Fraude
O risco de as Forças Armadas fazerem uma estimativa paralela dos resultados eleitorais
Guilherme de Queiroz-Stein*, Brasil de Fato
Qualquer concessão a uma “apuração paralela” das eleições de 2022 pelas Forças Armadas representa um grande risco à democracia. Primeiro, é preciso deixar claro que não se trata se uma “apuração paralela”, mas de uma estimativa de resultados eleitorais, que, se feita por amostragem, provavelmente chegará a resultados distintos da apuração oficial, mesmo que dentro de um intervalo de confiança. No pior cenário, em que o cálculo da amostra é feito de forma inadequada, a estimativa paralela pode chegar a números complemente distorcidos. Em ambos os cenários, poderão afetar a credibilidade do sistema eleitoral. Além disso, é uma ação totalmente desnecessária, representando um gasto inócuo de recursos públicos pelas Forças Armadas, pois nunca se registrou casos de fraudes nas urnas eletrônicas brasileiras. Quando questionadas em 2014 pelo PSDB, a auditoria feita pelo próprio partido não encontrou qualquer indício de fraude. Neste ano, diversas entidades da sociedade brasileira, incluindo algumas das melhores universidades brasileiras, auditaram seu código-fonte e atestaram a segurança do sistema. Portanto, é uma medida extremamente duvidosa quanto a sua pertinência.
Também, é uma ação questionável em sua legitimidade. Primeiro, porque as Forças Armadas não têm essa atribuição institucional e nem competência técnica para essa avaliação. Segundo, ao longo da história brasileira, as Forças Armadas foram responsáveis por violações institucionais com drásticas consequências, envolvendo assassinatos, torturas, prisões, exílios e crises econômicas. Ou seja, não são guardiãs de nossa democracia. Pelo contrário, devem ser civilmente monitoradas e controladas. Terceiro, não são neutras. Estão subordinadas ao Presidente da República, que é uma das partes interessadas nesse processo eleitoral. O caráter político dessa demanda se expressa no seu ineditismo. Ao longo de três décadas de democracia brasileira, as Forças Armadas nunca se envolveram na apuração eleitoral, pois, como já dito, não é uma atribuição institucional. Neste momento, em que estão subordinadas a um político que questiona o sistema eleitoral, decidem agir. Ou seja, é basicamente uma ação política. Dessa forma, não é adequado o TSE convidar as Forças Armadas para incidir no processo eleitoral, indo além de suas atribuições relacionadas à logística e à garantia da ordem pública. Por si só, essa interferência passa a ser um fator de desconfiança, instabilidade e imprevisibilidade nas eleições.
De todo modo, é importante salientar que, caso os militares façam uma estimativa paralela dos resultados eleitorais, é preciso exigir o controle civil sobre o processo, antes, durante e após as votações. É preciso auditar a “auditoria”, designando representantes da sociedade civil para integrar a comissão responsável por essa avaliação, de preferência formando maioria nessa comissão, com ampla participação, também, de representantes de partidos de oposição. Além disso, é preciso ter ampla transparência em relação a quem serão os militares que integrarão essa comissão, os critérios de escolha e a definição de cada etapa da estimativa, com especial atenção para a definição da amostra de urnas. Vale reforçar que, a depender de como será feita a amostragem das urnas, é possível ter distorções significativas nos resultados das estimativas. Portanto, a construção dessa amostra e de todas as demais etapas deve ser supervisionada por órgãos com efetiva competência técnica, como o Conselho Federal de Estatística e a Associação Brasileira de Ciência Política e estar aberta a todas outras entidades da sociedade civil que desejarem fiscalizar o trabalho dos militares. Afinal de contas, como funcionários públicos, todas suas ações devem estar sujeitas ao escrutínio público. Sem isso, qualquer resultado dessa estimativa pode ser distorcido e destinado exclusivamente a colocar em xeque a democracia brasileira, favorecendo a perpetuação daqueles que atualmente ocupam o poder.
*Texto publicado originalmente no portal do Brasil de Fato.
CPI apresenta passo a passo da fraude em licitações no Ministério da Saúde
Senadores detalharam o esquema montado para beneficiar a Precisa Medicamentos na venda de vacinas e testes anticovid
Agência Senado
Os senadores da CPI da Pandemia apresentaram, nesta quinta-feira (26), o passo a passo existente no Ministério da Saúde para fraudar licitações e beneficiar a empresa Precisa Medicamentos. Apesar de o depoente José Ricardo Santana se negar a responder a maior parte das perguntas dos parlamentares durante seu depoimento à Comissão, ele passou à condição de investigado diante de áudios e outros documentos que apontaram ilicitudes na sua intermediação para venda irregular de testes e vacinas anticovid.
O relator Renan Calheiros (MDB-AL) e o vice-presidente da Comissão, senador Randolfe Rodrigues, apontaram, a partir de documentos recebidos pela CPI, os detalhes do esquema que desclassificou empresas vencedoras de processos licitatórios para a venda de testes de covid — a Abbott e a Bahiafarma —em benefício da Precisa.
Em mensagens de posse da CPI, o ex-diretor do Departamento de Logística (Delog) do Ministério da Saúde, Roberto Dias – chamado de Bob — aparece como o grande responsável por possibilitar a viabilização do esquema de fraudes dentro do ministério. Ouvido pela CPI, em 7 de julho, Dias recebeu voz de prisão ao final de seu depoimento aos senadores.
Dois grupos agiram juntos, segundo o senador Randolfe: o do depoente, que tem familiaridade e intimidade com Dias, e o da Precisa, representada pelo advogado Marconny Faria, pelo proprietário da empresa Francisco Maximiano, o diretor Danilo Trento e outros nomes da empresa.
Mensagem encaminhada por Maximiano a Marconny, no dia 4 de junho de 2020, detalha o esquema. As orientações foram repassadas posteriormente a Santana, para que ele as enviasse a Dias, que era quem iria fazer a operação.
— Bob avoca o processo que está na Dintec, pode alegar necessidade de revisão de atos; Dintec devolve sem manifestações; Bob determina que a análise deve ser feita nos termos do projeto básico, de acordo com a ordem das empresas apresentadas pela área técnica que avaliou a especificação técnica do produto; a área técnica da Dlog solicita, dos seis primeiros classificados pela Saps, a última manifestação, datada de 6 de maio – veja os detalhes que tinha, senhor presidente –, em até dois dias úteis improrrogáveis e de caráter desclassificatório, a apresentação da amostra de 100 testes e os documentos exigidos no PB para habilitação, dentre eles a DDR (Declaração do Detentor de Regularização) do produto, que autoriza a importação de mercadorias por terceiros. A Dlog analisa...Enfim, o último item, senhor relator: empenha e contrata — explica Randolfe.
Essa era a arquitetura da fraude em licitação que deveria vir a ocorrer para desclassificar duas empresas que já tinham vencido o certame licitatório e beneficiar a Precisa, segundo o vice-presidente da CPI, e que acabou sendo inviabilizada por conta de investigação da Polícia Federal.
— A própria história da corrupção do Brasil, de que se tem notícia desde o descobrimento, talvez seja — esse documento é inédito por isso — a primeira vez que alguém descreve o caminho do crime — expôs Renan, ao destacar ainda que a Precisa também vendeu testes para o Distrito Federal, para o Mato Grosso e outros Estados, assim como conseguiu firmar contratos para a venda de preservativos ao ministério.
O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) destacou a entrega do teste Livzon pela Precisa ao Governo do Distrito Federal.
— Eu acredito que esse Livzon, que estava sendo devolvido no mundo todo, deve ter sido adquirido a preço de banana, ou até mesmo adquirido como descarte, e foi entregue exatamente ao GDF. E por isso que eu não tenho nenhuma dúvida de que milhares de pessoas, talvez centenas aqui no DF, morreram na expectativa de que tinham feito o teste e de que o teste tinha algum valor. E realmente não tinha.
Intermediações
O senador Humberto Costa (HC) questionou Santana sobre quem era o "senador" ao qual ele se referia em mensagem trocada com o advogado Marconny, em 2 de junho de 2020, para tratar de 12 milhões de testes rápidos de covid-19.
Na mensagem, Santana disse que haveria uma reunião para “desatar um nó”, por conta de o servidor chamado Eduardo Macário ter travado o processo de aquisição dos testes. O depoente afirmou que um amigo seu se reuniria com o “senador”, às 8h, mas ao senador Humberto assegurou não se lembrar quem seria o referido parlamentar.
Também nesse mesmo dia, lembra a senadora Simone Tebet (MDB-MS), Santana informa a Marconny (conforme dados extraídos na transferência de sigilo do advogado) que estaria na Delog, com Dias, e também com o coronel Marcelo Blanco. Todos estariam aguardando alguns deputados, para “fazer o melhor” nas negociações.
Simone destacou ainda que o nome de Santana está registrado como Secretário da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na cópia do registro da portaria de entrada do Ministério da Saúde, em 2 de junho de 2020, muito tempo após sua saída da Agência, que ocorreu em março daquele ano.
— Se isso se comprovar, além de tudo, estamos falando de falsidade ideológica — destacou Simone.
Investigado
O esquema para beneficiar a Precisa na venda de testes de covid, o envolvimento de Santana em episódios de tentativas de comercialização de vacina ao ministério, e a recusa do depoente em responder as perguntas levaram o relator a conduzi-lo de testemunha à investigado pela Comissão.
— Durante esse período todo de funcionamento da CPI nos submetemos a isso, quase que diariamente. Isso é um escárnio. Como relator desta Comissão, eu queria elevar a testemunha à condição de investigado.
