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Revista online | Os reflexos do atraso no julgamento do marco temporal e a política anti-indígena do governo federal
Nicolas Nascimento, Paloma Gomes e Rafael Modesto, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
O julgamento do marco temporal, Tema 1031/STF, encontra-se adiado e mais uma vez fora da pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), ocasionando insegurança jurídica a muitas terras indígenas, independentemente se área demarcada ou não. O caso, que teve seu julgamento iniciado em 2021, põe em pauta duas teses em disputa: de um lado o marco temporal e, do outro, o indigenato.
O marco temporal incumbe aos indígenas o ônus de comprovar a posse, ou a disputa pela posse das suas terras, pelas vias de fato ou por uma ação judicial, na data da promulgação da Constituição Federal, para que possa haver a demarcação do território reivindicado, ignorando todo o histórico de invasão, violência e esbulho, muitas vezes com a contribuição direta do poder público.
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No período da ditadura militar, e na história mais recente, como se pode constatar do Relatório Figueiredo e do Relatório Nacional da Comissão Nacional da Verdade (CNV), os indígenas eram caçados vivos, mortos a metralhadora; dinamites eram jogadas nas aldeias e, quando não, lançavam açúcar misturada a estricnina nas comunidades. Quando pegos vivos, eram amarrados de ponta-cabeça e cortados vivos, à facão, do púbis à cabeça. Ainda, essa tese, além de desconsiderar a violência física, não leva em conta que os povos indígenas não podiam, até 1988, postular em juízo por conta da vigência do regime tutelar, como não podiam disputar a posse das suas terras pelas vias de fato, já que estariam expostos a toda sorte de violência.
Do outro lado, defendida pelos indígenas, a tese do indigenato sustenta o direito originário dos povos ao território tradicionalmente ocupado. Essa tese está consagrada na Constituição Federal, nos artigos 231 e 232 – o Estatuto Constitucional Indígena. Essa tese se baseia no direito originário dos indígenas e na doutrina de João Mendes Júnior, de 1912.
Veja, a seguir, galeria de foto:
Merece destaque a urgência e a importância do julgamento do Tema 1031/STF, pela Suprema Corte, para as futuras gerações. O desinteresse com que o STF trata o tema, com sucessivos adiamentos, nesse atual contexto onde está em curso uma política anti-indígena impregnada na estrutura do Estado, acaba por favorecer os ataques às populações tradicionais, suas terras e às riquezas naturais nelas existentes.
Atualmente, todos os processos de demarcação em curso estão suspensos, sob a justificativa de que o voto do Ministro Edson Fachin, no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, favorável à tese do indigenato, assim teria determinado. Ao contrário, o que estão suspensos são as ações possessórias, as anulatórias de procedimentos de demarcação e o Parecer 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), que institucionalizava a tese do marco temporal. Mas nunca os processos de demarcação, muito menos o art. 231, da Carta de 1988, nem mesmo o Decreto 1775/1996, que regula o procedimento demarcatório.
Diante da inércia da Suprema Corte, quanto ao julgamento do Tema 1031/STF, os casos de violência contra indígenas continuam aumentando, a exemplo da situação dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que sofrem constantemente com invasões ao seu território, sobretudo por fazendeiros, bem como com ataques da polícia militar, sem ordem judicial. Mais recentemente, viveram cenário de guerra, inclusive com uso de helicóptero como plataforma de tiro, onde um indígena foi morto e muitos outros ficaram gravemente feridos.
Outra situação crítica, largamente difundida na mídia, é a situação dos indígenas do norte do país, sobretudo nas regiões mais isoladas e de difícil acesso, como o Vale do Javari, Terra Indígena (TI) Yanomami, (TI) Mundukuru, (TI) Apyterewa, entre outras. Nessas áreas, o tráfico de madeira, de armas, animais silvestres, drogas, biopirataria, o garimpo e outras práticas violentas assolam os povos indígenas.
O que assistimos atônitos, é a mais completa desarticulação das políticas de proteção ambiental e a precarização dos órgãos responsáveis, o que abre caminho para a atuação do crime organizado, em claro prejuízo aos povos originários.
À par disso, Projetos Legislativos tentam implementar a tese do marco temporal, a exemplo do PL 490/2007. No executivo, ademais de o parecer 001/2017, da AGU, ter sido suspenso pelo STF, a Fundação Nacional do Índio (Funai) ainda toma a tese ruralista como instrumento jurídico. Daí que cabe ao judiciário, por meio da Suprema Corte, finalizar o julgamento do Tema 1031/STF, para, ao declarar inconstitucional a tese do marco temporal, garantir mais segurança aos povos indígenas e suas terras de ocupação tradicional, contra toda e qualquer sorte de violência.
Por fim, necessário evidenciar que a reversão do atual quadro de violência contra os povos indígenas e seus defensores, de usurpação das suas terras tradicionalmente ocupadas e da destruição ambiental, não se dará tão somente com a finalização do julgamento do Tema 1031/STF e a derrocada do marco temporal. A mudança real necessitará de esforços institucionais e políticas frontalmente contrárias ao que se tem hoje instalado no Poder Executivo. É necessário fazer cumprir a Constituição Federal de 1988 e implementar a tese do indigenato.
Sobre os autores
*Nicolas Nascimento, Paloma Gomes e Rafael Modesto são advogados e compõem a Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O Cimi é um organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que, em sua atuação missionária, conferiu um novo sentido ao trabalho da igreja católica junto aos povos indígenas.
* Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho/2022 (45ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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ONU se diz alarmada com ameaças a ambientalistas e indígenas no Brasil
Por g1
A alta comissária de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet, se disse preocupada com ameaças crescentes a ambientalistas e indígenas no Brasil.
Sem mencionar casos específicos, Bachelet falou do país no discurso de abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta segunda-feira (13) em Genebra, na Suíça.
Na sessão, ela chamou a atenção ainda para a ameaça de ataques a legisladores e candidatos às eleições do Brasil, particularmente negros, mulheres e pessoas LGBTQIA+, e para "casos recentes de violência policial e racismo estrutural" também no Brasil.
