam seus críticos perguntando se eles faziam algo mais útil na idade dela. Muita gente fez e faz, mas não dispõe da atenção dispensada à jovem sueca. Greta ficou famosa mais pelo acaso do que por méritos. Qual a grande novidade que existe em jovens acusarem os velhos pelos dramas do planeta? Acontece desde que o mundo é mundo e, de vez em quando, é orgânico e assume grandes proporções, como em 1968, o que definitivamente não é o caso dos protestos liderados por Greta.
Matar aula para protestar? Achar que o mundo está acabando? Não, Greta não trouxe nada de realmente novo, era a menina certa no lugar certo, ela se tornou o símbolo de uma luta legítima, mas também um instrumento político que vai muito além das questões ambientais às quais se dedica.
O fenômeno "Greta" se deve muito menos às manifestações e às qualidades intrínsecas da Greta, do que à conjugação de fatores que contribuíram para amplificar sua voz. A atenção que recebeu da mídia desde o início de sua manifestação tem mais a ver com ela ser sueca, bem-nascida, com pais influentes no universo progressista de Estocolmo e com a demanda internacional em torno desse tema, do que propriamente com a competência ou originalidade da sua fala.
Tudo isso posto, devo dizer que tenho as mesmas preocupações que a Greta e concordo com boa parte do que ela diz, mas acho que, nesse momento, ela ficou maior do que a causa que defende, e a polarização em torno de seu nome nos oferece apenas pequena greta desse grande debate. Há mais pessoas que se alinham ou se opõem automaticamente à figura de Greta do que gente preocupada em discutir em profundidade as questões do meio ambiente.
Precisava de uma garota assim para trazer luz a esse tema, dizem seus admiradores. Será que precisava mesmo? Alguém deu um dedo a mais de atenção para a conferência climática ocorrida em Madri, dezembro passado, ou a mídia preferiu ficar discutindo se a Greta viajou de volta para casa na primeira classe ou no corredor do trem?
Incêndios na Austrália? Por que a Greta não se posicionou? Perguntam os que antipatizam com a Greta, sem atentar para as diferentes causas estruturais dos incêndios que devastam a África, América do Norte e do Sul, além da Austrália.
As redes sociais têm o poder de cristalizar opiniões, através de seus algoritmos que tendem a reunir pessoas que pensam da mesma forma. Greta é mais um elemento a nos dividir em bolhas, de acordo com nosso próprio viés e com a amplitude da greta pela qual conseguimos enxergar o planeta.
Não há dúvidas que ela é uma menina incomum, pode até ter o potencial para se tornar uma liderança mundial efetiva, mas, por enquanto, é mais um produto da agenda politicamente correta, somada à passionalidade das redes sociais, que deram a ela uma atenção muito maior do que merecia e uma dimensão maior do que possui.
Pessoalmente, não pretendo continuar olhando para o mundo através dessa pequena greta.
Política Democrática || Sérgio C. Buarque: Inflexão na trajetória econômica?
Com cerca de 12 milhões de desempregados (11,2% da População Economicamente Ativa) e 4,7 milhões de desalentados, ainda não é possível comemorar a recuperação da economia, iniciada em 2017
Depois da profunda recessão que afundou a economia brasileira, 2019 foi o terceiro ano consecutivo de crescimento econômico, bem modesto, é verdade, mas confirmando a recuperação iniciada em 2017. Dá para comemorar? Não, quando se consideram os quase 12 milhões de desempregados (11,2% da População Economicamente Ativa) e 4,7 milhões de desalentados. Houve pequeno declínio do desemprego em 2019, acompanhado, contudo, da expansão da informalidade e da precarização do mercado de trabalho. Além da persistência do alto nível de desemprego, a economia brasileira terminou 2019 ainda com elevada ociosidade e baixíssima taxa de investimento, apenas 15,5% do PIB (Produto Interno Bruto).
Entretanto, nesse ano de 2019, o Brasil pôde celebrar a queda acentuada da taxa de juros de referência (Selic) ao mais baixo patamar da história e, principalmente, a aprovação da reforma da
Previdência, que alivia a grave crise fiscal do país. A combinação dos dois eventos explica parte do crescimento da economia, embora seus efeitos ainda não tenham sido relevantes neste ano.