Para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), não havia no ministério a vontade de salvar vidas.
— É uma pena que a gente tenha que ver esse tipo de comportamento. Sabe para que eram aqueles testes? É para as pessoas não morrerem. E vocês fraudando, vocês manipulando. Aquilo era para vocês todos se juntarem e comprarem os testes para o povo brasileiro ser testado. O Brasil é um dos países que menos testou covid. Sabe por quê? Por causa dessa brincadeira; porque o valor não era o valor humano, era o valor que ia entrar no bolso deles. Nunca foi o valor humano; nunca foi a vida; nunca foi!
O senador acrescentou, ainda, que o site de jornalismo de dados Fiquem Sabendo apontou que Santana esteve 27 vezes no Ministério da Saúde nos últimos dois anos.
Vários senadores destacaram a importância de alguns servidores públicos que se opuseram e dificultaram o andamento das tentativas ilícitas de contratos a serem firmados com o Ministério da Saúde, caso de Eduardo Macário.
Fonte: Agência Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/08/26/cpi-apresenta-passo-a-passo-de-fraude-em-licitacoes-no-ministerio-da-saude
Urna eletrônica: 'Fraude é denunciar fraude inexistente', afirma analista
Para o argentino Daniel Zovatto, pressão por voto impresso é descabida e é ‘inoportuno e perigoso’ mudar regras a um ano das eleições
Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo
O argentino Daniel Zovatto nunca foi candidato a nada, mas de eleições ele entende, e muito. Diretor para a América Latina do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea Internacional), ele conhece a fundo as instituições e autoridades que organizam votações em toda a região. Também monitora, com muita preocupação, o estado de saúde da democracia em todo o mundo.
Para Zovatto, a pressão pela implantação do voto impresso no Brasil é descabida. Ele considera que é “inconveniente, inoportuno e perigoso” mudar as regras das eleições quando falta pouco mais de um ano para os brasileiros irem às urnas.
Na entrevista abaixo, na qual manifesta opiniões pessoais, e não da instituição que representa, o doutor em Direito Internacional analisa, entre outros pontos, a estratégia dos políticos que buscam deslegitimar eleições em caso de risco de derrota.
Como analisa o conflito em relação ao sistema de votação no Brasil?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) traçou uma linha vermelha oportuna e necessária ao abrir uma investigação sobre o presidente Jair Bolsonaro e ao emitir uma nota assinada por todos os ex-presidentes do TSE em defesa da urna eletrônica, que tem sido atacada quase diariamente pelo chefe do Executivo. Bolsonaro, por sua vez, reagiu dizendo que não aceitará intimidação e que continuará a exercer seu direito à liberdade de expressão, a criticar, a escutar e a atender, acima de tudo, à vontade do povo. E, fiel à sua palavra, ele continuou com seus ataques e denúncias. Como resposta, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, cancelou uma reunião de chefes de Poderes. Diante do atual clima de tensão, seria desejável abrir um espaço para o diálogo respeitoso entre o Executivo, o STF e o TSE, visando desescalar o conflito, mas sem abandonar a abordagem básica em defesa da independência do TSE, da credibilidade da urna eletrônica e da defesa do sistema democrático.
O que está por trás da pressão pela adoção do voto impresso?
Na minha opinião, houve uma ameaça muito forte à democracia brasileira quando a realização das próximas eleições foi condicionada à adoção do voto impresso. Diante desta grave ameaça, o TSE agiu corretamente, mostrando que tem poder suficiente para defender o processo eleitoral. Isto representa uma mudança muito importante. Se até a semana passada Bolsonaro agia como se não tivesse nada a perder, após a ofensiva do TSE o presidente é alvo de um risco triplo: pode perder a cadeira presidencial se o TSE encontrar irregularidades na campanha de 2018; pode sofrer impeachment; e pode ser impedido de ser candidato nas eleições de 2022.
Considera que o TSE deu uma resposta institucional, em nome de todo o Judiciário?
O TSE tem uma composição única na América Latina, pois seu presidente e parte de seus ministros também são do Supremo Tribunal Federal, e por concentrar tanto funções administrativas quanto judiciais. Estas características fazem do TSE uma instituição muito poderosa. Existem outros órgãos eleitorais sendo atacados na América Latina pelo Executivo – o INE no México –, por deputados do partido no poder – o TSE na Bolívia – ou pela oposição que perdeu as eleições – a JNE no Peru –, mas nenhum dos três tem a capacidade de reagir como o TSE brasileiro. Conheço o TSE desde 1990. Desde então, tenho colaborado com vários programas de cooperação técnica e com a maioria de seus presidentes. Tenho grande respeito e admiração por esta instituição, suas autoridades e equipes por seu profissionalismo, independência e transparência; respeito e admiração que é compartilhado por todos os órgãos eleitorais da América Latina. Também tenho grande confiança e admiração pela urna eletrônica brasileira. Tive a honra de acompanhar sua implementação e melhoria graduais desde 1996 até hoje. É um instrumento seguro, transparente e auditável. Nesses 25 anos de existência, nenhuma fraude foi provada. Por todas estas razões, não vejo razão para justificar sua reforma, e muito menos neste momento em que as eleições de outubro de 2022 estão a apenas 14 meses de distância. Fazer a reforma proposta é inconveniente, inoportuno e perigoso.
Quando reformar os processos eleitorais a fim de aperfeiçoá-los?
O sistema presidencial é baseado na divisão de Poderes, que exige respeito pela independência de cada Poder, um sistema de freios e contrapesos, diálogo para resolver de forma respeitosa e responsável as tensões que surgem. Na concepção, implementação e melhoria do sistema eleitoral, em sentido amplo, é aconselhável que cada poder faça a contribuição estabelecida na Constituição e que exista um diálogo frutífero entre eles, baseado no reconhecimento da independência dos Poderes, no respeito recíproco e na responsabilidade que vem com o exercício do cargo.
Como autoridades responsáveis pela organização de eleições devem responder a ataques à urna eletrônica?
Primeiro: expor todos os falsos argumentos que denunciam supostas fraudes. Demonstrar, com provas claras, que a verdadeira fraude é a denúncia de uma fraude inexistente. Realizar investigações e auditorias que demonstrem a robustez do sistema eleitoral, a solidez da urna eletrônica e a independência e profissionalismo das autoridades eleitorais. E, como o TSE vem fazendo, exercer ao máximo as competências e poderes que lhe são conferidos pela Constituição e pelas leis. A recente nota do TSE assinada por todos os antigos e pelo atual presidente do TSE desde a Constituição de 1988 e os discursos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux são uma contribuição muito valiosa neste sentido. Segundo: buscar, no país, o apoio do maior número possível de partidos políticos, acadêmicos, especialistas eleitorais, ex-membros do TSE, associações profissionais, ONGs e jornalistas e, internacionalmente, convidar instituições e órgãos eleitorais de renome internacional para que visitem o Brasil, realizem investigações e, se as conclusões forem positivas, contribuam para proteger o TSE, a urna eletrônica e a condução do processo eleitoral. Terceiro: convidar missões de observação eleitoral de prestígio (ONU, OEA, UE, entre outras) a ir ao Brasil para acompanhar o processo ao longo de suas diferentes etapas e fazer observações e recomendações.
De um ponto de vista técnico, é possível melhorar a segurança do voto eletrônico. Como esta discussão deve ser conduzida?
Cada país é soberano ao decidir os mecanismos de votação que deseja utilizar. Globalmente, existem vários mecanismos. Os mais comuns são a cédula única em papel, em várias formas, e o voto eletrônico, em suas várias formas, incluindo o voto pela internet. Há também várias formas de votar: votar somente no dia da eleição; votar pessoalmente; votar antecipadamente pelo correio; levar a urna de votação para a casa do eleitor etc. Alguns países até combinam vários mecanismos e várias formas de votação.
Mas o mais importante é que os mecanismos de votação que cada país escolher devem gerar certeza, segurança, transparência, serem auditáveis e, sobretudo, gozar de muita credibilidade e legitimidade entre os cidadãos. Se o mecanismo de votação em vigor em um país goza de altos níveis de confiança, legitimidade e credibilidade, é aconselhável mantê-lo, sem prejuízo de fazer ajustes periódicos para melhorar seu desempenho e eficácia. Por outro lado, quando o mecanismo sofre de debilidades que poderiam comprometer a confiança e credibilidade do público, é aconselhável realizar um processo de reflexão e revisão, baseado em evidências concretas e demonstráveis, com o objetivo de identificar as possíveis causas do problema e as opções mais adequadas para solucioná-lo.
Como consequência, qualquer proposta de reforma eleitoral, especialmente no caso do mecanismo de votação, deve ser bem fundamentada, e as opções propostas para substituir o mecanismo atual devem demonstrar solidez técnica e viabilidade política. Outros fatores que devem ser cuidadosamente analisados são: demonstrar que o saldo líquido da reforma – benefícios menos efeitos negativos – é positivo; determinar seu custo econômico; basear-se num consenso político o mais amplo possível; e determinar, com o parecer técnico do corpo eleitoral, se há tempo suficiente para sua implementação sem assumir riscos sérios para a conclusão bem sucedida do processo eleitoral. A experiência comparativa sugere que, a fim de reduzir os riscos, mudanças no mecanismo de votação devem ser implementadas gradualmente, ou seja, em etapas sucessivas, como foi o caso com a implementação da urna eletrônica no Brasil.
BOLSONARO EM SANTA CATARINA
Donald Trump, como presidente, atacou a legitimidade das eleições nos Estados Unidos. Que influência isso tem sobre os países com tradições menos democráticas, especialmente na América Latina?