"No Brasil, estou alarmada por ameaças contra defensores dos Direitos Humanos e ambientais e contra indígenas, incluindo a contaminação pela exposição ao minério ilegal de ouro", declarou Bachelet. "Peço às autoridades que garantam o respeito aos direitos fundamentais e instituições independentes".
Sobre as eleições no Brasil, a chefe de Direitos Humanos da ONU pediu ainda garantias de que o processo seja "justo e transparente" e de que "não haja interferências de nenhuma parte para que o processo democrático seja alcançado".
Buscas por Dom e Bruno
Na semana passada, de Direitos Humanos da ONU criticou a resposta do governo brasileiro ao desparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Pereira no Vale do Javari, no Amazonas.
A porta-voz da agência, Ravina Shamdasani, afirmou que as autoridades brasileiras foram "extremamente lentas" para começar a procura por Phillips e Pereira, que sumiram quando iam de barco para a cidade de Atalaia do Norte.
O indigenista, que também já havia recebido ameaças, e o jornalista britânico o acompanhava em uma vistoria, para coletar material para um livro que escrevia sobre a Amazônia. Após o desaparecimento dos dois, no dia 3 de junho, associações locais denunciaram que o governo destacou alguns poucos soldados para procurar pela dupla e que as forças de busca, lideradas pela Marina, pelo Exército e pela Polícia Federal, demoraram para começar a sobrevoar a área.
Michelle Bachelet
Na sessão desta segunda-feira (13), Bachelet, que já foi presidente do Chile, anunciou ainda que não concorrerá à reeleição ao cargo de chefia dos Direitos Humanos da ONU, que ocupa há quatro anos.
*Texto publicado originalmente em g1
Índios marcham pelo centro de Brasília e fazem reivindicações
Marcha das Mulheres Indígenas reuniu-se com o movimento Luta pela Vida
Alex Rodrigues / Agência Brasil
Com faixas contra o governo federal e pela manutenção de seus direitos constitucionais, o grupo deixou o acampamento por volta das 9h de hoje e seguiu em caminhada pelo Eixo Monumental até a avenida W3 Sul, de onde foi para a Praça do Compromisso. Na praça, o grupo homenageou a memória do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, morto, no local, por cinco jovens de classe média que, em 1997, atearam fogo em seu corpo. Durante o ato, um boneco alusivo ao presidente Jair Bolsonaro foi queimado.
A marcha pela região central de Brasília estava prevista para ontem (9), mas, por segurança, os coordenadores decidiram adiá-la. Ainda por segurança, os indígenas optaram por caminhar até a Praça do Compromisso, e não mais até a Praça dos Três Poderes.
"As forças de segurança do Distrito Federal recomendaram que, por precaução, as mulheres ficassem aqui mesmo, no acampamento. Decidimos não fazer a marcha até a Praça dos Três Poderes por entender que ainda há muita gente armada na cidade”, disse ontem Danielle Guajajara à Agência Brasil.
Luta Pela Vida
Desde a última terça-feira (7), os participantes da 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas se somam aos remanescentes do movimento Luta Pela Vida, acampamento indígena que, nas últimas semanas, chegou a reunir 6 mil pessoas na capital federal para acompanhar o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do futuro das demarcações das terras indígenas.
O movimento indígena reivindica pressa na demarcação de novas reservas, com a conclusão dos processos de reconhecimento em fase avançada. E, principalmente, cobra que os ministros do STF refutem o chamado Marco Temporal, tese segundo a qual só teriam direito às terras pertencentes a seus ancestrais as comunidades que as estavam ocupando ou já as disputavam na Justiça em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Os índios também se opõem às propostas de liberar a mineração em seus territórios e flexibilizar as normas de licenciamento ambiental em todo o país e ainda cobram ações públicas contra a violência contra as mulheres indígenas e a favor da saúde dos povos tradicionais.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-09/indigenas-marcham-pelo-centro-de-brasilia-e-fazem-reivindicacoes
Terras indígenas: Relator vota contra o marco temporal
Proteção constitucional independe do marco ou disputa judicial na data da promulgação da Constituição, disse Fachin
André Richter / Agência Brasil
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin votou hoje (9) contra a tese do marco temporal para demarcações de terras indígenas. Para o ministro, que é relator do caso, a proteção constitucional das áreas indígenas independe do marco ou disputa judicial na data da promulgação da Constituição. Após o voto, a sessão foi suspensa para intervalo e será retomada em seguida.
Há duas semanas, o STF julga o processo sobre a disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e a posse de parte é questionada pela procuradoria do estado.
Os ministros discutem o chamado marco temporal. Pela tese, defendida por proprietários de terras, os indígenas somente teriam direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial nesta época.
PROTESTO CONTRA O MARCO TEMPORAL
Voto
Fachin iniciou seu voto discordando das afirmações de que as condicionantes estabelecidas no julgamento do caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, não possam ser reavaliadas por estarem sendo aplicadas pelo Judiciário em outros casos envolvendo demarcações de terras. Na época, o STF estabeleceu balizas e salvaguardas na promoção de todos os direitos indígenas, e, para garantir a regularidade da demarcação de suas terras, como regra geral, foram observados o marco temporal e o marco da tradicionalidade.
“Dizer que Raposa Serra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas. É dizer que a solução dada para os Macuxis é a mesma dada para Guaranis, para os Xoklengs seria a mesma dada para os Pataxós. Só faz essa ordem de compreensão quem chama todos de índios, esquecendo das mais de 270 línguas que formam a cultura brasileira e somente quem parifica os diferentes e os distintos e as distintas etnias pode dizer que a solução tem que ser a mesma sempre. Quem não vê diferença não promove a igualdade”, afirmou.
O ministro argumentou ainda que as regras de posse indígena não têm relação com o direito de posse civil.
“Não se configura posse em terras indígenas. No caso das terras indígenas, a função da terra se liga visceralmente à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria de circulação para essas comunidades. A manutenção do habitat indígena não se resume a um conjunto de ocas”, argumentou.