A redução da Selic para apenas 4,5% ao ano, com inflação de 3,27% ao final de 2019, deve provocar grande mudança na movimentação das aplicações financeiras, encerrando um longo período do chamado “rentismo”, que se beneficiava de alta rentabilidade no mercado financeiro aproveitando as altas taxas de juros ancoradas em títulos da dívida pública. Além de conter a expansão da dívida pública, uma vez que os títulos públicos lastreados pela Selic representam quase 40% do total, o declínio dos juros de referência leva a uma migração da poupança nacional para ativos reais, como imóveis, títulos de crédito privado, ações e outras aplicações de maior risco, que financiam as atividades produtivas. Ou mesmo para consumo e investimento.
A reforma da Previdência foi o mais importante fato político e econômico de 2019, pelo seu impacto na contenção da escalada explosiva das despesas primárias, que ameaçava provocar o desastre fiscal do Brasil. Se a redução dos juros de referência foi decisão isolada do Banco Central (mesmo considerando as condições macroeconômicas), a reforma da Previdência demandou emendas constitucionais que exigiam aceitação por 3/5 das duas Casas do Congresso, em duas votações, enfrentando a resistência de setores poderosos da sociedade. O presidente atrapalhou como pôde e ainda forçou concessões ao estamento militar, mas a capacidade de negociação do Ministério da Economia e a liderança competente e responsável do presidente da Câmara de Deputados conseguiram vencer a oposição das corporações.
Embora a reforma da Previdência não tenha exercido efeito imediato nas finanças públicas em 2019, o déficit primário da União no ano ficou bem abaixo do esperado, graças a uma série de medidas que permitiram arrecadação extra, como os recursos do leilão de petróleo da cessão onerosa e a receita sobre ganho de capital incidente nas operações de venda de subsidiárias de estatais. O plano de privatizações e concessões públicas foi apenas iniciado em 2019 e seus resultados na expansão dos investimentos privados ainda não foram percebidos no ano.
A economia mundial não ajudou muito na recuperação econômica do Brasil. O comércio internacional, em 2019, cresceu apenas pouco mais de 1,2%, reflexo da guerra comercial entre Estados Unidos e China, e a Argentina, terceiro maior parceiro comercial do Brasil, afundou em grave recessão econômica que travou as importações de produtos brasileiros. O saldo da balança comercial no ano passado alcançou US$ 46 bilhões, o menor resultado desde 2015 (estima-se que a crise da Argentina tenha reduzido em US$ 5,2 bilhões o saldo comercial brasileiro). E o próprio governo Bolsonaro atrapalhou como pôde, com medidas e declarações descabidas e irresponsáveis, que mancharam a imagem externa e as relações diplomáticas e comerciais do Brasil.
Os resultados econômicos, em 2019, constituem inflexão na trajetória da economia brasileira? Claro que não. O crescimento recente da economia será apenas um “voo de galinha” se não forem enfrentados alguns dos graves estrangulamentos econômicos, a começar pela reforma tributária e a desestatização em áreas estratégicas, de resultado rápido na melhoria do ambiente de negócios e nos investimentos no Brasil. Mas a grande virada histórica da economia brasileira será possível apenas quando o país decidir apostar todas as suas fichas na educação, na qualificação profissional e na inovação. Nestes segmentos, cabe ao Estado papel decisivo, o que depende da recuperação das finanças públicas e de sua capacidade de investimento. Apesar dos pesares, 2019 deu alguns passos à frente.
Política Democrática || Lilia Lustosa: Os olhos de Scorcese – a nova cartada da Netflix
Com “O irlandês”, o “super longa” de Martin Scorsese, a Netflix aposta suas fichas para concorrer aos prêmios do Oscar. O diretor ítalo-americano contou com cerca de 160 milhões de dólares para realizar seu filme
Um ano depois do megassucesso de “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón, a Netflix aposta agora suas fichas no “super longa” de Martin Scorsese e aparece outra vez como forte candidato na disputa pelos prêmios Oscar, apesar de ter saído recentemente de mãos vazias do Globo de Ouro. E olhe que são muitas as fichas investidas, já que a empresa deu carta branca para o diretor ítalo-americano, que contou com cerca de 160 milhões de dólares para realizar seu filme. Certamente uma reação à entrada das poderosas Amazon, HBO Go, AppleTV e Disney+ no circuito das plataformas de streaming, que já representam real ameaça ao monopólio Netflix.