Muito forte, infelizmente. Acabamos de ver exemplo disso no Peru, na fase pós-eleitoral do segundo turno das eleições, com as múltiplas alegações de fraude, nunca provadas, feitas por Keiko Fujimori e seu partido Fuerza Popular, e os graves ataques realizados contra as autoridades. Também vimos isso nas recentes eleições no México, de junho e o referendo do último domingo, quando o presidente Lopez Obrador e seu partido Morena acusaram repetidamente o INE de ser o órgão eleitoral mais caro do mundo e de ser um obstáculo à democracia. E nesta semana, na Bolívia, um deputado do partido governista MAS apresentou uma queixa criminal contra quatro magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral.
Uma tendência semelhante parece estar ocorrendo no Brasil com os ataques e denúncias de Bolsonaro contra a urna eletrônica e o presidente do TSE, a quem ele chamou de "idiota" e "imbecil" em julho. Deve-se lembrar que Bolsonaro, nas eleições de 2018, já havia ameaçado não reconhecer os resultados se ele não ganhasse.
Qual é o objetivo de quem busca o descrédito dos processos eleitorais?
A estratégia é semelhante na maioria dos países onde este fenômeno ocorre. Com bastante antecedência, com mentiras e falsas alegações, procuram gerar confusão, semear dúvidas sobre a credibilidade do processo eleitoral, a independência das autoridades eleitorais e a segurança do sistema de votação, criando uma realidade paralela que procura deslegitimar completamente o processo eleitoral no caso de uma derrota. Se eu perco, dizem eles, é porque houve fraude. Os danos que causam ao processo eleitoral, às autoridades eleitorais, às instituições e à democracia são enormes, e seus efeitos se estendem além do processo eleitoral.
Quando alguém analisa se um país está no caminho de se tornar menos democrático, em que se deve prestar mais atenção?
A experiência comparativa, global e regionalmente, identifica quatro luzes amarelas que indicam que estamos enfrentando um perigoso processo de deterioração democrática. Quando não se aceita as regras democráticas ou se joga permanentemente em seus limites. Quando não se reconhece a oposição como um ator legítimo – a oposição é desconsiderada, desqualificada e difamada. Quando se ataca constantemente a imprensa e se impõem restrições ao exercício da liberdade de expressão. E quando se promove o ódio e a violência, física ou verbal, de maneira expressa ou sutil, polarizando a sociedade o máximo possível. Há outros indicadores que normalmente acompanham estes quatro: 1) ataques frontais à divisão de poderes, especialmente às instituições que restringem propostas autoritárias, seja o Congresso, quando não se tem controle sobre ele, o Judiciário, os órgãos de controle, os tribunais eleitorais etc; 2) redução do espaço de ação da sociedade civil; e 3) aumento dos níveis de polarização ao extremo, com a divisão da sociedade em amigos e inimigos, e uso abusivo das redes sociais para atingir este objetivo.
De acordo com analistas e cientistas políticos, atualmente os autocratas atacam a democracia de forma lenta e gradual, e não tanto de maneira abrupta. Concorda com esse ponto de vista?
Concordo plenamente. Embora os golpes não tenham desaparecido completamente, como mostram Honduras em 2009 e Mianmar em 2021, a experiência comparativa indica que os principais e mais perigosos ataques à democracia hoje são realizados por atores que chegaram ao poder através de eleições e que, uma vez eleitos, enfraquecem gradual e permanentemente a democracia de dentro do poder. A maioria dos ataques à democracia em nosso tempo não ocorre por golpes de Estado, mas por quem está no poder e em câmera lenta, como é demonstrado em nossa região pelos regimes autoritários da Venezuela e da Nicarágua.
Como a democracia deve ser defendida quando seu processo de corrosão é gradual e muitas vezes não perceptível pela maioria da população?
Uma estratégia ampla tem de ser implementada, tanto a nível interno como a nível regional e global. A democracia está sitiada em muitos países. As tendências autoritárias estão ganhando terreno, como evidenciado por muitos relatórios de prestígio, incluindo a Economist Intelligence Unit, o projeto V-DEM, os relatórios da Freedom House e o relatório da International IDEA sobre o estado global da democracia. Precisamos estudar com mais profundidade este novo tipo de autoritarismo que está atualmente em construção, a fim de confrontá-lo de forma mais rápida e eficaz. Precisamos estar conscientes da fragilidade da democracia e dos riscos crescentes que ela enfrenta, bem como dos processos de retrocesso que estão ocorrendo em muitos países ao redor do mundo. Nenhum país é vacinado contra o vírus autoritário. Também é necessário rever e atualizar os mecanismos para a defesa regional da democracia, incluindo os estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana, que completa 20 anos em 11 de setembro e se tornou ultrapassada diante do novo tipo de ameaças que a democracia enfrenta hoje. A Idea Internacional tem feito um duplo apelo: por um lado, para defender a democracia durante este período tão turbulento em nossa região, agravado pelo impacto da pandemia, e, por outro lado, para repensá-la a fim de avançar para uma nova geração de democracia, mais resistente e de melhor qualidade, com a capacidade de responder de forma oportuna e eficaz aos novos desafios do século 21.
Qual é o papel da desinformação, e sua ampliação nas redes sociais, na atual crise da democracia?
Novas tecnologias de informação e comunicação estão aqui para ficar e apresentar novos e difíceis desafios para a política, a integridade das eleições e a qualidade da democracia. As redes sociais e sua relação com as eleições, a política e a democracia têm, como o deus Jano, duas faces, Por um lado, essas ferramentas, quando utilizadas adequadamente, têm um efeito positivo no desenvolvimento de processos eleitorais legítimos, melhoram a qualidade da democracia, garantem o pleno exercício da liberdade de expressão, contribuem para um debate público informado e promovem a participação cidadã.
Mas, por outro lado, quando mal utilizadas, elas representam novas e sérias ameaças. As bolhas de filtragem ideológicas e as câmaras de eco geradas pelas redes sociais podem fomentar o ódio, aumentar perigosamente a polarização e facilitar a ação dos movimentos pós-verdade. Também podem contribuir para a viralização de notícias falsas e de campanhas de desinformação, afetando a condução normal das campanhas eleitorais, minando a confiança no processo e nas instituições eleitorais e manipulando o comportamento eleitoral dos cidadãos.
Como as plataformas e redes sociais devem responder aos ataques à democracia, sem restringir a liberdade de expressão?
Após o escândalo da Cambridge Analytica, as plataformas adotaram e continuam a adotar uma série de medidas destinadas a combater notícias falsas e desinformação durante os períodos eleitorais, incluindo códigos de conduta para reforçar a transparência e garantir informações confiáveis. Em um número significativo de países, dentro e fora de nossa região, os Legislativos também adotaram novas e melhores regulamentações sobre esta questão para preencher as lacunas legais existentes em muitos países da região.
Por sua vez, numerosos órgãos eleitorais, incluindo o TSE do Brasil, o INE do México e o TE do Panamá, tomaram uma postura proativa diante deste importante fenômeno e implementaram várias medidas e mecanismos, entre eles: desenvolver suas próprias capacidades institucionais e habilidades em assuntos digitais; promover debates on-line; assinar pactos éticos digitais com uma ampla coalizão de atores, como partidos políticos, organizações da sociedade civil e meios de comunicação tradicionais; chegar a acordos de colaboração – formais ou informais – com plataformas digitais; incentivar o uso responsável de redes; implementar mecanismos de verificação de fatos em colaboração com meios de comunicação tradicionais, universidades, grupos de reflexão e organizações da sociedade civil; implementar campanhas de educação digital para os cidadãos e sobre conteúdos educacionais sobre o processo eleitoral; e fomentar a cooperação horizontal entre os órgãos eleitorais e compartilhar boas práticas e lições aprendidas em relação a este fenômeno, tudo com o objetivo de mitigar os excessos e efeitos negativos das redes sociais durante as campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, maximizar seus efeitos positivos, sempre tomando cuidado para que estas medidas não afetem o pleno gozo da liberdade de expressão. Mas a liberdade de expressão não deve e não pode ser mal utilizada ou manipulada para propagar com impunidade notícias falsas ou campanhas de desinformação destinadas a deslegitimar um processo eleitoral ou atacar as instituições ou a própria democracia.
Qual deveria ser a posição de um presidente democrata em relação à oposição? Em que ponto se passa da crítica aceitável para os ataques que procuram deslegitimar a oposição?
Democracia é sinônimo de pluralismo, diálogo, respeito, tolerância. A oposição deve ser racional e jogar limpo. O Executivo também deve. Ambos devem reconhecer e respeitar um ao outro como jogadores legítimos no jogo democrático. Um presidente democrático deve defender seu programa e suas propostas com firmeza, mas sempre com respeito, reconhecendo a oposição como um jogador-chave no jogo democrático. Deve ser evitado um nível excessivo de polarização que leva a um jogo de soma zero, e a uma desqualificação e difamação da oposição que implica não reconhecê-la como um ator legítimo no jogo democrático. Em alguns casos, tais como Nicarágua e Venezuela, vemos como o Executivo desqualifica ou prende partidos e líderes da oposição. Em outros, como no caso de Bukele em El Salvador, adjetivos difamatórios são usados quando se refere à oposição. Sem uma oposição autêntica, não há democracia
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Democracia em erosão: Sob Bolsonaro, a corrosão do Estado e das liberdades individuais
Fonte: O Estado de S. Paulo
William Waack: Bolsonaro e as nossas agonias
Não há consenso em como lidar com a atração do presidente pelo abismo
Os personagens políticos que conquistaram o poder, não importa o método, e por mais tempo lá ficaram, também não importa como, são os que menos sofreram da doença que acomete Jair Bolsonaro. É o conhecido fenômeno da autossugestão, pela qual a concepção de mundo do doente vira uma crença mística tão enraizada a ponto de que nada o convence de que possa estar errado.