Fachin relembrou histórico de violência pela disputa de terras indígenas e entendeu que o marco temporal não garante proteção contínua das comunidades, garantido pela Constituição, e não abrange casos de comunidades isoladas.
“Assegurar aos índios os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam não se confunde com usucapião imemorial, que exigisse, de forma automática, a manutenção da presença indígena na área na data exata de 5 de outubro de 1988".
O processo tem a chamada repercussão geral. Isso significa que a decisão que for tomada servirá de baliza para outros casos semelhantes que forem decididos em todo o Judiciário.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-09/relator-vota-contra-marco-temporal-para-demarcacao-de-terra-indigena
Câmara discute ações para conter violência contra mulheres indígenas
Cerca de 5 mil indígenas estão acampadas em Brasília
Alex Rodrigues / Agência Brasil
Duas comissões parlamentares (Direitos Humanos e Minorias e Defesa dos Direitos da Mulher) da Câmara dos Deputados realizaram, hoje (9), uma reunião conjunta para debater a violência contra mulheres indígenas de todo o Brasil. Solicitada pelas deputadas federais Joenia Wapichana (Rede-RR) e Erika Kokay (PT-DF), a iniciativa ocorre em um momento em que milhares de pessoas se encontram acampadas em Brasília, onde ocorre a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas.
Convidada a abordar o contexto de violações aos direitos indígenas, especialmente os das mulheres, dentro de um cenário mais amplo, a representante da ONU Mulheres Brasil, a quirguistanesa Anastasia Divinskaya destacou que este tipo de violência não deve ser avaliado isoladamente. Anastasia lembrou que relatórios da própria ONU Mulheres demonstram que, em toda a América Latina, as indígenas, sobretudo aquelas que lutam em defesa de territórios tradicionais e dos direitos humanos, estão mais sujeitas às represálias.
“As mulheres indígenas são vítimas de múltiplos atos de violência: abuso sexual, violência doméstica, assassinatos, desaparecimento, submissão à prostituição e uso não consensual de suas imagens como objetos decorativos e exóticos. Elas também experimentam formas particulares de violências, as chamadas violências ecológica - uma referência aos impactos prejudiciais das políticas e práticas que afetam a saúde das mulheres, estilos de vida, status social e sobrevivência cultural”, disse a representante da ONU Mulheres.
“[Logo] A violação aos direitos das mulheres indígenas não deve ser considerada isoladamente. Ela deve ser vista dentro do amplo espectro das violações dos direitos humanos”, acrescentou Anastasia, antes de comentar os riscos a que se expõem as lideranças que se engajam na promoção e defesa dos direitos de seus povos. “Um recente relatório que abrange os países da América Latina, incluindo o Brasil, observou que ser mulher e promover a defesa de seus direitos, especificamente o direito à terra e aos direitos humanos, aumentam os riscos de retaliação.”
“[Em geral] mulheres indígenas experimentam um amplo e complexo espectro de abusos e de violações aos direitos humanos. Este espectro é influenciado por múltiplas formas de discriminação e marginalização, baseadas em questões de gênero, origem étnica e circunstâncias socioeconômicas”, pontuou Anastasia para, em seguida, enfatizar a importância da mobilização indígena. “Gostaria de dar crédito às mulheres indígenas brasileiras que têm sido fundamentais para a formulação dos marcos normativos globais, influenciando o estabelecimento de um sólido regime de igualdade de gêneros e de direitos das mulheres nas Nações Unidas e em outros fóruns. Há décadas, estas mulheres vêm defendendo seus direitos e os direitos humanos no Brasil”, disse a representante da ONU Mulheres, conclamando os governos a ouvir a opinião de representantes das comunidades, principalmente das mulheres, sobre projetos que afetem os povos indígenas – conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
ÍNDIOS PROTESTAM EM FRENTE AO STF
“É fundamental que as mulheres indígenas tenham a possibilidade de afirmar sua autonomia. O empoderamento destas mulheres não deve ser considerado um fator de desagregação cultural ou uma imposição de direitos individuais aos coletivos. A participação política, a representação das mulheres indígenas em órgãos decisórios de Estado, é essencial para assegurar o respeito a seus direitos, bem como a inclusão de suas realidades e demandas na [formulação de] políticas públicas”, finalizou Anastasia.
Denúncias
Secretária do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Maria Betania Mota de Jesus, lamentou que o Poder Público brasileiro não dê a devida atenção às principais reivindicações do movimento indígena, sobretudo no sentido de proteger os territórios tradicionais.
“As ameaças e retrocessos estão aí, à vista de todos. Estamos fazendo nosso papel, denunciando esta situação a várias instâncias que precisam se alertar e estar ao nosso lado”, declarou a secretária. Segundo ela, a Convenção 169 da OIT vem sendo descumprida, já que a opinião majoritária entre os indígenas sobre projetos de lei que visam a alterar as regras para demarcação de novas reservas e liberar a mineração em territórios de usufruto indígena não estaria sendo levada em conta.
As representantes da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, Elisângela Baré, e da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), Alessandra Munduruku, endossaram a fala de Maria Betania.
“Precisamos sair da invisibilidade, sermos ouvidas a fim de caminharmos todos juntos”, pontuou Elisângela, ao mencionar que grande parte das terras indígenas possuem um plano de gestão territorial e ambiental elaborado pelas comunidades que ali residem, com apoio técnico, e no qual os povos originais estabelecem como pretendem gerir o território, preservando os recursos naturais e seus costumes. “Queremos desenvolvimento sim, mas não de qualquer jeito. Por isso criamos protocolos de consulta”, acrescentou Elisângela.
“O que seria de nós sem nosso território, sem nossos rios, nossas florestas? O que seria de nós se não protegêssemos a Amazônia? Fazemos isso de graça e a única coisa que queremos é viver em paz, mas, infelizmente, não temos isso. O que [recebemos em troca] é violência”, lamentou Alessandra Munduruku, criticando deputados federais e senadores que, segundo ela, vêm propondo e aprovando projetos que prejudicam não só as comunidades indígenas, mas também a outros povos tradicionais que lutam para preservar seu modo de vida ancestral.