Desta feita, ao invés de uma história pessoal e quase autobiográfica, como foi o caso de “Roma”, no ano passado, Scorsese, já consagrado por “Taxi Driver” (1976), “O lobo de Wall Street” (2013) e tantas outras preciosidades cinematográficas, reuniu elenco de peso (Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci) e fez homenagem aos melhores filmes de gangsters da história do cinema, incluindo seus próprios “Cassino” (1995) e “Bons companheiros” (1990), em que De Niro e Pesci já faziam dobradinha.
Baseado no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, lançado em 2004, “O irlandês” conta a história real de Frank Sheeran (com um De Niro maduro, esbanjando talento), considerado um dos prováveis assassinos do poderoso sindicalista americano Jimmy Hoffa, interpretado por ninguém mais, ninguém menos que Al Pacino, num show de atuação. Um crime até hoje sem solução, mas que cai como uma luva para retratar o mundo obscuro da máfia, essa espécie de universo paralelo em que as leis obedecem a uma ética particular, um tanto quanto questionável.
Composto por planos-sequências deslumbrantes e por uma trilha sonora potente, “O irlandês” é narrado em primeira pessoa por um Frank Sheeran já no fim da vida, solitário, sentado em uma cadeira de rodas numa sala de asilo. Em um longo flashback de duas camadas, a história vai e volta no tempo, tendo como fio condutor uma viagem de carro de Filadélfia a Detroit para assistir ao casamento da filha de um dos amigos mafiosos do todo-poderoso Russel Bufalino, interpretado pelo excelente Joe Pesci. Qualquer semelhança com “O poderoso chefão” não é mera coincidência!
A grande diferença é que, nesta história, o protagonista não é um dos poderosos chefões, mas um homem comum, um “peixe pequeno” em meio a tantos tubarões, alguém que leva uma vida sem luxos, dedicado a seu trabalho e sua família. Um veterano de guerra, que aprendeu a matar em combate e, de alguma maneira, se desumanizou depois desta experiência. Matar passou a ser um ofício como outro qualquer, como dirigir um caminhão… ou pintar casas! Algo a ser feito e pronto. De motorista trambiqueiro a provável assassino de Hoffa, o caminho foi longo e tortuoso. A cada flashback, vamos acompanhando seu envolvimento com crimes cada vez mais cabeludos, em que pinta cada vez mais paredes. Frank vai, assim, ganhando o respeito de uns, a confiança de outros e se tornando peça importante naquele jogo sujo e complexo. Vai, ao mesmo tempo, perdendo o respeito e o amor de alguns de seus mais próximos, como o de sua própria filha Peggy (Lucy Gallina/Anna Paquin), a personagem-luz do filme de Scorsese.
Sim, porque os olhos inquisidores da menina Peggy são, ao longo dessa história, nosso prumo, nosso retorno à realidade, nossa referência do que é correto, do que é justo, do que é ético em meio a tantas traições, assassinatos e crueldades que vão aos poucos se tornando a norma. Personagem de poucas falas, a filha de Sheeran é a consciência de que há algo de podre no reino dos sindicatos americanos, brasileiros, argentinos… e em tantos outros reinos. De que essa banalização da violência e relativização da ética talvez não sejam assim tão normais como aparentam ser. Os olhos de Peggy só recobram o brilho diante do idealismo de alguém como Hoffa, que, mesmo indo para a prisão, lutou até o fim por seu sindicato, por seu reinado, por seus sonhos. E por eles também morreu. Não que fosse um santo, já que também fez muitas concessões à ética na sua ânsia de manter-se à frente de seus teamsters (caminhoneiros). E talvez aí uma importante (e triste) constatação do quão difícil é manter-se no tal “bom caminho” quando se está dentro do jogo. Qualquer semelhança com a realidade brasileira talvez não seja mera coincidência!
Scorsese, que causou polêmica meses atrás, ao declarar que os filmes da Marvel não eram propriamente “cinema”, criticando abertamente o filme comercial, realizou uma obra esplendorosa (pela Netflix-super-comercial), apesar de excessivamente longa e, cá pra nós, um pouco cansativa para se ver de uma tirada só, principalmente se for em casa, à noite, esparramado num sofá aconchegante, ou na cama, já pronto para dormir. Por sorte, “O irlandês” também pode ser visto em algumas poucas salas de cinema, já que esse é um quesito obrigatório para se concorrer ao Oscar. De toda maneira, vale a pena encarar as três horas e meia deste filme que já nasceu cult, feito com esmero para os cinéfilos mais exigentes e perfeito para coroar uma longa carreira de sucesso e para homenagear uma geração de artistas e cineastas que revolucionou o cinema norte-americano nos anos 70 – a Nova Hollywood – e que chega agora aos 80 anos de idade, deixando um legado cinematográfico riquíssimo para o mundo.