Esse diagnóstico é amplamente compartilhado hoje em Brasília nas mais variadas esferas dos poderes, incluindo a volátil instância dos caciques políticos do Centrão e passando por quase todos os ministros do STF e tribunais superiores, além de parte relevante do Alto Comando do Exército. As divergências surgem quando se trata de definir como lidar com o bravateiro.
Bolsonaro não parece levar em conta fatores reais de poder, pois acha que foi imbuído de missão divina e apenas o Todo-Poderoso decide. Talvez essa concepção de mundo ajude a entender o fato de ele não ter conseguido chegar a dois instrumentos clássicos para qualquer golpe: organização política de massa e/ou capacidade de exercer violência armada. E ter perdido (até mesmo entregado) considerável parte do poder de seu cargo para o Legislativo e o Judiciário.
Assim, para os atores políticos “racionais” nas instâncias acima mencionadas surge como completamente irracional o contínuo esforço de Bolsonaro rumo à ruptura institucional, pois o mundo real da relação das forças de poder indica que disso sairia ele como o principal perdedor. Na verdade, com sua estatura derretendo em todos os sentidos, já é o grande derrotado, mas não é assim que ele se vê.
Como lidar, então, com esse personagem que parece movido por uma inexorável atração pelo abismo? Entre altos oficiais das Forças Armadas detecta-se o sentimento de que não vão segui-lo na loucura, mas não estão agindo para impedi-lo. Depois de contínuas afrontas, o Judiciário deu passos concretos para contê-lo, mas o tempo consumido por inquéritos no TSE e no STF é muito mais longo do que o tempo da política. E o PGR não acha que cabe a ele virar a República de pernas para o ar.
Na política, que é a esfera decisiva, dividem-se os caciques do Centrão entre os que ainda acham possível tutelar Bolsonaro, sobretudo depois da mudança na Casa Civil, e os que desistiram dessa ambição que ninguém de fora da família conseguiu realizar. É uma rachadura que por enquanto não se amplia, pois, no cálculo cínico desses agentes, os poderes conquistados pelo Centrão não mudam caso “caia a ficha” e Bolsonaro modere o comportamento. E ficam do mesmo jeito caso o presidente continue desprezando os conselhos que está recebendo e prossiga piorando a briga com o Judiciário.
No fundo, o que todos estão fazendo é esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. Não existe nos círculos de poder econômico e político uma disposição clara – nem coordenação nem liderança nem a “massa crítica” política necessárias – para precipitar qualquer ação de afastamento de Bolsonaro, por mais que aumente a percepção de que ele está causando severos danos ao regime democrático, à população e ao País.
É o que torna possível a esse personagem político seguir padecendo nessa evidente agonia interior, trazida por conspirações e fantasmas que alimentam impulsos incontroláveis – e que passou a ser a agonia de todos nós, a agonia das lives patéticas, das frases desconexas no cercadinho de bajuladores, dos raciocínios tortuosos em entrevistas, das mentiras descaradas, da omissão diante dos fatos, da ausência de compaixão, solidariedade, interesse público, projeto de futuro.
A principal agonia talvez seja a de constatar que Bolsonaro não reúne mais condições de realizar qualquer grande transformação, a não ser provocar uma tragédia. A boa notícia é que em história nada é inevitável.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-e-as-nossas-agonias,70003800678
Após 3 anos falando em fraude eleitoral, Bolsonaro assume não ter provas
Presidente muda discurso, admite que 'não tem como provar' e divulga conjunto de relatos já desmentidos
Ricardo Della Coletta e Renato Machado, da Folha de S. Paulo
Após três anos denunciando supostas fraudes nas eleições brasileiras, o presidente Jair Bolsonaro realizou uma live nas redes sociais nesta quinta-feira (29) para apresentar o que ele chama de provas das suas alegações, mas trouxe até as 20h apenas teorias que circulam há anos na internet e que já foram desmentidas anteriormente.
Ao longo de sua fala, Bolsonaro mudou o discurso e admitiu que não pode comprovar se as eleições foram ou não fraudadas.
"Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios. Crime se desvenda como vários indícios”, declarou.
Durante a apresentação, que começou às 19h e continuava por volta das 20h, foram veiculados vídeos divulgados na internet que buscam transmitir a mensagem de que é possível fraudar o código fonte para computar o voto de um candidato para o outro.
Os vídeos utilizam uma linguagem bem didática, com desenhos animados, para deixar a mensagem facilmente assimilável.
O TSE, reportagens jornalísticas e checadores já mostraram, diversas vezes, que esses esse tipo de fraude não é possível e que os vídeos que circulam na internet não indicam qualquer tipo de irregularidade ou que alguma urna tenha sido corrompida.
A apresentação ocorreu em transmissão no Palácio da Alvorada na noite desta quinta-feira (29).
Estavam presentes na residência oficial da Presidência os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência), Anderson Torres (Justiça), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), além do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
O responsável pela exibição dos indícios foi um homem identificado apenas como Eduardo, que, segundo Bolsonaro, é analista de inteligência.
O presidente abriu o evento com um discurso de cerca de 40 minutos, sem abordar especificamente as provas que havia prometido. Tratou de remédios sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19, novamente criticou governadores e prefeitos que promoveram isolamento social e mencionou políticas de seu governo
Bolsonaro também criticou, por diversas vezes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu provável adversário no pleito de 2022. De acordo com a última pesquisa do Datafolha, o petista venceria Bolsonaro no segundo turno por 58% a 31% das intenções de voto.
O presidente também atacou o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Luís Roberto Barroso, e defendendo a sua tese do voto impresso —chamado por Bolsonaro de “auditável” e democrático.
"Por que o presidente do TSE quer manter suspeição das eleições? Quem ele é? Por que ele fica interferindo por aí, com que poder? Não quero acusá-lo de nada, mas algo muito esquisito acontece", disse Bolsonaro
"Onde quer chegar esse homem que atualmente preside o TSE? Quer a inquietação do povo? Quer que movimentos surjam no futuro que não condizem com a democracia?"
Bolsonaro afirmou ainda, erroneamente, que a contagem dos votos seria feita em uma sala escura no TSE pelo mesmo homem que determinou a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O presidente então repetiu a mentira de que a contagem das eleições hoje seria secreta e de que quer uma apuração pública, algo que não faz sentido, pois atualmente o processo de totalização dos votos já pode ser auditado, inclusive com um registro impresso, que é o boletim da urna.
Os boletins de urna são distribuídos aos partidos políticos e afixados nos locais de votação em cada seção eleitoral. A impressão e publicidade dada aos boletins de urna impressos às 17h em cada seção eleitoral garantem a auditoria e impedem fraudes na totalização, pois uma diferença entre os números impressos e os totais podem ser identificados.
A proposta do voto impresso em debate no Congresso e defendida por Bolsonaro não provocaria alterações na contagem dos votos.
Embora tenha prometido provas, em determinado momento da transmissão, o presidente transferiu para a responsabilidade de mostrar fatos concretos a quem defende o sistema.
"Será que esse modo de se fazer eleições é seguro, é blindado? Os que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação. Me apresente provas [de que] não é fraudável", desafiou.
Como indícios de fraude, Bolsonaro exibiu vídeos de analistas e jornalistas acompanhando a apuração do primeiro turno de 2018.
Naquele pleito, Bolsonaro chegou a marcar 49% dos votos quando as parciais começaram a ser divulgadas. A primeira divulgação de resultados parciais, um pouco depois das 19h, realmente mostrava Bolsonaro com 49,02% dos votos, e um total de 53,49% das urnas apuradas.
Naquele momento o status da apuração por região divulgado pela televisão e mostrado na live de Bolsonaro era o seguinte: Norte (48,02%), Nordeste (43,93%), Centro-Oeste (73,51%), Sudeste (10,99%) e Sul (85,38%).
Ele aponta que o fato de o Nordeste estar mais adiantado e o Sudeste mais atrasado seria indício de fraude. No entanto, nada disso faz sentido. Se houvesse alguma adulteração dos resultados durante a apuração, como o vídeo indica, isso poderia ser comprovado por meio de auditoria com os boletins de urna.
A variação das porcentagens ao longo da apuração depende tão somente da ordem em que as urnas são apuradas. O resultado das seções eleitorais são transmitidos ao TSE por meio de uma rede exclusiva da Justiça Eleitoral, o que impediria, qualquer tentativa de interceptação por hackers.
Isso porque, com uma fraude, os resultados impressos nos boletins não corresponderiam aos totais apresentados pelo TSE como resultados finais. Os boletins são impressos quando as urnas eletrônicas são encerradas. Ou seja, nas seções eleitorais os resultados já são conhecidos e estão registrados em papel, o que ocorre depois disso é a transmissão dos resultados e a totalização.
Fonte:
Barroso: ‘Discurso de que se eu perder houve fraude é de quem não aceita a democracia’
Presidente do Tribunal Superior Eleitoral criticou proposta de adoção do voto impresso durante evento no Acre
Weslley Galzo / Blog Fausto Macedo / O Estado de S. Paulo
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, discursou na manhã desta quinta-feira, 29, no evento de inauguração da nova sede do Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC). O magistrado, que foi homenageado na cerimônia, fez duras críticas à proposta de adoção do voto impresso como mecanismo adicional de auditagem das urnas eletrônicas. As falas ocorrem no mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro prometeu fornecer as provas de que as eleições de 2014 e 2018 foram fraudadas. Ao falar na celebração, Barroso afirmou que “o discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”.