“Não estamos mais conseguindo plantar, colher, estar dentro de nossas comunidades tranquilas. Todo o tempo a gente precisa estar aqui, em Brasília, porque temos que gritar que estamos vivos, temos que brigar por nossos direitos.”
ATOS CONTRA O MARCO TEMPORAL
Inconstitucionalidade
Para a procuradora do Ministério Público Federal (MPF), Márcia Brandão Zollinger, muitos dos projetos de lei criticados pelo movimento indígena são claramente inconstitucionais. Caso, segundo ela, do Projeto de Lei 490/2007, que tenta alterar as atuais regras para demarcação de terras indígenas e que já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
“Vários projetos de lei que tramitam na Câmara violam os direitos dos povos indígenas porque perpetuam o esbulho das terras indígenas que ocorre desde a invasão do Brasil. São projetos que materializam violências contra os povos indígenas, e mais especificamente contra as mulheres indígenas”, declarou a procuradora. Márcia criticou também o Projeto de Lei 2.159/21, que flexibiliza as regras do licenciamento ambiental, levando em conta a exigência da consulta e autorização dos órgãos ambientais apenas para empreendimentos em terras indígenas já homologadas. “Temos, hoje, 273 territórios já em processo de demarcação, com seus limites já reconhecidos, e que serão desconsiderados para processos de licenciamento ambiental [caso o Senado aprove o PL como recebido da Câmara dos Deputados]. Fora que há ainda outras 536 áreas sendo reivindicadas. Todas seriam desconsideradas.”
Único homem a falar durante o debate, o secretário-adjunto de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Esequiel Roque do Espírito Santo, disse que o governo federal reconhece que o Brasil é um país “multiétnico, de enorme diversidade cultural”, e que está atento à violência contra as mulheres, incluindo as indígenas.
“Temos o grande desafio de tirar esta questão da invisibilidade e trabalharmos com foco nisto. Nos preocupamos muito também com a questão da relativização da violência contra a mulher. Existe uma ideia de que alguns atos de violência cometidos contra as mulheres indígenas são reflexos culturais. Entendemos que a Convenção 169 deixa muito claro que os povos indígenas têm o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional, nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”, disse o secretário.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-09/camara-discute-acoes-para-conter-violencia-contra-mulheres-indigenas
Criança indígena de 11 anos morre jogada de pedreira após sofrer estupro coletivo
Cinco homens foram presos e confessaram ter estuprado a menina; segundo a polícia, a criança sofria abusos do tio
Thays Martins / Correio Braziliense
Uma menina indígena da etnia Guarani Kaiowá, de 11 anos, morreu, nesta segunda-feira (9/8), após ser atirada de um penhasco de 20 metros de altura em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Antes de ser assassinada, a criança teria sofrido um estupro coletivo. Cinco homens foram presos e confessaram o crime, entre eles três adolescentes e dois adultos, sendo um o tio da vítima.https://b86fb141ad8b849078675e14bfceab49.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Os três adolescentes foram apreendidos e estão internados provisoriamente na Unidade de Internação Masculina Laranja Doce, em Dourados. Os dois adultos estão no presídio estadual de Dourados. Os homens foram presos por estupro de vulnerável, feminicídio e homicídio qualificado.
De acordo com a polícia, a menina foi obrigada a beber pinga e levada para a pedreira, onde ela foi estuprada. O local fica próximo a aldeia Bororo, onde ela vivia. Segundo a investigação, quando terminaram, os cinco homens resolveram joga-la do penhasco porque ela estava gritando muito e dizia que iria denunciar deles. Ela foi encontrada em meio a pedras, sem roupa e dilacerada.
Os quatro homens combinaram de embebedar a menina e levar ela até a pedreira para violentá-la. O tio da menina teria chegado depois e também participado do crime.
Ainda segundo a polícia, a suspeita é que menina era abusada pelo tio desde os cinco anos quando ela foi morar na casa da avó.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/08/4943216-crianca-indigena-de-11-anos-morre-jogada-de-pedreira-apos-sofrer-estupro-coletivo.html
Os impactos do garimpo ilegal no território indígena Munduruku
A invasão aos territórios é violenta, destruindo as florestas e os modos de vida das comunidades tradicionais que dependem de uma relação equilibrada com a natureza.
Por Marcos Pedroso
Além de invadir os territórios habitados há muito tempo por populações tradicionais, o garimpo ilegal destrói sua cultura e modos de vida. Isso acontece por meio das limitações a sua manutenção cultural, e ainda com o avanço de doenças e vícios trazidas por esses “novos colonizadores”.
Reconhecido pela FUNAI, o território dos Munduruku deveria ser preservado, a fim de garantir a segurança e o modo de vida dos indígenas. Porém, a investida dos garimpeiros ilegais nesse território tem crescido diante de um sentimento de impunidade, situação que pode agravar-se ainda mais caso seja aprovado o PL 191/2020, que prevê a regulamentação de mineração em terras indígenas.
Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais e o Ministério Público Federal (MPF) apontou que 28% da produção nacional de ouro possui evidências de irregularidades. O Pará é o estado campeão de ilegalidades, principalmente no entorno da terra indígena Munduruku. O estudo identificou 5,4 toneladas de ouro de origem ilegal (quase 18% do total produzido pelo Estado do Pará) apenas nos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, onde se situam terras indígenas dos povos Munduruku e Kayapó.
Reação em cadeia
A antropóloga Deborah Goldenberg, estrategista de garimpo do WWF-Brasil, explica que a alteração do ambiente natural pelo garimpo provoca mudanças sociais e culturais na vida dos povos indígenas. “Quando essas populações vivem do modo tradicional, a vida delas é totalmente interligada com a natureza. É uma especificidade dos povos ameríndios de nem fazer distinção entre o mundo humano e a natureza, então tem toda essa interação com a natureza em várias camadas”, conclui.
Os indígenas, em sua maioria, são contra qualquer prática de mineração dentro de seus territórios. Essa postura tem levado a intimidações e ameaças por parte dos garimpeiros e são inúmeros os casos de violência física praticados contra as comunidades tradicionais, como destruição de suas casas, associações, embarcações e, em casos mais graves, mortes, a fim de intimidar e silenciar as populações locais.