Mas, deixando a cinefilia de lado, o mais apropriado talvez fosse dizer que “O irlandês” é um filme feito para ganhar Oscars e reafirmar a posição de liderança da Netflix. E o que há de errado nisso? Obras talhadas para ganhar prêmios ou para manter liderança de mercado sempre existiram e fazem parte do jogo cinematográfico. Resta-nos torcer para que os olhos de Peggy estejam sempre presentes a fim de garantir que a grande máfia cinematográfica mantenha-se no prumo.
Política Democrática || Ligia Bahia: Saúde no Rio de Janeiro - ascensão, queda e desespero
Reconhecida internacionalmente até os anos 1990, a rede pública de saúde do Rio de Janeiro hoje está sem recursos e enfrenta o caos na atual gestão do prefeito Crivella
A rede pública de saúde no Rio, com seus hospitais de grande porte, centros de saúde e institutos de pesquisa, teve destaque internacional até os anos 1990. A cidade tinha o maior hospital de emergência da América do Sul, realizou a primeira cirurgia de coração e abrigou as iniciativas dos sanitaristas “jovens turcos” (a expressão alude aos oficiais conduzidos ao poder pelo General Ataturke), que propuseram reformas “rápidas e enérgicas”. Durante os governos do médico Pedro Ernesto Baptista (por dois períodos no início dos anos 1930), foram construídos os hospitais Getúlio Vargas, Jesus, Carlos Chagas, Rocha Faria, Paulino Werneck, Miguel Couto e o Hospital Central de Vila Isabel (que recebeu o nome de Pedro Ernesto). Após a II Guerra, os institutos de aposentadorias e pensões edificaram hospitais de grande porte na então capital do país.
Após a II Guerra, mudanças nas práticas clínicas e cirúrgicas impulsionaram investimentos dos Institutos de Aposentadoras e Pensões em hospitais de grande porte, muitos dos quais sediados no Rio de Janeiro. No início dos anos 1960, embaladas pela luta por democratização durante o Estado Novo, as ideias de Mario Magalhães, médico integrante do ISEB, sobre sanitarismo desenvolvimentista, adquirem destaque. A acepção segundo a qual “no Brasil se morre de tuberculose, mas igualmente morre-se de verminose, malária; de falta de assistência médica, por ignorância, e, principalmente, de miséria e fome, em consequência do grande atraso da economia nacional” inspirou um projeto de mudanças estruturantes, sustado pelo golpe de 1964. Com os governos militares e priorização de subsídios e contratos com estabelecimentos privados, termina a época de ouro da saúde pública no Rio.
As acepções reformistas do sistema de saúde só serão retomadas com os movimentos pela redemocratização nos anos 1980, protagonizados por pesquisadores do Rio de Janeiro, como Sérgio Arouca e Hésio Cordeiro. A inscrição do direito à saúde e do SUS na Constituição de 1988 tinha como fundamento a existência de uma rede pública no país e especialmente na cidade do Rio de Janeiro, que seria a base concreta para a garantia de atenção de qualidade para todos. A probabilidade de o SUS “dar certo” seria maior nas regiões com maior densidade de serviços públicos. E o que ocorreu de lá para cá foi uma conjugação de obstáculos à implementação do SUS, exatamente na cidade com a maior rede pública do país. Retração de recursos federais e ziguezagues de políticas de prefeitos e governos estaduais concorreram para o sucateamento dos estabelecimentos públicos de saúde.
A partir dos anos 1990, a cidade de São Paulo, com seus hospitais filantrópicos, privados, luxuosos e equipados, deixa o Rio, até então a cidade vanguarda da medicina e saúde pública, para trás. Houve esforços esparsos para reformar ou expandir a capacidade pública instalada na gestão Cesar Maia, e mais intensos durante o mandato de Eduardo Paes. Mas foram insuficientes para deter tendência estrutural de precarização das instalações físicas e condições de atendimento. Segundo denúncia da Defensoria e do Ministério Público do Rio de Janeiro, a administração municipal deixou de investir R$ 2,2 bilhões na saúde desde o início da gestão de Marcelo Crivella, em 2017, e quase R$ 1 bilhão referente a redução, bloqueio e remanejamento indevido só em 2019, segundo informações da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS. Houve redução de leitos, médicos, agentes comunitários de saúde e procedimentos ambulatoriais. O tempo de espera para consultas eletivas na atenção especializada aumentou de 47 para 88 dias.