‘’Este é um sistema que consagra a democracia, porque uma das características da democracia é a alternância de poder. É reconhecer a possibilidade que o outro que pense diferente de mim possa ganhar. É isso que é a democracia. Portanto, o discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”, afirmou. O presidente do TSE mencionou que as urnas eletrônicas elegeram tanto Jair Bolsonaro, quanto Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, garantindo que diferentes espectros ideológicos governassem o País.
Sem mencionar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, principal defensor da impressão de comprovantes do voto, Barroso afirmou que “uma causa que precise de ódio, mentira, desinformação, agressividade e grosseria não pode ser uma causa boa”. O magistrado se tornou um dos alvos preferenciais dos ataques do político na tentativa de viabilizar o voto impresso.
No dia 9 deste mês, em conversa com apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada, Bolsonaro chamou o presidente do TSE de “imbecil’ e “idiota”. Ele também ameaçou a realização das eleições no ano que vem caso o Congresso Nacional rejeite a Proposta de Emenda à Constituição, da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que pretende incluir impressoras nas urnas eletrônicas.
“Eu não me distraio com miudezas, eu vivo para fazer o que é certo, justo é legítimo, sem ser o dono da verdade, porque numa democracia não tem donos da verdade. A democracia é o regime em que há muitas verdades possíveis, mas a mentira deliberada tem dono é essa precisa ser adequadamente denunciada”, disse Barroso em seu discurso. “Os países, assim como as pessoas, passam pelo que tem que passar para se aprimorarem e amuderecerem”.
O presidente do TSE elencou os pontos que, segundo ele, desabonam o projeto do voto impresso: a logística de transporte e armazenamento dos votos, o forte esquema de segurança necessário para garantir a lisura do processo eleitoral, a possibilidade de retorno de fraudes com o manuseio das cédulas e a eventual contestação judicial das apurações.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/projeto-que-precise-de-odio-e-desinformacao-nao-pode-ser-uma-causa-boa-diz-barroso-sobre-voto-impresso/
Eleições no Brasil acumulam polêmicas e suspeitas de fraudes antes da urna eletrônica
Casos emblemáticos no Rio de Janeiro e em Alagoas envolveram cédulas de papel fraudadas e apuração irregular
Se as votações realizadas com urnas eletrônicas não possuem nenhuma comprovação de fraude desde que essa tecnologia passou a ser utilizada, há 25 anos, os pleitos anteriores acumulam polêmicas e suspeitas de fraudes em casos que remontam ao início da República no Brasil, em 1889.
Uma das situações emblemáticas ocorreu no Rio de Janeiro, na eleição de 1994, quando, após denúncias de fraudes, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pediu auxílio do Exército para fiscalizar a apuração de zonas eleitorais.
Na época, segundo reportagem da Folha, uma facção criminosa chegou a ameaçar de morte Luiz Fux, então juiz eleitoral e hoje presidente do STF (Supremo Tribunal Federal).
Por decisão unânime, os sete juízes do TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro) decidiram anular as eleições no estado para deputados federais e estaduais e convocar novo pleito para novembro do mesmo ano.
A Polícia Federal indiciou cinco pessoas por formação de quadrilha, suspeitas de adulterar boletins eleitorais. Os votos de uma urna foram impugnados porque 45 votos apresentavam a mesma caligrafia.
Em 1996, porém, o TSE restabeleceu o resultado do primeiro pleito por entender que a maioria dos votos foi válida. Naquele mesmo ano, as urnas eletrônicas passaram a ser adotadas no país.
Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reforçou seus ataques ao sistema eletrônico de votação e deu repetidas declarações golpistas de ameaças à realização das eleições de 2022 caso não seja implantado um modelo de voto impresso.
Embora argumente que as urnas eletrônicas seriam passíveis de fraude, Bolsonaro nunca apresentou provas —que vem prometendo há mais de um ano— para embasar a acusação.
Antes das urnas eletrônicas, entre os métodos citados para fraudar votações em papel estavam o depósito em branco de cédulas que poderiam, posteriormente, ser preenchidas de forma irregular; extravio de cédulas; e os boletins informativos das urnas que poderiam ser alterados após a apuração.
Outro caso que ficou famoso no país ocorreu em Alagoas. Após as eleições de 1990, o TRE do estado anulou os votos de 117 urnas de Maceió, apuradas pela 2ª Junta Eleitoral da capital alagoana. O tribunal também anulou os votos dos municípios de Campo Grande, Girau do Ponciano, Batalha, Jacaré dos Homens e Belo Monte.
A eleição suplementar ocorreu nesses locais no dia 16 de dezembro daquele ano e confirmou os nomes de Geraldo Bulhões (PSC) e Renan Calheiros (então no PRN) na disputa pelo Governo de Alagoas no segundo turno.
Em Maceió, as fraudes consistiram na transformação de votos brancos e nulos em votos válidos e na alteração dos boletins de apuração. No interior do estado, urnas chegaram aos locais de votação com votos previamente preenchidos, com caligrafias idênticas.
"A votação em cédula de papel era muitíssimo mais insegura", lembra João Fernando Lopes Carvalho, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo. Além de maiores possibilidades de fraude, ele afirma que existiam erros pertinentes ao próprio processo.
"O eleitor tinha que escrever na cédula para quem ele votava. Isso gerava uma dificuldade grande para identificar quem era o destinatário do voto. Às vezes o número de votos da urna não batia com o número de votos registrados em determinado local. É um processo bem mais complicado do que parece ficar contando cédula. E, às vezes, o apurador lançava o voto identificado de um candidato para outro concorrente."
Lopes Carvalho diz ainda que a apuração dos votos demorava um longo tempo. "Era um sofrimento. Se arrastava por dias, noites, as pessoas chegavam a passar mal no meio do processo de apuração. A eleição em papel é mais insegura do que a eleição eletrônica, sem dúvida nenhuma."
O especialista em direito eleitoral se recorda de atuar no caso de um deputado federal afetado por um episódio de mapismo, isto é, a inversão dos resultados lançados nos boletins de apuração. "Ele tinha uma votação constante em uma determinada cidade e, de repente, em algumas sessões ele deixava de ter votos e o candidato concorrente registrava votos iguais à média dele. Era uma coisa muito frequente no processo de apuração."
Em entrevista publicada pela Folha em novembro de 2020, o cientista político da UnB (Universidade de Brasília) David Fisher afirmou que o voto por meio de cédulas de papel “abre muito espaço para manipulação e falsificação”.
Como exemplo, ele citou sua experiência nas eleições de 1994 em São Paulo, quando atuou como observador da OEA (Organização dos Estados Americanos).
“Era complicado porque tinha que apurar votos para cargos majoritários e proporcionais. Teve uma mesária que foi ao banheiro quatro ou cinco vezes. O juiz desconfiou e mandou uma oficial ir atrás dela. A apuradora havia pego votos em branco sorrateiramente, colocado na calcinha e estava no banheiro preenchendo”, exemplificou.
“Naquela época, nas cidades menores, tinha o fenômeno que o cabo eleitoral guardava o título eleitoral dos eleitores e depois levava o eleitor para votar. Chegava lá, entregava o título e a chamada marmita [envelope com todas as cédulas de papel]”, contou Fisher.
Outro exemplo dado por ele é o de um juiz eleitoral que pediu a opinião dos fiscais para saber como contabilizar os votos. “Fernando Henrique Cardoso não era candidato, deveria ser voto nulo. Mas podia contar como voto partidário ao PSDB. Mesma coisa no caso do Lula e do Brizola: acabou contando como voto de legenda”, contou.
O próprio TSE admitiu que houve “várias denúncias de fraudes antes da adoção da urna eletrônica pela Justiça Eleitoral”.
Mas os problemas durante votações no Brasil já apareciam em eleições bem mais antigas. No período da República Velha, que vai da Proclamação em 1889 até a Revolução de 1930, os pleitos brasileiros foram marcados por irregularidades.
Prudente de Morais, eleito em 1894 como presidente da República, apoiava os candidatos indicados pelos governadores que, em troca, retribuíam o apoio. A ação dependia dos coronéis, grandes proprietários de terras que possuíam poder em relação aos eleitores, incentivavam que estes votassem nos candidatos indicados e fiscalizavam se as pessoas realmente votaram conforme determinado.
Nas eleições de março de 1930, Júlio Prestes venceu a disputa à Presidência. Entretanto existiram suspeitas de fraude. Nesta década, o país vivia um clima conturbado e a possibilidade de maniputação no pleito contribuiu para a eclosão de um conflito entre estados que culminou com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.
A partir de 1955, para tentar inibir fraudes, fixou-se o eleitor na mesma seção eleitoral. Outra alteração foi a adoção da cédula única de votação. Até então as cédulas eleitorais eram impressas e distribuídas pelos próprios candidatos.
Oscar Vilhena Vieira: Vandalismo constitucional
Proteger a integridade das eleições será o maior desafio dos que prezam pela democracia
Eleições livres e justas e a alternância no poder são elementos fundamentais à vida democrática. A maioria dos governantes populistas, no entanto, resiste a deixar o poder após uma derrota eleitoral ou mesmo ao término de seus mandatos, como nos alerta Yascha Mounk, autor de “O Povo contra a Democracia”.