Jacareacanga é a cidade que vivencia um conflito muito grande em decorrência do garimpo ilegal, principalmente nas terras tradicionais, o que têm gerado muito medo. “A gente aqui está acostumada com uma outra forma de viver e de lidar com a terra. Quando esses garimpos acabam entrando nos nossos territórios, a gente percebe o quanto eles são cruéis. A gente perde a nossa cultura, a gente perde o nosso bem-viver e a forma como a gente vê o mundo. Então, é uma destruição não só da terra, do meio ambiente, mas também é uma destruição de uma população, de uma comunidade que até então estava vivendo muito bem, em coletivo. Agora a gente só vê destruição pra tudo quanto é lado. As crianças não têm mais a liberdade brincar, de andar por aí livremente. Agora têm que se preocupar com as escavadeiras e com essas pessoas entrando em nosso território”, afirma Jéssica da Silva, moradora de Jacareacanga.
O professor Doutor em Antropologia, Rogério do Pateo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que, quando um garimpo é aberto, rapidamente forma-se um povoado, e, nesses locais, os índices de violência costumam ser superelevados. A violação das mulheres indígenas é outro problema sério, que vem acompanhado da disseminação de doenças sexualmente transmissíveis. “Há um processo de cooptar jovens para trabalhar no garimpo. Há abuso sexual, prostituição, alcoolismo, vários tipos de violência, e inclusive a distribuição de armas de fogo nas aldeias, o que acaba tendo um impacto nas relações entre elas", afirma Pateo.
Ainda segundo ele, o alcoolismo também é um problema muito sério que atinge os indígenas, ameaçando uma das bases fundamentais de suas vidas, a família. A formação de pequenos povoados nas áreas de garimpo nos territórios indígenas agrava ainda mais esse problema, pois a comercialização de álcool se intensifica nos arredores das aldeias.
O recrutamento de indígenas para trabalhar nos garimpos também resulta em problemas sérios de saúde. Ainda que, atualmente, as máquinas e instrumentos de garimpagem sejam mais desenvolvidas com o intuito de aumentar a produção, a extração de ouro continua sendo uma atividade que demanda muita força física. Geralmente os indígenas, que são recrutados pelos garimpeiros, desempenham atividades insalubres e, por conta disso, acabam desenvolvendo sequelas para o resto de suas vidas, chegando até à invalidez. Boa parte dessa força de trabalho indígena recrutada pelo garimpo volta para as aldeias, mas não consegue mais realizar as atividades fundamentais para manutenção dos seus modos de vida, como pescar, caçar e plantar.
A antropóloga Luísa Molina, que estuda os impactos da degradação socioambiental causada pelo garimpo no Tapajós, aponta ainda que o desmatamento aumentou muito na região do Alto Tapajós. “A terra indígena dos Munduruku esteve no ano passado [2020] entre as áreas mais desmatadas do país. E sabemos que lá no alto do Tapajós não tem outra atividade expressiva que possa ter provocado um desmatamento como esse a não ser o garimpo ilegal dentro dos territórios tradicionais”, ressalta.
Ao causar desmatamento, o garimpo também contribui para o aumento do número de casos de Malária, pois as piscinas de lama nas áreas de extração de ouro viram locais de reprodução do mosquito Anopheles, vetor do parasita Plasmodium, causador da Malária. Segundo dados do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, o número de casos de malária nas aldeias Munduruku aumentou mais de cinco vezes de 2018 para 2020, o que resultou em mais mortes de indígenas.
Você sabia?
Historicamente, os Munduruku são conhecidos por serem um povo guerreiro, sua cultura sempre teve forte influência em toda a Bacia do Tapajós. Atualmente vivem, na sua maioria, na porção alta da bacia, área conhecida como Mundurukânia, mas há aldeias em outras regiões próximas.
Os primeiros contatos dos Munduruku com não indígenas datam ainda no século XVIII, foi a partir desse período que as guerras deixaram de ser contra as aldeias inimigas e passaram a ser contra um inimigo mais perigoso, o homem branco colonizador, que veio para roubar as riquezas dos povos originários. Após muitos conflitos e resistência do povo Munduruku, houve um “acordo de paz” entre os exploradores e os indígenas, que passaram a viver nos aldeamentos missionários e passaram a coletar as “drogas do sertão”.
Com o Ciclo da Borracha ocorreu uma nova invasão à Amazônia, a procura pelo látex resultou em muitas invasões aos territórios indígenas, levando a deslocamentos forçados das populações indígenas.
O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib aponta que “na História [brasileira], muitos povos foram dizimados pela livre circulação de doenças, como na época da invasão portuguesa ou durante a ditadura militar, em que muitas doenças foram usadas como armas biológicas para exterminar povos.”
O momento é urgente, acabar com o garimpo ilegal é uma questão de sobrevivência para as populações indígenas, cada vez mais ameaçadas. Por isso, junto a outros coletivos, lançamos a campanha Chagas do Garimpo, com o objetivo de engajar novas audiências contra o garimpo ilegal em Terras Indígenas e incidir no debate público. Seja um aliado dessa luta, inscreva-se em: https://chagasdogarimpo.com.br/ para receber mais informações sobre como agir.
El País: 8 anos e 12 quilos, a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami
Beatriz Jucá, El País
Uma rede escura acomoda o corpo miúdo de uma criança Yanomami tão magra que é possível ver sua pele moldar as costelas. A fotografia de uma menina de oito anos que pesa apenas 12,5 quilos (o peso mínimo normal para a idade seria de 20 quilos), feita na aldeia Maimasi em Roraima, expõe um problema crônico de desassistência à saúde que os povos indígenas enfrentam no coração da Amazônia ―e que vem crescendo ano após ano. A criança estava acometida por malária, pneumonia, verminose e desnutrição, em uma região sem visitas regulares de equipes sanitárias e que fica a 11 horas a pé do polo de saúde mais próximo. Ela teve sua imagem capturada dias antes de ser transferida de avião a um hospital da capital Boa Vista no dia 23 de abril, onde já se recuperou da malária, mas segue em tratamento para os outros problemas. Virou símbolo do histórico descaso do Brasil com o povo Yanomami, que luta para sobreviver em meio a uma junção de graves crises: a escalada de violência por garimpeiros ilegais, os impactos ambientais que levam fome a algumas regiões e a fragilidade do acesso à atenção sanitária.