Profissionais de saúde, contratados por organizações sociais, passaram a não receber salários em dia e a serem demitidos e reconvocados a trabalhar sob novos contratos. Jovens médicos, expostos diariamente à insatisfação da população com condições de atendimento sempre precárias, estão migrando para cidades nas quais o SUS oferece melhores padrões assistenciais. O desmonte do SUS no Rio de Janeiro atinge atendimentos de ambulância na atenção primária e hospitais de emergência, que são recursos estratégicos para salvar vidas de doentes graves e acidentados. Quem for ferido em um acidente de carro e encaminhado para uma emergência municipal estará no mesmo barco do restante da população. A cidade, que, no passado, teve a melhor rede pública do país, tornou-se exemplo de desmazelo e incúria.
As reiteradas interpelações do Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos de controle, como tribunais de contas são imprescindíveis, mas chegam “na ponta”. O desespero prevalece entre pacientes e profissionais de saúde. Os primeiros não sabem se serão atendidos; os segundos não conseguem aplicar seus conhecimentos porque não dispõem de condições adequadas de trabalho.
Política Democrática || Henrique Herkenhoff: E quem me protegerá dessas garantias?
O Brasil iniciou 2020 em uma situação inusitada, com um pacote de medidas criminais sancionado na mesma ocasião em que uma nova lei de abuso de autoridade entrou em vigor
Entramos em 2020 com um pacote de medidas criminais sancionado, na mesma ocasião em que uma nova lei de abuso de autoridade entrava em vigor. Resistiremos à tentação de tecer análises jurídicas, mas não à de recorrer a certas frases bastante surradas, inclusive esta que compõe o título (Juvenal, Sátiras, 6, 348).
A matéria de ambas as leis já era tratada nas Ordenações Afonsinas de 1446, passando pelas Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), que, por decreto de D. Pedro I, continuaram em vigor no Brasil. A única diferença é que as Ordenações Portuguesas, sem nenhum pudor ou disfarce, diziam que certas garantias eram exclusividade dos fidalgos, ao passo que algumas penas e a tortura eram um privilégio das classes “vis”. Em todo caso, as penas da nobreza eram executadas “sem baraço e sem pregão”, isto é, sem algemas e sem exposição na mídia. Ademais, essas últimas “novidades” no campo do Direito Processual Penal nitidamente se contrabalançam, de maneira que nos parece ouvir aquilo que um personagem de Il Gattopardo (Giuseppe Tomasi di Lampedusa) dizia: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.”
Mesmo a melhor reforma traz complicações. A delação premiada, por exemplo, revelou-se indispensável, mas, em julgamento recente e acertado, o STF decidiu que, embora na falta de disposição legal expressa, os réus colaboradores devem falar antes dos demais, o que implicou a anulação de processos importantes. Resolver definitivamente as controvérsias de interpretação leva tanto tempo que, invariavelmente, um novo pacote de reformas é editado antes que o primeiro tenha sido digerido.
Auditar os processos licitatórios ou obras públicas é muito mais trabalhoso e demorado do que os realizar, com a agravante de que as piores fraudes não se encontram nos autos. Para se certificar de que as camadas de asfalto têm a espessura e o material contratados, colhem-se amostras de distância em distância, pois conferi-las em cada centímetro da estrada exigiria retirar integralmente a pavimentação... Seja no sistema anterior, seja com o juízo de garantias, apenas os erros mais grotescos podem ser evitados; tudo aquilo que pareça formalmente em ordem permite apenas um exame superficial.
Ao submeter diligências e prisões ao crivo prévio do Judiciário, na maioria das vezes sem que o réu possa ser ouvido, a decisão fica sepultada entre milhares de páginas. É duvidoso que o juiz se sentirá menos constrangido em reconhecer a ilegalidade de uma busca determinada pelo seu colega do que em admitir um erro em suas próprias decisões. Mas, e as instâncias superiores? Estas sempre estarão lá se provocadas, com ou sem juízo de garantias, mas, na prática, essas autorizações raramente são revistas e, de toda sorte, impedem a responsabilização de quem estava apenas “cumprindo ordens judiciais”, ainda que as tenha requerido.