Na medida em que o líder populista se define como único e autêntico representante da vontade popular, um eventual resultado desfavorável nas urnas sempre poderá ser atribuindo a falhas no processo eleitoral. Trata-se, portanto, de uma estratégia preventiva de populistas autoritários para buscar se manter indefinidamente no poder.Ao longo de quatro anos na Casa Branca, Trump fez o que pôde para fragilizar e capturar as instituições da democracia constitucional. Empregou as mídias sociais para promover a mentira e a polarização política. Combateu a imprensa livre, fomentou o nacionalismo, as milícias armadas e as mais diversasformas de discriminação contra grupos vulneráveis.
Como outros populistas, desprezou as ameaças da pandemia, promoveu aglomerações, combateu a ciência e o uso da máscara, contribuindo, assim, para a morte de quase 400 mil compatriotas. Tudo isso sob olhar cúmplice de grande parte dos republicanos, de empresas de tecnologia e de outros setores potentes da economia que agora, constrangidos, dele buscam se afastar.
A credibilidade do processo eleitoral nunca saiu da mira da máquina de mentiras de Trump. Na iminência da proclamação da vitória de Joe Biden, não foi difícil incitar seus seguidores mais radicais a empunhar as insígnias da extrema direita norte-americana e marchar sobre o Capitólio e a Constituição.
Ao longo das últimas duas décadas, o Brasil construiu um sistema de votação eletrônico que tem se demonstrado não apenas íntegro, mas extremamente eficiente. As deficiências de nosso sistema eleitoral, como desinformação, “candidaturas laranja”, financiamento ilegal e mesmo a violência, não dizem respeito, em absoluto, ao processo de votação eletrônico.
Jamais se comprovou, desde a implantação da urna eletrônica, qualquer falha relevante que impactasse o resultado de uma eleição. Exigir o voto impresso é uma tentativa de retroagir ao voto de cabresto, em que o eleitor terá que comprovar em quem votou ao miliciano de plantão, além de favorecer uma interminável judicialização do resultado das eleições.
Por não operarem em rede, nossas urnas eletrônicas têm evitado a ação de hackers. Cada urna é auditada antes da votação, para que se certifique que não recebeu nenhum voto antecipadamente. Ao término da votação a urna emite um boletim, impresso, com o número de votos de cada candidato. Partidos, fiscais, OAB e o Ministério Público têm amplo acesso a todo um processo supervisionado pela Justiça Eleitoral. O TSE também convida observadores internacionais, como a Missão de Observação Eleitoral da OEA, para acompanhar nossas eleições.
A invasão do Capitólio nos ensina que a persistente tentativa de deslegitimar o sistema de escolha eleitoral por populistas não pode, em hipótese alguma, ser negligenciada. Seu único objetivo é fomentar a subversão democrática.
O maior desafio daqueles que prezam pela democracia no Brasil, não importa em que posição do arco ideológico se encontrem, é construir um amplo pacto de proteção à integridade das eleições de 2022, para que não corramos o risco de submergir num vertiginoso processo de vandalização de nossa democracia constitucional.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Elio Gaspari: Os últimos dias de Trump
O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou
Em julho de 2016, o bilionário Michael Bloomberg, disse durante a convenção do partido Democrata: “Eu reconheço um vigarista quando o vejo”. Referia-se a Donald Trump. Passaram-se quatro anos, e a questão da vigarice do doutor foi para a mesa da procuradora-geral do estado de Nova York. Em Washington, a questão tornou-se outra: a eventual aplicação do dispositivo constitucional que permite empossar o vice caso o titular esteja incapacitado. Quando essa emenda foi aprovada, pensava-se num cenário no qual o presidente está sob intensos cuidados médicos. No espetáculo da série “Os últimos dias de Trump”, a invocação do dispositivo nada tem a ver com uma anestesia geral, por exemplo. Trata-se de incapacidade por maluquice.
Trump é visto como um narcisista psicótico por muita gente que não gosta dele. Em julho passado, sua sobrinha Mary (psicóloga) publicou um livro com o subtítulo “O homem mais perigoso do mundo”. Parecia futrica familiar.
Desde novembro, Trump sustenta que venceu a eleição “de lavada”. Na terça-feira, os candidatos republicanos perderam a eleição na Geórgia. No dia seguinte, seus guardiões fizeram o que fizeram. (“We love you”, disse Trump.) Os senadores e deputados americanos foram obrigados a deixar o prédio. Numa decisão histórica, voltaram aos plenários horas depois. Na quinta-feira, confirmaram o resultado eleitoral. A senadora republicana que perdeu a cadeira tirou sua assinatura do pedido de recontagem dos votos da eleição presidencial na Geórgia. Duas integrantes do primeiro escalão de seu governo foram-se embora, e seu fiel ex-procurador-geral acusa-o de ter traído o cargo.
O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou. Isso só acontecia em filmes ruins. Desde o dia em que tomou posse, garantindo que ela foi assistida por uma multidão jamais vista, estava no tabuleiro a carta de que se tratava de um mentiroso. Quatro anos depois, com o seu negativismo eleitoral e a mobilização de seus seguidores para a invasão do Capitólio, Trump encarna o personagem do teatrólogo Plínio Marcos em “Dois perdidos numa noite suja”: “Sou o Paco Maluco, o perigoso”.
A série “Os últimos dias de Trump” não terminou. Se ele queria ir jogar golfe na Escócia no dia da posse de Joe Biden, deve buscar outro pouso. A primeira-ministra Nicola Sturgeon disse que lá o doutor não entra, pois o país está em lockdown.
Faltam dez dias para o fim da série, e Trump ainda surpreenderá a plateia. A Associação Americana de Psiquiatria continua funcionando, com sede a poucos minutos da Casa Branca. Isso, porque malucos existem.
A poesia de Grant no caos de Trump
Durante as horas em que a anarquia trumpista tomou conta do Capitólio, deu-se um momento de poesia histórica. Sem dar a menor bola, centenas de manifestantes passavam por baixo do monumento ao general Ulysses Grant, comandante das tropas vitoriosas da União durante a Guerra da Secessão (1861-1865).
A estátua equestre é um retrato excepcional da figura de Grant. Enquanto o gênero coloca os homenageados em posições combativas, como o Duque de Caxias de Victor Brecheret, o Grant do escultor Henry Shrady está encolhido, parece um tropeiro com frio. Assim era ele. Teve uma carreira militar medíocre, tentou a vida fora do Exército e faliu. Bebia mal. Ele comandava tropas do Norte quando chegou com o filho a um hotel de Washington e o recepcionista disse-lhe que só tinha quartos no sótão. Tudo bem até a hora em que ele assinou a ficha: “Ulysses S. Grant”.
Na cena da rendição dos rebeldes numa casa de Appomattox havia dois comandantes. Um chegou num bonito cavalo, com faixa na cintura e espada com punho de ouro cinzelado. O outro, com o uniforme amarfanhado (há quatro dias não o trocava) e as botas enlameadas. O bonitão era Robert Lee, que estava se rendendo e pedindo comida para seus soldados.
Desde jovem, quando participou da invasão do México, Grant impressionava pela sua capacidade de manter o sangue frio nos piores momentos de uma batalha e diante do massacre de suas tropas. (Isso numa pessoa que tinha horror a carne mal passada, pelo que viu no curtume de seu pai.)
Quanto maior a confusão, maior era a calma de Grant. Sua figura no meio da anarquia dos guardiões de Trump a foi mais uma homenagem ao general que botou os escravocratas do Sul de joelhos.
Grant foi eleito presidente e governou de 1869 a 1877. Um desastre. O general meteu-se com o papelório, e no fim da vida estava quebrado. Pagou suas contas escrevendo um livro de memórias. Ele e a mulher estão sepultados num mausoléu em Nova York, na altura da rua 122. O balcão de perfumes da Bloomingdale’s recebe mais fregueses num mês do que sua tumba do casal em um século.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, encantado com o legado da Olimpíada de 2016 e com o desenvolvimento imobiliário gerado pelo Porto Maravilha. O cretino adorou a ideia do prefeito Eduardo Paes de convocar um plebiscito para decidir o que fazer com a falecida ciclovia Tim Maia.
Eremildo propõe que no plebiscito sejam feitas mais duas perguntas:
Quem foi o responsável pelo desastre que matou duas pessoas e torrou R$ 45 milhões?
A prefeitura não tem mais o que fazer?
Baleia Rossi
O pelotão palaciano acordou para a possibilidade de o deputado Baleia Rossi ganhar a presidência da Câmara dos Deputados.
Mayrink, um artista
Gustavo Mayrink colocou um tesouro na rede. É o site “Geraldo Mayrink”, com dezenas de textos de seu pai, falecido em 2009, depois de mais de 40 anos de atividade jornalística.
Ele falava calado e escrevia como poucos.
As quatro primeiras frases de seu perfil do jogador Garrincha entraram para a história da maestria jornalística:
“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol.”
Num tempo de más notícias, os textos de Geraldo Mayrink permitem um reencontro com a alegria de seus leitores.
Notas incorretas
No vídeo que mostra os guardiões de Trump no salão que fica debaixo da cúpula do Capitólio, eles se comportaram como respeitosos visitantes de um museu.
O vídeo que mostra o tiro dado por um policial na manifestante que estava do outro lado de uma porta, matando-a, foi coisa de seguidor do ex-governador Wilson Witzel.
(Em tempo: se os trumpistas de Washington fossem negros, os mortos da quarta-feira teriam passado da dezena.)
Macaco fora do galho
No dia em que o Brasil bateu a marca dos 200 mil mortos pela Covid, Bolsonaro avisou que se o Brasil não usar o sistema de voto impresso, terá os mesmos problemas que aqueles criados por Trump nos Estados Unidos.