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“Na cultura Yanomami a gente não pode demonstrar imagem de criança, frágil, doente. Mas é muito importante [fazer isso] pela crise que estamos vivendo”, explica o líder indígena Dario Kopenawa, ao autorizar a publicação da fotografia nesta reportagem. Para esta etnia, a imagem da pessoa é parte importante dela e disseminá-la em uma situação de enfermidade pode enfraquecê-la ainda mais. Até quando se morre, é preciso queimar todas as lembranças de quem partiu para preservar seu espírito no mundo dos mortos. Mas a comunidade decidiu divulgar a fotografia enquanto a criança tenta se recuperar para denunciar aos napëpë ―como chamam os não indígenas― seu sofrimento diante da grave crise de saúde que os ameaça.
“Esta foto é uma resposta da violação de direitos dos povos indígenas”, resume Kopenawa. Enquanto a malária e a covid-19 avançam sobre as aldeias, lideranças narram que equipes de saúde foram reduzidas com profissionais afastados por covid-19 e outras doenças, postos de saúde foram fechados temporariamente e falta helicóptero para transporte de pacientes em áreas de difícil acesso. “A gente sofre há muito tempo sem estrutura boa, sem todos os profissionais completos pra dar assistência. Com a pandemia, piorou”, destaca Konepawa. O problema afeta especialmente as comunidades mais isoladas, que dependem de visitas esporádicas das equipes. “Tem locais que estão ainda sem vacinação contra a covid-19 porque não têm profissionais. São comunidades que ficam longe dos postos, não têm como chegar”, acrescenta Júnior Yanomami, membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), um órgão responsável pelo controle social das ações governamentais. No Brasil, os grupos indígenas são prioritários na fila de vacinação.
“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”
“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”, continua o líder indígena. Segundo ele, a aldeia Maimasi, que vive um surto de malária e onde várias crianças padecem com desnutrição e verminoses, não recebia visita de equipes de saúde havia seis meses, quando profissionais atenderam a criança da fotografia (divulgada por um missionário católico e publicada pela Folha de S. Paulo), no final de abril. A equipe não dispunha de medicamentos suficientes para todos os que precisavam, conta o indígena. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), responsável pela atenção aos povos originários, dá uma versão diferente: diz que o atendimento ocorreu dia19 de março, “mas a família não autorizou a remoção para uma unidade de saúde”. Também garante ter estoque suficiente de medicamentos e ter contratado profissionais de saúde, mas não esclarece qual é a frequência das visitas à aldeia. A Sesai tampouco informa ao EL PAÍS sobre a incidência de malária, desnutrição e mortalidade infantil para dar a dimensão do crescimento das doenças na região.
Esses problemas de saúde não são generalizados em todo o território Yanomami ―tão vasto quanto a área de um país como Portugal―, mas estão presentes em várias comunidades. Um estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz em duas áreas do território ―Auaris e Maturaká― e divulgado no ano passado dá pistas sobre o tamanho do problema: 80% das crianças de até 5 anos apresentavam desnutrição crônica e 50% desnutrição aguda nestes locais. A situação está relacionada desde à escassez de água potável até a falta de acompanhamento nutricional e de pré-natal na gestação. Passa ainda pelos quadros de verminoses, malária e diarreia frequentes nas comunidades, sem ações preventivas de saúde fortes. “Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo”, diz Júnior Yanomami. “Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam a caça. Nós nos alimentamos da natureza”, explica o indígena.
Os moradores da Maimasi são descendentes de um dos grupos mais afetados pela abertura da estrada Perimetral Norte (BR-210) na década de 1970, durante a ditadura militar. Naquela época, parte significativa do grupo morreu diante de surtos de sarampo e outras doenças levadas pelos trabalhadores das obras. Há anos, eles cobram um posto de saúde, mas por enquanto seguem dependendo de visitas esporádicas da equipe de saúde à comunidade. A situação que já era difícil ficou pior especialmente a partir do ano passado. As visitas diminuíram enquanto cresceram as atividades de garimpeiros ilegais, aumentando a chance de doenças transmissíveis e a violência. E os casos de malária, enfrentados pelos indígenas há décadas e considerados “endêmicos” pela Sesai, seguem crescendo. Segundo Júnior Yanomami, só neste ano já foram identificados cerca de 10.000 casos, o que corresponde a pouco mais de um terço de toda a população yanomami, de cerca de 29.000 pessoas. “A criança na foto provavelmente expressa esse somatório de tragédias”, afirma uma nota da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.
“Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo”
Os vários problemas sanitários, ambientais e sociais enfrentados não estão dissociados. O desmatamento na Amazônia no último mês de abril foi o maior em seis anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O desmatamento tem crescido ano após ano, e o desequilíbrio ambiental interfere na alimentação dos povos da floresta, que se alimentam do que colhem, pescam e caçam nas comunidades mais isoladas. Em várias áreas, a presença de garimpeiros e madeireiros ilegais leva ainda à contaminação de rios com mercúrio, contribuindo para desnutrição, desidratação e diarreia. Com os recursos diminuindo na floresta e a fome à espreita, alguns indígenas acabam trabalhando com não indígenas e aderindo a uma alimentação industrializada e menos nutritiva. “Não dá para generalizar que as crianças estão morrendo desnutridas, com fome. Tem esse problema onde há presença dos garimpeiros. Onde não tem garimpo as crianças estão saudáveis, comendo bem e cuidando de suas atividades. O que falta é assistência de saúde”, defende Kopenawa.“A vida do povo Yanomami está em risco. Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo.”