Se alguém obtém liminarmente a posse de meu apartamento e mais tarde perde a ação, terá de me indenizar por todo o tempo em que fiquei fora de casa. No entanto, o réu preso e mais tarde absolvido nada receberá, nem mesmo honorários advocatícios. Nas ações penais e de improbidade administrativa, o Ministério Público, mesmo derrotado, não paga as despesas processuais dos réus e muito menos repara os estragos causados. Não é, portanto, necessário atingir individualmente a autoridade responsável pelo abuso, salvo quando agiu maliciosamente; para que ela fique autocontida, basta que a instituição a que pertence, com seu orçamento, pague a fatura das acusações malsucedidas e dos constrangimentos que os réus sofrerem.
As garantias que a Constituição dá aos réus somente se tornarão realidade para todos quando abandonarmos o controle prévio das atividades de investigação e acusação, fazendo-o só posteriormente e sob provocação da defesa, que já terá selecionado as questões importantes e levantado os elementos de convicção. Ou seja, exatamente o contrário da criação dos juízes de garantia. Atualmente, há registro de todas as interceptações telefônicas e quebras de sigilo bancário ou fiscal, permitindo aos cidadãos questioná-las mesmo que nunca sejam acusados. Que o Ministério Público possa, sem autorização judicial prévia, determinar as diligências que entender necessárias e prender quem haja por bem, desde que ofereça a denúncia imediatamente, mas suporte aquilo que chamamos “ônus da sucumbência” quando vencido. Só isso.
* Professor doutor do Mestrado em Segurança Pública da UVV/ES e presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/ES. Secretário de Segurança do Estado do Espírito Santo (2011/2013), desembargador federal (2007/2010), procurador e procurador regional da República (1996/2007), havendo integrado a Missão Especial de Combate ao Crime Organizado e o Conselho Penitenciário Estadual.
Política Democrática || Editorial: Eleições
As eleições de novembro são o evento mais importante do calendário político deste ano. Além dos novos prefeitos e vereadores, sairá das urnas um novo mapa político, no interior do qual serão eleitos, poucos meses depois, os novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, e terão início os movimentos de candidatos e partidos com vistas às eleições gerais, em 2022. Importa, portanto, debater as alternativas que se apresentam, para o governo e as oposições.
O governo passou, em seu primeiro ano, por um processo de emagrecimento partidário. Abandonou o PSL, partido que elegeu o presidente e uma bancada significativa no Congresso Nacional, na esperança de construir uma nova agremiação, certamente menor, mas supostamente mais homogênea em termos ideológicos e de lealdade incondicional a seu líder.
Uma vez que o novo partido não será constituído a tempo de participar das eleições, resta ao governo a perspectiva de parasitar as siglas existentes, lançando a rede de apoio a alguns de seus candidatos, para, findo o pleito, puxar a rede e abrigá-los no seu novo partido.
Outros são os problemas que as oposições deverão enfrentar. Em novembro, pela primeira vez, não serão permitidas coligações nas eleições proporcionais. Eleger o maior número de vereadores possível, portanto, é imperativo para todos os partidos, para manter viva a possibilidade de superar, em 2022, a cláusula de barreira, mais dura, e continuar a participar da partilha dos recursos dos fundos eleitoral e partidário, e do tempo de rádio e de televisão. Nesse ambiente, o lançamento de candidatos próprios no primeiro turno das eleições majoritárias deve ser a regra.
Alguns cuidados, contudo, devem ser observados pelos partidos que se colocam no campo da oposição. Primeiro, resistir às tentativas de apoio, explícito ou velado, do governo a seus candidatos, sob pena de, após o pleito, assistir ao êxodo dos eleitos. Segundo, ter claro desde já que, no segundo turno das eleições para prefeito das capitais e das maiores cidades, a questão central a dividir a disputa será a questão democrática. Terceiro, construir desde já, sem abdicar das diferenças programáticas, canais de diálogo com todas as forças oposicionistas do campo democrático em vista dessa possibilidade.
A diretriz geral deve ser: posições firmes, posições claras. Afinal, se alguma lição fica de 2018 é essa. A procura do meio termo mostrou-se o caminho mais curto para a derrota.