Tudo bem. Seria o caso de ele combinar que na próxima epidemia o presidente do Tribunal Superior Eleitoral acumulará o cargo com o de ministro da Saúde. Certamente, ele não falará em cloroquina, “gripezinha” nem “conversinha” de segunda onda.
El País: Bolsonaro apoia Trump e diz que houve fraude nos EUA enquanto mundo critica assalto ao Capitólio
Premiê do Reino Unido, Boris Johnson, diz que imagens são “vergonhosas” e ministro alemão fala em “democracia pisoteada”
Os principais líderes mundiais assistiram com espanto ao ataque à sede do Congresso dos EUA por manifestantes instigados pelo presidente Donald Trump. A seriedade dos acontecimentos no Capitólio dos Estados Unidos levou à condenação de grande parte dos líderes mundiais, que concordam em pedir calma e respeitar a vontade das urnas. Não foi, no entanto, o caso de Jair Bolsonaro.
Um aliado entusiasta de Trump, Bolsonaro, um dos últimos líderes a parabenizar Joe Biden pela vitória nos EUA, deu apoio tácito à investida incitada pelo republicano quando perguntado por apoiadores nesta quarta-feira. “Eu acompanhei tudo. Você sabe que eu sou ligado ao Trump. Você sabe da minha resposta. Agora, muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude. Eu falei isso um tempo atrás”, disse o brasileiro, em referência ao ainda ocupante da Casa Branca.
Ato seguido, Bolsonaro voltou, novamente sem provas, a dizer que sua eleição em 2018 também foi alvo de fraude. “A minha eleição foi fraudada. Eu tenho indícios de fraude na minha eleição. Era para eu ter ganho no primeiro turno.” O brasileiro insiste tanto na tese infundada de fraude como na campanha de desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro que deixa poucas dúvidas de que seguir a estratégia de Trump, de questionamento de resultados eleitorais e incitação da base radical, faz parte de um roteiro que ele pode acionar em 2022. Os presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, criticaram os acontecimentos em Washington.
Veja a seguir a reação de líderes internacionais. A maioria escolheu a rede social Twitter para tornar pública sua reação.
Reino Unido. O primeiro-ministro Boris Johnson, também um aliado de Trump, condenou o que aconteceu: “Imagens vergonhosas no Congresso dos Estados Unidos. Os Estados Unidos representam a democracia em todo o mundo e agora é vital que haja uma transferência de poder pacífica e ordeira.”
Alemanha. “Trump e seus apoiadores devem definitivamente aceitar a decisão dos eleitores americanos e parar de pisotear a democracia”, tuitou o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas.
OTAN. O secretário-geral da Aliança Atlântica, o norueguês Jens Stoltenberg, chamou os violentos protestos em Washington como “cenas chocantes” e destacou que “o resultado dessas eleições deve ser respeitado”.
Rússia. “De DC vêm imagens no estilo Maidan”, tuitou o número dois do embaixador russo na ONU, Dmitry Poliansliy, referindo-se às mobilizações populares que culminaram na derrubada do aliado presidente ucraniano de Moscou, Viktor Yanukovich. “Alguns dos meus amigos perguntam se alguém vai distribuir cookies como nas travessuras que Victoria Nuland estrelou”, referindo-se ao comportamento do número dois na diplomacia dos EUA durante uma visita à Ucrânia em 2013.
União Europeia. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, expressou sua confiança na “força das instituições americanas e na democracia. Uma transição pacífica está no centro”, tuitou a líder europeia. “Joe Biden ganhou a eleição. Estou ansiosa para trabalhar com ele como o próximo presidente dos Estados Unidos.” Da mesma forma, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, declarou que “contamos com os Estados Unidos para permitir uma transferência pacífica do poder para Joe Biden”.
Espanha. O presidente de Governo (premiê) Pedro Sánchez tuitou: “Estou acompanhando com preocupação as notícias que chegam do Capitólio, em Washington. Estou confiante na força da democracia americana. A nova presidência de Joe Biden vai superar este momento de tensão, unindo o povo americano.” Por sua vez, a ministra das Relações Exteriores, Arancha González-Laya, lembrou que “a democracia se baseia na transferência pacífica do poder: quem perde tem que aceitar a derrota. Confiança plena nos senadores e deputados para cumprir a vontade do povo. Confiança total no presidente eleito Joe Biden.”
Argentina. O presidente Alberto Fernández expressou sua “rejeição aos graves atos de violência e indignação do Congresso” e confiou em que “haverá uma transição pacífica que respeite a vontade popular”. Ele enfatizou seu “forte apoio ao presidente eleito Joe Biden”.
França. De Paris, o ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, condenou o “sério ataque à democracia” que representa o ataque ao Capitólio em Washington por partidários de Trump: “A vontade e o voto do povo americano devem ser respeitados”.
Venezuela. “Com este lamentável episódio, os Estados Unidos sofrem o mesmo que geraram em outros países com suas políticas agressivas”, diz um breve comunicado, que também condena “a polarização política e a espiral de violência”.
Folha de S. Paulo: Urna eletrônica tem apoio de 3 em cada 4 brasileiros, mostra Datafolha
Apoio à volta do sistema de papel é maior entre simpatizantes de Bolsonaro, que desacredita modelo atual usado nas eleições
Joelmir Tavares, Folha de S. Paulo
Para 73% dos brasileiros, o sistema de voto em urna eletrônica deve ser mantido no país, de acordo com pesquisa Datafolha realizada de 8 a 10 de dezembro. Na opinião de 23%, o voto em papel, abandonado nos anos 1990, deveria voltar a ser usado, e 4% responderam não saber.
O questionamento a respeito da segurança das urnas se intensificou após a eleição presidencial de 2014 e ganhou maior proporção a partir do pleito de 2018. Sem apresentar provas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) insinua haver fraudes e coloca o modelo em xeque.
Com a onda de notícias falsas e teorias da conspiração, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem realizado campanhas de esclarecimento e reafirmado que o formato e a tecnologia são confiáveis.
A pesquisa do Datafolha ouviu 2.016 brasileiros adultos em todas as regiões e estados do país, por telefone, com ligações para aparelhos celulares (usados por 90% da população). A margem de erro é de dois pontos percentuais.
Do total de entrevistados, 69% disseram que confiam muito ou um pouco no sistema de urnas informatizadas, que passou a ser adotado gradualmente em 1996. Outros 29% responderam que não confiam.
A desconfiança atinge percentuais superiores na faixa de pessoas de 25 a 34 anos. Dentro desse grupo, 26% afirmaram acreditar muito nas urnas (ante 33% na média geral) e 34% declararam não confiar nelas (ante 29% na média).
Essa fatia da população também é a que mais concorda com o retorno ao voto em papel, bandeira que é difundida por Bolsonaro.
A ideia alcança apoio de 26% entre cidadãos de 25 a 34 anos, enquanto a manutenção das urnas digitalizadas é defendida por 69% (os percentuais gerais são, respectivamente, 23% e 73%).
Quando os entrevistados são classificados em relação à renda, os que declaram ganhos de mais de dez salários mínimos tendem a acreditar mais na eleição informatizada, ao passo que os grupos com salários inferiores se inclinam para uma desconfiança maior.3 8
As urnas eletrônicas foram adotadas pela primeira vez em todo o país no ano 2000. O TSE considera que o modelo nacional de votação, contagem e divulgação dos dados é único no mundo.
Rumores sobre a insegurança do processo ganharam impulso na eleição municipal de 2020, com o atraso na divulgação dos resultados de algumas cidades no primeiro turno, em novembro.
A demora motivou a disseminação de mensagens em redes sociais colocando em dúvida a confiabilidade da apuração. Parte delas foi divulgada por políticos que apoiam Bolsonaro, como os deputados federais Bia Kicis (DF), Carla Zambelli (SP) e Filipe Barros (PR), todos do PSL, partido pelo qual o presidente se elegeu.
O TSE atribuiu o problema a uma dificuldade na totalização dos votos em Brasília, mas foi a público informar que a falha não afetava os dados registrados nas urnas nem os números finais.
A organização SaferNet Brasil levou à PGR (Procuradoria-Geral da República) denúncia de uma campanha de desinformação sobre o sistema eletrônico, envolvendo parlamentares e influenciadores digitais.
A PGR afirmou à Folha que o caso está sob análise na assessoria criminal do gabinete do procurador-geral Augusto Aras, mas não forneceu detalhes porque o caso tramita sob sigilo.
Além disso, tentativas de ataques hackers às plataformas do TSE, ocorridas antes do pleito, são alvo de investigação da Polícia Federal. Um suspeito de liderar a ação foi preso em novembro.
O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, sempre negou que a ofensiva tenha representado risco para a segurança interna. A PF confirmou que o ataque não prejudicou a integridade dos resultados.
Em entrevista à Folha no início de dezembro, Barroso rebateu as suspeitas de vulnerabilidade das urnas e disse que invadi-las é impossível porque elas funcionam sem conexão a uma rede de computadores, como a internet.
"A urna brasileira não é hackeável, se revelou até aqui totalmente segura", afirmou o magistrado.
Uma cartilha produzida pelo TSE para tirar dúvidas menciona a auditoria pedida pelo PSDB após a derrota do candidato da legenda, Aécio Neves, para a presidente reeleita, Dilma Rousseff (PT), em 2014.
Após ter acesso à base de dados, "a conclusão da equipe do partido foi de que o resultado da eleição correspondia fielmente aos resultados apurados", afirma o documento.