A escalada da violência com garimpos ilegais
Às crises sanitária e ambiental, soma-se ainda uma escalada de violência em algumas regiões. É o caso da comunidade indígena Palimiu, em Roraima. Há uma semana, a aldeia enfrenta ataques de garimpeiros, com tiros, bombas e gás lacrimogêneo contra os indígenas. Na última terça, garimpeiros ilegais trocaram tiros com a Polícia Federal durante uma visita para averiguar as denúncias de ataques à aldeia. “Eu nunca tinha visto tantos tiros. Só em filme. Eles [garimpeiros] eram muitos e tinham armamento pesado”, conta Júnior Yanomami, que estava na comunidade naquele momento. No ano passado, os indígenas criaram uma barreira sanitária para evitar a passagem de garimpeiros e tentar frear a disseminação do coronavírus. Mas o rio Uraricoera, onde fica a barreira, é uma das principais rotas para a atividade. No dia 24 de abril, os Yanomami impediram a passagem de um grupo. Tentaram negociar para que não voltassem. A resposta, segundo Júnior Yanomami, veio meio hora depois, com tiros em direção à comunidade. Os indígenas revidaram com flechas e tiros de espingarda.
Os vários conflitos na última semana, segundo relatam os indígenas, deixaram três garimpeiros e um Yanomami feridos. Duas crianças teriam morrido afogadas enquanto fugiam dos tiros, segundo lideranças. O último ataque, dizem, foi na noite de domingo. “É uma coisa muita séria. Todos lá estão com muito medo. Eu também fiquei”, emenda Júnior Yanomami. “Tem Yanomami correndo risco. Tenho medo de acontecer um massacre a qualquer momento. O Governo Federal tem que se mexer”, clama.
Entidades indigenistas veem o posicionamento do presidente Bolsonaro, que já fez declarações contra a demarcação da terra indígena Yanomami e costuma defender a regularização do garimpo nos territórios, como um estímulo aos conflitos. Na última quarta-feira, o Exército até deslocou homens para a comunidade, mas os retirou horas depois. A 1ª Brigada em Boa Vista não respondeu à reportagem se reenviará os militares e o que motivou a retirada deles. A Polícia Federal, por sua vez, deve retornar para investigar o caso. Enquanto isso, os indígenas seguem em estado de alerta e medo, contam lideranças. Até que a situação se modifique, devem ficar também sem os serviços de saúde, já que a Sesai retirou os profissionais diante da gravidade da situação. “A unidade de atendimento será reaberta tão logo seja possível atuar em segurança”, afirma a secretaria, acrescentando que atendimentos de urgência serão realizados pontualmente no distrito sanitário indígena que fica fora do território. Já a Fundação Nacional do Índio não retornou os contatos da reportagem. “O clima é de medo. Muito medo. Agora só eles estão lá. Não tem PF, Exército nem Saúde. Estão sozinhos para defender a sua comunidade”, finaliza Júnior Yanomami.
Fonte:
El País
Bruno Boghossian: Com sorte, nova ministra não terá poder sobre educação e saúde
Área de direitos humanos tem problemas e não precisa de invencionices ultraconservadoras
Segundo Damares Alves, em breve a princesa do desenho “Frozen” acordará a Bela Adormecida com um “beijo lésbico”. Ela também reclamou quando viu o pai gay de uma ilustração usando um tênis da moda, que o faz parecer mais descolado do que um pai heterossexual.
Com sorte, a futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não terá poder para interferir em políticas públicas na saúde, na educação, na cultura e em outros temas fora de seu guarda-chuva.
A pasta que será comandada pela advogada e pastora não toma decisões nessas áreas, mas costuma ser ouvida. Caso ela abasteça o governo com as informações que usou em palestras nos últimos anos, o país corre o risco de enfrentar retrocessos.
Damares já distorceu dados sobre saúde pública para mobilizar fiéis de igrejas evangélicas. Em 2013, disse que não há milhares de mulheres que morrem em consequência de abortos ilegais e desafiou qualquer pessoa a mostrar seus túmulos.
Também exibiu uma propaganda italiana sobre discriminação sexual e disse falsamente que ela seria reproduzida no Brasil. Ao falar de turismo sexual, afirmou: “Tem muito hotel fazenda de fachada por aí para os homens transarem com animais”.
Nesta quinta-feira (6), Damares disse estar interessada em combater preconceitos, a pedofilia e a violência contra a mulher. O ministério já tem um prato cheio de problemas para resolver sem as invencionices de alas ultraconservadoras.
Se não surgirem explicações convincentes, a revelação de que um ex-assessor de Flávio Bolsonaro movimentou R$ 1,2 milhão em um ano e assinou um cheque de R$ 24 mil para a mulher de Jair Bolsonaro abrirá a primeira crise do novo governo.
O azar do futuro presidente é que ele não poderá usar a caneta Bic para demitir o filho, senador eleito, caso precise se distanciar do problema. Nesta semana, Flavio disse que, por causa do sobrenome, não será “um senador comum”. Ele tem razão.
El País: Damares Alves, a militante antiaborto alçada a pastora de Bolsonaro na Esplanada
Assessora parlamentar assumirá a nova pasta das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, que inclui Funai, com pauta conservadora mas disposta a lutar por igualdade salarial entre gêneros
Por Ricardo Della Coletta, do El País
Fora dos círculos evangélicos, Damares Alves era uma desconhecida quase completa até ser anunciada, nesta quinta-feira, como a mais nova ministra do Governo Jair Bolsonaro. Damares comandará a pasta das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, uma estrutura nova que será criada em 1º de janeiro e que albergará também a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pelas políticas públicas voltadas para as populações indígenas no país. Pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, a advogada terá a missão delicada e ao mesmo tempo estratégica de formular pautas para os grupos mais vulneráveis da sociedade, ao mesmo tempo em que terá de responder à base conservadora que ajudou a levar Bolsonaro ao poder, um político que rejeita o conceito de "minoria" e relativiza até mesmo o de direitos humanos.
“Essa pasta vai lidar com proteção de vidas, não com morte”, disse, como cartão de visitas, Damares nesta quinta-feira. Ela é uma militante contra o aborto e rejeita que o tema seja encarado como uma questão de saúde pública, apesar das milhares de mortes por ano no Brasil decorrentes de interrupções clandestinas de gravidez. Se neste ponto está alinhada com Bolsonaro e sua base, em outro discordou do eleito: “Se depender de mim vou para a porta da empresa em que o funcionário homem, desenvolvendo papel igual da mulher, ganhe mais. Acabou isso no Brasil”, declarou. Durante a campanha, Bolsonaro afirmou mais de uma vez que, na questão de definição salarial e brecha de gênero em empresas privadas, o Estado não deveria interferir.
A futura ministra é desde 2015 assessora parlamentar do senador Magno Malta (PR), uma das principais figuras da bancada evangélica. Até então com salário líquido de 4.408 reais, virou ministra no lugar que muitos imaginavam pertencer a seu chefe. Apoiador de primeira hora de Bolsonaro, Malta não esconde seu ressentimento com o presidente eleito por ter sido preterido na montagem da Esplanada. Assim como ocorreu com a escolha do titular da Educação, Ricardo Vélez, Bolsonaro passou por cima de aliados no Congresso Nacional, que reclamaram nos bastidores de terem sido ignorados pelo presidente eleito na seleção. As queixas agora viraram públicas: "Se até o momento ficava claro alguma ingratidão com o Magno Malta, agora chegou a ser afronta. Acho que ele [Bolsonaro] erra em convidar e ela [Damares] erra em aceitar. Não foi uma coisa muito bem conduzida", diz o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM), aliado de Malta no Congresso
Atuação evangélica
A ligação de Damares com aliados do presidente eleito, no entanto, é anterior ao vínculo com o senador pelo Espírito Santo. Antes, ela trabalhou para o deputado federal Arolde de Oliveira (PSD), senador eleito pelo Rio de Janeiro cujo sucesso nas urnas em outubro se deveu, em grande parte, ao suporte do clã Bolsonaro. "Ela foi minha assessora durante uns quatro anos. Saiu em 2014 e nós negociamos com o senador Magno Malta para ela continuar fazendo o mesmo trabalho lá", conta Oliveira. "É uma advogada muito atuante, uma educadora, e é pastora. Então os valores e princípios dela são aqueles valores judaico-cristãos", acrescenta.
O deputado diz ter convidado Damares para auxiliá-lo após ter acompanhado o seu trabalho como colaboradora da frente parlamentar evangélica. Antes de trabalhar para Oliveira, ela foi chefe de gabinete de outro expoente da bancada neopentecostal na Câmara, o deputado federal João Campos (PRB). O parlamentar, pré-candidato à presidência da Câmara e autor do polêmico projeto da cura gay, diz que a militância de Damares em temas caros aos evangélicos a tornou conhecida no meio religioso. "Na medida em que foi se dedicando a esses temas, ela foi ficando conhecida e passou a ser solicitada a fazer palestras nos mais diversos Estados do Brasil", relata Campos.
Na Internet, é possível encontrar vídeos em que Damares afirma que "a ideologia de gênero é um grande maltrato contra as crianças do Brasil" e que "estão desconstruindo a identidade biológica" delas. Em sites especializados para o público evangélico, a pastora também é citada com certa frequência, denunciando, por exemplo, o que considera uma "guerra contra a família" promovida nas escolas brasileiras. Nesta quinta, porém, a futura ministra prometeu fazer “um governo de paz entre o movimento conservador, o movimento LGBT e os demais movimentos.”
Questão indígena
O ponto mais polêmico do novo ministério criado por Bolsonaro é sem dúvidas a transferência da Funai para o órgão. A saída da autarquia do guarda-chuva do Ministério da Justiça é fortemente criticada por antropólogos e lideranças indígenas, que temem retrocessos sobretudo na questão de demarcação de terras dos povos originários. O próprio Bolsonaro já declarou que pretende congelar os processos de demarcação existentes. Além do mais, em sua primeira coletiva de imprensa depois de anunciada ministra, Damares confirmou que o tema não deve ser prioridade. "O índio é gente e precisa ser visto de uma forma como um todo. Índio não é só terra", disse.
Damares, que anos atrás adotou uma menina indígena, se diz preparada para ter sob a sua responsabilidade o principal órgão de política indigenista em um país marcado por graves conflitos fundiários. As credenciais que ela apresenta, no entanto, estão longe de convencer antropólogos e movimentos organizados de defesa dos direitos dos índios. A futura ministra afirmou ter iniciado seu trabalho no tema em 1999, quando trabalhou numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a Funai. "Assessorando a CPI da Funai, descubro que alguns povos no Brasil, por uma questão cultural, ainda matam crianças porque não sabem o que fazer com elas quando nascem com alguma deficiência física ou mental", disse Damares nesta quinta-feira. "Quando descobrimos que isso acontecia, que filhos de mães solteiras não podem sobreviver, comecei um diálogo que acabou se prolongando de tal forma que estou há 16 anos cuidando de crianças indígenas no Brasil sempre com diálogo e respeito", acrescentou.
Damares tocou num assunto que é questionado por muitos antropólogos no país. Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Saulo Feitosa, que foi membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a futura ministra "descontextualiza" casos esporádicos de abandono de crianças indígenas. "Há informações de que em alguns povos há abandono de crianças, temos alguns relatos, inclusive lemos através da imprensa geral de que houve situações em que as crianças foram abandonadas. Mas esses relatos são muito esporádicos", rebate Feitosa. "Não há em hipótese alguma a possibilidade de se aceitar de que haja um abandono ou descarte de crianças em massa entre povos indígenas. Isso é mentira e nunca vai se aproximar da quantidade de crianças que são abandonadas no mundo urbano", conclui. De acordo com o professor, o trabalho de Damares nessa temática se insere num esforço de se "criminalizar" determinadas práticas tradicionais indígenas, com o objetivo de retratá-los como comunidades bárbaras e, dessa forma, facilitar a desterritorialização dos povos tradicionais do País.
Nesse sentido, Damares é tida como uma das idealizadoras de um projeto de lei na Câmara dos Deputados que propõe o "combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas". Justamente pelo seu histórico de atuação, a nova ministra representa uma guinada sem precedentes na política indigenista do Brasil, o que deve sofrer forte resistência de setores da sociedade civil.