Três dias antes do Natal, Bolsonaro voltou a defender a aprovação de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) apresentada pela aliada Bia Kicis que prevê a impressão de uma cópia do voto registrado na urna eletrônica para eventual checagem posterior.
"Se a gente não tiver voto impresso, pode esquecer a eleição", respondeu ele a um apoiador que o questionou sobre o pleito de 2022, no qual deve disputar a reeleição.
Já na semana passada Bolsonaro deu informação falsa sobre a eleição na Câmara em nova defesa do voto impresso. Ele disse que as eleições para a presidência da Casa ocorrem no "papelzinho", quando na verdade o processo de escolha é eletrônico desde 2007.
Em vídeo recente no canal no YouTube do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o presidente afirmou que "70% ou mais da população" não confiam no sistema atual. Ele também reiterou apoio à PEC que institui a cópia impressa.
A medida chegou a ser aprovada pelo Congresso em 2015, mas foi declarada inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em setembro de 2020. A corte entendeu que isso colocaria em risco o sigilo e a liberdade do voto, aumentando a insegurança e favorecendo manipulações.
No dia do segundo turno das eleições municipais, de novo sem exibir evidências, Bolsonaro repetiu a afirmação de que as eleições de 2018 foram fraudadas. Ele diz também, sem apresentar nenhuma prova, que venceu aquele pleito ainda no primeiro turno.
Bolsonaro endossou as infundadas alegações de fraude feitas por Donald Trump nas eleições americanas em 2020. O presidente dos Estados Unidos foi malsucedido em ações judiciais que contestavam a vitória de seu oponente, Joe Biden.
A pesquisa do Datafolha mostrou que a descrença no sistema é maior entre aqueles que avaliam positivamente o governo federal e confiam mais no presidente.
A defesa da volta da cédula física, que na média é expressada por 23%, sobe para 32% entre os entrevistados que consideram a gestão de Bolsonaro ótima ou boa. Entre os que avaliam o governo como ruim ou péssimo, o retorno ao papel é apoiado por apenas 13%.
A manutenção do uso das urnas eletrônicas, aprovada por 73% do total de entrevistados, cai para 62% entre as pessoas que declaram sempre confiar no que Bolsonaro fala e chega a 81% entre quem diz nunca confiar nele.
O voto em papel, na avaliação de Barroso, é um anacronismo. "O tempo que tínhamos voto impresso é que tinha muita fraude", afirmou o presidente do TSE.
Já a deputada Carla Zambelli, que faz críticas ao atual sistema informatizado, disse à Folha que "há muita desinformação sobre o que é, realmente, o voto impresso".
Ela afirma que o comprovante previsto na PEC de Kicis ficaria de posse da Justiça Eleitoral para fins de auditoria. "Seria depositado em uma caixa de acrílico, sem contato manual do eleitor. É absolutamente falsa a alegação de que a pessoa poderia levar o comprovante do voto para casa", diz Zambelli.
Na visão da deputada, "implementar soluções tecnológicas para que o eleitor confie no sistema eleitoral deveria ser preocupação de todas as correntes políticas, não apenas de um só lado".
Especializada em privacidade e proteção de dados, a advogada e pesquisadora Maria Cecília Oliveira Gomes diz que a segurança do sistema brasileiro é incontestável. Ela menciona os testes públicos feitos há anos pelo TSE, com hackers convidados para tentar burlar as barreiras.
Para Maria Cecília, que é ligada à FGV e à USP, o movimento para desacreditar as urnas eletrônicas é uma das consequências da "polarização do debate público em relação a várias questões, incluindo os métodos eleitorais".
"Pode ser positivo o fato de as pessoas buscarem se inteirar, entender o mecanismo e como ele funciona. A transparência deve ser total. O problema é que muita gente questiona a confiabilidade baseada meramente em opiniões políticas, e não em fatos", afirma a especialista.
Procurado para esta reportagem, o TSE respondeu que sobre o tema "quem se manifesta é o presidente do tribunal" e lembrou a entrevista recente que ele deu ao jornal.
Questionado, o Planalto encaminhou transcrição de falas de Bolsonaro durante entrevista coletiva no Rio, em 29 de novembro.
Na ocasião, ele disse esperar que em 2022 o país tenha "um sistema seguro, que possa dar garantias ao eleitor que, em quem ele votou, o voto foi efetivamente para aquela pessoa".
Argumentou ainda que, com a alteração, "qualquer um pode pedir a recontagem naquela área. E você vai ter a comprovação do voto eletrônico com o voto no papel. É pedir muito isso?".
Yascha Mounk: Verniz de invencibilidade de Trump se desfaz com vitória de Biden
Republicano lançou tentativa de golpe mais incompetente desde 'Bananas', de Woody Allen
O presidente Donald Trump deixou uma coisa dolorosamente clara: depois de deixar a Casa Branca a contragosto, ele vai seguir fazendo tudo o que puder para continuar a ser notícia. Vai postar insultos e teorias conspiratórias no Twitter. Talvez abra seu canal de televisão próprio. E, segundo membros de seu círculo interno, é possível que se candidate a presidente em 2024.
Após meia década sob sua influência, muitos observadores políticos imaginam que Trump vai conseguir conservar a atenção da nação voltada para ele. Entendo por quê. Uma minoria considerável dos americanos acredita que a eleição foi fraudada e permanece profundamente devota ao presidente que está de saída.
Mesmo agora que a derrota de Trump libertou o Partido Republicano de seu captor, os políticos republicanos parecem estar sofrendo de um caso grave de síndrome de Estocolmo. E a única área na qual o 45º presidente já comprovou reiteradamente possuir talento real é sua capacidade de se manter no centro da atenção pública.
Mas, embora Trump ainda possa acabar se mostrando uma influência tão dominante sobre a política na década de 2020 quanto foi na década de 2010, esse resultado é menos provável do que muitos supõem.
Sobram teorias para tentar explicar a ascensão de Trump ao poder em 2016. De acordo com algumas, ele falou em nome dos economicamente despossuídos. Segundo outras, suas mensagens racistas disfarçadas atraíram eleitores preconceituosos.
Entretanto, embora as duas hipóteses ajudem a explicar parte de sua atração, a verdade é muito mais simples: milhões de americanos que não pensam muito em política encaravam Trump como um vencedor, um realizador.
Desde seus primeiros momentos de fama local em Nova York, ele vem moldando sua imagem pública cuidadosamente para dar ênfase a seu poder e seu sucesso.
Os insiders de Manhattan sabem que a verdadeira elite da cidade sempre o desprezou. Mas os leitores de seu livro “A Arte da Negociação” o encaram como exemplo rematado de um negociador dominante que sabe como usar seu poderio financeiro.
Jornalistas de negócios sabem que muitos dos empreendimentos de Trump foram à falência em pouco tempo e que ele poderia estar muito mais rico agora se tivesse simplesmente aplicado sua herança no mercado acionário. Mas, para a maioria dos americanos, o apresentador de “O Aprendiz” é a personificação de um empreendedor que construiu um grande império graças a seu incrível tino para os negócios.
Agora, porém, o verniz de invencibilidade de Trump está se desfazendo. Ele perdeu sua tentativa de reeleição e lançou a tentativa de golpe mais incompetente desde “Bananas”, de Woody Allen. Ele pode se enfurecer e falar loucuras sobre o que aconteceu em novembro, mas não poderá impedir seus seguidores de verem Joe Biden tomar posse em janeiro. O medo de qual pode ser seu próximo passo está dando lugar às gargalhadas. Trump está parecendo mais fraco e assustado a cada dia que passa.
Tampouco está claro se o presidente em final de mandato vai conseguir construir uma “Rede Trump de Jornalismo”. Se ele tiver um programa diário de uma hora na televisão, seus fãs mais devotos com certeza vão assistir. Mas, para ser comercialmente viável, seu canal teria que ampliar aquele público fundamental, atrair outros apresentadores que fossem capazes de conservar a atenção do público, contratar jornalistas que pudessem cobrir de fato o que acontece no mundo e atrair publicidade de empresas comuns.
Competir com a Rede Fox não seria fácil para ninguém que estivesse lançando uma nova rede de jornalismo conservador. Dado o histórico de incompetência de Trump tanto nos negócios quanto em seu cargo público, parece improvável que ele tivesse êxito nessa empreitada.
Tampouco é evidente que Trump pudesse realisticamente se candidatar à Presidência outra vez. Em 2024 ele pode estar falido, na prisão ou com a saúde muito fragilizada. E, mesmo que esteja em condições de disputar a candidatura presidencial republicana, ele não necessariamente a conquistaria.
O Partido Republicano teve uma composição ideológica relativamente estável no último meio século. O chamado “banquinho de três pés” unia conservadores sociais, defensores do livre mercado e figuras de linha dura na política externa, formando uma aliança intranquila, mas durável. Mas, precisamente pelo fato de a composição política do partido ser tão heterogênea, seus líderes mais influentes —de Richard Nixon a George W. Bush e de John McCain a Donald Trump— não guardam muita semelhança uns com os outros.
Que ninguém se engane: ainda é muito cedo para encarar Trump como carta fora do baralho. Pode ser que os americanos continuem a acompanhar seu feed no Twitter com horror ou fascínio pelos próximos quatro anos. Talvez os eleitores das primárias escolham Trump como candidato republicano em 2024. Pode até ser que Trump faça um retorno triunfal à Casa Branca.
Mas o que é possível não precisa ser provável. E as chances são muito boas que os americanos se entediem com as palhaçadas cada vez mais risíveis do mau perdedor que acabam de expulsar do cargo.
*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".